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Livros Acadêmicos

2.3 A ciência como processo criativo na formação cultural de um país – desafios às nossas escolas

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 Andréa Velloso [1]

Luciano Luz Gonzaga [2]

DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/686

 

A sociedade, em qualquer de suas camadas, sempre procurou preservar costumes, lendas e tradições que a identifica. Posto isto, a identidade cultural de um povo compreende o compartilhamento de um conjunto de significados, atitudes, valores e de patrimônios comuns (língua, religião, manifestações artísticas etc.), incluindo as formas simbólicas em que eles são expressos como afirmara Sylvia Couceiro em Os desafios da história cultural, de 2002.

O homem diferenciou-se das outras espécies animais em seu trajeto filogenético porque começou a relacionar-se com o mundo de forma mediada por instrumentos e símbolos, ou seja, produzindo cultura (LEONTIEV, 1978, LAPLATINE, 2000). No âmbito da Antropologia, acredita-se que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu e assume-se a cultura como sendo essas teias (GEERTZ,1978). É na relação com o outro social que o ser humano se constitui como tal. A cultura torna-se parte da natureza humana num processo histórico, ao longo do desenvolvimento da espécie e do indivíduo. Assim, forma-se um ciclo onde a vida em sociedade produz as escolhas culturais que produzem a vida em sociedade.

Portanto, o que distingue o homem dos demais animais é a portabilidade de uma “consciência” derivada de um contexto social e cultural. Capacidade exclusiva que o permite conhecer, interpretar, simbolizar, perceber rituais e aprender intencionalmente e de forma consciente. Nesse intento, Lapartine (2000) em sua clássica obra intitulada Aprender Antropologia defende que a capacidade de criar e recriar é própria dos seres humanos e, por ela, diferenciam-se uns dos outros. Também, na perspectiva de Vygotski (1994), “é a atividade criadora do homem que, precisamente, faz dele um ser projetado para o futuro; um ser que contribui com a criação e que modifica seu presente” (1987, p.9).

Desta forma, parece possível articular os conceitos de cultura, desenvolvimento e criatividade por meio da perspectiva dialética. A criatividade surge do domínio sócio-histórico-cultural como produto da interação do sujeito com seu ambiente, impulsionada neste percurso pelos processos de desenvolvimento e aprendizagem (YAROSHEVSKII ,1987; FRANCISCO, 2022). Uma vez determinada pela cultura, a criatividade passa a ser elemento formador dessa mesma cultura. Surge como uma via de mão-dupla de onde se “cria” e onde passa a “criar”.

Outra forma de compreender as conexões entre cultura, desenvolvimento e criatividade está no conceito de imaginação. Imagens e formas nos fazem perceber, compreender, criar e nos comunicar. Estas imagens e formas nos conduzem à imaginação ou fantasia (ROCHA, 2016). E, segundo a ótica Vygotskiana (1994), a imaginação é a base de toda atividade criadora, manifestando-se em todos os aspectos sócio-culturais, oportunizando a criação artística, científica e teórica.

Assim, a ciência como produto da imaginação e da criação humana é parte constitutiva da formação cultural dos indivíduos e grupos sociais que a produzem. Nesse intento, vale reportar a grande artista Fayga Ostrower em Criatividade e Processos de Criação de 1978, a qual elenca que a ciência deve ser encarada como uma manifestação criativa existente na cultura seja do ponto de vista dos processos de produção, de difusão entre os pares ou de divulgação para sociedade, ou ainda do ponto de vista da dinâmica social da educação e dos processos de ensino-aprendizagem.

Fazendo um pequeno retrospecto, a partir do século XVI ciência e cultura passaram por transformações sociais importantes. Mas foi com o Movimento Iluminista, em meados do século XVIII, que o conceito de cultura foi deslocado para o sentido figurado e se ligou ao vocábulo civilização, segundo Denis Couche, no livro A noção de cultura nas ciências sociais (2002). E não há dúvida de que o Iluminismo foi a matriz do nosso mundo contemporâneo, principalmente pelo impulso que deu à ciência e à laicidade. A ciência, apoiada no método, constituiu um dos aspectos essenciais do movimento. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, a concentração de conhecimento produzido por cientistas de todo o mundo ultrapassa o que até então era considerado saber válido (ABBAGNANO, 2000). O domínio do conhecimento sobre o sistema planetário, a termodinâmica, a eletricidade, a biologia e a descoberta de que a Terra não era plana, cada vez mais se impunha o princípio de que o saber e a razão, e não a fé, deveriam nortear a busca das respostas para as questões da vida (GREGORY, 2003).

A ciência teve um papel de relevo no movimento filosófico do Século das Luzes, assumindo-se como um agente poderoso de progresso social pelo fato de permitir uma melhoria considerável das condições de vida do homem. Algumas contribuições importantes da ciência levaram à mudança de paradigmas sociais e, consequentemente, à ressignificação e reestruturação cultural da humanidade.

O homem é capaz de idealizar e materializar modelos úteis à sociedade, como a utilização da energia elétrica, a criação de vacinas no enfrentamento dos invisíveis (vírus e bactérias), os complexos aviões a jato, a difusão rápida de informações pela Internet e, lamentavelmente, as bombas nucleares e toda a tecnologia de guerra.

Uma das descobertas dos anos 50, que talvez tenha sido a principal responsável pela mudança na vida e no papel social da mulher, foi a pílula anticoncepcional que propiciou uma maior inserção deste gênero no mercado de trabalho e, também, uma liberdade sexual que ela ainda não conhecia (LOYOLA, 2010). O conhecimento do genoma humano e a terapia gênica, assim como a teoria da evolução por seleção natural proposta por Darwin representaram uma mudança na visão de mundo nos séculos XIX e XX marcando a história da humanidade de forma definitiva. São inúmeros os exemplos de objetos técnicos, cuja criação a ciência possibilita, que vemos se reproduzirem e renovarem à nossa volta, transformando o nosso meio ambiente, a saúde dos corpos, a vida doméstica, o trabalho e o lazer, nossas maneiras de calcular e de pensar, de dar a vida, de ir para a morte.

Esta visão da ciência como cultura e não apenas como um conjunto de saberes especializados vem sendo validada por diversos teóricos que comungam da ideia de que há mudanças epistemológicas e socioculturais em direção a novas formas de compreender o mundo (SANTOS, 2009; BURKE, 2008; SOARES,1992). Isso vem recebendo o nome de mutação cultural. A ciência como cultura é uma “ciência em perspectiva” que abre caminho a uma ciência entranhada numa solidariedade de saberes e de racionalidades (REIS, 2021). Trata-se de erguer uma ponte, em termos culturais, da comunidade científica para o cidadão comum. Em um horizonte de possibilidades, passou a aspirar-se a uma “ciência cidadã” (IRWIN,2009). Uma ciência para as pessoas que não se limitam a respostas à resolução universal de problemas; que tenha em conta os contextos em que os problemas são gerados; que dê “voz” aos cidadãos.

O produto da ciência apresenta um caráter universal, assim como a cultura de acordo com o universalismo francês, denotando todo um patrimônio de arte e conhecimento que se conhece como universal. Mesmo assumindo este caráter, há uma distribuição desigual dos benefícios da ciência. Diante dessa situação, o 9º Fórum Mundial da Ciência de 2019: convocado para repensar o uso do conhecimento científico, estabeleceu uma nova visão da ciência para o século XXI e acordou entre os países participantes, inclusive o Brasil, linhas de ação da mais alta relevância para o futuro das sociedades. Apoiada nessa diretriz, a Declaração reconheceu que o acesso ao conhecimento científico a partir de uma idade muito precoce faz parte do direito à educação de todos os homens e mulheres e que a educação científica é de importância essencial para o desenvolvimento humano, para a criação da capacidade criativa e científica endógena.

As Instituições educacionais, independentemente do nível de formação, desde sempre se consideraram fiéis depositárias da cultura e do saber. Entretanto, se à escola, entre outras coisas, cabe a responsabilidade de ampliar a dimensão expressiva e criativa de alunos, familiarizando-os com um mundo cultural alheio ao cotidiano de suas vidas, é premente a necessidade da escola se enxergar também como produtora de cultura e não somente como consumidora passiva de uma cultura pautada na lógica de mercado. Além disso, o consumo “descontraído” de cultura não leva à reflexividade, ou seja, não discute o conhecimento de modo a poder incorporá-lo em experiências de vida. O sujeito não modifica sua visão de mundo pelo que conhece, mas pelo trabalho realizado para conhecer. E é nesse aspecto que o processo criativo da ciência apresenta uma contribuição fundamental para formação cultural dos indivíduos.      Os indivíduos que estão em fase de formação de opinião precisam entender a dinâmica do processo científico e exercitar a liberdade criativa da ciência, para saberem questionar seu valor, limites e contradições. Maslow (2017, p. 132) define o pensamento criativo como o “processo de perceber lacunas ou elementos faltantes perturbadores”. Nesse propósito, o pensamento criativo apresenta-se de fundamental importância para a solução de questões para as quais a previsão e, por conseguinte, o estabelecimento de padrões a seguir tende a ser cada vez mais difíceis. “Na resolução de muitas dessas questões, está se tornando impossível fazer uso de normas existentes, por se tratar de problemas totalmente novos ou com conotações originais, que surgem a todo o momento” (SANTOS; CAMPOS, 2012, p.51).

A prática do processo criativo da ciência nas escolas é fundamental para a emergência de novas formas de comportamento e para o desenvolvimento de formas de imaginação e pensamento abstrato. A escola precisa refletir sobre a ideia mais recente do ‘sujeito sociológico’ que se forma nas relações com outras pessoas que mediam seus valores, sentidos e símbolos expressos em uma cultura, uma vez que um dos pilares do pensamento criativo é a possibilidade das heterogeneidades. Mas, não há compreensão e respeito para com as diferenças sociais e culturais nos ambientes educativos. Ao invés de receber educação para o pensamento criativo, crítico e inovador, nossos jovens ainda estão sendo preparados para os chamados ‘trabalhos de commodity’ em um mundo que, muito em breve, premiará apenas aqueles que consigam produzir trabalho inovador, punindo aqueles que não tenham condições de fazê-lo ou de se quer argumentar contrariamente (LEPRIQUE; GOMES, 2021). E o agente principal desta ação é o professor, porque professores fecundos e criativos são dinamizadores do potencial criativo de seus alunos. Portanto, é sine qua non que, na formação identitária do professor, o processo criativo seja despertado constantemente na sua práxis.

Conclusão

Defendemos que a Educação tem o compromisso basilar em contribuir na/para a formação de cidadãos críticos e criativos, valendo-se da inventividade do professor para dinamizar suas aulas, torná-las significativas e incentivar soluções. Só assim, o processo da criatividade e criticidade constituirão em um ciclo virtuoso e serão vistos como componentes da vida e do desenvolvimento sustentável. 

Referências 

ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BOCK, A.M.BA. A perspectiva sócio-histórica de Leontiev e a crítica à naturalização da formação do ser humano: a adolescência em questão.  Caderno CEDES, v.24, n. 62, 2004.

BURKE, P. O que é história cultural? Rev. e Ampl. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

COUCEIRO, S. Os desafios da história cultural. In. BURITY, Cultura e Identidade: perspectivas interdisciplinares. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

COUCHE,D. A noção de cultura nas ciências sociais, EDUSC; 2ª edição, 2002.

FRANCISCO, M. A., & ZIMBICO, O. J. (2022). Homem, cultura e sociedade / Man, culture and society. Brazilian Journal of Development8(3), 15769–15782, 2002.

GEERTZ, C. Descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. IN: A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978.

GREGORY, F. The History of Science 1700 – 1900. Course Guidebook. The Teaching Company, 2003.

IRWIN, A. Ciência cidadã: um estudo das pessoas, especialização e desenvolvimento sustentável. Lisboa: Instituto Piaget, 2009.

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. 12 reimp da 1 ed, (1988), São Paulo: Brasiliense, 2000.

LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Horizonte, 1978.

LEPRIQUE, K. L. P. A; GOMES, L. C. A História da Ciência e a argumentação nas aulas de Física. Revista de Educação, Ciências e Matemática,    v.11,n.1, e54162021.

LOYOLA, M.A. Cinquenta anos de anticoncepção hormonal: a mulher e a pílula. Com Ciência [online]. n.119, 2010.

MASLOW, A. H. (1969). Creativity and self-actualizing people. Em H. H. Anderson (Org.), Creativity and its cultivation (pp. 83-95). New York: Harper & Row, 2017.

MELLO, L. G de. Antropologia Cultural iniciação, teoria e temas. Petrópolis: Vozes, 1982.

OSTROWER,F. Criatividade e Processos de Criação. Vozes. RJ. 187p. 1978.

REIS, B. A. Das mutações na cultura contemporânea a uma crise de legitimidade da autoridade no social / From changes in contemporary culture to a crisis of legitimacy of authority in the social. Brazilian Journal of Development, 7, 1, 1432–1443, 2021.

ROCHA, G. A imaginação e a cultura. Revista Teoria e Cultura v. 11 n. 2, 2016.

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SOARES, M.; A ciência como cultura, Imprensa Nacional/Casa da Moeda: Lisboa, 1992.

VYGOTSKII, L. S. (et. al.) Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 5 ed. São Pulo: Ícone / Edusp, 1994.

WSF. Declaration of the 10th World Science Forum on Science for Social Justice, 2022. Disponível em https://worldscienceforum.org/contents/draft-declaration-of-world-science-forum-2022-is-now-open-for-comments-110144

YAROSHEVSKY, Mikhail G.; PETROVSKY, YAROSHEVSKY, Mikhail G.; PETROVSKY, Arthur V. A Concise Psychological Dictionary. New York: International Publishers, 1987.

[1] Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre em Ciências Biológicas e Doutora em Ciências – área de concentração em Educação, Gestão e Difusão em Biociências, ambos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi membro do Comitê de Implantação do Mestrado Profissional em Educação, Gestão e Difusão em Biociências da UFRJ. Coordenou a Reestruturação Curricular na área de Biologia (Currículo Mínimo) da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente Coordena o Programa de Pós-graduação em Ensino das Ciências na UNIGRANRIO, onde atua em dedicação exclusiva. É JOVEM CIENTISTA DO NOSSO ESTADO/Faperj (2016-2019/2020-2023) e bolsista 1A de Produtividade em Pesquisa da FUNADESP. Tem experiência na área de Educação com ênfase em Representações Sociais e Formação Docente, Ensino de Ciências, Educação STEM, Práxis Pedagógica e Educação à Distância.

[2] Professor adjunto do Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências da UNIGRANRIO. Doutor e Mestre em Ciências (Educação, Gestão e Difusão em Biociências), pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Capes 7). Especialista em Gestão em Educação Pública pela Universidade Federal de Juiz de Fora e em Ensino de Ciências e Biologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduado em Ciências Biológicas pela UFRRJ e em Pedagogia pela UNINTER. Foi Gestor de uma escola pública, na Baixada Fluminense -RJ, no período de 2005 a 2010.Foi articulador e conteudista do Currículo Mínimo de Biologia para o Ensino de Jovens e Adultos-EJA para a Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC) e um dos elaboradores dos descritores do currículo de ciências da Secretaria Municipal de Educação de Belford Roxo (SEMED).

Andréa Velloso

Andréa Velloso

Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre em Ciências Biológicas e Doutora em Ciências - área de concentração em Educação, Gestão e Difusão em Biociências, ambos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi membro do Comitê de Implantação do Mestrado Profissional em Educação, Gestão e Difusão em Biociências da UFRJ. Coordenou a Reestruturação Curricular na área de Biologia (Currículo Mínimo) da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente Coordena o Programa de Pós-graduação em Ensino das Ciências na UNIGRANRIO, onde atua em dedicação exclusiva. É JOVEM CIENTISTA DO NOSSO ESTADO/Faperj (2016-2019/2020-2023) e bolsista 1A de Produtividade em Pesquisa da FUNADESP. Tem experiência na área de Educação com ênfase em Representações Sociais e Formação Docente, Ensino de Ciências, Educação STEM, Práxis Pedagógica e Educação à Distância.

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Capa do Livro

Reflexões, Proposições e Desafios na Construção do Conhecimento Acadêmico e Científico no Brasil: 2022

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