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Livros Acadêmicos

3.4 Os desafios da construção científica e pensamento crítico no ensino superior da enfermagem

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Daniela da Silva Santos [1]

DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/720

 

É imprescindível a importância da qualidade metodológica no ensino superior em diversas áreas de formação como forma de garantir a manutenção e melhoria nos serviços da rede pública e privada quando esses futuros profissionais adentrarem no mercado de trabalho.

Percebeu-se há um bom tempo e traz muita preocupação a precarização cada vez mais comum do ensino superior. Há necessidade de uma regulação adequada, principalmente no ensino privado. Isso porque ocorre em muitas dessas universidades, a perda da autonomia pedagógica por imposição de regimes protocolados por franquias que nem sempre consideram as especificidades regionais e as demandas específicas que garantam a qualidade de cada curso.

Desde 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), as faculdades privadas conquistaram o direito de oferecerem cursos de ensino superior trazendo diversificação e expansão desse ensino para vários lugares do Brasil, principalmente na região sudeste e sul.  Com o tempo, essa constante expansão de faculdades evidencia cada vez mais os objetivos empresariais que prejudicam a visão e o intuito do ensino.

Uma das grandes preocupações em matéria de ensino superior é o foco de lucratividade e rendimento, que se tornou meta exclusiva de muitas empresas educacionais. Muitas delas são financiadas por capital estrangeiro (tendo o ensino brasileiro papel de investimento internacional), trazendo com isso uma grave tendência de redução dos salários, aumento das jornadas de trabalho dos professores (para diminuir despesas) e aumento dos lucros com mais e mais unidades. Tal situação gera uma alta rotatividade de profissionais, quebrando o formato de ensino e prejudicando o aprendizado que deveria ser contínuo e estável (ALE,2015).

Dentro do campo da educação em saúde, ocorrem frequentes mutações que exigem renovação constante do sistema de educação com inclusão de novas práticas. Ser professor demanda capacidade técnica e um bom entendimento da metodologia pedagógica de forma peculiar, afinal não são todos os professores que conseguem prender a atenção dos alunos em sala (PIVETTA et al 2019). Com a precarização do trabalho dos professores e sendo pouco valorizados, tende-se a profissionais desqualificados dominarem as salas de aula.

Com o aumento da rotatividade e vínculos profissionais cada vez mais frágeis, é comum diminuir o compromisso com um projeto político pedagógico de qualidade no ensino. O professor se torna apenas uma peça da empresa que forma uma grande massa de profissionais de saúde em um mercado que prioriza mais a formação técnica. Se torna imprescindível conhecer a realidade e condições de trabalho dos professores, proporcionando discussões juntamente com entidades de classe e órgãos que criam políticas públicas da saúde e educação (LACAZ et al, 2005).

Outra problemática se refere a sobrecarga de trabalho muito comum em empresas privadas de ensino. Isso impede os professores de se dedicarem de forma eficaz á pesquisa e extensão, prejudicando a qualidade do ensino (PIVETTA et al 2019). Além disso, essas mesmas atividades não são remuneradas e não são tidas como prioridades pelas instituições, o que dificulta a sua realização de uma forma constante e adequada (LEONELLO; OLIVEIRA 2014).

É cada vez mais comum também doenças mentais na área acadêmica devido as condições de trabalho já citadas, que obrigam muitos desses profissionais terem dois ou mais empregos em locais diferentes tornando o cotidiano estressante e vulnerável a esse tipo de adoecimentos.

A produção acadêmica em saúde tornou os processos de ensino/aprendizagem e pesquisa/publicação uma autorreprodução sem significado e contextualização sociopolítica (SANTOS; SAMPAIO 2017). O que muito preocupa é o ensino raso, onde mais interessa ás empresas trazer benefícios aos alunos para que estes não saiam da faculdade e deixem de pagar as mensalidades do que de fato transformar pessoas comuns em seres pensantes, capazes de resolver problemas e com capacidade não somente técnica como de raciocínio e senso crítico, essenciais para um bom desempenho quando adentrarem no mercado de trabalho.

A qualidade do ensino privado é reflexo da inercia do Estado para criar políticas e leis que fiscalizem e cobrem mais qualidade nas escolas, bem como, a desvalorização profissional dentro desse setor, tendo reflexo negativo tanto no ensino, como na pesquisa e extensão (ALE,2015).

No contexto da educação em enfermagem, o empirismo foi substituído pelo saber científico a partir do século XIX, dando um grande passo após surgir a figura de Florence Nighthingale e a enfermagem moderna. Ao longo do tempo, diversas teorias de enfermagem foram surgindo, aumentando mais a configuração da enfermagem como ciência (DIAS et al 2016).

Com a globalização, o ensino da enfermagem sofreu diversas mudanças em todos os níveis de formação. Porém o novo modelo educativo estabelecido na educação profissional, colaborou para a precarização do trabalho pedagógico com, dentre muitos, o aumento de escolas profissionalizantes, contratos temporários e demissões sem direitos adicionais. Isso porque, no caso de remuneração por hora-aula, a organização do trabalho é prejudicada e na modalidade por módulos, o professor ministra o curso de forma fragmentada seja por bloco de aulas teóricas ou de estágios, distanciando a teoria da prática (LACAZ et al, 2005).

Diante de todo esse cenário generalizado de problemas já discutido nos parágrafos acima, tanto dentro como fora da área da saúde, com a criação de cursos na modalidade EAD na enfermagem, a situação se tornou ainda mais perigosa, pois sem uma específica fiscalização, muitos polos são feitos em garagens com professores recém-formados e muitas dessas faculdades não possuem condições adequadas para fazer os devidos estágios (COREN, 2017).

Considerando a importância que é a formação de profissionais qualificados para atuar em saúde, existe uma preocupação extra quando se inter-relacionam diversas dessas problemáticas dentro do contexto do ensino em enfermagem.

Desconstruir e construir envolve o pensar e o senso crítico que repercute no dia a dia de forma inovadora durante a prática profissional. O conhecimento, séculos atrás, atribuído a causas divinas, hoje é construído por método científico com elementos que mensuram, quantificam e verificam dados para reconstruí-lo de forma mutável e adaptável (DIAS et al., 2016).

Infelizmente, o que se observa na prática de docência são métodos que, ao contrário de estimularem os alunos a desenvolverem tal senso crítico, têm o objetivo exclusivo de facilitar o cumprimento de créditos ou alcance de notas dos alunos, muito além do controle do docente que atende as normas e regras estabelecidas pela empresa ao qual trabalha.

A enfermagem, sendo uma prática social relevante, precisa do amparo científico cada vez mais diversificado e complexo, construído a longo prazo e estabelecido por uma metodologia rigorosa e conceitual para indicar a necessidade de pensar e qualificar em ciência.  É de extrema importância o pensamento crítico na enfermagem a ser utilizado desde a prática assistencial a prática de pesquisa para construir e reconstruir o conhecimento (DIAS et al., 2016).

Dentre outras dificuldades específicas do ensino de enfermagem, têm-se também o perfil dos alunos que muitas vezes já trabalham na área e chegam na sala de aula muito cansados vindo de uma jornada árdua durante todo o dia e a infraestrutura institucional inadequada (LEONELLO; OLIVEIRA, 2014).  Uma situação que exige do professor métodos estratégicos e bem singulares para cada situação que façam esses alunos atenderem as condições de uma formação com qualidade.

Não é todo profissional que pode ser tido como professor, considerando que é necessário um conhecimento técnico-científico adequado sobre construção científica e estratégias metodológicas para o ensino de qualidade. Isso quer dizer que, exige-se um preparo deste docente para sala de aula, tendo necessidade de uma qualificação pedagógica específica para estes profissionais.

São dois mundos que não se casam, visto que as empresas querem ter poucas despesas e procuram recursos humanos a baixo preço de mercado, que dificilmente gerará mão-de-obra de qualidade, com profissionais desqualificados e não adequados para a atuação no ensino.

Para Melo, et al., (2020), é necessária uma abordagem política e sociológica dentro do ensino que somente profissionais mediadores de conhecimento conseguem abordar, considerando a questão cultural dos alunos. Determinar formas de abordagens e métodos que alcancem as especificidades do público-alvo exige um conhecimento específico pouco cobrado na realidade das instituições.

O panorama do ensino da enfermagem é a mercantilização do ensino movido ao lucro, aumentando a precarização da assistência desses futuros profissionais devido ao aprendizado defasado. Essa realidade exige uma mobilização dos profissionais de enfermagem para estimular a mudança no sistema educacional.

Os professores devem ter conhecimento de métodos que induzam os alunos ao pensamento crítico, isso porque não se produz ciência sem um problema que instigue pessoas a pensar, considerando que quanto maior for o pensamento, melhor será a resposta (DIAS et al 2016).

A faculdade hoje não produz pensamento crítico, nem cumpre sua finalidade política pois mantêm-se focada para alcançar o poder econômico e alta lucratividade, tendo um modelo organizacional com as leis de mercado como condição e o rendimento como fim (SANTOS; SAMPAIO 2017).

É necessário interesse para conhecer e discutir sobre as barreiras que impactam a qualidade do ensino da enfermagem pois o impacto desse ensino é diretamente observado nos serviços de saúde do SUS com as atividades que serão exercidas por estes futuros enfermeiros(as). Como diz Santos; Sampaio (2017): “A crise da universidade é a crise do pensamento. Pensamento ameaçado (em crise) contribui para formar sujeitos estranhos ao cenário onde interagem”.

Há necessidade urgente de transformar a forma de se fazer ensino, removendo o engessamento dos métodos e práticas de aprendizado em enfermagem, desconsiderando a ideia de saber “autossuficiente”, pois sempre estaremos em constante aprendizado e nos adaptando a ele; há necessidade de iniciar uma mudança social nessa prática de ensino, com contestação por meio de sindicatos, movimentos estudantis como resistência a essa proposta neoliberal que precariza o ensino da enfermagem (LEONELLO; OLIVEIRA 2014); assim como é preciso lutar por mudanças nas leis do ensino que hoje está estabelecido, cobrando melhores salários e a garantia de um ensino de qualidade acima de qualquer lucro, pois não existe lucro maior do que entregar a saúde da população nas mãos de profissionais capacitados e adequadamente preparados.

Todos precisam de saúde e é crucial que evoluamos para melhorias na categoria, priorizando a ética e a responsabilidade com a população, com garantia de direitos á cidadania, incluso o ensino de qualidade.

Referências

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DE SÃO PAULO.  Especialistas criticam precariedade e mercantilismo do ensino superior privado. 2015.  Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=362316. Acesso: 23 de dez 2022, 10h

COREN. Riscos de formação EAD. 2017. Disponível em: http://www.coren-ro.org.br/debate-destaca-riscos-da-formacao-ead-em-enfermagem_7466.html . Acesso: 26 de dez 2022, 12h

DIAS, JAA; DAVID; HMS; VARGNES OMC. Ciência, enfermagem e pensamento crítico – reflexões epistemológicas. Rev Enf, Recife, 10(4):3669-75, 2016. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/11142. Acesso: 24 de dez 2022, 8h

LACAZ, CPC; BASSINELLO GAH; MISSIO L; CRUZ, LP; BAGNATO, MH; RENOVATO, RD. Trabalho docente em enfermagem: Globalização e precarização. Em: 57 Congresso brasileiro de enfermagem 2005. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/57cbe/resumos/204.htm. Acesso: 25 de dez 2022, 13h

LEONELLO, VM; OLIVEIRA, MAC. Educação superior em Enfermagem: o processo de trabalho docente em diferentes contextos institucionais. Rev Esc Enferm USP, São Paulo, 48(6):1093-102, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/reeusp/a/VBcWQMZzYSgXjSjNXRQ447y/?format=pdf&lang=pt . Acesso: 26 de dez 2022, 21h

MELO, GC; SANTOS MSF; CAVALCANTI,  RJS; BARBOSA, VFB. Enfermagem e docência: percepções de acadêmicos sobre o ensino de enfermagem e a prática pedagógica. Revista Docência do Ensino Superior, Belo Horizonte, v. 10, e020716, p. 1-17, 2020. DOI: https://doi.org/10.35699/2237- 5864.2020.20716.

PIVETTA, HMF; SCHELMMER, M;ROVEDA, PO,ISAIA, SMA;POROLNIK S;COCCO, VM. Percalços da Docência Universitária nas Ciências da Saúde. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 44, n. 1, e75639, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/kczcn4TnCfP8Kx36tfMrT6F/?lang=pt . Acesso: 26 de dez 2022, 9h

SANTOS, LRCS; SAMPAIO, RJ. Crise social das instituições de ensino superior e a formação em saúde para o mercado. Saúde debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. Especial 3, p. 277-287, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/D5sPKzmDZZfCQZ7RhLxZQKf/?lang=pt. Acesso: 25 de dez 2022, 9h

[1] Mestre em ciências da saúde, especialista em saúde pública e docência para nível superior.

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Capa do Livro

Reflexões, Proposições e Desafios na Construção do Conhecimento Acadêmico e Científico no Brasil: 2022

DOI do Capítulo:

10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/

720

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10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/

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