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O recurso às drogas em um caso de melancolia e os efeitos terapêuticos rápidos em psicanálise

RC: 84850
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/caso-de-melancolia

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

MOTA, Cláudia Nogueira da [1]

MOTA, Cláudia Nogueira da. O recurso às drogas em um caso de melancolia e os efeitos terapêuticos rápidos em psicanálise. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 05, Vol. 06, pp. 40-50. Maio de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/caso-de-melancolia, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/caso-de-melancolia

RESUMO

Partimos de um caso clínico no qual, perdido o filho, uma mulher começa a fazer uso de cocaína, identificando-se ao filho morto e evidenciando a impossibilidade de realizar o trabalho de luto. A partir desse caso clínico foram suscitadas várias questões, entre elas a do diagnóstico diferencial. Depois de examinarmos cuidadosamente a teoria do luto em Freud e alguns comentários de Lacan, concluímos pela melancolia, cuja teoria clínica percorremos com a psiquiatria clássica e com a psicanálise, indagando sobre a terapêutica: qual a modalidade de atendimento, com orientação lacaniana, para atendimentos breves que se realizam sob a égide da reforma psiquiátrica. Verificamos que nessas instituições a teoria dos efeitos terapêuticos rápidos proporciona a introdução da escuta do singular do sujeito. Com a noção de Ciclo, na teoria dos efeitos terapêuticos rápidos, o psicanalista J. A. Miller sinaliza que uma análise pode iniciar-se, terminar e se reiniciar, refazendo o percurso novamente.

Palavras-chave: Psicanálise, Caso clínico, Sintoma, Tratamento, Reforma psiquiátrica.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo é derivado da Dissertação de Mestrado “O recurso às drogas em um caso de melancolia e os efeitos terapêuticos rápidos em psicanálise”, sob orientação da Prof(a). Dra. Márcia Rosa Vieira Luchina[2], e discorre sobre os desafios da prática clínica, de orientação psicanalítica lacaniana frente às transformações da demanda e a emergência dos novos sintomas. A toxicomania se apresenta como uma das vias privilegiadas do mal-estar contemporâneo. A experiência toxicomaníaca revela um gozo excedente, que ultrapassa os limites do princípio do prazer, proporcionando um gozo que rechaça as relações do sujeito com a linguagem.

O início da experiência de atendimento clínico, orientada pela psicanálise lacaniana, ocorreu a pacientes da enfermaria feminina em uma instituição pública de internação psiquiátrica em Belo Horizonte.

Consideramos com Amarante (1995) que a reforma psiquiátrica é

um processo de formulação crítica e prática, que tem como objetivos e estratégias o questionamento e elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. No Brasil, a reforma psiquiátrica é um processo que surge mais concretamente e, principalmente, a partir da conjuntura da redemocratização, em fins da década de 70. Tem como fundamentos não apenas uma crítica conjuntural ao subsistema nacional de saúde mental, mas também – e principalmente – uma crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas, dentro de toda a movimentação político-social que caracteriza a conjuntura de redemocratização. (AMARANTE, 1995, p. 87).

Retomando um pouco a história da política pública para álcool e drogas no Brasil, não podemos deixar de ressaltar que essa história caminha junto com a política de saúde mental. Antes da reforma psiquiátrica, os usuários de álcool e outras drogas tinham como único destino serem internados em hospitais psiquiátricos. Foi a partir do movimento da reforma que se estabeleceram políticas públicas específicas para esses usuários, como a portaria 2.197 de 14/10/2002, que preconiza ações de caráter educador e reabilitador.

O trabalho em uma instituição coloca para o psicanalista articular a ética da psicanálise com o campo da saúde mental, já que este é referenciado ao institucional. Em um texto bastante elucidativo sobre essa questão, Psicanálise e Instituição: a segunda clínica de Lacan, o psicanalista Zenoni (2000) considera ser mais importante do que procurar saber o tipo de psicanálise praticado na instituição, saber se há motivação clínica na existência de uma instituição. Extraindo as consequências dessa formulação, não há disjunção entre clínica e instituição, se para intervir em um determinado caso, a resposta institucional foi encontrada como a possível.

Será a motivação clínica que, ao nosso ver, nos permitirá acompanhar a resposta que o sujeito apresenta como singular e imprevista, diante do mal-estar que lhe acomete, que lhe invade.

Diante dessas considerações entre a clínica psicanalítica, de orientação lacaniana, e a instituição, surgiram muitas questões relacionadas à especificidade de atendimento em um caso de toxicomania que, ao contrário das internações de longa permanência, deve ser realizado com brevidade. Por razões metodológicas, serão destacadas duas questões como fio condutor deste trabalho: a primeira sobre o desencadeamento da toxicomania e a segunda sobre os efeitos terapêuticos rápidos em psicanálise nos tratamentos sob a égide da reforma psiquiátrica.

Partiremos então para a análise mais detalhada sobre as duas razões metodológicas mencionadas acima.

2. DESENCADEAMENTO DA TOXICOMANIA: IMPLICAÇÕES EM UM CASO CLÍNICO

Se o psicanalista francês Èric Laurent (2014) nos adverte em seu texto Três observações sobre a toxicomania que nos encontramos em um contexto inteiramente novo, em comparação à época de Freud, outro psicanalista argentino, Fabián Naparstek (2008), prosseguindo sobre esse novo contexto, irá fazer uma diferenciação ao tipo de resposta dada ao mal-estar na cultura, de acordo com o momento histórico. Assim, à época de Freud, a droga ocupava o lugar de uma das saídas possíveis para o sujeito frente ao seu sofrimento. Na situação contemporânea, pelas implicações da incidência do discurso da ciência e do capitalismo na sociedade de consumo, temos as leis do mercado agenciando as ofertas de objetos (gadgets) que provocam uma ação corrosiva nos valores e ideais, porém proporcionam aos sujeitos um excedente de gozo. Em O Seminário, livro 17:o avesso da psicanálise (1969-1970/1992), Lacan já antecipava sobre os efeitos desses discursos:

Com efeito, não deveríamos esquecer, de qualquer modo, que a característica de nossa ciência não é ter introduzido um melhor e mais amplo conhecimento do mundo, mas sim ter feito surgir no mundo coisas que de forma alguma existiam no plano de nossa percepção. (LACAN, 1969-1970/1992, p. 150)

Dentre as coisas que passaram a surgir no mundo, as drogas ocupam um lugar entre os bens do capitalismo e do mais-de-gozar[3]. O discurso do capitalista, versão do discurso do mestre, estrutura as relações do mundo contemporâneo.

A falta não se refere à falta-a-ser, mas à falta a ser preenchida pelos objetos produzidos. Oferece-se aos sujeitos uma única saída, a mesma indicada para todos: todos gozam da mesma maneira. Essa nova ordem mundial institui o consumo como resposta universal. Essa resposta universal através do consumo produz efeitos localizados, como os fenômenos de segregação.

Partindo da pergunta de como a paciente de nossa investigação faz sua entrada na toxicomania, iremos nos referir aos psicanalistas da atualidade, como Jacques Alain Miller e Fabián Naparstek, para nos orientarmos nessa questão.

Embora o tema da toxicomania seja atualmente recorrente em muitos trabalhos de psicanalistas, podemos considerar ainda pouco investigada a modalidade de atendimento em instituições de internação que se orientam pelos princípios da Reforma Psiquiátrica. Essas instituições se caracterizam por atenderem pacientes em crise, sendo a internação de permanência breve. Tal característica institucional fez surgir a especificidade desse tipo de atendimento, que preconiza a brevidade da internação. Levantamos as seguintes questões:(1) o que pode um analista, orientado pela psicanálise lacaniana, na condução do tratamento?  (2) o que pode um analista em uma instituição de curta permanência, no atendimento de uma psicose melancólica que utiliza a droga para anestesiar sua dor de existir?

Confrontados com as limitações provenientes do tempo, encontramos outra ocorrência: o uso de drogas ilícitas utilizadas com regularidade por psicóticos pode operar mascarando o diagnóstico, pois segundo estudos psicanalíticos, a droga pode atuar impedindo o desencadeamento da psicose.

Assim, partimos de um caso clínico, Léia (nome fictício), paciente de 45 anos. Antes de sua primeira internação psiquiátrica, Léia declara fazer uso abusivo de cocaína há quatro anos. Nos seus termos, justifica sua internação: “Bebi demais, fiquei revoltada, briguei com meu namorado.” Ao relatar sobre o abuso de cocaína diz: “Foi depois que perdi meu filho, ele morreu afogado. Passei a beber, gastando todo meu pagamento em bar, juntava as pessoas que conhecia e levava para o bar, era como se fosse uma celebração. A cocaína foi quando, na morte dele, fui eu e minha outra filha com os bombeiros para o local onde ele estava. O bombeiro me perguntou: ‘Seu filho fazia uso de droga?’ Respondi que não. Minha filha me chamou e disse que ele fazia uso de cocaína. Me senti traída. Passei a usar cocaína. Queria sentir o que ele sentia.”

Esse fragmento clínico nos indica como a paciente Léia fez sua entrada na toxicomania. Com a contribuição do psicanalista argentino Fabián Naparstek (2008), delimitamos o momento pontual na economia psíquica que leva a uma escolha do objeto droga como desencadeador da toxicomania. Ainda sobre esse tema, Naparstek afirma: “Na clínica é necessário que cheguemos a um diagnóstico que localize a função que cumpre essa droga para este sujeito.” (NAPARSTEK, 2008, p. 61).

Retomando o caso clínico, vemos que o desencadeamento da toxicomania em Léia refere-se à morte do filho. Tal constatação nos introduz na problemática do luto articulado à toxicomania, e especificamente à psicose melancólica.

Pela brevidade do atendimento, realizado em quatro sessões, não foi possível delimitar o diagnóstico estrutural. Somente após pesquisa nos arquivos e prontuário, verificamos que a paciente retornou ao hospital psiquiátrico outras vezes, após sua primeira internação, sendo atendida no setor de urgência e em outra enfermaria feminina do hospital.

Acreditamos que esses novos dados, juntamente com o período de atendimento realizado, permitem traçar o diagnóstico estrutural, bem como a função que a droga aí exerce.

Importante esclarecer que enquanto Léia permaneceu em atendimento na enfermaria feminina onde foi realizado seu acompanhamento, esse momento correspondeu a sua primeira internação. Porém, após sua alta, ocorreram novas internações, em outra enfermaria.

Foram realizados também contatos com profissionais de outras instituições de saúde mental para onde a paciente foi encaminhada após sua alta hospitalar.

O caso clínico parte de uma situação de luto ocorrida com esse sujeito, ou seja, a partir de uma perda.

Nesse contexto, a introdução da cocaína se dá a partir de uma perda real, a morte do filho. No momento de reconhecimento do corpo, Léia passa a saber que seu filho fazia uso de cocaína. Saber este que produziu um profundo impacto: pouco tempo depois, Léia passa a usar abusivamente a cocaína, resultando em sua primeira internação.

Buscando ter como referência a psiquiatria clássica para abordar a melancolia, Freud utiliza o luto como modelo e se dedica a construir uma hipótese causal para os efeitos psíquicos da melancolia. Diferente do luto, a melancolia produz uma inibição psíquica, um empobrecimento pulsional, em decorrência do qual a dor é produzida. Em seus escritos pré-psicanalíticos, Freud constata a irrupção de um buraco, um furo no psiquismo, que presentifica o impossível de ser representado, isto é, o real.

De acordo com a concepção freudiana, a melancolia representaria um trabalho de luto que não se conclui. E o motivo de não se concluir, segundo a tese de Freud em Luto e melancolia (1917[1915]/2010), se deve à identificação com o objeto perdido.

Com Lacan, sabemos que não poder perder o que se perdeu é efeito da foraclusão, fazendo com que o sujeito se depare com o furo da significação fálica, apontando para o que é da ordem da psicose.

Por não ter os recursos simbólicos que lhe permitiriam fazer o trabalho de luto, Léia se cola com o objeto, impossibilitando-a de concluí-lo.

Diante da perda do furo real, vemos a introdução da droga, obturando o lugar vazio do objeto perdido.

Nesse sentido, e o caso o demonstra exemplarmente, o objeto droga eterniza a presença do objeto e, além disso, funciona como um anestésico para a dor de existir, solução que comporta em si mesma uma perdição.

3. EFEITOS TERAPÊUTICOS RÁPIDOS EM PSICANÁLISE

Verificamos que os efeitos terapêuticos rápidos, situados no campo da psicanálise aplicada, viabilizam a práxis do psicanalista em outros lugares além do setting convencional, tornando-se instigante a prática clínica que interroga a teoria, o que, como consequência, exige, no caso da psicanálise, enriquecer e preservar o discurso inventado por Freud.

Assim, o trabalho do psicanalista em uma instituição de saúde mental, e que se destina também a usuários de álcool e outras drogas, é fazer emergir o sujeito que se encontra suplantado por ideais que fazem parte da instituição, definindo o que o sujeito deve querer, alienando-o às regras institucionais.

Não ceder a esses ideais é função do psicanalista, já que pela ética da psicanálise será recolocada a questão do sujeito.

Em 1918, no texto Linhas de progresso na terapia analítica, Freud mostra se interessar pela extensão da psicanálise a outros domínios. (FREUD, 1919-1918/1976)

Em 1967, na Proposição de 09 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, Lacan chama a atenção para a responsabilidade do psicanalista para a psicanálise em extensão. (LACAN, 2003).

Jacques Alan Miller (2001), retorna a discussão sobre a diferença entre psicanálise pura e psicanálise aplicada à terapêutica, esclarece que a última, teria como finalidade tratar do sofrimento do sintoma, sem a exigência de que o procedimento seja levado até o final, ponto no qual se produz o psicanalista.

Os efeitos terapêuticos rápidos dizem respeito à psicanálise aplicada. Miller abre a discussão sobre as demandas de efeito terapêutico rápido dirigidas aos analistas de hoje. Definidos como uma análise em redução, nesse espaço o sujeito é convocado a falar para que se produza uma subjetivação de sua queixa.

Acreditamos que os efeitos terapêuticos rápidos em psicanálise proporcionam, nas instituições de saúde mental, a introdução da escuta do singular do sujeito.

Ao serem todos tratados como “toxicômanos” ou “drogados”, torna-se impossível acompanhar a trajetória singular do encontro de cada um desses sujeitos com a droga.

Pudemos perceber que não há qualquer registro no prontuário da paciente Léia a respeito da “eleição” da cocaína, não havendo no discurso médico um lugar para o sujeito.

Em nossa opinião, tornou-se central na direção do tratamento de Léia o fato de o encontro com a cocaína ter ocorrido após a morte do filho, concomitante ao descobrimento de que o mesmo fazia uso dessa droga.

Jacques Alain Miller (2008) define os efeitos terapêuticos rápidos em psicanálise como uma análise em redução, com a noção de “Ciclo”: uma análise pode se iniciar, terminar e reiniciar-se, refazendo se assim o percurso em um novo momento.

Espera-se que o sujeito possa fazer um remanejamento subjetivo, relançando a partir daí um novo Ciclo na direção do tratamento. Ao se concluir um Ciclo, deve ser considerado um trabalho de subjetivação diante de seu sintoma e da perda de gozo, que se traduz por uma mudança subjetiva.

No caso clínico em questão, nos pareceu essencial localizar a função da droga, para um tratamento psicanalítico de curta duração, o que tornou Léia capaz de tentar abordar com palavras sua perda, situação anteriormente impossível pelo ato de se drogar. Além de sua problemática com o álcool e a cocaína, algo novo pôde surgir, algo que talvez nunca tenha sido dito anteriormente, diferente do que Léia vinha até então dizendo. Assim, foi possível para ela dizer que a cocaína era seu modo de buscar sentir o que seu filho sentia ao fazer o uso da mesma. Enfatizamos que esse algo novo traz importantes efeitos no tratamento, como por exemplo, esclarecendo-se o diagnóstico, torna-se possível delimitar a posição subjetiva e perceber possíveis arranjos que viabilizem formas de estabilização.

Portanto, diferentemente de outras abordagens terapêuticas, de acordo com o ensino lacaniano, os efeitos terapêuticos rápidos em psicanálise buscam se orientar na clínica pelo impossível, pelo real, o que sempre remete a novas possibilidades de tratamento.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O interesse pelo tema desta pesquisa, como mencionado, partiu da prática de um atendimento em uma enfermaria feminina a pacientes internados em um hospital psiquiátrico da rede pública de Belo Horizonte. Esse hospital, orientado pelos princípios da Reforma Psiquiátrica, mantém como um destes princípios, a brevidade do período de internação.

Na prática de atendimento, constatou-se um número expressivo de pacientes que eram internadas pelo uso abusivo de álcool e drogas. Dentre essas pacientes, encontramos Leia, fio condutor de nossa investigação, que utilizava abusivamente de álcool e drogas. Era sua primeira internação em um hospital psiquiátrico, embora já fizesse uso dessas substâncias há quatro anos antes.

Diante desse fato, surgiram algumas interrogações referentes á modalidade de atendimento para pacientes que utilizam abusivamente de álcool e drogas, em uma instituição que preconiza a brevidade de internação. O que seria possível fazer, em um atendimento orientado pela psicanálise lacaniana? Como sair do setting analítico, do atendimento convencional, sem comprometer a ética da psicanálise?

A partir do que foi discutido ao longo deste trabalho, a toxicomania, diferentemente do contexto á  época de Freud, constitui uma resposta dada ao mal-estar na cultura.

Contudo, no contexto contemporâneo, pelo discurso da ciência e do capitalismo, se forma a sociedade de consumo, que, por sua vez, proporciona aos sujeitos um excedente de gozo, isto é, produz sujeitos que não são marcados pelo desejo, pela falta, mas por uma falta a ser preenchida pelos objetos produzidos pela ciência.

Por consequência, oferece-se uma resposta universal a todos, que é a resposta pela via do consumo. A droga, nesse contexto, torna-se objeto privilegiado de gozo. No entanto, a singularidade (para que serve a droga para esse sujeito?) sugere diferenças em relação ao seu uso.

Localizar a função da droga para o sujeito se constituiu, para nós, essencial em um tratamento psicanalítico de curta duração, como os realizados em instituições de saúde mental, onde se realizou a pesquisa.

Conjuntamente com os registros de prontuário, discussões clínicas do caso nas reuniões de equipe e as quatros sessões de atendimento a paciente, além do  contato com outros serviços de saúde, tais dados, coletados e analisados,  foram de suma importância para orientar o tratamento de Léia, principalmente para se chegar ao diagnóstico de uma psicose melancólica.

Ao privilegiarmos a subjetividade da paciente, pudemos saber que o momento de desencadeamento da toxicomania se deu com a morte do filho e a descoberta concomitante de que fazia uso de cocaína. Essa descoberta, por efeito de estrutura, lhe retorna de maneira devastadora, através de seu gozo toxicômano.

Buscamos, com a orientação lacaniana, extrair o sujeito do uso abusivo de drogas, ou seja, será o próprio sujeito que nos dirá como foi seu percurso singular no encontro com a droga. O uso da cocaína é demarcado, por Léia, nesse momento pontual da perda do filho.

Como efeito terapêutico rápido, podemos situar o momento em que Léia tenta localizar, simbolicamente sua perda.

Diferente de outras abordagens terapêuticas, de acordo com o ensino lacaniano, os efeitos terapêuticos rápidos, não se reduz os imperativos de resultados em curto prazo. Na contramão de avaliar o terapêutico por vias estatísticas ou por determinações impostas pelo Outro social, os efeitos terapêuticos rápidos buscam operar com a clínica, com o saber que o sujeito produz.

No decorrer deste trabalho, restaram questões sobre a relação do uso de drogas com o luto, e mais além, com o processo melancólico.

Se durante seu relato, Léia em nenhum momento diz querer deixar de fazer uso da droga, podemos pensar a droga como um sinthoma? Como realizar um tratamento sob a perspectiva dos efeitos terapêuticos rápidos, em um caso que possui interface entre psicose e toxicomania, com o atravessamento do Outro institucional que determina a alta médica?

São questões a serem retomadas em pesquisas posteriores.

Ao analista cabe operar a partir da ética da psicanálise, não respondendo com a normatização, mas proporcionando o acolhimento do singular e possibilitando que cada um possa se responsabilizar pelo seu modo de gozo.

REFERÊNCIAS

AMARANTE, Paulo. Loucos pela vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1995.

FREUD, Sigmund. Linhas de progresso na terapia psicanalítica. In: Edição standard das obras completas de Sigmund Freud (Vol. 17). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Trabalho original publicado em 1919/1918).

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: Obras Completas (Vol. 12, pp. 170-194). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Trabalho original publicado em 1917[1915]).

LACAN, Jacques. O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. (Trabalho original publicado em 1968-1969).

LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. (Trabalho original publicado em 1969-1970).

LACAN, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

LAURENT, Èric. Três observações sobre a toxicomania. In: MEZÊNCIO, M., ROSA, M., FARIA, W. (Orgs,). Tratamento possível das toxicomanias com Lacan. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.

MILLER, Jacques-Alain. Efeitos terapêuticos rápidos em psicanálise: conversação clínica com Jacques-Alain Miller em Barcelona. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, Scriptum, 2008.

MILLER, Jacques-Alain. Psicanálise pura, psicanálise aplicada & psicoterapia. Revista Phoenix, Curitiba, n. 3, 2001.

NAPARSTEK, Fabián y colaboradores. Introducción a la clínica com toxicomanias y alcoholismo. Buenos Aires: Editora grama, 2008.

ZENONI, Alfredo. Psicanálise e instituição: a segunda clínica de Lacan. Belo Horizonte: Abrecampos, 2000, p. 12-93.

APÊNDICE – REFERÊNCIA DE NOTA DE RODAPÉ

2. Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia.

3. Mais-de-gozar: termo lacaniano, formalizado no Seminário, livro 16: de outro a outro (1968-1969/2008). O conceito de “mais-de-gozar” é descrito como homólogo à mais-valia de Karl Marx, revela “um a mais”, ou um gozo “excedente”, que se apresenta como não recuperável pelo sujeito, na medida em que está perdido.

[1] Doutoranda em Psicologia da Educação – UNINI (México), Mestre em Estudos Psicanalíticos – FAFICH/UFMG.

Enviado: Março, 2021.

Aprovado: Maio, 2021.

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Cláudia Nogueira da Mota

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