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Complexos psicológicos kleinianos: análise da obra “Precisamos falar sobre o Kevin”

RC: 124452
727
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/complexos-psicologicos

CONTEÚDO

RESENHA

ABREU, Liliane Alcântara de [1], MELO, Natalia Sayuri [2], SOARES, Pamela Cristina [3], NUNES, Letícia Monteiro [4], SILVA, Gabriella Braga Dias da [5], MENDES, Matheus Passos [6]

ABREU, Liliane Alcântara de. et al. Complexos psicológicos kleinianos: análise da obra “Precisamos falar sobre o Kevin”. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 08, Vol. 03, pp. 181-209. Agosto de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/complexos-psicologicos, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/complexos-psicologicos

RESUMO

Este artigo teve a finalidade de pesquisar, analisar e produzir um levantamento teórico sob a perspectiva da psicanálise por meio da obra de Melanie Klein (1966; 1991-1997) para compreender os mecanismos de voracidade, introjeção, projeção, inveja e gratidão expressos na obra “Precisamos Falar Sobre o Kevin”, e que foi analisado aqui a partir do filme e do livro. O artigo visa compreender aspectos kleinianos enquanto analisa psicanaliticamente de forma mais contundente o longa-metragem. Para tanto, teve-se como questão norteadora: como e por que relações materno-filiais podem gerar mães distantes emocionalmente e filhos com comportamentos análogos ao transtorno de conduta? Assim, o objetivo geral se fundamentou em detectar como se constrói o desenvolvimento da personalidade no indivíduo através da relação materna. A hipótese firmou-se no pressuposto de que o sujeito com transtorno de conduta pode ter seu comportamento potencializado diante do reconhecimento do medo ou rejeição de seu cuidador mais próximo, no caso, a mãe. Como metodologia, a pesquisa se embasou sobretudo na observação e análise da obra “Precisamos Falar Sobre o Kevin” e no levantamento bibliográfico para a discussão teórica, embasados sob a luz de Klein, e ainda o apoio de outros teóricos. Como resultado e conclusões, as análises indicaram que as relações afetivas entre mães e filhos, e que são tão delicadamente pontuadas por Klein, podem disparar uma infinidade de psicopatologias como as psicoses ou perversões, desdobramentos como transtornos narcísicos e outros agravantes, e gerando adultos doentes, num ciclo sem fim de dores por medos de amar e não ser amado.

Palavras-chave: Klein, Maternidade, Psicanálise, Psicologia, Psicopatologia.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo teve como finalidade fazer uma análise cruzada entre a Arte e a Psicanálise da escola kleiniana. Para tanto, foi levado em consideração os estudos de Melanie Klein (1966; 1991-1997) sob a perspectiva do filme fruto do livro com o mesmo nome, “Precisamos Falar Sobre o Kevin” (RAMSAY, 2011; SHRIVER, 2007). A obra trata da relação de mãe e filho, os complexos psicológicos desencadeados diante de sua interação – e até a falta dela –, e os desdobramentos em pontuais adoecimentos psicopatológicos de ambos.

Teve-se como questão norteadora a pergunta: como e por que relações materno-filiais podem gerar mães distantes emocionalmente e filhos com comportamentos análogos ao transtorno de conduta? Assim, o objetivo geral se fundamentou em detectar como se constrói o desenvolvimento da personalidade no indivíduo através da relação materna. Como consequência, os objetivos específicos se desenvolveram em entender como o comportamento materno contribui na formação do psiquismo dos menores aos seus cuidados; compreender como se podem surgir os indivíduos com transtorno de conduta, e detectar quais são os padrões e conceitos construídos sobre o que é ser uma boa mãe socialmente.

Com isso em mente, foi possível gerar os signos comportamentais que compõem a hipótese para análise dos sujeitos envolvidos na trama. Desse ponto de vista, firmou-se no pressuposto de que o sujeito com transtorno de conduta pode ter seu comportamento potencializado diante do reconhecimento do medo ou rejeição de seu cuidador mais próximo, no caso, a mãe. Esse pressuposto surgiu mediante da própria construção confusa da narrativa da história, o levou o grupo de autores a se indagar todo o tempo quem era Eva, a personagem central, e por que ela se comportava de forma tão apática todo o tempo? Em paralelo, de onde Kevin, o filho, retirava tanto ódio pela mãe? E como esses comportamentos se construíram?

Logo, como metodologia, a pesquisa se fundamentou na observação e análise do filme, bem como a intersecção com os levantamentos de revisão bibliográfica para a discussão teórica. Assim, para buscar o entendimento dos comportamentos sociais apresentados no filme, alguns estudiosos foram importantes. Portanto, como estudo mais profundo, a equipe deste artigo concentrou-se não só na efetiva teorização partida de Klein (1966; 1991; 1991-1997), mas buscou em vários teóricos a compreensão da demanda como Juan-David Nasio (1995), Vladimir Safatle (2007), e até em Carl Jung (1994; 1991), dando o embasamento inicial histórico e sobre como constrói-se o pensamento dessa psicanalista foco de estudo. Sigmund Freud (1972; 2011) e Hanna Segal (1975) foram também utilizados como base nessa fase, mas igualmente na posterior. Ao adentrar a análise factual do filme, e com suporte no próprio livro com a história de Eva e Kevin, a equipe de estudo se apoiou também em Elisa Cintra e Luiz Figueiredo (2010), David Zimerman (2004) e em Liliane Abreu (2022), reforçaram brevemente os conceitos desses autores anteriores, auxiliando no entendimento das reflexões apresentadas no filme. O CID-10 (1993) foi usado como igual apoio. Por fim, as considerações finais encerram a análise do presente artigo.

2. ENTENDENDO OS CAMINHOS DE MELANIE KLEIN

Na Inglaterra de 1940-1944 ocorreram divergências teóricas que criaram uma cisão entre os psicanalistas. Formou-se assim, um grupo com Melanie Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975), outro grupo com Donald Woods Winnicott (1983; NASIO, 1995), e um terceiro grupo liderado por Anna Freud (1971). Posteriormente, surgiram dali escolas distintas: a escola inglesa (com Klein e Winnicott); a escola francesa com Lacan (NASIO, 1995), e a escola americana com Hartmann (1968). Cabe ressaltar que a escola americana também ficou conhecida como Psicologia do Ego – pois, passou a estudar outras coisas, como percepção –, deixando o inconsciente um pouco de lado e valorizando o biológico através do cérebro, dando origem às teorias de cognição.

Portanto, cada teórico elegeu um pilar para sua teoria. Melanie Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975) levou em consideração a angústia e o vínculo. Winnicott (1983; NASIO, 1995) se baseou no Holding, que é o apoio e ambiente em que a mãe está inserida com a criança. Para Lacan (NASIO, 1995), o inconsciente está estruturado como linguagem, e apoiou-se fortemente na linguística de Saussure (2012), na antropologia de Lévi-Strauss (1953/1975; LEPINE, 1979) e na dialética de Hegel (2008).

2.1 KLEIN, O SEIO BOM E O SEIO MAU

O principal ponto da teoria de Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975) está ligado à questão do vínculo paciente e analista, inclusive afirmando em certos momentos que isto é superior à questão do inconsciente. A psicanalista foi a pioneira no quesito de trabalhar com a infância. Por esse motivo, desenvolveu o pensamento de que o psiquismo se origina com o vínculo da mãe com o bebê. Portanto, quando se fala sobre o indivíduo paciente em sua escola, está se referindo diretamente às crianças.

Sua análise com os pequenos se baseava na técnica dos jogos, em que eles deveriam ser observados como adultos. Ela acreditava que a transferência entre terapeutas e crianças seria igual àquela com adultos. Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975) usava os jogos, pois as crianças (às vezes até bebês) tinham dificuldade de se expressar ou falar.

Ela defendia o pensamento de que durante as análises não se deveria usar de medidas reeducacionais, ação essa conduzida pela psicanalista Anna Freud (1971), que possuía formação inicial em Pedagogia. Por essa razão, defendia a introdução da reeducação ainda na análise, criando assim, divergências entre ela e Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975). Por sua vez, Klein afirma que não é papel do terapeuta ensinar o que a criança deve fazer. Ademais, deveria apenas perceber o que o paciente traz, sem interferir. Assim, além de toda teoria do vínculo, essa autora tinha a questão da angústia como outro ponto importante. Ela igualmente identificou que todos os pontos da segunda tópica freudiana (Id, Ego e Superego) estariam presentes no indivíduo desde tenra idade, e seriam responsáveis pelo desenvolvimento psíquico precoce.

Nas observações e teorias, a ideia do mundo dos objetos internos (ou seja, das fantasias inconscientes) era cabível à uma criança. Isto significa que Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975) entendia que na infância ocorreria uma relação fantasiosa entre a criança e seu primeiro objeto de amor: a mãe. Ela teria um conflito mental de amor e ódio com essa figura materna.

Com relação à técnica dos jogos, ela analisava seus pacientes a partir de jogos, dramatizações, expressões verbais, desenhos e brincadeiras. Se a criança aceitasse qualquer uma dessas vertentes, ou até mais de uma, tudo poderia ser utilizado favoravelmente para alcançar o inconsciente desse indivíduo – um processo muito aproximado, dentro das devidas proporções, às teorias de Jung (1994) e que culminaram na Arteterapia de linha de Psicologia Analítica.

Outro ponto defendido, é que as fantasias agressivas da criança não deveriam ser reprimidas. Para Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975), a criança deveria ser capaz de exprimir suas fantasias como aparecem, sobretudo porque estariam ligadas ao fator de amor e ódio à mãe. Portanto, o terapeuta deveria apenas oferecer os brinquedos e materiais que possibilitassem a expressão do indivíduo, até para a questão de os sentimentos poderem ser observados. Somente assim, o profissional poderia compreender de forma mais abrangente o que ocorre com a criança. A partir disso, o analista teria que ser sincero com o infante, dizendo inclusive a ele que certas coisas estariam acontecendo por causa de determinadas situações. Evidente que dentro da linguagem e compreensão desse pequeno cliente.

No entendimento de Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975), o sujeito valoriza e confia, mesmo em tenra idade, em quem lhe conta a verdade e é sincero. Isso fecharia a transferência (o vínculo) e o terapeuta alcançaria o paciente para tratamento. Esse fator unido aos jogos, seria suficiente para alcançar o inconsciente do indivíduo e fazê-lo expor suas angústias, pensamentos e emoções. Anna Freud (1971) rebatia essa teoria de Klein, afirmando que crianças não fariam transferência com o terapeuta. Ademais, Anna Freud dizia que o profissional deveria examinar os pais, pois o vínculo da criança era parental, e não com o terapeuta. Portanto, ela acreditava que para alcançar o inconsciente da criança, teria que passar necessariamente pelos pais.

Diferente de Sigmund Freud (1972) que situava a fase fálica dos três aos cinco anos para o Complexo de Édipo, Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975) estabelecia esse processo no primeiro ano de vida. Dessa forma, a autora entendia que o Complexo de Édipo surgiria após uma fase feminina do bebê, sendo que tanto os meninos, quanto as meninas passariam por isso. Como consequência, haveria uma fantasia de que o corpo da mãe é um grande brinquedo com outras partes menores, como os seios. Isso precipitaria a fantasia de entrar no corpo da mãe e destruir esses brinquedos e objetos (incluindo o pênis do pai). Posteriormente, a criança geraria o pensamento de arrependimento por querer destruir seu primeiro grande objeto de amor, que era a própria mãe. Para Klein, o Complexo de Édipo surgiria nesse momento, mas contrária à teoria freudiana, pois a fantasia é de que a mãe tem o pênis do pai e o desejo de possuí-lo. (ABREU, 2022)

Outro conceito seria com relação ao Superego precoce. Segundo Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975), o Superego seria formado desde o início da vida e, sendo assim, anterior ao Complexo de Édipo. Ademais, o Superego não seria apenas um censurador, mas potencialmente sádico e cruel. Klein afirmava que a posição esquizoparanoide regulariza os primeiros três meses de vida e seria o demarcador durante esse período. Dessa forma, no primeiro momento, a criança tem a angústia persecutória com relação à mãe, ou seja, ela tem o medo de ser atacada por aquele seu primeiro objeto de amor como forma de represália por ela supostamente ter tentado destruir o corpo dessa mãe. Como segundo ponto, e em paralelo, a criança tem que lidar com a relação do seio bom e do seio mau. Isso estaria ligado aos sistemas de recompensa, já que ao se alimentar direito e tem a devida atenção e carinho, vê isso como o surgimento do seio bom. Em contrapartida, o seio mau se apresentaria naquilo que causa angústia e sensação de perseguição, e surgiria, por exemplo, quando a mãe amamenta de forma rápida ou expressa irritação ou rejeição. (ABREU, 2022)

Logo, essa questão da amamentação é de extrema importância bilateral, mas para a criança será fundamental na criação do vínculo emocional, da mesma forma, em como esse vínculo será interpretado.

O terceiro ponto – lembrando que o primeiro ponto é quando a criança tem a angústia persecutória com relação a mãe, e o segundo ponto é quando ela tem que lidar com a relação do seio bom e do seio mau –, estaria ligado ao Eu (Ego) se proteger da angústia com o mecanismo de defesa. Após todo esse processo da posição esquizoparanoide, surgiria a posição depressiva. Ela ocorreria entre 3 e 6 meses de idade.

Em um primeiro instante, seria a angústia depressiva em que o Eu sentiria culpa pela pulsão agressiva, ou seja, aquele fragmento que a criança sentisse raiva contra o objeto amado (a mãe) tentando destruí-lo, o que levaria ao momento seguinte de se arrepender e sentir a angústia. Como segundo fator, haveria um aumento de integração com a mãe nos aspectos bons e maus, reforçando a questão do seio bom e mau. Isso conduz ao terceiro pensamento de que através do mecanismo de defesa, ocorreria uma reparação da dor das fantasias agressivas com os objetos amados. Haveria aqui a integração afetiva, em que a criança aceitaria a mãe e ela se tornaria verdadeiramente real.

Portanto, o sujeito cindido dentro do espectro esquizoparanoico, no momento que entende que fere o objeto amado em defesa do que compreende como mau, e chega à conclusão de que se ele fere o que é bom, então ele mesmo é mau. Logo, ele entra na depressiva e sai dessa posição persecutória, surgindo dali o neurótico que vê que o objeto mau também é bom, e, portanto, um só. Se ele não ultrapassa esse percurso, fixa-se como psicótico, ou, se ele sentir prazer no curso de ferir o objeto amado, surge dali o perverso que pode ter o agravante no transtorno de personalidade antissocial.

3. MECANISMOS KLEINIANOS: PRECISAMOS FALAR SOBRE O KEVIN

A equipe formatada para este artigo escolheu a obra “Precisamos Falar Sobre o Kevin” (RAMSAY, 2011; SHRIVER, 2007) para uma análise com enfoque sob a perspectiva kleiniana. A história conta a relação tensa entre uma mãe e seu filho, e que geram aspectos de adoecimento psíquico que desembocam em psicopatologias.

Eva era uma mulher aventureira e ativa no universo das viagens culturais quando solteira. O filme começa com ela no Festival da Tomatina, na Espanha, que consiste em uma enorme batalha de tomates. A presença da cor vermelha se evidencia nessa primeira cena, como se fosse um enorme mar de sangue, misturando amor e raiva.

No meio disso está Eva, com feição leve e sorriso aberto como quem está se divertindo livremente. Em seguida, a cena corta para Eva, atualmente, em uma casa bagunçada com restos de comida espalhados pela mesa e uma apatia presente em seu rosto, expressões vazias e constante olhar tão distante quanto seus pensamentos, como se nada importasse. No presente, ela está sozinha, morando em uma casa pequena e confusa, assim como ela mesma enquanto ser humano.

O início do filme mostra tempos diferentes dessa personagem principal, apresentando uma confusão de fatos, e, aparentemente, a própria confusão mental de Eva diante de uma sucessão de eventos por anos e finalizados com um grande trauma. Assim, a narrativa oscila no tempo através da perspectiva dessa mãe. A história se desenvolve através de flashs dos acontecimentos que ocorreram antes, durante e após um evento traumático que não é revelado logo no início, mas fica evidente que muda e impacta gravemente a história da personagem.

Naquele momento apático, sua casa e carro foram atacados com tinta vermelha. As pessoas a agridem verbal e fisicamente, ou apenas ficam olhando-a sem emitir nenhuma palavra, mas com julgamento. Eva tem constante percepção de perseguição, mas somente ao final do filme é que se entende que, de fato, ela o era.

As cenas trazem uma comparação que enfatiza a diferença de Eva antes e depois do evento traumático. Conforme Klein (1991), a desvalorização do objeto e do mundo externo nos casos de depressão e melancolia se alternam com a desvalorização da própria pessoa. Eva bate o pé na quina da mesa e não esbanja nenhuma reação de dor; ao abrir a porta percebe que sua casa foi vandalizada com tinta vermelha e não demonstra nenhum sentimento aparente, como se tudo fosse irrelevante, ou melhor, como se ela estivesse anestesiada todo o tempo.

Vê-se pela descrição das defesas, que todas elas ficam contaminadas pela dinâmica da pulsão de morte, e, na tentativa de combater o próprio “aguilhão” da inveja, conduzem as formas de existência cada vez mais desvitalizadas e ausentes de desejo, entusiasmo, interesse e paixão. (CINTRA; FIGUEIREDO, 2010, p. 141)

A percepção que se tem, é de que ela está presa dentro de um longo processo de negação do luto que atravessa os meses. Ela não chora, não dorme direito, está constantemente sob alerta e parece estar em um mundo paralelo.

Quando jovem, Eva tentou sair dos Estados Unidos (local que morava) para a França, mas foi impedida pelo namorado. Ele acabou tornando-se seu marido, após descobrirem que ela estava grávida. O casal teve dois filhos em tempos diferenciados.

No presente, durante a busca por um novo emprego, ela é contratada por uma agência de viagens. Suas expressões vazias são substituídas brevemente por felicidade e alívio. Os colegas também a observam com estranheza e distanciamento. Contudo, ao sair dessa entrevista inicial sorrindo, ela encontra uma mulher que a confronta sobre o porquê de tal felicidade, e se ela tinha esquecido do que ocorreu no passado, dando em seguida um tapa no rosto de Eva. Ela não transparece fúria nem qualquer outro sentimento, mas volta para seu estado apático. De acordo com Klein (1991; CINTRA; FIGUEIREDO, 2010), a angústia embora pareça ausente, está em um estado de latência nos esquizoides.

Dessa forma, embora Eva pareça não se importar com o que aconteceu e ainda acontece em sua vida, na verdade existe um sofrimento e ansiedade muito intensos que não estão aparentes à terceiros. Cintra e Figueiredo (2010) dizem que essa ansiedade, mantida latente pela dispersão, é experimentada em alguma medida o tempo todo.

Logo no início do filme, o relacionamento amoroso de Eva é apresentado em três momentos. No primeiro deles, ela aparece feliz e se divertindo com seu parceiro, Franklin, e ambos parecem apaixonados (antes do casamento). Em seguida, corta para a cena em que ele pede para Eva deixá-lo completar o ato sexual na tentativa de gestá-la. Fica evidente que ela não deseja engravidar, mas permite porque é a vontade de seu namorado.

Klein (1960) explica que a lealdade com relação ao que é amado ou tido como certo, implica que os impulsos hostis ligados às ansiedades, passam a ser dirigidos àqueles objetos que colocam em perigo o que é sentido como bom. Dessa forma, Eva permite ter um filho por medo de perder o amor de seu marido caso não realizasse seu desejo, e essa criança passa a ser o objeto que coloca em perigo esse amor e sua própria liberdade. Cabe aqui o trecho da personagem sobre essa mudança em sua vida:

Enquanto isso, comecei a ver meu corpo sob uma nova luz. Pela primeira vez, tive a consciência das pequenas elevações em meu peito como tetas destinadas à alimentação de um filhote, e notar sua semelhança física com o úbere de vacas ou com os volumes bambos de cadelas lactantes de repente foi inevitável. (…) Não quero com isso dar a entender que fui a primeira mulher a descobrir os pássaros e as abelhas. Mas isso tudo era novo para mim. E, honestamente, eu não tinha muita certeza a respeito. Sentia-me dispensável, jogada fora, engolida por um grande projeto biológico que não iniciei nem escolhi. Que me produziu, mas que também iria me mastigar e depois cuspir fora. Eu me senti usada, (SHRIVER, 2007, p. 66-67)

Ela continua em outro trecho reforçando sua visão sobre essa nova mulher e a maternidade, e sua mágoa em ter deixado de ser uno com o marido em decorrência do surgimento de Kevin:

Eu esperava que, com o tempo, a ambivalência sumisse, mas a sensação conflitante foi se acentuando e, desse modo, ficando mais secreta. Finalmente vou abrir o jogo. Acho que a ambivalência não desapareceu porque não era o que parecia ser. Não é verdade que eu me sentisse “ambivalente” a respeito da maternidade. Você queria um filho. Eu não. Tudo somado, até parecia uma ambivalência, mas mesmo formando um casal que era realmente o máximo, não éramos uma mesma pessoa. Nunca consegui que você gostasse de berinjela. (SHRIVER, 2007, p. 71)

Em seguida, já são passadas algumas cenas durante a gestação de Eva e é quando ela começa a aparecer com as expressões mais vazias, que futuramente se tornam constantes. Mesmo perto de outras mães, ela não interage e não parece animada com a gravidez. Já em trabalho de parto, ela resiste à concepção como se não quisesse que a criança saísse de dentro de si.

(…) a ansiedade surge da operação da pulsão de morte dentro do organismo, é sentida como medo de aniquilamento (morte) e toma a forma de medo de perseguição. O medo do impulso destrutivo parece ligar-se imediatamente a um objeto, ou melhor, é vivenciado como medo de um incontrolável objeto dominador (KLEIN, 1991, p. 24-25)

Ao resistir durante o parto, Eva parece não querer materializar e tornar real esse objeto que para ela é destrutivo, mostrando medo de que ele a domine e mude toda a sua realidade. De certa forma isso se concretiza, pois com a chegada de um bebê, a vida de seus pais se modifica para atender suas necessidades, e com Kevin não foi diferente.

Trazer algumas perspectivas com trechos direto do livro foi atraente a esse artigo de Psicanálise. Então, serão dispostos alguns pontos da história no decorrer dessa discussão teórica. Um deles é sobre o parto e o pós-parto, sob a perspectiva da própria Eva. Assim, no livro em quem o filme se baseou, a protagonista conta em cartas como foram as horas antes do parto do Kevin:

Ah, Franklin, não há por que fingir agora. Foi horrível. Eu até posso ser capaz de aguentar determinados tipos de dor, mas se for esse o caso, minha intrepidez mora nas canelas e nos braços, não entre minhas pernas. Essa nunca foi uma parte do corpo que eu teria associado com estoicismo, como algo tão odioso quanto exercício. […] E, de repente, estava tudo acabado. Mais tarde, acharíamos graça de eu ter aguentado tudo para só no fim implorar por alívio – quando ele já não podia mais ser oferecido -. mas na hora não foi nada engraçado. No momento mesmo em que ele nascia, associei nosso filho com minhas próprias limitações – não só com o sofrimento, mas também com a derrota. (SHRIVER, 2007, p. 94-95).

Para Klein (1966; 1991; 1991-1997), o bebê recém-nascido é capaz de sentir o processo do seu próprio nascimento e é possível relacionar essa hipótese com tudo que se procede depois na relação de Kevin com Eva, como se ele percebesse que não era amado desde o parto, ou mesmo antes disso:

Apresentei a hipótese de que o bebê recém-nascido vivência, tanto no processo de nascimento quanto no ajustamento à situação pós-natal, ansiedade de natureza persecutória. Isso pode ser explicado pelo fato de que o bebezinho, sem ser capaz de apreendê-lo intelectualmente, sente inconscientemente todo desconforto como tendo sido infligido a ele por forças hostis. Se lhe é oferecido conforto prontamente – em especial calor, o modo amoroso de segurá-lo e a gratificação de ser alimentado –, isso dá origem a emoções mais felizes. Tal conforto é sentido como vindo de forças boas e, acredito, toma possível a primeira relação de amor do bebê com uma pessoa ou, como um psicanalista diria, com um objeto. Minha hipótese é que o bebê tem um conhecimento inconsciente inato da existência da mãe. (…) Podemos também observar que com apenas poucas semanas o bebê já olha para o rosto de sua mãe, reconhece seus passos, o toque de suas mãos, o cheiro e a sensação de seu seio ou da mamadeira que ela lhe dá – tudo isso sugere que alguma relação com a mãe, ainda que primitiva, foi estabelecida. (KLEIN, 1991, p. 282)

Ao nascer, o bebê está exposto a vários traumas, frustrações, sofrimento e confusão. Logo, ele geralmente tem acesso ao carinho e afeto da mãe, o que não ocorreu com Kevin.

As memórias de Eva ficam indo e vindo, como alguém que busca por respostas. Ela lembra-se da primeira gestação do filho Kevin, e da dificuldade em cuidar dessa criança. O menino chorava todo o tempo que estava com a mãe, por mais que ela se esforçasse. Eva passou a não suportar os choros da criança, e uma britadeira parecia mais suportável do que os choros. Logo, ela mostra-se impaciente, descontente e sem o menor jeito com o bebê, e apresentam a personagem em certos momentos como se estivesse com depressão pós-parto. Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975) em sua teoria, destaca a importância de experiências boas serem sempre predominantes em relação às ruins para ocorrer o desenvolvimento favorável do bebê. Em contraponto, o pai também se esforçava para ser um genitor amoroso. O bebê não chorava com ele, e, assim, o marido de Eva achava que ela exagerava nos argumentos de exaustão.

Durante o crescimento da criança e por volta dos 3 anos, Eva percebe que o filho não brinca, não fala com ela e não responde aos estímulos, mostrando-se completamente apático. Ela se esforça em interagir com o menino, mas não há nenhum tipo de reação, e quando reage, é agressivo. Diante disso, Eva leva o pequeno ao médico para exames que pudessem apontar para algum problema, como autismo ou até surdez, mas os testes mostraram normalidade. Assim, a relação de mãe e filho vai se tornando mais tensa. Klein (1991) reforça a importância de se identificar e compreender esses sinais:

Os diversos sinais de dificuldades do bebê – estados de raiva, falta de interesse em seu ambiente, incapacidade de suportar frustração e expressões fugazes de tristeza – não encontravam anteriormente qualquer explicação, a não ser em termos de fatores físicos. Pois, até Freud fazer suas grandes descobertas, havia uma tendência geral a considerar a infância como um período de felicidade perfeita e a não levar a sério as diversas perturbações apresentadas pelas crianças. As descobertas de Freud têm nos ajudado, no decorrer do tempo, a entender a complexidade das emoções da criança e têm revelado que as crianças passam por sérios conflitos. (KLEIN, 1991, p. 281)

O menino apresenta desde cedo traços de transtorno de conduta especificamente com a mãe, o que conforme foi crescendo, configurou-se em efetivo transtorno de personalidade antissocial, a psicopatia. Ele era bastante violento e não possuía empatia ou carisma com a genitora. Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975) foi a primeira profissional a perceber que o processo psicótico ou perverso vem da própria formação simbólica afetada, e isso vai ao encontro da história da família de Eva.

Durante outra tarde de estímulos, Kevin batuca em seu brinquedo de som, enquanto sua mãe pede para que ele repita alguns nomes. Ao requisitar que o menino diga mamãe, ele responde não por diversas vezes. Da mesma forma, ele se recusa a comer tudo o que lhe é ofertado, diz não gostar ou não querer e joga o pote de comida na porta da geladeira.

Ao interpretar não apenas as palavras da criança, mas também suas atividades com seus brinquedos, apliquei este princípio básico à mente da criança, cujo brincar e atividades variadas – na verdade, todo o seu comportamento – são meios de expressar o que o adulto expressa predominantemente através de palavras. Também orientei-me sempre por dois outros princípios da psicanálise, estabelecidos por Freud, que desde o princípio considerei fundamentais: que a exploração do inconsciente é a principal tarefa do procedimento psicanalítico, e que a análise da transferência é o meio de atingir este objetivo. (KLEIN, 1991, p. 151)

Eva se posiciona ao lado do berço de Kevin, e diz a ele, que era feliz antes de seu nascimento, e agora ela acorda todos os dias querendo estar em outro país. O pai ao ver aquela cena, balança a cabeça como forma de reprovação. De fato, este é o primeiro momento que Eva apresenta uma reação de externar o que pensava sobre si e sua relação com o filho, pois de praxe, ela mantinha o silêncio e o comportamento de submissão. A relação mãe e filho torna-se um embate constante, mas com Eva sempre sendo subjugada por Kevin. Ela parecia ter medo do filho, mesmo ele sendo pequeno.

Nas cenas que colocam em paralelo presente e passado, Eva é mostrada durante uma visita a Kevin no presídio (ele está com mais de 16 anos). Ela se mantém calada e aparentemente abatida. O rapaz, por sua vez, está distraído retirando pedaços de pele morta grudadas em sua boca, enfileirando-as uma ao lado da outra – mas só com o decorrer da história é que se entende que aquilo era uma alusão à corpos mortos enfileirados –, enquanto olha fixamente para a mãe. O rapaz mostra-se uma pessoa completamente fria, sem empatia e que não demonstra qualquer remorso.

Com cerca de 7 anos, Kevin ainda usava fraldas. As falas e ações com o pai continuam normais, mas com a mãe sempre são tensas e agressivas por parte da criança, o que às vezes leva Eva torna-se reativa. Nessa época, e após uma conversa, os pais decidem se mudar para o interior, para que Kevin tenha uma vida melhor e aproveite mais sua infância ao ar livre, ao invés de ficar preso dentro de casa. Kevin mantém-se persistente em atrapalhar a conversa e falando repetidamente nhem nhem. Eva se irrita e bate na mão do menino.

A família muda-se para uma casa bem maior e com um certo status. Kevin e seu pai jogavam vídeo game com jogos de tiro, enquanto a criança gritava para que os personagens morressem.

A variedade de situações emocionais que podem ser expressas através de atividades lúdicas é ilimitada: por exemplo, sentimentos de frustração e de ser rejeitado; ciúmes do pai e da mãe, ou de irmãos e irmãs; a agressividade que acompanha tais ciúmes; o prazer em ter um companheiro e aliado contra os pais; sentimentos de amor e ódio em relação a um bebê recém-nascido ou a um bebê que está sendo esperado, assim como as resultantes ansiedade, culpa e necessidade premente de fazer reparação. No brincar da criança, também encontramos a repetição de experiências e detalhes reais da vida cotidiana, frequentemente entrelaçados com suas fantasias. É revelador que, algumas vezes, eventos reais muito importantes em sua vida deixem de entrar no seu brincar e em suas associações, e que, às vezes, toda a ênfase repouse sobre acontecimentos aparentemente secundários. Mas esses acontecimentos secundários são de grande importância para ela pois despertaram suas emoções e fantasias. (KLEIN, 1991, p. 157)

Por outro lado, a mãe ficava sozinha andando pela casa, lembrando de coisas passadas que sentia falta. Eva tenta criar ambientes diferenciados para o bem-estar familiar, e inclusive o seu. Ela elabora um espaço de personalidade própria e análogo àquilo que fazia antes de ter a criança, e cola mapas como papéis de parede nesse quarto específico, como um ambiente de agência de turismo, para que ali, ela pudesse estudar, criar, ler e até trabalhar, se possível. Era o espaço pessoal de sonhos. Contudo, Kevin debocha da ação da mãe e quando ela se ausenta do ambiente, ele destrói todo o local jogando tinta nas paredes, móveis e chão. Ao ser inquirido pelo pai, o menino diz que “estava tentando ajudar”.

Fazendo uma análise do que foi descrito até aqui, pode-se refletir sobre certos aspectos. É interessante perceber que Kevin e a mãe não chegaram a desenvolver um contato amoroso mútuo e profundo. Apesar de ter escolhido ser mãe (mesmo com limitações e dificuldades) e tentar da melhor maneira possível lidar com um filho de extrema voracidade, seu esforço não foi compensado. Todavia, era visível seu frequente desejo em não ter concebido Kevin como filho, mesmo não estando implícito nas palavras (com exceção do advento do berço citado anteriormente). O ódio descabido de Kevin sobre tudo aquilo que pudesse deixar a mãe, mesmo minimamente feliz, era colossal, e assim, ele destruía tudo que ela amasse. O comportamento destrutivo desse filho retirava qualquer tipo de satisfação da mãe.

De acordo com Klein (1996), quando a criança se encontra na fase de montagem do superego, ela deseja inicialmente destruir o objeto libidinal com mordidas e o despedaçando. Com isso, ela sente-se culpada por apresentar tanta destrutividade em si, o que cria um superego que se vinga correspondendo ao mesmo tipo de ofensa que ela projeta no objeto libidinal. Isso pode ser visto quando Kevin destrói os mapas e o quarto de sonhos da mãe, pois com isso, ele quis destruir a própria mãe, e, também, ao superego que ela representa. Por outro lado, pode-se pensar também que talvez se trate de um objeto interiorizado e que destrói o objeto bom. Seja como for, mesmo que não transpareça culpa, a criança nesse estado teme o superego por esse ser sádico e vingativo.

Ainda no episódio dos mapas destruídos, por não ter sustentado essa posição agressiva do filho, a mãe também passou a projetar nele um ódio por suas frustrações de vida e da maternidade no geral.

Outra cena que demonstra a voracidade e ódio de Kevin pela mãe, aparece quando ele está em processo de alfabetização, e com tudo piorando progressivamente. Quando Eva tenta ensiná-lo a contar – ela estava educando a criança em casa –, por exemplo, perguntando o que vem depois do número três, ele responde nove. O que vem depois do sete, ele diz setenta e um. Depois ele fala sem parar a sequência correta de um a cinquenta. Após isso, Kevin evacua propositalmente (e sorrindo) nas fraldas e na frente da mãe, obrigando-a a limpá-lo. Isto é corriqueiro e irrita a mãe. Assim que ela o troca, ele evacua novamente. Eva dessa vez se descontrola e joga o filho contra a parede, quebrando o braço da criança. Cabe aqui entender que as pulsões agressivas da criança, de fato, constroem o objeto e impedindo-a de edificar um objeto interno bom o suficiente para ser capaz de compensar as pulsões destrutivas.

Nesse ponto, pode-se evocar novamente Klein (1991). Para essa autora, Kevin estaria fixado em uma fase muito anterior por ainda evacuar sem controle, e até propositalmente. Se ele tivesse dois anos, ele estaria dentro da fase em que a criança sente prazer na área genital/anal, e isto estaria ligado com o sadismo primário e os impulsos epistemofílicos. Assim, o sadismo que era oral (apresentado nas mordidas), desloca-se para a fase anal.

Nessa fase de início de construção do superego, o bebê aprende não somente a controlar o esfíncter, mas ele desejaria se apropriar do corpo da mãe. Ali também ocorreriam dois processos de frustração: um marcado pela retirada do seio que amamenta, e outro, da retirada das fezes que não podem ficar com a criança. Para piorar o quadro, a criança acredita que suas fezes equivaleriam a um bebê.

A fase anal ocorre do primeiro até o terceiro ano de vida, sendo o momento em que a criança aprende a controlar sozinha suas necessidades imediatas. Freud (1972) relacionou que defecar de imediato e descontroladamente, está conectado diretamente à um adulto que não controla a raiva. Da mesma forma, desejar ser constantemente limpo pela mãe aponta para um adulto com grande poder de organização, talvez metódico, podendo ainda inclusive, ter compulsão por limpeza, e essa característica aparece muito marcante em Kevin. Mães (e cuidadores) que reclamam do cheiro ou das fezes da criança, criariam indivíduos que retém as fezes, podendo se desenvolver ali os avarentos. Na contramão desses comportamentos, se a criança aprende a entregar as fezes à mãe, recebendo na sequência muitos elogios, pode se surgir ali um adulto muito generoso. (ABREU, 2022)

Assim, Klein (1991) ainda informa que a criança ao ser destituída forçosamente daquele seu bebê – que são suas fezes, sua criação interna que vem ao externo – daquele seu objeto de amor, passa a desejar as fezes da própria mãe como substituto. Cruzando essas informações com Freud (1972), e com discursos de diversas mães que comumente pode-se ouvir, como, por exemplo, o relato desse momento em que as fraldas são retiradas, e que as crianças – independentemente se a passagem foi positiva ou negativa –, ficam prostradas na frente da progenitora olhando para seu rosto, enquanto a matriarca evacua sentada no vaso sanitário.

Klein (1966; 1991; 1991-1997) sugere que o superego surge por volta de 1 ano de idade – para Freud (1972), o superego seria formado por volta dos 3 ou 4 anos –, e da identificação direta com a mãe; desse ser que pode ser castrador e frustrador, ou generoso. Assim, se o sujeito não elaborar devidamente esse processo, ele gera raiva a respeito da mãe que é vista como alguém má e que dá medo, precipitando o sujeito psicótico, e que no caso dos meninos, pode ser potencializado.

A psicanalista explica que quando o sujeito está nessa fase esquizoparanoide, ele adentra a percepção de só ver ataques, perseguições e impulsos destrutivos, sem perceber nenhum tipo de afeto ou positividade. Ele internaliza o seio mau para si e como se fosse ele mesmo, internalizando o próprio superego. Assim, o indivíduo fica preso ao objeto que julga ser apenas mau: a mãe que seria odiosa e que dá medo, e responde com atitudes agressivas e sádicas, como Kevin.

De volta ao filme, no retorno do hospital para casa, Kevin mente ao pai como se feriu, mantendo o silêncio da mãe. O menino passa a usar o banheiro e abandona as fraldas, mas reforça os deboches e passa a dar ordens controlando Eva em mínimas ações, levando-a a tornar-se completamente passiva ao filho a partir disso.

Mesmo sendo uma criança que é inteligente e sabe de cor a maioria dos números possíveis para a sua idade, ele continuava errando constantemente de propósito. É próprio do longa-metragem fazer o telespectador perceber de forma evidente que o relacionamento entre mãe e filho é complexo e destoante. Klein (1996) indica que na fase de desenvolvimento que Kevin se encontrava nessa cena de surgimento das tendências edipianas, que o menino pode demonstrar um sadismo e ódio descabido pela mãe e seu corpo. Por ser palco dos processos de desenvolvimento, incluindo o sexual, ocorre um sentimento de culpa por parte da criança. Logo, ele busca resolver sentimentos complexos como culpa e medo pela castração paterna, tratando a mãe com uma maior agressividade. Kevin vai muito além do ódio, passando ao desdém e pela falta de contato materno, ignorando chamados, lições e aprendizados. Em paralelo, o garoto passa a observar a mãe em ações de voyerismo até quando os pais fazem sexo totalmente trancados no quarto (ele os observa pelo buraco da fechadura).

À medida que a criança se dá conta das identidades separados de seus pais e os vê cada vez mais como um casal empenhado numa relação sexual – e não como a mãe incorporando o pai –, os desejos da criança e seus ataques – quando com raiva e com ciúme – se estendem ao casal de pais. (SEGAL, 1975, p. 17)

Ademais, para indicar que não quer contato com esse objeto materno, Kevin projeta suas fezes na calça propositalmente durante a lição de alfabetização. Ainda na fase de surgimento das questões edipianas, o menino por ver no corpo da mãe um possível objeto amoroso, começa a projetar um ódio e introjetar uma vontade de possuir a feminilidade e a disposição feminina para ter filhos. O fato de a mulher poder ter filhos, dar à luz a algo e criar um ser, traz uma inveja natural para o filho. A criança do sexo masculino pode então começar a soltar fezes como se fossem sua criação e o bebê que ele deseja ter. (KLEIN, 1966)

O menino passou a errar de propósito apenas para rejeitar e não introjetar as lições da mãe, levando-a a agredir reativa e fisicamente a criança, e reforçando o sadismo nessa criança. Foi na forma descontrolada de agressão ao menino, que Eva demonstrou sua frustração com o filho e suas fezes (que seriam a demonstração de sua voracidade e vontade de se apropriar do corpo materno).

Ainda na sua infância, é necessário perceber que Kevin recusava-se ou não conseguia que seus impulsos destrutivos, vorazes e invejosos destruíssem o objeto bom que era expresso pelo cuidado materno que sua mãe fornecia. Mesmo quando ela dizia que o amava, ele se recusava a responder ou a sequer olhar para sua mãe. Pode-se entender, pelos mecanismos kleinianos, que o desenvolvimento infantil se dá por projeção e introjeção de objetos bons e maus. Quando ocorre uma agressão projetada, a criança está considerando o objeto materno como mau. Isso pode acontecer por voracidade infantil, sentimento de falta e medo de perseguições vorazes que devolvem na criança a agressividade cometida (KLEIN, 1966). Dessa forma, entende-se que Kevin projetava o objeto mau de diversas maneiras ao longo do filme, o que poderia explicar os constantes ataques a Eva.

Os ataques de Kevin e as provocações à mãe se ampliam, e agora o garoto também eventualmente provoca o pai com sons irritantes (mas, com menor frequência que a mãe). Eva engravida e tenta esconder o fato, e quando o bebê nasce, Kevin testa ferir a irmã sutilmente jogando respingos de água. Contudo, após o nascimento desse bebê, o menino oscila entre apreciação e exigência da atenção da mãe, aos ataques e a tentativa de independência vestindo suas próprias roupas. Eva tenta ser uma mãe atenciosa e amorosa, e, assim, a relação da mãe com o filho sofre uma reviravolta importante quando essa irmã nasceu. De acordo com Klein (1966) um dos maiores motivos pelos quais o menino pode demonstrar ódio e inveja pelo corpo materno, ocorre na fase da feminilidade. Com isso, o garoto pode ser governado pelo desejo de ter filhos, assim como a mãe, ou ainda haver ciúmes dos possíveis futuros irmãos. Ainda que possua o pênis – objeto de inveja feminino, conforme Freud (1971) –, a criança do sexo masculino em contrapartida pode invejar órgãos femininos de fecundação. De acordo com a autora:

Assim, a fase de feminilidade se caracteriza pela ansiedade relacionada ao útero e ao pênis do pai, e essa ansiedade submete o menino à tirania de um superego que devora, mutila e castra, formado a partir das imagens da mãe e do pai ao mesmo tempo. (KLEIN, 1966, p. 220)

A inveja pelo nascimento da irmã fazia com que Kevin maltratasse o bebê e se sentisse mais deslocado da mãe e da família no geral. Mesmo que antes não tivesse existido um único episódio de amor mútuo por Eva, o menino desenvolveu mecanismos para chamar atenção e conseguir novamente a presença do objeto bom, ainda que esse fosse posteriormente rejeitado. Um exemplo desse fato é quando Kevin adoeceu ficando mais vulnerável. Com isso, ele conseguiu baixar as defesas do ego e introjetar o objeto bom parcialmente por um instante, ainda que isso não resolvesse totalmente seu complicado relacionamento familiar.

Passados alguns anos e com a menina maior, Eva retoma a carreira como profissional de viagens. Ela chega a necessitar ficar dois meses longe de casa, deixando as crianças aos cuidados do marido. É neste momento que ele acaba entendendo os comportamentos de Kevin, pois o rapaz começa a agir de certa forma como fazia com a mãe (incluindo os deboches e barulhos tidos como irritantes). Isso faz com que o casal passe a se desentender mais, e a permanência de Eva em casa seja exigida pelo marido.

Ainda na fase dos 7 ou 8 anos, Kevin descobre uma brincadeira nova: arco e flecha. O presente foi dado pela mãe no Natal, mas o pai era um grande incentivador, e, durante os anos, foi lhe presenteando com outros arcos mais aprimorados. É importante salientar que o afeto de Kevin pelo pai era mostrado como algo simulado, até para manter sua máscara de bom filho, e ao mesmo tempo, atacar a mãe que percebia de forma evidente tudo isso.

O fruto do único momento de aparente carinho e intimidade de Kevin com sua mãe, foi sua dedicação para o arco e flecha, esporte retirado do livro Robin Hood, que Eva lia para ele durante aquele período em que o menino ficou doente e sua irmã nasceu. Não é possível dizer afirmativamente se quando ganhou o arco e flecha, Kevin já estava planejando os eventos trágicos ou não, mas isso fica sutilmente implícito com o menino olhando fixamente para o centro do alvo que receberia o tiro com flecha. Ademais, usar um presente dado por sua mãe, com certeza fazia parte da intenção em atingi-la.

Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975) discorre que o ato de brincar teria o mesmo resultado do processo de associação livre usado por Freud (1974; 2011) e Jung (1991, 1994). Ademais, projetaria o inconsciente unido às fantasias (e até experiências reais), e apresentaria potencialmente as defesas e ansiedades que resultam em dois tipos de paranóia. Isso incluiria a esquizoparanoide, que é a ansiedade persecutória, e que faria o sujeito quebrar e destruir aquilo que lhe desse medo.

Kevin, a partir da oitava série, iniciou um ritual de usar roupas muito menores que o seu tamanho, contrapondo a moda dominante da época de roupas tamanho GG: “A impressão que ele dá é de que não está confortável e, sob esse aspecto, a roupa é perfeita. Kevin se sente desconfortável. As roupas minúsculas repetem a mesma restrição que ele se sente na própria pele.” (SHRUVER, 2007, p. 204)

Na obra, existem momentos em que Eva precisa ficar algumas horas sozinha com Kevin, mas aquilo que poderia ser um momento de privacidade para ambos, torna-se algo claustrofóbico:

Havia até algo de curiosamente insuportável a respeito daquelas duas horas que ele e eu às vezes ficávamos sozinhos na casa, antes que seu 4X4 apontasse na garagem. Seria de imaginar que não haveria nada mais fácil do que nos escondermos um do outro naquela vasta estrutura de teca, mas, onde quer que nos instalemos, nunca perdi consciência de onde ele estava, nem ele, imagino, de onde eu me encontrava. (SHRIVER, 2007, p. 347)

Como já citado anteriormente, desde que nasceu, Kevin foi uma criança apática e apresentava sinais evidentes de que não se comportava de forma comum, em comparação às demais crianças, e isso só foi piorando. Já com 15 anos, o rapaz destrata e maltrata a irmãzinha de 7 anos, além de uma série de ações como: masturbar-se na frente da mãe e a encarando; destruir o computador de Eva com vírus estrategicamente colocado em um CD em seu quarto milimetricamente organizado e limpo. Ademais, o jovem nunca explicava o porquê de suas ações, e se inquirido, apenas respondia: “Não tem ponto. Este é o ponto.” (RAMSAY, 2011).

Sobre a masturbação de Kevin com porta aberta para que a mãe o visse, o próprio escritor do livro (que se tornou filme), diz o seguinte sob a perspectiva da própria Eva narrando:

Sei que a masturbação é um alívio normal, vital, um passatempo único e divertido que jamais deveria ser tachado de vício. Mas também achava que para um adolescente – sejamos francos, para qualquer pessoa – essa é uma atividade que fica melhor se feita às escondidas. (SHRIVER, 2007, p. 347)

A passagem anterior mostra que o comportamento se tratava muito mais de uma masturbação compulsiva de cunho sádico-anal, do que genital (e que, no segundo caso, seria efetivada para um alívio). Eva, depois de passar por algumas vezes por essa situação, resolve compartilhar o caso com o esposo, para que ele conversasse com Kevin sobre esse comportamento, e acreditando que talvez o pai conseguisse fazê-lo parar de colocá-la naquela situação. No entanto, Kevin nota que atingiu a mãe e continua com o comportamento.

E assim, logo na tarde seguinte à ‘conversa’, eu estava indo para o escritório com a minha xícara de café quando ouvi uns gemidos reveladores no corredor. Rezei para que ele tivesse entendido o recado e para que houvesse ao menos uma barreira de madeira, fina mas abençoada, entre mim e a virilidade despontante de meu filho. (…) Mas, quando dei mais um ou dois passos, o nível de ruído desmentiu essa tentativa mínima de compostura. (SHRIVER, 2007, p. 349)

No entanto, Eva resolveu enfrentar o problema marchando até o banheiro, e fez questão de encarar o filho e seu órgão genital batendo à porta. Isso fez Kevin parar com a ação.

Em um passeio com Celia (a filha caçula da família), Eva vê Kevin parado em frente a um poster sobre quem ela era em sua juventude e como era uma profissional respeitada em sua área. Ela interpretou esse ato com admiração, e a fez querer depois convidá-lo para jantar sozinhos em um restaurante para tentar, mais uma vez, se aproximar do filho.

Dizer que eu quisesse, que eu desejasse de fato, passar a tarde toda e o começo da noite com o meu espinhoso adolescente seria ir longe demais, mas a verdade é que eu desejava com todas as minhas forças desejar por esse momento – se é que isso faz algum sentido. (SHRIVER, 2007, p. 316)

O jantar foi desconfortável, como se ambos fossem estranhos que não se gostassem, mas precisavam conviver um com o outro, e Eva, mais uma vez, foi frustrada na tentativa de exercer o papel social de mãe para Kevin.

No Natal, Celia (com cerca de 7 anos e Kevin com 15 anos) ganhou um porquinho da Índia que a menina se encantou e tornou-se sua grande alegria de dedicação diária. Depois de algumas semanas, o animal sumiu e o pai da Celia já deduziu que a filha foi descuidada deixando a gaiola aberta. No entanto, Eva sabia que a menina não teria tanto desleixo e logo desconfiou de Kevin. A desconfiança tornou-se certeza em pouco tempo.

O rapaz também colocou propositalmente a mascote da irmã dentro do triturador da pia, para que quando a mãe ligasse o mecanismo, ela mesma matasse o animal que deu à filha. Eva percebeu o que ocorreu, e com a menina junto (mas sem saber), enquanto Kevin assistia friamente o momento e brincando com o pai, como se nada estivesse ocorrendo.

É nítido que Eva nunca conseguiu se conectar a Kevin, apesar dos seus esforços, e seu filho a via com repulsa e desdém. Sobre a compreensão da mãe com o seu bebê, Klein (1991), ressalta:

O sentimento resultante que o bebê tem de ser compreendido subjaz à primeira e fundamental relação em sua vida – a relação com a mãe. Ao mesmo tempo, a frustração, o desconforto e a dor, que conforme sugeri são vivenciados como perseguição, também entram nos seus sentimentos para com sua mãe, porque nos primeiros meses de vida ela representa para a criança todo o mundo externo. Assim, tanto o que é bom quanto o que é mau vêm à sua mente como provindos dela, o que leva a uma dupla atitude em relação à mãe mesmo sob as melhores condições possíveis. Tanto a capacidade de amar quanto o sentimento de perseguição têm raízes profundas nos processos mentais mais arcaicos do bebê. Eles são focalizados primeiramente na mãe. (KLEIN, 1991, p. 283)

Diante de sucessivas ações, Kevin provoca um hipotético acidente que não apenas cega a irmã, mas necessita da extração de todo o globo ocular. Ele reage novamente com frieza, afirmando que não se arrependia de nada, por não ter culpa de nada. A situação fica mais tensa e Eva é obrigada a ficar cada vez mais perto da filha para protegê-la, já que o rapaz começa a insistir que a menina o ajude a pegar flechas em seus treinos. Sabe-se, portanto, que o jovem apresentava traços de transtorno de personalidade antissocial (psicopatia) desde cedo, mas que em crianças é diagnosticado como transtorno de conduta. Dessa forma, não há culpa ou remorso no superego enquanto não existe um objeto unificado quando a mãe como objeto bom ou objeto mau estão cindidos, e caracterizando-se como um transtorno de personalidade.

Os transtornos de personalidade são perturbações que afetam gravemente o comportamento, mas divididos em três blocos de diferenciação pela Organização Mundial da Saúde através da descrição dos Transtornos da Personalidade e de Comportamentos (CID-10, 1993). Eles apresentam-se, por exemplo, no Transtorno Narcísico e na psicopatia.

Estes tipos de condição (Transtornos de Personalidade) abrangem padrões de comportamento profundamente arraigados e permanentes, manifestando-se como respostas inflexíveis a uma ampla série de situações pessoais e sociais. Eles representam desvios extremos ou significativos do modo como o indivíduo médio, em uma dada cultura, percebe, pensa, sente e, particularmente, se relaciona com os outros. Tais padrões de comportamento e funcionamento psicológico. Eles estão freqüentemente, mas não sempre, associados a graus variados de angústia subjetiva e a problemas no funcionamento e desempenho sociais. (CID-10, 1993, p. 196. Títulos de F60 a F69)

Ademais, psicopatas estariam inclusos no quadro classificatório dos perversos. Zimerman (2004) atenta que é comum que a perversão e a psicopatia trabalhem em comorbidade no mesmo sujeito, apesar de serem coisas diferentes e uma não estar necessariamente ligada à outra.

(…) Assim, muitos autores consideram que a psicopatia pode ser vista como um “defeito moral”, porquanto ela designa um transtorno psíquico que se manifesta no plano de uma “conduta anti-social”. Os exemplos mais comuns são os daqueles indivíduos que roubam e assaltam; mentem, enganam e são impostores; seduzem e corrompem; usam drogas e cometem delitos; transgridem as leis sociais e, de má-fé, envolvem outros; etc.

A estruturação psicopática manifesta-se por três características básicas: a impulsividade, a repetitividade compulsiva e o uso prevalente de actings de natureza maligna, acompanhados por uma irresponsabilidade e aparente ausência de culpa pelo que fazem. Algum traço de fantasia de psicopatia, assim como de perversão, é inerente à natureza humana; no entanto, o que define a doença psicótica é o fato de que as três características que foram enfatizadas vão além de um uso eventual, mas, sim, que elas se tornam “um fim em si mesmo” e, além disso, são egossintônicas, muitas vezes sendo idealizadas pelo sujeito psicopata, vindo acompanhar uma total falta de consideração pelas pessoas, que se tornam alvo e cúmplices de seu jogo psicopático. (ZIMERMAN, 2006, p. 269-279)

Pelo ponto de vista de Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975), o bebê perceberia de forma inata que a mãe o rejeitaria, gerando uma separação no processo emocional, e agravado nos três meses iniciais de vida onde se encontraria o processo de ansiedade persecutória. A interpretação do sujeito é de que o mundo é hostil, pois ele não foi acolhido.

Isso teria origem na introjeção de tentar absorver a mãe (o objeto bom) de forma integral, mas que o sujeito posteriormente acredita ter tentado anular. Esse medo de destruir o objeto integral abraça a posição depressiva, e não, esquizoparanoide. Posteriormente, daí surge o medo de sofrer retaliação, sendo igualmente destruído por vingança: o delírio persecutório. É desse processo conflituoso do superego que surge a psicose, e é fruto da certeza e introjeção dessa mãe perseguidora, e que potencializa as agressividades.

Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975) argumentava que o superego surgiria desse conflito de identidades entre bondade e severidade na passagem da fase sádico-oral (que os bebês mordem), e da fase sádico-anal. Sabendo-se efetivamente que um psicótico será sempre psicótico, e um perverso será sempre perverso, mas, a constituição de todo ser humano permeia os mesmos caminhos iniciais na infância, e cada um diante de sua subjetividade e vivências irá moldar sua estrutura de personalidade a partir dali, Kevin desdobrou isso para a psicopatia.

Ele passa a mostrar uma possível normalidade, incluindo receber uma grande encomenda de travas de bicicletas a qual alegou que venderia aos colegas de escola na semana que completaria 16 anos. Por sua vez, Eva estava no trabalho em seu cargo de chefia em uma grande empresa de viagens, quando recebeu a mensagem de que o colégio do filho havia sido atacado. Era o dia do aniversário de Kevin.

Eva tenta fazer contato com o marido, mas não consegue, e segue à escola. Ao chegar lá, encontra um cenário de guerra com policiais, bombeiros, paramédicos e pais em desespero. Só então ela se dá conta do que poderia estar ocorrendo, pois vê as travas de bicicleta fechando todas as entradas e passagens, e sendo quebradas pelos bombeiros. Quando a porta principal se abre, Kevin já está à espera da polícia e se entregando pacificamente. Dentro da escola, uma chacina com mortos e feridos atingidos por suas flechas. Em choque, Eva retorna para casa e estranha o silêncio. Ao dirigir-se ao quintal, depara-se com o marido e a filha mortos com flechas. É aí que se torna possível entender todo o percurso dessa mãe até sua condição depressiva, solitária, temerosa e apática.

Ela foi atacada por toda a comunidade e cidade como culpada pelo ato do filho. Assim, pode-se compreender que seu comportamento de percepção persecutória e apática possuíam um fundamento real.

O filme termina com dois anos passados da chacina, e na mesma data de aniversário de Kevin. Eva estava arrumando o quarto da pequena casa que estava morando. O ambiente foi pintado de azul escuro por Eva, estava impecavelmente arrumado, e só depois entende-se que era para receber Kevin, que sairia da prisão dois anos depois daquele instante (ou seja, quatro anos depois da chacina). Ela sai da casa olhando o interno e o externo da casa, tudo arrumado e bem diferente do imóvel decadente de dois antes, e que era a representação simbólica dela mesma (interna e externamente). Ela aparenta mais segurança, de estar se alimentando e dormindo, coisa que no início da história fica aparente serem ações conseguidas com dificuldade e parcialmente. Dali, ela vai visitar o filho na prisão.

Isso traz a explanação sobre o paranoico na visão de Klein (1966; 1991; 1991-1997), com uma visão fragmentada do mundo que é destrutivo. Cruzando com a própria história que é apresentada de forma fracionada e confusa, tentando se reconstruir sem sentido e mostrando o próprio estado psíquico de Eva, pode-se levantar a hipótese de que ela mesma acabou entrando em um enorme processo paranóico, já que ela apresentava uma série de medos: de comer, de dormir, de falar com as pessoas e uma gigantesca ansiedade. Outra coisa importante de citar sobre Eva, é que seu estado de apatia e de comportamento de medo e coação eram tão grandes, que ela não conseguia chorar por toda a trama, como se estivesse anestesiada. Conforme Klein (1966; 1991; 1991-1997; SEGAL, 1975), isso também faria parte de um doloroso processo de luto que a personagem mergulhou, deixando-a por muito tempo em negação. Assim, ela estava tentando superar a agonizante experiência imputada pelo próprio filho, e que tinha o objetivo de destruir tudo o que ela amava em sua vida: marido, filha, família, carreira, reputação, dignidade e amor-próprio. Seu tempo de negação e luto foi proporcional ao embate do amor e ódio que sentia por Kevin.

Enfim, na prisão, Eva avisa ao filho que ele terá mais dois anos ali, tempo suficiente (fora os outros dois anos anteriores) para pensar em tudo ocorrido. Ela pergunta o porquê de tudo o que ele fez.

“eu só queria lhe perguntar…” (…) “está fazendo dois anos”. Continuei. “Sinto saudade do seu pai, Kevin. (…) Também sinto saudade da sua irmã – muita saudade. E muitas outras famílias ainda estão arrasadas. Sei que os jornalistas, os terapeutas e talvez outros prisioneiros lhe perguntam isso o tempo todo. Mas você nunca me disse. Então, por favor, olhe nos meus olhos. Você matou onze pessoas. Meu marido. Minha filha. Olhe nos meus olhos e me diga porquê”. (SHRIVER, 2007, p. 459)

Quando Kevin a responde, não há o tom hostil e paralelamente confiante que sempre foi característico do jovem, e sim, um adolescente mais confuso. Kevin responde que naquele momento não sabia mais o motivo de tudo.

Ao contrário do dia em que se virava para mim pela janela do carro da polícia, com as pupilas cintilando, hoje Kevin enfrentou meu olhar com extrema dificuldade. Seus olhos ficavam piscando, mantendo contato em movimentos rápidos, depois tornando a se desviar para a parede de concreto, […] “Eu achava que sabia”, respondeu, taciturno. “Agora, não tenho tanta certeza.” (SHRIVER, 2007, p. 459)

A visita é interrompida. Eva levanta-se e abraça-o sem dizer nada. Talvez o abraço dado naquela cena tenha sido um dos únicos momentos de sincera conexão e intimidade recíproca entre mãe e filho:

Quando lhe dei um abraço de despedida, ele se agarrou a mim feito uma criança, como nunca havia feito na infância propriamente dita. Não tenho muita certeza, porque ele resmungou isso para a gola levantada do meu casaco, mas gosto de achar que soluçou um “sinto muito”. (SHRIVER, 2007, p. 461)

No último parágrafo do livro pode-se encontrar o seguinte texto:

É só isso que eu sei. Que, no dia 11 de abril de 1983, nasceu-me um filho, e não senti nada. Mais uma vez, a verdade é sempre maior do que compreendemos. Quando aquele bebê se contorceu em meu seio, do qual se afastou com tamanho desagrado, eu retribuí a rejeição – talvez ele fosse quinze vezes menor do que eu, mas, naquele momento, isso me pareceu justo. Desde então, lutamos um com o outro, com uma ferocidade tão implacável que chego quase a admirá-la. Mas deve ser possível granjear devoção quando se testa um antagonismo até o último limite, fazer as pessoas se aproximarem mais pelo próprio ato de empurrá-las para longe. Porque, depois de quase dezoito anos, faltando apenas três dias, posso finalmente anunciar que estou exausta demais e confusa demais e sozinha demais para continuar brigando, e, nem que seja por desespero, ou até preguiça, eu amo meu filho. Ele tem mais cinco anos sombrios para cumprir numa penitenciária de adultos, e não posso botar minha mão no fogo pelo que sairá de lá no final. Mas, enquanto isso, tenho um segundo quarto em meu apartamento funcional. A colcha é lisa. Há um exemplar de Robin Hood na estante. E os lençóis estão limpos. (SHRIVER, 2007, p. 463)

Eva sai do presídio visualizando um grande clarão do lado de fora, como se fosse uma analogia ao recomeço. Sua expressão estava diferente de todo o filme, com passos seguros, carregando uma autoconfiança não vista antes, e o que era externo não lhe dava mais medo.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível analisar a partir da teoria de Melanie Klein a história de Eva e Kevin de forma muito completa, sendo discorrido ao longo do artigo a importância e os problemas que podem ocorrer quando não há vínculo entre mãe e filho desde os primeiros momentos de vida. A apatia apresentada nas feições de Eva, que antes poderia ser vista como um descaso com sua vida, é na verdade uma intensa ansiedade persecutória vivida desde sua primeira gestação, pelo medo do objeto mau (o filho) persegui-la e acabar com tudo aquilo que ela conhece sendo bom, como sua liberdade, relacionamento, carreira e projetos futuros.

O questionamento norteador deste artigo – como e por que relações materno-filiais podem gerar mães distantes emocionalmente e filhos com comportamentos análogos ao transtorno de conduta? – pôde ser respondido por meio da compreensão de que voracidade de Kevin. Fica explícita a relação amor e ódio desenvolvida pelos dois ao longo do filme. Eva não se sentia confortável com o filho desde bebê, quando ele chorava e pedia incessantemente por sua representatividade na figura do seio bom explicitado por Klein. Assim, o objetivo geral que se fundamentou em detectar como ocorre o desenvolvimento da personalidade no indivíduo através da relação materna, mostrou que quando a criança não introjeta o objeto bom, pode tornar-se uma pessoa fria com a própria genitora, como ocorreu com Kevin e sua mãe. Eva, no entanto, não sustentou a posição materna, e, também, não introjetou a criança em si.

Quando buscamos pelos objetivos específicos para se entender como o comportamento materno contribui na formação do psiquismo dos menores aos seus cuidados, compreender como podem surgir os indivíduos com transtorno de conduta, e quais são os padrões e conceitos construídos sobre o que é ser uma boa mãe socialmente, identificamos que todos esses pontos são igualmente complexos e concomitantes. É importante a compreensão de que a sociedade tem influência na imagem da mãe que Eva se inspirava e tentava incessantemente alcançar. Sua comunidade exigia um comportamento de mãe que ela ainda não possuía e não queria, até porque, a maternidade é um processo que se constrói, e é doloroso mesmo para aquelas mulheres que anteriormente a desejam com paixão. Então, o que se vê na verdade, é que o grupo social de Eva lhe exigiu um desenvolvimento do desejo de ser mãe inexistente.

É como se a mulher tivesse uma cartela de bingo que precisa preencher para que os outros possam se satisfazer: primeiro um marido, depois uma casa, uma carreira bem-sucedida, e por último, filhos. Eva possuía os três primeiros e estava plenamente satisfeita com isso. Em sua vida, ela nunca se projetou com filhos, mas seu marido e amigos mais próximos começaram a cobrar a falta desse desejo de ter um filho. Funciona quase como um processo alienante, como se gerar uma vida fosse um troféu que precisa ser erguido para se afirmar socialmente o que é uma família, e uma mulher por completo. Isso pode vir a impactar fortemente nessa interação de mãe e filho, e efetivamente interferir no desenvolvimento da personalidade do bebê e possíveis transtornos posteriores.

A hipótese no pressuposto de que o sujeito com transtorno de conduta pode ter seu comportamento potencializado diante do reconhecimento do medo ou rejeição de seu cuidador mais próximo, no caso, a mãe, pôde ser confirmada no cruzamento da teorização de Klein com a obra fictícia de Kevin e Eva. Depois de engravidar do filho, Eva esperou que amasse o que estava em seu ventre, como se fosse algo natural, como respirar e piscar os olhos, mas o amor não veio, e ainda surgiu o medo e insegurança. Após isso, ela precisou se esforçar ao máximo para tentar atingir o ideal imposto a ela: de ser uma boa mãe e de que precisava amar o seu filho. Essa sensação de dever e obrigação não a deixou, nem mesmo depois do julgamento de Kevin.

Por fim, cabe a reflexão enquanto indivíduos sociais e profissionais de Psicologia, para tentar compreender e desenvolver a sensibilidade de que histórias como a de Eva e Kevin ocorrem todos os dias, em escalas maiores ou menores, e que necessitam de acolhimento e compreensão. As relações afetivas entre mães e filhos, e que são tão delicadamente pontuadas por Klein, podem disparar uma infinidade de psicopatologias como as psicoses ou perversões, desdobramentos como transtornos narcísicos e outros agravantes, e gerando adultos doentes, num ciclo sem fim de dores por medos de amar e não ser amado.

REFERÊNCIAS

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[1] Especialista em Neurociência Pedagógica pela AVM Educacional/UCAM/RJ; especialista em Arteterapia em Educação e Saúde pela AVM Educacional/UCAM/RJ; especialista em Pesquisa de Comportamento e Consumo pela Faculdade SENAI CETIQT RJ; especialista em Artes Visuais pela UNESA/RJ; bacharela em Design pela Faculdade SENAI CETIQT RJ. Bacharelanda em Psicologia pela UNIP/SP. Estudante de Psicologia.

[2] Bacharela em Comunicação Social pela Faculdade Casper Libero/SP. Bacharelanda em Psicologia pela UNIP/SP.

[3] Bacharelanda em Psicologia pela UNIP/SP.

[4] Bacharelanda em Psicologia pela UNIP/SP.

[5] Bacharelanda em Psicologia pela UNIP/SP.

[6] Bacharelando em Psicologia pela UNIP/SP.

Enviado: Março, 2022.

Aprovado: Agosto, 2022.

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Liliane Alcântara de Abreu

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