Antonio Luiz da Silva [1]
Diana Sampaio Braga [2]
DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/704
Como se estivessem reproduzindo os universos políticos e/ou religiosos, de certo por estes sistemas serem mais antigos e consolidados nas comunidades humanas, parece que as práticas comuns das ciências têm se acostumado a funcionar como que em igrejas e partidos próprios, em ambientes cercados pelas redomas dos altares e das ideologias metodológicas, intelectuais, regionais, nacionais, internacionais, onde cada qual deve pisar apenas no seu quadrado. Assim, as ciências têm se arredomado, revestindo-se em importâncias mais para o norte e menos para o sul. Não sem motivo, como afirma Santos (2015, p. 25): “Com efeito, a racionalidade que domina no Norte tem tido uma influência enorme em todas as nossas maneiras de pensar, em nossas ciências, em nossas concepções da vida e do mundo”. Nesse sentido, as ciências parecem ser mais vistosas em países ricos e menos ‘vitais’ em países empobrecidos. Mas também, seu status geral é mais amplo quando se refere às ciências da natureza e menos visível nas ciências sociais. Além disso, o investimento financeiro dispensa maior montante econômico nas ciências relativas à saúde, ficando a menor cifra para as ciências que se debatem no campo das humanidades.
Está cada vez mais claro que no entorno do empreendimento chamado ciência estão questões políticas, econômicas, culturais de magnitudes incomensuráveis. Por essas e outras razões, cada crença ‘dita científica’ costuma ter infinitas dificuldades para dialogar abertamente com qualquer que seja o ‘credo’ que se posicione do lado disputante, mesmo aqueles que estão distantes ou diferentes de sua visão, não precisando sequer ser oposto ou estar em oposição conflitante.
Diálogo parece ser um movimento difícil no campo científico, tanto no plano prático quanto no plano teórico. Em alguma medida, quando o assunto é ciência, parece ser mais importante alumiar as diferenças, mesmo que sejam mínimas, em relação àquilo a que cada grupo consolidado se habituou a lidar.
Seria apenas um ranço do passado, estabelecido quando as ciências modernas estavam nascendo? Teria isso algum sentido ainda hoje? Acaso houve no passado alguma cláusula para que esse comportamento se prolongasse permanentemente reiterado? Talvez por algum motivo que visava um certo e necessário diferenciamento, ao invés de uma delimitação de espaço/objeto, as ciências acabaram estabelecendo um distanciamento abissal umas das outras, passando cada qual a defender, a ferro e a fogo, o seu quinhão particular no universo global do conhecimento. Nada mais tonto.
Não é mais possível que não haja diálogo nas ciências e que elas continuem a defender uma postura cada vez mais arraigada, de fechamento, de ilhamento entre os saberes. Não é necessário que cientistas se ignorem mutuamente.
Neste ensaio assume-se a tarefa de refletir sobre a questão do diálogo nas ciências, tomando como espaço específico o fazer na psicologia. Não se tem a pretensão da palavra derradeira. Admite-se que esse campo precisa continuar sendo olhado, em comunhão com muitos outros pensadores, alguns abaixo citados e outros referenciados. No entanto, mesmo que se reconheça a quase inexistência de diálogo internamente, é possível reconhecer que algumas subáreas dos saberes psicológicos conseguem canais de diálogos na direção de alguns saberes externos. Buscar-se-á argumentar acerca da importância do diálogo tanto interno quanto externo, defendendo-se ser o gênero humano o ponto de partida e o maior objetivo tanto da ciência em geral quanto da psicologia em suas subdivisões particulares. Defende-se a construção de uma psicologia plural, diversa, mas não fechada. Julga-se oportuno e necessário o diálogo amplo e específico, interno e externo, macro e micro.
Para facilitar a leitura, após essa breve introdução, o texto foi dividido em dez pequenos pedaços, além da conclusão. Embora guardando estreitas relações, cada pedaço poderá ser lido de modo independente.
O separatismo nas ciências que estudam o ser humano
Ilustrando-se essa lógica dos muitos abismos construídos pelo fazer científico, observe-se o caso específico da psicologia e da sociologia. Embora ambas, psicologia e sociologia, tenham o mesmo interesse centralizado no humano, se diz, de modo separatista, que o objeto da psicologia é o individual e o da sociologia é o coletivo, que a primeira é ciência do privado ao passo em que a segunda é ciência do social. Imagine-se que não se trata de questionar a força ou a fragilidade dessa ‘verdade’, ela já está nua por princípio. Mas de reconhecer o seu caráter nocivamente reificado. Talvez esse tipo de observação deva se estender para as ciências sociais, incluindo-se a antropologia e a ciência política. Devem ser elas também separadas?
A lógica do espaçamento no campo da ciência vai do didático ao desmedido. Recorda-se aqui o relato de um palestrante querendo esclarecer a diferença entre sociologia, antropologia e ciências políticas. Grosso modo, o seguinte foi seu argumento: tome-se uma cidade. A sociologia se interessa por ela inteira, tendo que dar conta de compreender a cidade toda como um sistema global, considerando-a em seus mais variados aspectos sociais. Diferente da sociologia, a antropologia iria se interessar apenas por uma parte da cidade. Ou melhor, se interessaria, quando muito, por uma de suas ruas, por um beco ou uma viela. E nesse universo, a ciência política se interessaria pelo sistema de governo, pelas relações políticas. Numa explicação assim, não some o humano? Imagine-se o que nessa hipotética cidade sobraria à psicologia…
Está dito, grosso modo, que a psicologia é a ciência do indivíduo, do comportamento. É importante sempre que o trabalhador da psicologia se pergunte: se a psicologia é a ciência do individual, seria possível que ela se interessasse apenas por indivíduos arrancados da coletividade? Seria possível uma leitura do comportamento ou da individualidade sem as muitas conexões? Nem toda psicologia é individualista. Seguindo o raciocínio de Bock, Furtado e Teixeira (2001), a psicologia se interessa pela subjetividade humana, tendo-a como seu objeto de estudo. E, nesse aspecto, a subjetividade humana deve ser estudada, na globalidade da cidade, no atravessamento geracional e relacional, no conflito e no consenso, no entrecruzamento dos arranjados políticos administrativos do viver, nas relações miúdas enfrentadas no meio do pequeno terreiro ou da grande praça, trancada em um beco ou a céu aberto.
De fato, num simplismo terrível, se só tem um indivíduo, pode-se acreditar que esse deve ficar a cargo da psicologia, como se o modelo dessa disciplina fosse apenas o de uma clínica psicológica asséptica. Porém, se houver mais gente, formando um aglomerado, deixa-se à sociologia, porque é esta quem consegue dar conta dos agenciamentos coletivos. Aliás, até mesmo a psicologia social, cujo adjetivação ‘social’ lhe faz uma defesa demarcatória, não conseguiu ficar imune à essa rotulação. Tanto assim é que ela precisou da alcunha de psicologia social psicológica e psicologia social sociológica, na tentativa de compreender o enraizamento desse individualismo nela historicamente instalado (FARR, 1998).
Dentro desse movimento de afastamento, se diz também que ao contrário da antropologia, da sociologia e da ciência política, a psicologia faz parte do universo das ciências da saúde e não das ciências sociais ou que ela faz parte das ciências humanas e as outras fazem das ciências das sociedades. Ora! Não têm todos os interesses pelas causas humanas? E os humanos onde vivem? Talvez esse tosco argumento comece de vez a ser quebrado com a entrada de antropólogos e sociólogos no campo da saúde (FLEISCHER, 2012; PEREIRA, 2016).
A dificuldade do diálogo no âmbito intradisciplinar
É importante ainda reconhecer que o problema do enclausuramento não tende a apenas ao interdisciplinar. Não se trata somente de “A” que não consegue dialogar com “B” e com “C” e com o restante do próprio alfabeto acadêmico, tanto em seu aspecto soft quanto em seu caráter hard das ciências exatas ou sociais (BORJAS GIL, e VÍLCHEZ PAZ, 2010). Trata-se da constatação de que o fenômeno do não diálogo e das falas truncadas se reproduzem também na esfera intradisciplinar. É, então, o “A” que, por algum motivo, não consegue conversar com facetas inversas do próprio “A”. É como se os campos disciplinares dos saberes sociais e humanos tivessem fechado suas portas e janelas para seu próprio interior. E dentro de seu próprio casulo parece que eles também fecharam entradas e acesso aos seus possíveis compartimentos.
Olhando de longe, as disciplinas podem até se assemelhar a grandes blocões de conhecimentos sistematizados, mas, adentrando-se em seu íntimo, o que se revela melhor são os seus espatifamentos, seus cacos, ocasionando mil faces turvas, umas nem conseguindo olhar para as outras. Internamente, as disciplinas estão trancadas por suas correntes, abordagens, referenciais teóricos, bases epistemológicas, coisas que elas próprias inventaram em seus caminhos.
Nos espaços da psicologia, campo aqui tomado de modo particular, como já mostrou Luiz Cláudio Figueiredo (1996), há verdadeiramente uma gigantesca fragmentação, o que faz com que todos os galhos e ramificações da disciplina estejam praticamente isolados, se alimentando de fontes as mais desconectadas possíveis de uma globalidade disciplinar. A psicologia desconhece a própria psicologia. A abordagem psicanalítica não sabe de onde vem abordagem cognitivo-comportamental, que não sabe quem é a abordagem gestáltica etc. Dessa forma, nos rompantes das muitas posturas acadêmicas psicológicas o hábito é alumiar muito mais aquilo que desune, que é irreconciliável, e muito menos aquilo que mostra os muitos ramos como membros de uma mesma família, como parentes intelectuais.
É claro que é importante reconhecer o esforço dos historiadores da disciplina psi. Eles acreditam que, conhecendo bem as origens e ramificações desse fazer, talvez assim seja possível um abraço conceitual, uma quebra dos preconceitos que ameaçam, que viram as costas e tantas coisas que afastam (SCHULTZ e SCHULTZ, 2002).
A saga do pensamento sempre encaixotado
É verdadeiro que a psicologia tem se estabelecido num conjunto de caixas e caixinhas. Naquelas caixinhas tem sido colocados os pensamentos mais criativos de algumas pessoas. Quem olha dentro de uma caixinha, praticamente, fica empatado de olhar o que tem no interior da outra. Porém, a primeira surpresa é que muitos dos considerados criadores das determinadas caixinhas não se intitulavam criadores daquelas caixinhas. Em muitos casos, foram seus comentadores que, em algum momento e com um determinado olhar, a eles se dirigiram e assim os denominaram, a posteriori, às vezes na qualidade de seus críticos. E o mais impressionante é que muitos dos criadores daquelas caixinhas não as criaram para os lugares em que hoje elas se encontram armazenadas. Assim, alguns pensamentos viraram caixinhas personalizadas, mesmo que não quisessem seus formuladores.
Pode-se trazer a título de exemplo o grupo da psicanálise, mas poderia ser da psicologia experimental ou de qualquer outra psicologia. Jacques Lacan, Françoise Dolto, Winnicott não disseram que eram lacanianos, françoisianos ou winnicottianos. Melanie Klein nunca afirmou ser kleiniana e mesmo Freud nunca disse ser um grande freudiano. No entanto, seguindo a lógica das caixas e caixinhas, hoje todo mundo afirma que esses e outros autores constituíram escolas dentro de uma escola, a psicanálise. Teriam acaso quebrado o paradigma fundante? A psicanálise, inicialmente somente uma caixa, tornou-se ao longo dos anos uma grande caixa com várias caixinhas dentro?
Fato é que pode mesmo chegar a acontecer de alguns seguidores dos pensamentos colocados nessas caixinhas terem dificuldades, ou vergonha, de dialogar com o todo daquela herança maior fora de seu caixote específico.
No Brasil, por exemplo, já se diz, possivelmente, que Luiz Cláudio de Figueiredo, Jurandir Freire Costa, Maria Rita Kehl, David Levisky e vários outros não são mais psicanalistas ou só psicanalistas. Uns pertencem ao campo freudiano, outros ao campo lacaniano e outros ainda hão de pertencer sabe lá Deus a quem. Por isso, são quaisquer coisas novas, dadas as lonjuras que eles assumem em seus escritos no que diz respeito a essa lógica hegemônica de encaixotamento, por vezes obtuso, muitos assumindo um pensamento mais aberto, coadunantes com seus tempos. Estão mesmo construindo escolas ou novas pequenas caixinhas? Não cabem mais dentro da caixa maior que a genialidade de Freud inventou, a psicanálise? Não são trabalhadores do universo psi ou da psicanálise?
Mas muitos defendem que seus pressupostos são bem outros. E qual é o problema? O ideal seria reproduzir ad infinitum para não correr o risco de ruptura paradigmática? Ou o ideal seria não olhar para além do posto? De certo caberia bem aqui a ideia de uma ciência normal no sentido utilizado por Thomás Kuhn (2003), cujo sentido deseja ser imutável e sólido. De qualquer forma, sempre é possível pensar que uma teoria comporta várias versões. Uma teoria é um farolzinho aproximativo que clareia o real. E vai clareando ao redor do real.
As várias faces ou a face da psicologia social
Ainda dentro da psicologia, tome-se um exemplo da experiência brasileira: a psicologia social. Hoje independente de suas muitas origens, das formas de pensá-la e concebê-la, do modo como ela se apresenta, seria quase ou impossível colocá-la numa mesma caixa. Quem poderá imaginar a grande Sílvia Lane e o grande Aroldo Rodrigues e todos os seus discípulos num mesmo lugar? E quem o fizer será acusado de irresponsável, de sincrético, de ilógico, de formulador de coxas de retalhos etc.
Mas que vantagem representa, depois de tanto tempo, esse separatismo radical? Não são ambos, em algum momento de suas vidas, trabalhadores da psicologia que se diz social? Suas diferenças não enriquecem o olhar desse subcampo disciplinar? Uma vez permanecendo assim, ainda se trata de uma mesma disciplina? Por que assumem, desaforadamente, a mesma rubrica?
Essa situação sempre exige que seus iniciados tomem partidos, apoiando um ou outro lado, ou inventando outra lógica para pensar o elemento psi no mundo social, configurando assim um terceiro olho no meio da testa, esgarçando ainda mais a teia complexa das relações nessa subdivisão disciplinar.
Aliás, chamando a atenção sobre a multiplicidade desse subcampo, que parece não estacionado nesses dois grandes nomes e/ou modelos, os profissionais da psicologia social no Brasil contemporâneos, conforme Cordeiro e Spink, (2014, p. 289): “Uns(mas) baseiam-se nas leituras do Materialismo Histórico-Dialético para estruturar sua prática profissional, outros(as) preferem as leituras construcionistas ou ainda as da Teoria das Representações Sociais”. Do que se depreende dessa leitura, a situação vem chegando a tal complexidade que os pensadores têm medo de se citarem uns aos outros, ficando sempre com o pé atrás ou com pulgas atrás das orelhas, para não incorrem em erros graves, em desvios de percursos intelectuais, mesmo em relação àqueles que agem sob o manto do mesmo distintivo disciplinar ou subdisciplinar. Também nesse campo, a impossibilidade de diálogo é a regra.
Portas fechadas para dentro, janelinhas abertas para fora
É claro que esse medo do interno abre possibilidade para outra direção. Ainda no campo psi, para não praticar total injustiça, deve-se admitir que apesar de frequentemente fechados para dentro, já existe um pouco mais de abertura para o exterior. Não é possível esclarecer se se trata de aberturas, de capturamentos ou de apropriações indébitas. Fato é que já foram trazidos, traduzidos, adaptados e adotados pela psicologia: S. Freud, K. Marx, Jean Paul Sartre, B. Husserl, M. Heidegger, M. Merleau-Ponty, M. Foucault, P. Ariès, F. Guatari, G. Deleuze, S. Moscovici, E. Morin, J. Piaget, S. L. Vigotski, H. Wallon, F. Varela, Emília Ferreiro, Sara Paim, Paulo Freire, Pedrinho Guareschi, P. Bourdieu, M. Bakhtin, Bruno Latour etc.
Os blocos da disciplina que se dedicam aos pensadores acima aludidos os entendem como as grandes luzes da psicologia que praticam. Mas, de onde eles vêm? Do Sul? Do Norte do mundo? Dos países desenvolvidos? Do mundo em desenvolvimento? De quais saberes suas reflexões se originaram? De qualquer modo, pela seleção de pensadores externos também é importante notar que não são todos os grandes pensadores que brilham no areópago da psicologia, mas alguns…
Entretanto, esquecendo suas origens geopolíticas, será que se fossem atrás dos referenciais que formaram, ao menos por algum tempo, o background desses pensadores, não se diria, de pronto, que seus pressupostos também não conseguiriam dialogar com a psicologia em seus fazeres hodiernos?
E, o mais incômodo, o que aconteceria se esses pensadores pudessem interpelar de volta a psicologia que eles muitas vezes, à revelia, ajudam a iluminar? Será que não estranhariam quando dessem conta das muitas formas que a psicologia se apossou de seus sistemas? Perguntar não ofende.
De qualquer forma, assim como pouca importância tem sido dada à suas origens geopolíticas, ignora-se retumbantemente a origem disciplinar de todos eles. Por ironia do destino científico, muitos desses grandes luzeiros da psicologia de hoje nunca desejaram se tornar psicólogos e muitos deles, além de não terem se interessado por uma formação nos espaços psi, iniciaram suas carreiras acadêmicas em outros campos. Pode-se dizer que para muitos, a psicologia ainda não existia. Mas não é o caso de todos.
Muitas vezes a psicologia tem utilizado o que é de outros campos sem pedir licença, sem paga tributo pelos empréstimos feitos. Essa contradição não declarada e muitas vezes não assumida pela psicologia deve ser tomada como, no mínimo, interessante. Postura que lembra o comportamento do poeta Pablo Neruda, para quem uma poesia depois de publicada perdia o dono. Agindo assim, como o contribuinte espertalhão que sonega impostos, os trabalhadores da psicologia põem a nu as suas mais ambiciosas pretensões e até mesmo o poder de parte de todas as suas querelas.
É verdadeiro também que alguns autores e teorias, muitas vezes, são tomados por modismo editorial. Mas como não se tem olhos pra isso, eles têm produzido, alguns no pós-morte, muitos frutos bons. E independente do que deles se pense, todos têm colaborado com a ciência psicológica, sem dúvida.
Defende-se, de qualquer forma, que com essa postura de cancelas fechadas para dentro e um pouco mais abertas para fora a psicologia acaba tendo uma prática menor, com força espalhada, sem pujança. Dentro de sua própria cabana, encolhida em si, cada corrente defende coisas bem difíceis, levando em conta somente o seu grupelho, cada qual entendendo sua racionalidade como a única, melhor, mais correta.
Da hibridez que, à revelia, a ciência psicológica tem se tornado
Agora, reparada de fora de seus espaços, dados os muitos casamentos que já conseguiu efetuar com forasteiros, pela diversidade de ideias alheias que acolheu em seu fazer, e aqui atente-se não somente para a prática brasileira, a psicologia destaca-se hoje bem diversificada em suas misturas. Sua hibridez, contudo, é muito mais expressa em seus movimentos exogâmicos do que endogâmicos. Por conta de seu autorechaço, não há ainda uma hibridez interna consolidada, porque ela alimenta um comportamento muito fascinado pelo que se produz extramuro.
Claro está que, assim como muitos dos componentes da etnicidade na cultura brasileira que são difíceis de serem assimilados, a psicologia também parece ter dificuldades para se assumir. Uma vez não assumindo a hibridez que já a conquistou, acaba desenvolvendo, como consequência, o mascaramento daquilo que ela verdadeiramente tem sido: plural, diversa, humana, mundana.
Pedir que a psicologia se assume ela própria não é descabida. Acredita-se que esta observação caminha muito ao encontro da defesa de Ana Bock (1999) quando assumia que a identidade do profissional de psicologia não pode ser estática, mas em movimento que se coadune com a defesa de um compromisso social mais ampliado.
Entende-se então que a não assunção de sua identidade pública, notória, desencapada, já suficientemente miscigenada, do ponto de vista científico, tem conduzido a psicologia à construção de uma ciência meio desgarrada, desenraizada, fragmentada ou com sérios problemas identitários, no mínimo. Portanto essa hibridez que já se expressa em algumas de suas características, precisa ser assumida em seu âmbito interno. Sem essa consciência, a psicologia será apenas um serviço de guetos.
É necessário assumir que a assunção pública da miscigenação na psicologia poderá ser extremamente valiosa. Penso que, ao menos no Brasil, assumindo suas feições cotidianas, ela expressaria melhor seu compromisso com a realidade cultural, misturada, rica em suas diversas nuances e poderia comprometer-se cada vez mais firme com essas feições.
Perguntar não é nunca ofensivo: por que defender os vários fechamentos?
A essa altura da reflexão, não é mais possível acreditar que a lógica suprema esteja no humanismo, no marxismo, na fenomenologia, no feminismo, no construcionismo social, nas representações sociais, na história oral, no construtivismo, no sociointeracionismo, enfim… Por que o praticante das muitas psicologias tem que a priori se definir por uma verdade secreta ou pública qualquer que seja? E, se definindo por uma, porque tem que abrir fogo inimigo contra as outras, taxando-as de inválidas? Por que não indagam as razões muitas de seus surgimentos?
Da mesma forma, por que acreditar que a solução se encontra na pesquisa quantitativa ou somente na qualitativa, dentro dum drama positivista ou exclusivamente interpretativista?
Entende-se a importância desses óculos e/ou ferramentas. Mas há que se admitir que a vida tem muitos mistérios e alguns dos quais bem caprichosos e irredutíveis a enquadramentos sumários, atemporais etc. Por que, por exemplo, não seria a quantificação “[…] uma ferramenta cultural de apoio ao esforço global de construção de conhecimento neste domínio, ferramenta esta que pode, em contextos específicos, prestar serviços de amplificação da observação de valor inegável” (FALCÃO & RÉGNIER, 2000, p. 241)?
E onde a lógica verdadeira estaria: no objetivismo ou no subjetivismo? No realismo, no relativismo? Saliente-se que nenhuma objetividade sobrevive sem uma subjetividade. Aliás, mesmo que usado à revelia, para Tonet (2011, p. 86): “Subjetividade e objetividade são dois momentos em termos ontológicos de igual estatuto”.
Assim, o autoisolamento, fortemente marcado por lógicas autoexcludentes, não tem sido nem o melhor caminho nem a saída para os impasses humanos, nem políticos nem acadêmicos. Mas uma coisa essa realidade da ciência em geral e da psicologia em particular tem revelado: é extremamente difícil o diálogo respeitoso, fecundo.
Sobre a reprodução de pensamento parcelar
De qualquer forma, é importante lembrar que apesar dos ataques, abertos ou encapsulados, desferidos para o interior dos saberes científicos, muitas lógicas díspares coexistem desde as mais remotas produções disciplinares, com frequência caminhando em estradas paralelas muradas.
Pensando em especial no universo psi e em toda a sua parentela intelectual intradisciplinar lembre-se aqui das psicometrias, hoje também conhecidas como práticas avaliativas e de psicodiagnósticos e relidas de mil outras formas, lembre-se das psicologias experimentais, animal e humana, das psicologias da personalidade, das psicologias em diálogo com a estatística, da própria psicanálise, das psicologias do desenvolvimento humano, das psicologias das aprendizagens, das dinâmicas de grupos, muitas vezes confundidas com as autoajudas etc. Estes subcampos psi, sobrevivendo, horas mais horas menos, sob os inúmeros fogos cruzados das enormes guerrilhas parentas, estranhamente continuam enriquecendo a disciplina com pesquisas fecundas e vastos aprofundamentos. Entretanto, o que uma psicologia tem dito a outra? Em que medida uma tem fecundado a outra? Quantas vezes um pesquisador de uma psicologia vai citar o outro sem medo de uma condenação intelectual?
Assim com os demais saberes, isoladamente, será que continuam há mais de um século sob um ledo engano e ao som da cilada de um fazer científico não valioso, cuja avaliação ilhada indica que aquele esforço para nada presta? O que justifica a permanência dessas lógicas de pequenos currais de cabritos e leões no mundo psi? Essas racionalidades não são, não podem, não precisam e não devem continuar estanques.
Pensando para dentro ou para fora da psicologia, está correta a forma de pensar de Edgar Morin (2013, p. 13): “Ora, uma das tragédias do pensamento atual é que nossas universidades e escolas superiores produzem eminentemente especialistas cujo pensamento é muito compartimentado”. Está claro que é muito mais cômodo acreditar na impossibilidade do diálogo do que estabelecer um esforço para praticá-lo.
Entende-se que escondido por detrás da ideologia que afirma serem todos os campos diferentes demais para dialogar está, sem dúvida, um comodismo separatista extremo. E cada separatismo se propõe a caminho da lógica universalmente válida.
Do pensar de viseira ao pensar godê
Da forma como estão, vetadas ao diálogo, as psicologias acabam sendo alimentadas por um pensamento de viseira, quando na verdade deveriam ser sustentadas por um pensamento godê.
É bem verdade que o grande Vigotsky queria uma psicologia geral capaz de produzir um diálogo englobante. Mas qual? A Marxista? Não teve tempo de formulá-la suficientemente? É claro que isso não o desmerece, mas tem gente achando que seu sistema nem era tão marxista assim e se era marxista não era excludente de outras contribuições. Para Veresov (2005, p. 32): “Nem todo pensamento de Vygotsky pode ser atribuído à sua famosa teoria e, além disso, existem algumas características dentro de sua teoria que são, erroneamente, identificadas como exclusivamente marxistas”. Seria então o caso de perguntar de qual materialismo estaria falando? Como sabe-se hoje o marxismo não é uma coisa só. Para Edgar Morin (2010, p. 73): “Há marxismos: marxismos reformistas, marxismos leninistas, marxismos estalinistas, marxismos trotskistas, etc., e estes marxismos fazem análises diferentes da realidade, com conclusões políticas frequentemente divergentes”.
E seja como for, mesmo marxista, o dito pesquisador era também um pensador de amplos diálogos, aliás, como a maioria dos grandes investigadores. E ao que parece esta foi a lição que os pesquisadores atuais ainda não conseguiram assimilar dos grandes pensadores que os antecederam. Sem dúvida, isso vale para a psicologia, mas vale para os demais campos da ciência.
O que fazer com o medo à diversidade?
É preciso que se confesse publicamente que o reconhecimento da diversidade científica, em qualquer campo, traz consigo, como bem já mostrou Qvortrup (2010) uma tentação, que é a tentação do diversificar, do divergir para se aproximar do irreconciliável. Por essa razão, ao defender-se a interdisciplinaridade é preciso fazer justamente o contrário, pedindo que os diversos sejam reconhecidos, mas que, simultaneamente, possam ser reunidos.
Portanto, em termos mais amplos, importa sublinhar que o diverso existe e é possível tanto em aprendizados quanto em contatos mais alargados. É verdade que, do ponto de vista as ciências, o diverso – para divertir, para divergir, para se espalhar – já foi alumiado exaustivamente. Já foi incentivado tanto ao nível macro quanto ao nível micro. E seguindo Qvortrup (2010): em todos os níveis políticos.
Ao se defender a interdisciplinaridade indica-se que está na hora de voltar e de se buscar um novo recomeço, porque o fim para onde se encaminha esse esgarçamento intelectual já está suficiente conhecido. Pois ele conduz, tanto as disciplinas quanto os fazeres científicos, cada vez para mais longe de suas próprias fronteiras, o que não é bom individualmente, nem é bom politicamente. Ele parte dum reconhecimento enviesado de que os objetos de estudos, sujeitos humanos não apenas são diversos e irredutíveis, mas irreconciliáveis, como se nada de comum pudessem ter.
A defesa deve ser na direção do diálogo crítico contínuo, permanente, tenso, mas extenso entre os saberes, entre todas as áreas e dentro das próprias áreas. É preciso construir saberes de portas abertas para dentro e para fora, com portas que se abrem para os corredores. Sim, também é preciso sínteses que se fazem e desfazem-se dentro de sua historicidade. Sem isso não faz sentido. O diálogo acadêmico deve ser pleno, no sentido mais ecumênico da palavra. Pois mesmo sabendo das diferenças enormes, deve-se entrever a possibilidade de conversar, profundamente, por horas seguidas, até à possibilidade de um fruto, uma ação em conjunto, uma transformação possível, mesmo que pequena.
Por essa razão, há que se por a pergunta: a quem interessaria um saber que não se dispõe a dialogar, que não faz pontes, que não amplia a abertura de suas janelas para ver cada vez mais longe? Qual seria a força transformadora de um saber sectário? A quem beneficiaria um saber especialista em totalidade de coisa nenhuma? Serviria apenas para um ‘gueto hegemônico’ ou a uma ‘ditadura inócua de palavras’. E desse modo se poria a serviço de quem reina, de quem comanda, daquele que está no topo da visibilidade e a mais ninguém.
Aliás, a lógica político-econômica milenar tem sido a do muito dividir para melhor dominar. Assim fizeram os escravagistas, assim agiram os imperialistas, assim fazem aqueles que assumem postos de comandos autoritários, só chamando à unidade de portas de quartéis na hora de seus interesses, às vezes, bem mesquinhos.
Mas dizer isso é tão simplório que parece sem sentido. Pois, sabe-se que um sindicato dividido não tem força, um partido político esfacelado não se sustenta. E até mesmo um governo que não consegue dialogar acaba se suicidando ou sofrendo um homicídio coletivo. Por que sustentar ad infinitum uma ciência dividida, parcelar e fragmentada?
Para finalizar este momento
A possibilidade de diálogo crítico dentro da própria ciência e dentro da psicologia precisa existir. Na psicologia não é mais aceitável que suas próprias correntes estejam empatadas de uma conversa, porque suas bases, suas visões de mundo, suas convicções são muito díspares. Quem disse que tem que ser assim? Quem impôs a todos esses modos de pensar? Será que a ciência e o saber psi não têm interesse pelo mesmo objeto/sujeito de pesquisa: os seres humanos, com seus comportamentos, suas produções subjetivas, suas histórias, suas trajetórias socioculturais e suas vidas concretas, individuais e coletivas?
O argumento essencial para o diálogo científico inter e intradisciplinar é possibilidade de se alumiar a unidade do gênero humano. Existe sim um gênero humano, categoria à qual todos os objetivos científicos se direcionam. O gênero humano é sim o interesse maior do fazer acadêmico ou pelo menos deveria ser. Existe uma universalidade que faz com que o ser humano seja quem ele é: humano. E o ser humano tem de ser reunido em suas múltiplas feições. As diversidades dos homens, das mulheres, das crianças, da adolescência, da juventude e dos idosos expressam aquilo que caracteriza o humano em sua maior amplitude.
É preciso acreditar na existência do humano como categoria universal. Diferente do humano que é universal, as condições existenciais humanas não podem pleitear universalidade. Pois, apesar de humanos no sentido pleno compartilhar muitas coisas com todos os humanos do planeta, não dá para pensar que todos os humanos respiram, comem, bebem e sentem e se igualam em tudo. Não é possível imaginar que todos os humanos estão funcionando no mesmo estilo e intensidade, sejam eles europeus, africanos, asiáticos, americanos, indígenas, negros, ciganos, orientais ou ocidentais. O ser humano é universal, sim, mas não tem, em todo lugar o mesmo paladar, as mesmas subjetividades, aliás, nem as mesmas indumentárias. Ao defender a interdisciplinaridade deve-se partir desse entendimento pressuposto.
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[1] Formação de Psicólogo pela UEPB – Universidade Estadual da Paraíba. Mestrado em Antropologia pela UFPB – Universidade Federal da Paraíba. Doutorado em Psicologia – UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Assessor da Diretoria Técnica da FUNAD – Fundação Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência e Psicólogo do ICPAC – Instituto dos Cegos da Paraíba Adalgisa Cunha. João Pessoa – PB, Brasil. https://orcid.org/0000-0001-7889-0531
[2] Licenciatura em Psicologia pela UEPB – Universidade Estadual da Paraíba. Mestrado e Doutorado em Psicologia Social pela UFPB – Universidade Federal da Paraíba. Professora da UEPB – Universidade Estadual da Paraíba-Campina Grande, Paraíba, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-3329-2850