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Parâmetros técnico-legais do suporte básico de vida no atendimento pré-hospitalar em combate

RC: 107388
463
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/suporte-basico

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

LEITÃO, Ket Jeffson Vasconcelos [1]

LEITÃO, Ket Jeffson Vasconcelos. Parâmetros técnicolegais do suporte básico de vida no atendimento pré-hospitalar em combate. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 02, Vol. 06, pp. 126-147. Fevereiro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/suporte-basico, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/suporte-basico ‎

RESUMO

Contexto: as mortes violentas intencionais (MVI) têm médias quantitativas anuais superiores a 50 mil vítimas (2009-2018), ao passo que a taxa de homicídios de policiais atingiu o patamar de 63,5 mortos por grupo de 100 mil habitantes policiais (2018). Frente a tal quadro, o sistema público de saúde responsável pelo atendimento de urgências pré-hospitalares ganha relevância como recurso para mitigar tais taxas de mortalidade, em especial pelo aperfeiçoamento do atendimento pré-hospitalar em situações de violência intencional. Nesse sentido, é preciso analisar como o problema é tratado pelas autoridades de saúde no Brasil e em que circunstâncias legais e técnicas se dá a participação dos profissionais diretamente ligados ao combate à violência, os policiais. Questão norteadora: há diretrizes técnicas e regulamentações legais específicas para atuação dos agentes policiais no atendimento pré-hospitalar especializado e imediato às vítimas de violência intencional? Objetivo geral: identificar a existência de parâmetros técnicos e legais para a atuação de policiais no atendimento pré-hospitalar em situações em que ocorre violência intencional. Metodologia: trata-se de pesquisa básica e exploratória com abordagem qualitativa, cujo procedimento técnico adotado foi a investigação bibliográfico-documental acerca da existência de diretrizes legislativas, de parâmetros de capacitação de socorristas especializados e de literatura técnica sobre atendimento pré-hospitalar prestado por policiais em ambientes de combate. Resultados: comprovou-se, primeiramente, uma lacuna legislativa que deixa sem regulamentação legal o atendimento pré-hospitalar em situações de combate e, em segundo lugar, uma lacuna de capacitação, tendo em vista que apesar de existir literatura médica especializada, tal parâmetro não é adotado como diretriz técnica na capacitação de policiais. Conclusões: defende-se, como política pública para a redução da mortalidade por violência intencional, que sejam criadas normas especiais que disciplinem a atuação dos policiais no atendimento pré-hospitalar especializado e que efetivem a integração desses profissionais como agentes especiais da Rede de Urgência e Emergência do Sistema Único de Saúde (SUS). Propõe-se, ainda, como condição inicial e indispensável, um programa nacional de treinamento por meio dos quais todos os policiais sejam capacitados para prestar o primeiro suporte básico de vida (SBV) estabilizador das vítimas de violência intencional.

Palavras-chave: Urgências; Mortes violentas intencionais; Atendimento pré-hospitalar em combate.

1. INTRODUÇÃO

As mortes violentas intencionais (MVI)[2] são uma realidade crítica no Brasil. Todos os anos, mais de cinquenta mil vidas são ceifadas pela violência deliberada, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2019a). Em 2018, chegou-se à taxa de 27,5 homicídios por grupo de 100 mil habitantes (FBSP, 2019a).

Especificamente em relação à violência sofrida por policiais, tem-se que, em 2018, policiais em serviço mortos durante combate totalizaram 74 indivíduos[3]. Isso representou um aumento de 5% em relação a 2017, quando foram 71 casos (FBSP, 2019b, p. 48). Trata-se, numa análise preliminar, de mortalidade 2,5 vezes maior do que a de militares brasileiros[4] em missão de paz no Haiti, durante 13 anos de atuação.

Considerando-se que havia no Brasil, segundo o último cômputo, uma população de 425 mil policiais militares (EXAME, 2017) e cerca de 115 mil policiais civis (FEIPOL, 2019) – o que totalizam uma população policial absoluta de 540 mil indivíduos policiais –, essas 74 mortes por ano representam 14 mortes por grupo de 100 mil habitantes policiais. O índice de pessoas mortas em confronto com a polícia, por exemplo, é cinco vezes menor, atingindo o patamar de 2,99 mortes[5].

Se também contabilizarmos os policiais mortos em combate fora de serviço, teríamos um quantitativo de 198 óbitos, que seriam os 74 policiais mortos em serviço somados aos 124 mortos fora de serviço (FBSP, 2019a; 2019b, p. 49). Isso equivaleria a uma taxa de 36,67 mortes por grupo de 100 mil habitantes policiais. O índice é 47% maior que a taxa de homicídios média do país em 2018 e impressionantes 1.200% maior do que a taxa de pessoas mortas por intervenções policiais no mesmo ano.

Se somarmos os 101 policiais vítimas de suicídio ao total, a taxa seria de 63,5 mortes de policiais para um grupo de 100 mil habitantes policiais. Esse indicador é 2,3 vezes maior do que os óbitos da população em geral e 21 vezes maior do que o índice de pessoas mortas em confronto com a polícia.

Nesse cenário alarmante, o sistema público de saúde responsável pelo atendimento de urgências pré-hospitalares, em especial pelo atendimento pré-hospitalar em situações de combate, ganha relevância como recurso potencial para mitigar a mortalidade procedente da violência intencional.

Por atendimento pré-hospitalar em combate ou, pela terminologia legislativa, Atendimento Pré-Hospitalar Tático Policial (APHTP) entenda-se, em breve síntese introdutória, “o atendimento emergencial fora do hospital, comumente ligado às operações de alto risco e confrontos armados (…) das polícias” (CORTEZ et al., 2018, p. 7). Essas ações via de regra se iniciam por meio do resgate tático, cuja prioridade maior “é fazer o resgate dos feridos” retirando-os das zonas de maior risco ou “zonas quentes” para “zonas mornas, onde deverão receber os primeiros cuidados efetivos” (CORTEZ et al., 2018, p. 7 e 10).

É oportuno, todavia, enfatizar que a prestação de serviços públicos, inclusive no que concerne ao atendimento pré-hospitalar, é regulada pelo princípio da legalidade. Aos particulares é permitido fazer o que a lei não proíba; já aos agentes públicos só é permitido fazer aquilo que está autorizado por lei, aqui entendida em seu sentido amplo, que compreende da Constituição aos atos administrativos normativos (RAMOS, 2017, p. 595).

Observa-se, entretanto, que as legislações de maior importância para o atendimento pré-hospitalar no Brasil, a Portaria GM n. 2.048, de 5 de novembro de 2002, editada pelo Ministério da Saúde, e a Resolução n. 1.671, de 23 de julho de 2003, editada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), não especificam procedimentos de atuação nas situações e cenários específicos nos quais se encontram as vítimas de violência intencional e os policiais. Há, inclusive, componentes éticos e humanitários não normatizados, como, por exemplo, a ação requerida dos policiais frente à necessidade de prestar socorro aos seus agressores.

Por outro lado, esses mesmos instrumentos normativos governamentais e do CFM exigem formação específica e educação continuada dos profissionais oriundos da área de segurança pública. Trata-se de requisitos indispensáveis para atuação no atendimento pré-hospitalar (BRASIL, 2006; CFM, 2003).

Diante da problemática posta, questiona-se: há diretrizes técnicas e regulamentações legais específicas para atuação dos agentes policiais no atendimento pré-hospitalar especializado e imediato às vítimas de violência intencional?

Como consequência da indagação, objetivamos buscar descrever os aspectos relevantes dos parâmetros técnico-legais, criticar a qualidade do segmento de atendimento pré-hospitalar em combate brasileiro e, a partir da investigação empreendida, sugerir melhorias.

2. MATERIAIS E MÉTODOS

A presente pesquisa científica é básica, pois visa a investigar a existência de diretrizes legislativas, de parâmetros de capacitação de socorristas especializados e de literatura técnica sobre atendimento pré-hospitalar prestado por policiais em ambientes de combate. A partir disso, de acordo com os objetivos científicos, pode-se afirmar que a pesquisa é classificada como de natureza exploratória, assim entendida aquela cuja finalidade é “desenvolver, esclarecer e modificar ideias, com vistas à formulação de problemas mais precisos ou hipóteses verificáveis” (GIL, 1989, p. 45).

O corpus do trabalho acadêmico consiste em pesquisa voltada à identificação de documentos normativos, trabalhos acadêmicos e textos congêneres que explicitem as atribuições legais e os parâmetros técnicos de atuação para socorristas policiais em situações de combate. Pode-se asseverar, então, que o procedimento técnico adotado é bibliográfico-documental.

Entende-se por bibliográfica a pesquisa “desenvolvida a partir de material já elaborado, como livros e artigos” (GIL, 1989, p. 71). Documental é a pesquisa que “busca informações em documentos que não receberam nenhum tratamento científico” (QUIRINO et al., 2014, p. 56).

Com base nas diferenciações propostas por Marconi e Lakatos (2003), pode-se classificar o método de abordagem empregado no trabalho como hipotético-dedutivo, por buscar a percepção de uma lacuna nos conhecimentos, acerca da qual se formularam hipóteses.

Levando-se em consideração que o estudo identifica problemas e busca apresentar possíveis soluções, classifica-se, quanto à abordagem dos dados estudados, como uma pesquisa qualitativa, que é aquela em que se procura “explicar o porquê das coisas, exprimindo o que convém ser feito” (GERHARDT; SILVEIRA, 2009, p. 31).

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1 CONTEXTUALIZAÇÃO

A saúde é um direito social consagrado no texto da Constituição Federal. Tal prerrogativa deve ser assegurada pelas “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos” e pelo “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988).

Estão inseridos nas políticas estatais vigentes de atendimento básico ou primário à saúde[6], entre outros, os casos de urgência e emergência[7]. As emergências estão ligadas às “condições de agravo à saúde que impliquem risco de morte ou sofrimento intenso, exigindo, portanto, tratamento médico imediato” (CFM, 1995). Tais quadros emergenciais são diagnósticos constatados por algum tipo de declaração médica[8].  Já as urgências são “a ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial de morte, cujo portador necessita de assistência médica imediata” (CFM, 1995). O presente artigo, com base em legislação que tangencia o tema, tomará os casos de urgência como os “resultantes de acidentes pessoais ou de complicações no processo gestacional[9]” (BRASIL, 1998).

O atendimento às vítimas da violência intencional em cenários de combate policial enquadra-se, teoricamente, como casos de urgência, tendo em vista que são ocorrências imprevistas, resultantes de acidentes pessoais.

No que concerne às políticas genéricas, o processo de consolidação das políticas públicas de atenção ao segmento de urgência pode ser assim sintetizado:

A atenção às urgências tornou-se prioridade federal no Brasil em consequência do enorme desgaste vigente nos serviços hospitalares de urgência. No ano 2000, profissionais médicos pertencentes à Rede Brasileira de Cooperação em Emergência (RBCE) denunciaram em um congresso a falta de regulação sobre o tema e, a partir de então, um grupo de trabalho estabeleceu junto ao Ministério da Saúde as bases conceituais que instituíram a Política Nacional de Atenção às Urgências (PNAU). Identificam-se três etapas na implantação da política de urgência no Brasil: até 2003, produção das principais normas que instituem a política; de 2003 a 2008 predomina a implantação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu); e de 2008 a 2009 predomina a implantação das Unidade de Pronto Atendimento (UPA). A partir de 2011, foi instituída a Rede de Urgência e Emergência (RUE), priorizando-se a integração entre os componentes da atenção às urgências e o investimento menos fragmentado em componentes individuais da política (O’DWYER et al., 2017, p. 2).

O conjunto de diretrizes da Política Nacional de Atenção às Urgências (PNAU) e da Rede de Urgência e Emergência (RUE) regulamentam atendimento pré-hospitalar (APH) fixo e móvel. O APH fixo é definido segundo a Portaria GM n. 2.048/02 nos seguintes termos:

O atendimento pré-hospitalar fixo é aquela assistência prestada num primeiro nível de atenção aos pacientes portadores de quadros agudos, de natureza clínica, traumática ou ainda psiquiátrica, que possa levar a sofrimento, sequelas ou mesmo à morte, provendo um atendimento e/ou transporte adequado a um serviço de saúde hierarquizado, regulado e integrante do Sistema Estadual de Urgência e Emergência. Este atendimento é prestado por um conjunto de unidades básicas de saúde, unidades do Programa Saúde da Família (PSF), Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), ambulatórios especializados, serviços de diagnóstico e terapia, unidades não hospitalares de atendimento às urgências e emergências e pelos serviços de atendimento pré-hospitalar móveis (BRASIL, 2006, p. 66).

Nesse segmento de atendimento fixo, as Unidades de Pronto Atendimento (UPA), criadas posteriormente à Portaria GM 2.028/02, exercem o papel de “estabelecimento de saúde de complexidade intermediária entre as unidades básicas de saúde, de Saúde da Família e a rede hospitalar” (CFM, Resolução n. 2.079, de 16 de setembro de 2014, art. 2º).

Já o APH móvel – a cargo do Serviço Móvel de Atendimento de Urgência (Samu), unidades de resgate e ambulâncias do setor privado etc. –, conforme a mesma normatização acima referida, é:

O atendimento que procura chegar precocemente à vítima, após ter ocorrido um agravo à sua saúde (de natureza clínica, cirúrgica, traumática, inclusive as psiquiátricas), que possa levar ao sofrimento, sequelas ou mesmo à morte, sendo necessário, portanto, prestar-lhe atendimento e/ou transporte adequado a um serviço de saúde devidamente hierarquizado e integrado ao Sistema Único de Saúde. Podemos chamá-lo de atendimento pré-hospitalar móvel primário quando o pedido de socorro for oriundo de um cidadão ou de atendimento pré-hospitalar móvel secundário quando a solicitação partir de um serviço de saúde, no qual o paciente já tenha recebido o primeiro atendimento necessário à estabilização do quadro de urgência apresentado, mas necessite ser conduzido a outro serviço de maior complexidade para a continuidade do tratamento (BRASIL, 2002, p. 81).

Os graus de complexidade do atendimento prestado pelo APH móvel podem ser divididos em suporte básico de vida (SBV) e suporte avançado de vida (SAV). As diferenças básicas entre as duas modalidades estão relacionadas ao pessoal habilitado, aos equipamentos empregados e à liberdade dos profissionais para a aplicação de procedimentos.

O suporte avançado fica a cargo de equipes compostas por profissionais de nível superior oriundos da saúde (médicos e enfermeiros), tripulantes de unidades de saúde móveis com equipamentos intensivos; já o suporte básico é praticado por profissionais de nível técnico ou médio (auxiliares e técnicos de enfermagem) ou profissionais de nível médio ou superior não oriundos da área da saúde (tais como policiais e bombeiros), todos eles tripulantes de unidades móveis dotadas de equipamentos para a realização de procedimentos não invasivos ou conservadores (BRASIL, 2006).

De um ponto de vista técnico, o SBV destina-se prioritariamente “à manutenção, suporte ou restabelecimento da oxigenação, ventilação e circulação em pacientes com quadro de parada cardíaca, parada respiratória ou ambos” (MELO; SILVA, 2011, p. 28).

As legislações acerca do SBV prestado por policiais e bombeiros apontam que eles “fazem intervenção conservadora no atendimento pré-hospitalar, sob supervisão médica direta ou a distância, utilizando materiais e equipamentos especializados” (CFM, 2003), ou, em outras palavras:

Podem realizar suporte básico de vida, com ações não invasivas, sob supervisão médica direta ou à distância, sempre que a vítima esteja em situação que impossibilite o acesso e manuseio pela equipe de saúde, obedecendo aos padrões de capacitação e atuação previstos (BRASIL, 2006, p. 92).

O resgate, competência exclusiva de policiais e bombeiros, é a retirada de vítimas dos “locais ou situações que impossibilitam o acesso da equipe de saúde” (BRASIL, 2006, p. 92). O resgate tático, contudo, é um gênero à parte dentro do hiperônimo “resgate”. A competência se diz tática por ocorrer em ambientes civis sujeitos a combate e ao uso diferenciado da força[10],  o que exclui os bombeiros. Dessa forma, em tais cenários, os policiais, ou excepcionalmente os militares das Forças Armadas escalados para missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), são únicos habilitados a atuar no resgate e socorro imediato às vítimas de violência, aos próprios agentes legais feridos em combate e, até mesmo, aos agressores neutralizados.

Vê-se, diante de tudo, que o APH prestado por policiais em ambientes de combate e por meio de resgates táticos são desdobramentos das políticas públicas de saúde nacionais.

3.2 BASES LEGAIS

Como já dito em seção precedente, a atenção às urgências no Brasil só veio a ser discutida com profundidade necessária no final do século XX. Profissionais denunciaram em congresso a falta de regulação sobre o tema. A partir de então, houve movimentação do Ministério da Saúde para a criação e a implementação da Política Nacional de Atenção às Urgências, com ênfases na regulamentação legal e na unificação das estratégias de formação continuada (O’DWYER et al., 2017, p. 2).

Até o advento das regulamentações e da obrigatoriedade de criação de centros de ensino específicos para o APH, havia um problema de formação, consistente na:

Grande proliferação de cursos de iniciativa privada de capacitação de recursos humanos para a área, com grande diversidade de programas, conteúdos e cargas horárias, sem a adequada integração à realidade e às diretrizes do Sistema Único de Saúde – SUS (BRASIL, 2006, p. 134)

Cerca de duas décadas depois das primeiras normativas federais genéricas – e de toda a sólida construção do sistema, sobretudo com o Samu e UPA para o APH genérico –, é que uma instituição pública passou a discutir normas específicas para o setor do APH tático. O Ministério da Defesa, o pioneiro por excelência na aplicação prática das técnicas de APH nos ambientes de combate, organizou em 2017 um evento de vanguarda, assim anunciado:

Os participantes do I Simpósio de Medicina Tática do Ministério da Defesa (MD), realizado entre os dias 26 e 29 de setembro, na Escola Superior de Guerra (ESG), no Rio de Janeiro (RJ), elaboraram as propostas de criação de Portaria Ministerial para normatizar o Atendimento Pré-Hospitalar Tático (APHT) e sugeriram a exigência de um currículo nacional mínimo para a capacitação em APHT (BRASIL, 2017).

No ano seguinte, foi editada a Portaria Normativa n. 16, de 12 de abril de 2018. Nesse instrumento normativo, que, frise-se, tem efeitos legais apenas para as classes profissionais das Forças Armadas, aprovou-se a Diretriz de Atendimento Pré-Hospitalar Tático (APHT) do Ministério da Defesa.

Segundo a normatização, o atendimento pré-hospitalar tático destina-se ao:

Emprego operacional, operação real ou de adestramento, ações militares de vigilância de fronteira, ações militares de operações de Garantia da Lei e da Ordem, ações relacionadas às atribuições subsidiárias das Forças Armadas, missões de paz e instrução (BRASIL, 2018).

Os militares empregados especificamente no suporte básico de vida tático-militar, que não sejam oriundos da área de saúde, são classificados como socorristas táticos de nível III.

Cabe ao pessoal do SBV tático-militar, na fase preliminar de avaliação da biossegurança: analisar a situação; identificar os níveis de ameaças; estabelecer rotas de acesso ou zona de reunião; aplicar as técnicas de ações imediatas; estabelecer os números de vítimas e comunicação com o escalão superior. Já na etapa de resgate, deve escolher a técnica de retirada de acordo com o ambiente operacional e realizar as técnicas de transportes de emergência. Por fim, na fase de atendimento propriamente dito, compete-lhe conter hemorragias, avaliar e desobstruir vias aéreas e estabilizar as lesões (BRASIL, 2018).

Além de terem sido previamente capacitados em atendimento pré-hospitalar genérico e em cursos de combate, resgate ou salvamento, tais profissionais de Nível III também devem passar por capacitação específica, teórica e prática, que totalizam 40h de aula. A partir daí, é só de acordo com esses requisitos, estarão habilitados ao APH tático, o qual, segundo a norma citada, consiste:

No atendimento à vítima, em um ambiente tático, nas atividades militares, com o emprego de um conjunto de manobras e procedimentos emergenciais, baseados em conhecimentos técnicos de suporte de vida (…) para serem aplicados nas vítimas ou em si mesmos, (…) com o objetivo de salvaguardar a vida humana e prover a estabilização para a evacuação até o suporte médico adequado (BRASIL, 2018).

Pode-se imaginar que a problemática de falta de parâmetros legais e técnicos para APH tático policial poderia ser resolvida submetendo-se policiais ao treinamento militar de Nível III. Entretanto, como frisado ao longo deste trabalho, a norma do Ministério da Defesa não é aplicável aos policiais militares que, apesar de serem Forças Auxiliares, são parte de instituições estaduais sujeitas ao regulamento das respectivas unidades federativas. Por outro lado, policiais civis, federais e rodoviários federais são profissionais civis, não subordinados às Forças Armadas e não podendo ter atividades por elas regulamentadas.

Dessa forma, legalmente, as normatizações que regulam a atuação de profissionais de segurança no APH exigem requisitos de capacitação diferentes das do Ministério da Defesa, por meio de cursos geridos com a participação escolas de médicos e de enfermeiros, gestores locais e do SUS, conforme esclarece o CFM:

O treinamento do pessoal envolvido no atendimento pré-hospitalar, em especial ao trauma, deverá ser efetuado em cursos ministrados por instituições ligadas ao SUS, envolvendo as escolas médicas e de enfermagem locais, sob coordenação das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde. Deverá haver um programa mínimo que contemple todo o conhecimento teórico e prático necessário à realização eficaz dos atos praticados (BRASIL, 2003).

No mesmo sentido, a Portaria GM n. 2.048/02 determina que cabe aos Núcleos de Educação Continuada (NEC), “organizar-se como espaços de saber interinstitucional de formação, capacitação, habilitação e educação continuada para as urgências” (BRASIL, 2006, p. 134). Isso deve ser feito por meio da interação com gestores públicos e privados, com o Sistema Único de Saúde e com instituições de ensino superior responsáveis pela formação e capacitação de pessoal na área da saúde (BRASIL, 2006).

Por fim, mas não menos importante, deve-se registrar o conflito ético-legal ao qual estão submetidos os policiais na eventual necessidade de prestar suporte às pessoas em conflito com a lei neutralizadas durante ações de combate.

A Resolução n. 34, de 17 de dezembro de 1979, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas para regular a conduta dos aplicadores da lei, diz no artigo 6º que:

Os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem garantir a proteção da saúde de todas as pessoas sob sua guarda e, em especial, devem adotar medidas imediatas para assegurar-lhes cuidados médicos, sempre que necessário (ONU, 1979).

A norma, ao usar os termos “sob sua guarda”, aparentemente seria direcionada àqueles aplicadores que prenderam ou têm sob custódia algum indivíduo. Considerando que uma pessoa neutralizada pelo uso diferenciado da força estaria automaticamente sob controle do agente policial neutralizador, tem-se que há validade do dispositivo para os cenários de combate policial.

Em outra frente normativa, a Portaria Interministerial n. 4.226, de 31 de dezembro de 2010, que estabelece diretrizes sobre o uso da força pelos agentes de segurança pública, determina no item 10, alínea “a”, que “quando o uso da força causar lesão ou morte de pessoas, o agente de segurança pública envolvido deverá (…) facilitar a prestação de socorro ou assistência médica aos feridos” (BRASIL, 2010).

Da análise conjunta das normas e com base nos princípios de direitos humanos, em especial o da interpretação conforme dos direitos humanos[11], tem-se que, em tese, a melhor interpretação seria aquela em que, superados os riscos ambientais dos cenários de combate, e com objetivo de diminuir os índices de morbimortalidade humana, os policiais deveriam estar habilitados a prestar o primeiro atendimento dos agressores, garantindo-lhes uma maior chance de sobrevida.

Contudo, é preciso salientar que há implicações práticas e emocionais que não podem ser escamoteadas nem deixarem de ser discutidas no esforço para se chegar a um consenso razoável e factível. De certeza, tem-se que não há atualmente nenhuma regulamentação técnica para orientar os profissionais de segurança frente ao desafio humano e ético posto, seja para atendimento direto ou mediante o acionamento de serviços médicos.

3.3 BASES TÉCNICAS NO BRASIL

O protocolo do suporte básico de vida do Ministério da Saúde para o Samu prevê condutas de atuação técnica dos profissionais em casos de atendimento das vítimas ou potenciais vítimas de violência intencional, tais como os suicidas, os feridos à bala, por armas brancas ou por objetos adaptados para serem armas (fragmentos de vidros, madeiras, objetos perfurocortantes).

Ocorre, entretanto, que os socorristas desse tipo de atendimento pré-hospitalar não podem acessar as vítimas sem que haja plena segurança para o atendimento. A orientação, caso sejam os primeiros a comparecer ao local de atendimento, é aguardar a chegada dos agentes policiais para que elas avaliem e neutralizem quaisquer ameaças, conforme previsões expressas dos Protocolos SBV de Emergências Clínicas (BC28, BC29 e BC32), dos Protocolos de Emergências Traumáticas (BT8 e BT9) e do Protocolo Especial PE17 (BRASIL, 2016).

A referência teórica nacional também defende enfaticamente a linha de precauções alusivas à segurança do local de atendimento, deixando claro que “o socorrista deve preocupar-se inicialmente com sua própria segurança (…), ele deve certificar-se primeiro de que o local está seguro antes de se aproximar da vítima” (FREIXO; LEITE, 2013, p. 50).

No mesmo sentido, a doutrina estrangeira de APH estabelece que a segurança absoluta da cena é o pressuposto básico para a atuação: “A primeira prioridade para todos os envolvidos em um incidente de trauma é a avaliação da cena (…) que significa assegurar-se de que a cena esteja segura e considerar cuidadosamente a natureza exata da situação” (PHTLS, 2019, p. 88).

Essa correta condicionante de atendimento é justamente o que diferencia as etapas do APH prestado pelo Samu das etapas do APH que poderia ser prestado por policiais em ambientes de combate. Eis a lacuna técnico-legal no atendimento às vítimas de violência intencional que o sistema de saúde brasileiro apresenta.

Como é consabido, o tempo é fator crucial no APH, sobretudo nas ocorrências de violência intencional, as quais, pela magnitude, geralmente envolvem hemorragias abundantes, lesões diretas e por cavitação em órgãos importantes, danos torácicos propícios a hemotórax e pneumotórax.

Adams Cowley cunhou o termo “hora de ouro”, posteriormente adaptado para “período de ouro”. Essa definição consiste num intervalo de tempo dinâmico, inferior ou superior a uma hora, a depender da situação traumática de cada atendido, no qual “se a lesão não for controlada e a oxigenação restaurada (…), as chances de sobrevivência do doente diminuem muito” (PHTLS, 2019, p. 110).

Parte desse período de ouro não é devidamente aproveitado nas ocorrências de violência intencional porque os profissionais do Samu que chegam precocemente às cenas antes da polícia não podem atuar até que os policiais sejam acionados e tornem a cena segura.

Por outro lado, como não existe um programa continuado de capacitação em APH para policiais, seja para atendimento geral ou em combate, mesmo quando eles chegam precocemente às cenas antes dos profissionais de saúde, o desfecho das ocorrências de trauma geralmente se resume ao APH móvel primário, que, como visto em citação na Seção 3.1, diz respeito a um simples acionamento telefônico do serviço do Samu, sem a precedente e devida estabilização das vítimas (o que seria o APH móvel secundário).

É justamente dentro desse limbo técnico-protocolar-legal, que o atendimento pré-hospitalar em combate se encaixa como alternativa que pode contribuir significativamente para o aproveitamento do período de ouro e a consequente mitigação dos óbitos.

3.4 TACTICAL COMBAT CASUALTY AND CARE (TCCC)

A regulamentação técnico-científica adotada pelo presente estudo para apresentar a modalidade de atendimento pré-hospitalar em combate é o Tactical Emergency Medical Support (TEMS), descrito no Prehospital Trauma Life Support, Military Edition.

O TEMS, em tradução livre, é o Suporte Médico de Emergência Tática (SMET). O programa de treinamento consiste num sistema de atendimento que, baseado nos princípios da medicina militar e nos dos serviços médicos de emergência convencionais, se dedica ao aumento da probabilidade de sucesso de operações policiais (PHTLS, 2020).

Da mesma maneira do APH convencional, o APH preconizado pelo SMET tem como prioridade mais fundamental a segurança dos policiais-socorristas. Contudo, a avaliação da cena, os riscos aos quais os policiais podem se expor e a dinâmica de atendimento seguem uma doutrina completamente diversa e especializada, o Tactical Combat Casualty and Care (TCCC).

O TCCC, em tradução livre, seria o Atendimento às Vítimas de Combate Tático. A técnica diz respeito basicamente a condutas específicas, baseadas na situação de combate, de acordo com zonas de operação e com fases de atendimento (PHTLS, 2020).

No TCCC, o teatro de operações é dividido em fronteiras geográficas: safe zone (zona segura), warm zone (zona morna) e kill zone (zona de morte, também chamada de zona quente). Essas são áreas com classificação dinâmica, que pode mudar a depender da evolução do cenário tático. A movimentação no perímetro de combate pode fazer com que zonas mornas tornem-se quentes e vice-versa.

As zonas de morte ou quentes são áreas onde existem ameaças ativas. Nesses espaços, a fase de atendimento do TCCC denomina-se Care Under Fire (Atendimento sob Fogo). Todos os esforços das equipes policiais estarão concentrados em atuar para neutralizar usuários de armas de fogo ou portadores de outros instrumentos letais. A melhor técnica é superar o oponente por meio do emprego da força legal.

Saliente-se que, dentro do cenário de combate inicial na zona quente, a saída dos agressores do espaço no qual estavam confiados, a fuga ou o avanço de criminosos, a descoberta de novos agressores ou criminosos em outras posições são fatores que mudam a geografia dessa zona e a duração da fase Care Under Fire, pois, como dito, o cenário é dinâmico e deve ser continuamente reavaliado.

Para os policiais feridos em ação nessa fase em que ainda há ameaças ativas, as únicas orientações são o arrastamento das vítimas para abrigos seguros (zonas mornas), se possível, e a aplicação de contentores de hemorragias, caso necessário. Caso não seja possível a remoção, a orientação é apenas rolar o ferido inconsciente de bruços (para prevenir engasgamentos) e dar instruções remotas aos feridos conscientes, enquanto a equipe avança para a prioridade dessa fase, que é neutralizar a ameaça e tentar extinguir a zona quente. Os mesmos procedimentos se aplicam aos cidadãos, vítimas da violência combatida, que puderem ser acessados ou contatados antes da neutralização da ameaça ativa.

A neutralização temporária da ameaça ou do cessar fogo de combate fazem o cenário evoluir para uma zona morna. Note-se, entretanto, que ainda podem ressurgir ameaças contidas, surgir novos agressores e haver reinício do combate armado. As ameaças são indiretas, potenciais, e a segurança da cena é relativa. Por outro lado, é possível que parte da equipe esteja numa zona de combate, zona quente, e outra parte dos policiais seja barricada e relativamente segura numa zona morna. De qualquer forma, para os que estão feridos que estão em zonas mornas e podem ser atendidos, a fase de atendimento evoluirá para o Tactical Field Care (Atendimento Tático de Campo). É nessa fase que ocorre o atendimento pré-hospitalar em combate propriamente dito.

Durante o Atendimento Tático de Campo, os policiais-socorristas põem em prática o mnemônico X-ABCDE[12] do serviço de emergência convencional. Trata-se do critério de avaliação MARCH (Massive bleeding, Airway, Respirations, Circulation in Head/Hypothermia).

Consoante descrito no PHTLS (2020): na avaliação Massive Bleeding (sangramento massivo) o socorrista identifica as hemorragias graves e utiliza técnicas de pressão direta, curativos especiais para ferimento à bala, torniquetes e medicações anticoagulantes; na análise do Airway (vias aéreas), o policial busca o melhor posicionamento corporal para a respiração doente e, caso necessário, faz a aplicação de cânulas nasofaríngeas; no momento avaliativo da Respiration (respiração), o atendente lida com a qualidade e movimentação respiratória da vítima, aplicando descompressores torácicos, no caso de pneumotórax identificado; na investigação da Circulation (circulação), são avaliados o pulso e a presença de choque no doente de trauma, podendo o profissional adotar medidas de reposição volêmica e, até mesmo, acesso intraósseo; na finalização do atendimento de campo, há a análise Head/Hypothermia (cabeça/hipotermia), na qual há prevenção da perda de calor, com a aplicação de mantas térmicas, a exposição e tratamento de fraturas importantes e a imobilização cervical.

É importante frisar que esse tipo de atendimento de campo não teria espaço para ocorrer no Brasil porque às equipes do Samu seria vedado o atendimento em zonas mornas, por força dos protocolos de segurança, e à maioria dos policiais seria inibida a ação no socorro direto, pois não lhes foram fornecidas as ferramentas técnicas para atuar, até mesmo por haver procedimentos mais complexos em questão.

O fato é que tanto policiais quanto socorristas do Samu esperam que a vítima seja removida para fora do perímetro quente ou que o perímetro se torne completamente seguro (uma zona fria) para as equipes de saúde poderem atuar.

O presente estudo, como já citado ao longo do texto, propugna que boa parte da letalidade por mortes violentas intencionais da população em geral e dos policiais está ligada a essa lacuna e atraso na prestação de serviços de saúde, pois tal postura limita o período de ouro, tendo em vista que:

Esperar que o doente seja levado para fora pode resultar em perda desnecessária de vida (…). A solução óbvia é que o suporte médico das operações táticas (…) seja executado por socorristas bem treinados e equipados de maneira adequada, capazes de agir no interior do perímetro isolado (PHTLS, 2019, p. 583).

Após a conclusão da fase de Atendimento de Campo, o TCCC é finalizado com a extinção definitiva da ameaça, dando-se início à fase de Tactical Evacuation Care (Atendimento de Evacuação Tática).

Nessa última fase de evacuação, procede-se o socorro aos agressores neutralizados e os pacientes já estabilizados, policiais ou vítimas do agressor, são entregues aos serviços convencionais de atendimento médico – que já foram previamente acionados e posicionados perímetros externos ou zonas frias. Os doentes são, então, direcionados às unidades hospitalares de referência para tratamento definitivo.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em resposta à pergunta norteadora da pesquisa, qual seja, “há diretrizes técnicas e regulamentações legais específicas para atuação dos agentes policiais no atendimento pré-hospitalar especializado e imediato às vítimas de violência intencional?”, chegou-se às seguintes conclusões, a pesquisa incidente sobre a base legislativa confirmou de forma inequívoca o limbo regulamentar ao qual está sujeita a área de atendimento pré-hospitalar em situações de violência intencional.

Mostrou-se que a legislação geral e os procedimentos técnicos protocolares para o atendimento pré-hospitalar móvel, mesmo aquelas direcionadas aos policiais, não preveem nenhum tipo de atuação nas zonas quentes e mornas dos ambientes de combate.

Apesar de haver normatização e capacitação de militares das Forças Armadas para atuar nas zonas citadas, tais parâmetros técnico-legais, por questões de circunscrição e competência constitucional, não se aplicam às polícias.

Quanto aos aspectos técnicos, a doutrina técnica estrangeira de APH em combate não é formalmente adotada como parâmetro das políticas públicas de capacitação certificados pelo NECs ou pelas Escolas Superiores de Saúde (Medicina e Enfermagem), até porque não há um curso de capacitação específico voltado às forças policiais devidamente regulamentado.

Diante de tudo, conclui-se que as lacunas comprovadas pela presente pesquisa são uma forma de omissão estatal, que redunda em desrespeito ao direito à saúde e, por conseguinte, ao direito à vida dos brasileiros. Tal desrespeito se manifesta em três grupos distintos de pessoas: à população em geral, que não pode contar com policiais treinados, equipados e integrados à rede de urgência e emergência para socorrê-la em situações de violência intencional; aos policiais, que são lançados em operações de guerra urbana, sem o preparo necessário e integração à rede de saúde para socorrerem a si mesmos ou aos pares; e às pessoas em conflito com a lei neutralizadas pela polícia, que não são objeto de socorro humanitário e técnico.

Ou seja, constatou-se que, no que concerne ao atendimento público de vítimas de violência intencional, o ideal constitucional preconizado pelo sistema público de saúde não está cumprindo as promessas de “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos” nem o “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988).

Frente a tudo isso, defende-se a necessidade premente de capacitação das forças policiais a fim estarem habilitadas a chegar precocemente às vítimas de violência e nelas realizar intervenções estabilizadoras, potencializadoras das possibilidades de sobrevida.

É preciso discutir cientificamente o tema entre NECs, Escolas Superiores de Saúde e órgãos policiais. O SUS precisa desenvolver e ofertar treinamento continuado, certificação e recertificação em APH geral e em APH em combate para todos os efetivos policiais do Brasil. As instituições policiais e seus agentes devem ser efetivamente integrados à Rede de Urgência e Emergência, por meio de protocolos específicos. Também é preciso definir procedimentos ético-legais de atendimento a agressores neutralizados, com a participação dos Ministérios Públicos correspondentes a cada esfera de atuação da instituição policial.

Qual seria o custo e tempo de operacionalização de algo de tal magnitude? É difícil dizer, mas tem-se absoluta certeza de que os prejuízos humanos, sociais, psicológicos e materiais de 50 mil óbitos anuais por violência intencional são absurdamente maiores.

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APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

2. “A categoria Mortes Violentas Intencionais (MVI) corresponde à soma das vítimas de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais em serviço e fora” (FBSP, 2019b).

3. É importante salientar que as estatísticas não levam em consideração as mortes de policiais federais e de policiais rodoviários federais, cujos efetivos são relativamente pequenos, mas as taxas de mortalidade são relativamente mais altas. Na Polícia Rodoviária Federal, por exemplo, tem-se uma média de 4,25 policiais assassinados por ano (RODRIGUES, 2019) para um efetivo de cerca de dez mil policiais (CARVALHO, 2019). Isso representaria uma taxa de 42,5 policiais mortos por um grupo hipotético de 100 mil habitantes policiais rodoviários federais.

4. Ao longo de 13 anos (2004-2017), o Brasil enviou 37.500 militares ao Haiti. Foram 26 óbitos, mas a maioria foi vítima de um terremoto ocorrido em 2010 e não de ações de combate (CHARLEAUX, 2017). Em média, foram 5,3 mortes anuais por grupo hipotético de 100 mil militares.

5. Considerando-se 6.220 mortes para uma população de 208 milhões de habitantes (OLIVEIRA, 2018; FBSP, 2019a).

6. “A atenção básica ou atenção primária em saúde é conhecida como a ‘porta de entrada’ dos usuários nos sistemas de saúde. Ou seja, é o atendimento inicial. Seu objetivo é orientar sobre a prevenção de doenças, solucionar os possíveis casos de agravos e direcionar os mais graves para níveis de atendimento superiores em complexidade. A atenção básica funciona, portanto, como um filtro capaz de organizar o fluxo dos serviços nas redes de saúde, dos mais simples aos mais complexos” (FIOCRUZ, 2020).

7. As diferenças técnicas entre urgência e emergência são discutidas em profundidade num artigo de GIGLIO-JACQUEMOT, cuja referência pode ser acessada na lista de bibliografia do presente artigo. Remetemos o leitor interessado no tema a essa leitura, pois a discussão não faz parte do escopo do trabalho.

8. A Resolução n. 1.600, do Conselho Federal de Medicina, datada de 10 de março de 1995, regulamenta diretamente o assunto, pois define a “constatação médica” como caracterizador de emergências. A Lei n. 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, regulamenta indiretamente o assunto, ao definir a emergência como situações “declaradas por médico assistente” (art. 35-C, I).

9. A já citada Lei 9.656, segundo o art. 35-C, II, coloca os fatores acidente pessoal ou problemas gestacionais como diferenciadores da urgência em relação à emergência, no que concerne à responsabilidade de cobertura dos planos de saúde.

10. É a “seleção apropriada do nível de uso da força em resposta a uma ameaça real ou potencial visando limitar o recurso a meios que possam causar ferimentos ou mortes” (BRASIL, 2010).

11. Por este princípio, seriam os direitos humanos “o núcleo chave do direitos pós-moderno, todas as normas (internas e internacionais) presentes em um determinado Estado e que atingem, de uma ou de outra maneira, os indivíduos sujeitos à sua jurisdição, devem ser interpretadas em conformidade com esses direitos, é dizer, de acordo com as normas internacionais (convencionais ou costumeiras) de proteção dos direitos humanos em vigor” (MAZZUOLI, 2016, p. 35).

12. Trata-se, inclusive, de recurso mnemônico adaptado da medicina militar e trazido para as versões mais recentes do PHTLS “civil”, em substituição ao antigo ABCDE.

[1] Especialista em Direito Público e em Urgência e Emergência, Bacharel em Direito, Policial Rodoviário Federal e Socorrista de Suporte Básico de Vida. ORCID: 0000-0002-9160-8657.

Enviado: Agosto, 2021.

Aprovado: Fevereiro, 2022.

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Ket Jeffson Vasconcelos Leitão

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