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Círculos de cultura como estratégia de cuidado no Sistema Único de Saúde

RC: 135428
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

LIRA, Bruna Pires Belo e [1], SILVA, Íris María da [2], SILVA, José Allyson da [3], RODRIGUES, Maria Lucicleide Falcão de Melo [4]

LIRA, Bruna Pires Belo e. et al. Círculos de cultura como estratégia de cuidado no Sistema Único de Saúde.  Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 12, Vol. 05, pp. 113-125. Dezembro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/circulos-de-cultura

RESUMO 

O presente artigo foi tecido a partir da experiência de estágio no Ambulatório LGBT Patrícia Gomes, localizado na cidade do Recife, em Pernambuco, entre novembro de 2020 e setembro de 2021. O Ambulatório é um dispositivo de atenção secundária do SUS que oferece atendimento clínico em Medicina e Psicologia para a população LGBTQIA+. O serviço existe desde 2017 e compõe a Política de Atenção à Saúde Integral da População LGBT da cidade do Recife. Dentre as atividades realizadas durante o estágio, decidimos pesquisar os Círculos de Cultura, uma estratégia em saúde baseada na teoria de Paulo Freire, a qual somamos técnicas grupais da Psicologia e do Teatro. Os Círculos são um espaço horizontal de aprendizagem, no qual os participantes dialogam sobre suas vivências e investigam questões pertinentes para aquele coletivo. Percebendo a potência desses momentos, nos interessamos em investigar qual os impactos dos Círculos no Ambulatório, na equipe de saúde e nos/as usuários/as participantes. O objetivo da nossa pesquisa é evidenciar o potencial dos Círculos de Cultura como uma estratégia de Educação Popular em Saúde, buscando compreender os efeitos desses grupos no contexto da Política de Atenção à Saúde Integral da População LGBT da cidade do Recife. Analisamos a nossa experiência à luz de teóricos da Psicologia Social como Grada Kilomba, Leila Dumaresq e Martin-Baró, bem como a partir da teoria freiriana de Educação Popular. Percebemos que o principal impacto dos Círculos de Cultura foi aumentar a horizontalidade e confiança entre a equipe de Psicologia e os/as usuários/as, desnaturalizando a hierarquização dos saberes e reconhecendo o caráter LGBTfóbico da Psicologia. Em relação aos/às usuários/as pudemos notar um fortalecimento do vínculo com o espaço e entre eles/as próprios/as. A criação dessa rede afetiva pode ser entendida como uma estratégia coletiva de resistência: é menos adoecedor encarar as violências LGBTfóbicas quando se pode contar com uma comunidade acolhedora nesse enfrentamento. Durante as nossas supervisões, as inquietações provocadas pelos Círculos de Cultura nos ajudaram a nos deslocar de práticas cristalizadas no cotidiano do serviço e a elaborar outros caminhos para o cuidado.

Palavras-chave: Educação Popular, Intervenção grupal, LGBTQIA+, Decolonialidade.

1. INTRODUÇÃO

Por outro lado, sem sequer poder negar a desesperança como algo concreto e sem desconhecer as razões históricas, econômicas e sociais que a explicam, não entendo a existência humana e a necessária luta para fazê-la melhor, sem esperança e sem sonho (FREIRE, 1921, p. 5).

O Ambulatório LGBT Patrícia Gomes é um dispositivo de atenção secundária que oferece atendimento clínico em Medicina e Psicologia para a população LGBTQIA+. Localizado na Policlínica Lessa de Andrade, o Ambulatório existe desde 2017 e é um dos serviços que compõem a Política de Atenção à Saúde Integral da População LGBT da cidade do Recife. As diretrizes dessa política municipal foram elaboradas em 2014 e têm caráter transversal, ou seja, reúnem todas as áreas da Saúde – como produção de conhecimento, participação social, promoção, cuidado e atenção – em torno do compromisso ético-político pela eliminação da discriminação contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (RECIFE, 2014). Assim, a atuação do Ambulatório LGBT Patrícia Gomes se ancora no reconhecimento acerca das consequências da exclusão e da violência estruturais, reproduzidas inclusive dentro da rede do SUS, para o processo de saúde-doença da população LGBTQIA+.

Desde a década de 80, diante da epidemia de HIV/AIDS, os movimentos sociais que atuam na defesa dos direitos da população LGBTQIA+ têm se fortalecido na luta pela saúde dos seus. O desenvolvimento dessa estratégia provocou mudanças significativas nas políticas públicas, que passaram a reconhecer a complexidade da saúde LGBT e a construir novas diretrizes nacionais para o SUS. Alguns marcos importantes dessas conquistas foram: o Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e de Promoção da Cidadania Homossexual – Brasil sem Homofobia (2004); a inclusão da orientação sexual e da identidade de gênero na análise da determinação social da saúde na 13ª Conferência Nacional de Saúde (2008), a I Conferência Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (2008) e a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (2013) (BRASIL, 2013). Apesar de esses serem documentos recentes, vale lembrar que todos eles foram elaborados em consonância com os princípios norteadores do SUS – equidade, integralidade e universalidade – e no objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 1988), ambos registrados na Constituição Federal de 1988.

Durante o Estágio Específico de conclusão do curso de graduação de Psicologia, na Universidade Federal de Pernambuco, entre maio de 2020 e setembro de 2021, pude acompanhar a atuação dos profissionais do Patrícia Gomes em inúmeras atividades dentro e fora do Ambulatório. Formações online, aulas voltadas a residentes e graduandos, matriciamento em espaços de saúde, reuniões de equipe, acolhimentos, acompanhamento terapêutico… Essa riqueza de experiências me fez entender a amplitude do trabalho de uma profissional de saúde mental no SUS – bem como a integralidade necessária a uma política pública voltada à saúde LGBT; mas também tornou mais difícil selecionar apenas um estudo de caso dentre tantas possibilidades. Registrar uma vivência exige de quem escreve que se realizem cortes, escolhas e simplificações para que aquela história possa caber, enfim, em um artigo. Optei por me aprofundar no estudo dos Círculos de Cultura, uma estratégia em saúde baseada na teoria de Paulo Freire e em técnicas grupais que se localizam na intersecção de saberes entre a Psicologia e o Teatro. Na época do estágio, essas oficinas aconteciam mensalmente (foram 6 ao longo do Estágio Específico), respeitando o limite de participantes e de atividades impostos pela pandemia. Buscava-se, a partir do diálogo em grupo, fortalecer o senso de comunidade e reconhecimento entre os/as usuários/as e debater temáticas relevantes para a população LGBTQIA+.

O objetivo do presente artigo é investigar a experiência dos Círculos de Cultura no Ambulatório LGBT Patrícia Gomes. Procura-se, para tanto, evidenciar o potencial desses encontros na estratégia de Educação Popular da Política de Atenção à Saúde Integral da População LGBT da cidade do Recife, bem como analisar os impactos dos Círculos na equipe e nos/as usuários/as participantes.

2. DESENVOLVIMENTO

3. OS CÍRCULOS DE CULTURA

A realização de encontros em grupo com usuários/as já havia acontecido algumas vezes no Ambulatório Patrícia Gomes, mas, por conta da baixa adesão do público-alvo, essa não era uma prática sistemática do espaço. Além disso, devido às limitações impostas pela pandemia do COVID-19, a circulação de pessoas nos serviços de saúde foi restringida a atendimentos individuais durante a maior parte do ano de 2020. Quando iniciei meu estágio, os Círculos de Cultura ainda não faziam parte das atividades cotidianas do setor de Psicologia, o que justifica o seu caráter fluido e em constante revisão.

Se por um lado é desafiador engajar a equipe e os/as usuários/as em torno de uma prática ainda em construção; por outro, é justamente a ausência de contornos cristalizados que permitiu que nós experimentássemos diversas metodologias. Até mesmo o nome desses momentos mudou várias vezes. Antes de ser Círculo de Cultura, os encontros foram chamados de roda de conversa, grupo, oficina, troca de saberes… Por fim, escolhemos esse conceito elaborado por Paulo Freire por entender que ele se ancora em princípios e objetivos consonantes com os nossos, ao mesmo tempo que não se baseia em uma rigidez técnica, abarcando a flexibilidade de formatos que também nos atrai.

O objetivo dos Círculos é tanto compor a estratégia de educação em saúde do Ambulatório LGBT, se apropriando de outros circuitos e linguagens para discutir temáticas relevantes para a saúde integral das pessoas LGBTQIA+, quanto fortalecer o senso de comunidade e reconhecimento entre os/as usuários/as. Partimos do entendimento de que o contato com o/a outro/a, que é alteridade e espelho simultaneamente, permite que o/a usuário/a construa elaborações acerca de sua própria trajetória. Por isso, embora não sejam grupos terapêuticos, é possível entender os Círculos de Cultura como atividades de promoção de saúde e cidadania.

A partir do início do estágio, a periodicidade dos encontros passou a ser mensal, sendo realizados, no total, 6 Círculos de Cultura. O primeiro deles, Masculinidades e saúde do homem GBT, foi no contexto do novembro azul, mês de sensibilização para a saúde do homem no calendário do SUS. Em janeiro, realizamos o Círculo Eu me vejo em você, que teve como fio condutor a visibilidade trans e que inspirou o título do presente relatório. O terceiro encontro foi em março, com a temática Violência contra as mulheres trans e travestis: como enfrentar? No final de maio, iniciando as ações do mês de orgulho LGBT, realizamos um Círculo de Cultura no Pina, em parceria com um coletivo do território, que teve como disparador o questionamento: Por que fazer uma política pública só para a população LGBT? No mês de junho, o encontro foi sobre afetividades, a partir da pergunta: Quem vai nos dizer como amar? Por fim, em agosto, convidamos o diretor pernambucano Petrônio Lorena para o Ambulatório e realizamos o Sarau de Cultura LGBTQIA+, no qual os/as usuários/as puderam apreciar e apresentar músicas, poesias, filmes, desenhos, dança, além de conversar sobre o lugar da arte e da cultura na nossa saúde mental.

Como já foi citado anteriormente, a crise sanitária e política que estávamos vivendo impôs algumas restrições na organização de grupos nos serviços de saúde. Por esse motivo, os Círculos foram pensados de maneira a garantir o distanciamento social, em local amplo e aberto, com limitação do número de participantes, obrigatoriedade do uso de máscara e higienização das mãos com álcool em gel. Com exceção do Círculo de Cultura que realizamos no anexo de um restaurante no bairro do Pina, os encontros aconteceram no auditório da Policlínica Lessa de Andrade. A duração das rodas variou entre 2h e 4h e a quantidade de participantes ficou na média de 10 pessoas. A divulgação dos Círculos acontecia no Ambulatório, durante as consultas dos/as usuários/as, e no instagram da Política de Saúde Integral da População LGBT (@saudelgbtrecife). Para evitar aglomerações, era necessário se inscrever com antecedência, mas quando sobravam vagas os/as usuários/as que comparecessem ao Ambulatório no dia do encontro eram convidados/as a participar também.

4. A EDUCAÇÃO POPULAR E O SUS

Os Círculos de Cultura são uma prática e teoria idealizada por Paulo Freire e, portanto, ancoram-se nos princípios da Educação Popular. Nessa perspectiva, a educação deve ter como horizonte a libertação dos oprimidos, a partir da valorização do saber popular e do desenvolvimento de uma consciência crítica acerca da realidade. Ela se opõe ao que o autor chamava de educação bancária, na qual o professor é o único com um conhecimento válido, restando aos alunos calar e memorizar o conteúdo trazido pela autoridade em sala de aula. Em outras palavras, no ensino tradicional é como se o aluno fosse uma caixa vazia, passiva, que o professor pudesse abrir e encher de informações (FREIRE, 1977).

O contraste entre essas duas formas de entender a educação também esteve presente na criação do Sistema Único de Saúde. Até a década de 70, a educação em saúde estava subordinada aos interesses das elites, que tinham o objetivo higienista de medicar e adequar o povo a uma norma para que os sintomas sumissem, mas sem intervir jamais na ordem social e econômica vigente  (SIMÃO; ZURBA; NUNES, 2012). Ou seja, eles não estavam preocupados com as condições concretas de miséria ou com outros determinantes sociais de saúde e doença, nem tampouco com a emancipação das classes oprimidas. Pelo contrário, do ponto de vista econômico, era preferível que a desigualdade material não diminuísse, o que conferia às políticas de saúde um caráter assistencialista. Na realidade, alguns grupos políticos defendem essa perspectiva alienante de saúde até hoje.

Por outro lado, com a conquista do SUS na Constituição de 1988, a participação popular passou a ser uma das diretrizes da política de saúde nacional, reconhecendo o povo como co-construtor das políticas públicas e na sua autonomia em relação ao seu processo de saúde-doença. É nesse contexto que a Educação Popular passa a ser entendida como uma pedagogia mais coerente e potente dentro dos objetivos do SUS, propondo uma política de saúde pública onde a comunidade possa evidenciar e construir conhecimentos e práticas em saúde conjuntamente com a equipe técnica. Sendo uma estratégia de pedagogia popular, atualmente os Círculos de Cultura estão presentes tanto na educação permanente dos profissionais, quanto na educação em saúde junto aos/às usuários/as.

Os Círculos de Cultura são “um espaço dinâmico e horizontal de aprendizagem, onde os sujeitos participantes investigam questões que lhes são significativas, problematizando situações da sua própria vivência de mundo” (SIMÃO; ZURBA; NUNES, 2012, p. 85). Em uma linguagem mais fácil, os Círculos são debates construídos por várias pessoas em torno de uma determinada temática, com a figura de um ou mais facilitadores mediando a conversa e com o papel de construir sínteses ao longo e ao final do encontro. Embora pareça uma atividade simples, o desafio pedagógico está em garantir um diálogo horizontal e sincero, em que a fala circule, partindo do princípio de que todos os participantes têm uma experiência e conhecimento e, portanto, têm capacidade de contribuir com a discussão, mas entendendo que cada um detém um saber distinto – e nem sempre crítico – sobre o mundo. Valorizar os saberes populares é diferente de acreditar cegamente em tudo ou de descredibilizar a importância do saber científico para a construção de uma consciência transformadora.

Outra característica central dos Círculos de Cultura é a indissociabilidade entre prática e teoria, chamada por Paulo Freire e outros materialistas de práxis. Por esse motivo, os conceitos da Educação Popular não podem ser rígidos, mas precisam estar em constante diálogo e revisão a partir da experiência e do contexto real em que queremos aplicá-los. No caso dos Círculos de Cultura do Ambulatório LGBT, inclusive, começamos pela prática para depois encontrar e se aprofundar em um aporte teórico que fizesse sentido com os princípios que nos norteiam. A cada Círculo, eram feitos novos ajustes baseados nas rodas anteriores, prezando pela experimentação e variedade de metodologias e técnicas grupais.

Outro instrumento que utilizamos como referência teórica foi o livro Projeto Artpad, organizado por Julie McCarthy e Karla Galvão, que reúne técnicas grupais do campo do teatro, utilizadas no Brasil e no Peru para o desenvolvimento participativo de grupos, em especial no ambiente de ONGs. Não coincidentemente, o ArtPad também utiliza a pedagogia freireana como referência e, por isso, se ancora nos mesmos princípios de horizontalidade e libertação a partir do coletivo e da educação popular. Na visão das autoras, “O teatro pode ser uma dinâmica e revolucionária ferramenta de mudança, que facilita o diálogo e a participação reflexiva” (MCCARTHY; GALVÃO, 2001, p. 5), o que convergiu com o nosso desejo de trabalhar com arte, entendendo que a expressão artística invoca circuitos de comunicação alternativos à fala, que muitas vezes torna-se engessada em metodologias entediantes. O ArtPad nos ajudou a dar contornos ao nosso papel de facilitadores, bem como a construir uma estrutura fluida e criativa para os Círculos.

O processo de idealização dos Círculos de Cultura começa pela escolha do que Paulo Freire chamava de palavras ou temas geradores, em oposição a um conteúdo programático. As temáticas das rodas precisam ser relevantes para os participantes, então a nossa inspiração vinha dos atendimentos clínicos e de nossas supervisões e reuniões de equipe, quando eram identificadas demandas que persistem na trajetória de vários/as usuários/as. Além disso, também tentamos pensar como nos apropriar do calendário do SUS, subvertendo o que normalmente é trabalhado nas Unidades de Saúde nessas datas. Por exemplo, no Novembro Azul, mês de saúde do homem, questionamos junto aos jovens trans que outras masculinidades são possíveis além da cis hetero patriarcal.

Depois de pensada a temática, trabalhávamos para criar um título e uma identidade visual que atraísse e instigasse os/as usuários/as a chegarem no dia marcado. Também no dia dos Círculos, chegávamos com antecedência no auditório para preparar visualmente a sala, organizando as cadeiras em roda e colocando no centro símbolos importantes para o momento, como as bandeiras LGBTs. Esse cuidado afetivo, chamado de mística nos movimentos sociais, ajuda a criar um ambiente acolhedor e faz com que os/as usuários/as se sintam mais à vontade quando chegam ao espaço.

Apesar de a metodologia ter variado bastante ao longo dos encontros, existe uma certa estrutura, baseada no ArtPad, que nos ajudou a organizar o começo, meio e fim das oficinas. Primeiramente, uma vez que os participantes haviam chegado ao local, começávamos com uma apresentação, já que o público variava a cada encontro, mesmo que alguns/mas usuários/as em especial tenham estado presentes em quase todos os Círculos. As técnicas que utilizamos para esse momento inicial tinham como proposta uma apresentação que se esquivasse das hierarquias que títulos como “estudante de…” ou “profissional de..” carregam. Então todos/as se apresentavam a partir do nome e de coisas que gostavam, gestos ou expectativas, a depender do dia e da técnica escolhida.

Em seguida, vinha o miolo do Círculo, que foi o que mais se diferenciou de um encontro para o outro. Através de técnicas de teatro e expressão artística, realizávamos o processo que Paulo Freire chamava de codificação e decodificação da temática a ser debatida. Codificar é apresentar a questão geradora em uma linguagem familiar aos/às participantes, de uma maneira que eles possam decodificar a mensagem, ou seja, se implicar e trazer as suas vivências e saberes para a discussão. Por exemplo, utilizamos músicas de compositores LGBTs, apresentações artísticas dos/as próprios/as usuários/as, auto-retratos, papéis com perguntas e cartões com frases escutadas no cotidiano de pessoas LGBTs.

Por fim, o fechamento e avaliação do encontro, momento em que realizávamos uma síntese do que foi conversado, pedíamos o feedback dos/as participantes e soltávamos o corpo com uma técnica teatral chamada Galinha Louca, que ficou consagrada nos Círculos de Cultura. Destaco também o lanche e as conversas informais que aconteciam após o tempo oficial das rodas, pois era um momento de fortalecimento de vínculos entre nós e os/as usuários/as, que sempre se estendiam e precisavam ser “convidados/as a sair” por conta do final do expediente da Policlínica.

O equilíbrio entre planejamento e improviso foi um aspecto central que aprendemos a manejar ao longo da experiência de estágio. Embora planejássemos a metodologia com antecedência, era preciso estar aberto para costurar remendos, desistir de algumas ideias e pensar rapidamente em novas alternativas a partir do que os/as usuários/as traziam ou por conta de algum imprevisto material. Mais uma vez, é a práxis que ancorou a nossa atuação do início ao fim.

5. CONCLUSÃO

É possível analisar os impactos dos Círculos de Cultura de diversos ângulos, dada a diversidade de agentes envolvidos nesse processo. Para fins do presente relatório, optei por caminhar de um ponto de vista macro, analisando de que forma os Círculos afetaram as equipes de outros serviços da Policlínica Lessa de Andrade, até um foco mais íntimo, chegando na minha própria vivência enquanto estagiária e futura psicóloga.

De acordo com a Política Municipal de Saúde Integral da População LGBT da cidade do Recife, ser LGBTQIA+ é um demarcador social que condiciona as vivências de saúde-doença, principalmente por causa do estigma e da violência sociais. Dessa forma, a construção de serviços específicos pode ser uma estratégia eficaz para garantir um atendimento qualificado, que enxergue essas demandas. Mas a existência de um Ambulatório LGBT na rede de cuidados do SUS também se justifica porque a violência LGBTfóbica, em uma sociedade cisheteronormativa, é perpetuada, inclusive, pelos profissionais de saúde (RECIFE, 2014). Ocupar a Policlínica Lessa de Andrade com os Círculos de Cultura e expondo as produções artísticas construídas pelos/as usuários/as nessas rodas é uma forma de reafirmar que aquele espaço de saúde é igualmente, por direito, da população LGBTQIA+. Uma situação que refletiu o efeito dos encontros mensais em outras equipes da Policlínica foi quando, enquanto organizávamos o auditório para o Sarau de Cultura LGBTQIA+, duas profissionais do setor de Odontologia chegaram junto para tirar várias dúvidas sobre o que significa ser LGBT. Esse e outros diálogos apontam para a curiosidade e interesse dos demais setores pelo trabalho que fazemos nos Círculos, bem como para a necessidade do fortalecimento de uma estratégia de matriciamento contínua na Policlínica.

Aproximando um pouco o foco de análise, percebo que os Círculos também impactaram na relação do resto da equipe do Ambulatório Patrícia Gomes com a Psicologia. Mesmo em uma equipe multidisciplinar dentro do SUS, ainda persiste, por vezes, uma postura medicalocêntrica entre os profissionais, na qual o saber médico é mais valorizado que o saber da psicologia ou de outras ciências. Talvez por esse motivo, a princípio, havia pouco envolvimento dos demais profissionais com as oficinas. Com o passar do tempo, os Círculos de Cultura foram se consolidando entre os/as usuários/as e também nas reuniões de equipe, que agora reconhece a potência da nossa atuação e se implica muito mais na divulgação e organização desses momentos.

A hierarquização dos saberes de que falei acima não acontece apenas entre a Medicina e as outras ciências, mas principalmente entre o saber científico e o saber popular, como nos alertava Paulo Freire. Essa problemática está na própria origem e história da Psicologia. Isso porque para definir certas existências como divergentes, atípicas, conflitantes, parte-se do entendimento de que há um referencial – e um referencial apenas – de subjetividade aceitável. Na sociedade em que vivemos, o sujeito que incorpora esse padrão é o homem cis branco hétero e elitista, transformando todos os demais em alteridades faltantes. Grada Kilomba, artista interdisciplinar, escritora e teórica portuguesa, com raízes em Angola e São Tomé e Príncipe, em seu livro “Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano” (2019), analisa o pacto colonial a partir de uma ótica psicanalítica. Segundo a autora, a branquitude se constitui através do processo de negação, em que a parte má da subjetividade do sujeito branco é negada pelo mesmo e projetada sobre o/a “Outro/a”, de forma que o sujeito negro vira a tela de projeção de tudo aquilo que é rejeitado pelo colonizador sobre si mesmo (KILOMBA, 2019).

Grada nos alerta que essa configuração colonial e racista também se reflete nas tradições acadêmicas. Esses corpos “outros” foram colocados historicamente no lugar de objetos de estudo, escrutinados pelo olhar do cientista supostamente neutro e universal, mas nunca na categoria de sujeitos que podem falar sobre si próprios. Nesse sentido, Leila Dumaresq, filósofa e ativista brasileira dos direitos LGBTQIA+, argumenta que, para de fato se humanizar uma pessoa, não basta transformá-la em um objeto de estudo. Devemos compreendê-la como alguém capaz de falar sobre si mesma, mas também transformá-la em um sujeito epistemológico como o agente da escuta supõe ele mesmo ser (DUMARESQ, 2016).

A falta de representatividade negra, feminina e LGBTQIA+ nos espaços de produção acadêmica contribuiu para a persistência de teorias discriminatórias, inclusive dentro da Psicologia. Não é à toa que eu escutei de alguns usuários, ao longo do estágio, que eles “não confiavam em psicólogos”. É sempre importante lembrar que a tortura praticada contra as pessoas em sofrimento psíquico, usuários/as de drogas, mulheres, LGBTQIA+ e negros/as em instituições manicomiais eram justificadas pelo paradigma científico da época. Isso porque os comportamentos socialmente estigmatizados, vistos pelo público leigo como dignos de hostilidade e discriminação, são frequentemente classificados pelos especialistas como doença mental. Autores como Michel Foucault e Erving Goffman apontam que, historicamente, o objetivo da Psicologia e das ciências clínicas não está apenas em promover práticas de cuidado, mas também em substituir a punição social pelo tratamento, sem deixar de lado os interesses do grupo ofensor (DUMARESQ, 2016).

Os Círculos de Cultura vão de encontro a essa concepção na medida em que reconhecem os participantes – nesse caso, os/as usuários/as do Ambulatório – como sujeitos de sua própria história, capazes de reconhecer coletivamente as opressões que geram sofrimento entre a população LGBTQIA+ para, a partir daí, inventar estratégias populares de enfrentamento e de promoção de saúde. Por isso, talvez o principal impacto dos Círculos de Cultura tenha sido aumentar a horizontalidade e confiança entre a equipe de Psicologia e os/as usuários/as, desnaturalizando a hierarquização dos saberes e reconhecendo o caráter LGBTfóbico, inclusive, da própria Psicologia.

Em relação aos/às usuários/as pudemos perceber um fortalecimento do vínculo com o espaço, bem como entre eles/as, que passaram a se encontrar fora do Ambulatório. A criação dessa rede afetiva pode ser entendida, inclusive, como uma estratégia coletiva de resistência, pois é menos adoecedor encarar as violências LGBTfóbicas quando se pode contar com uma comunidade que te acolhe e fortalece nesse enfrentamento. Enxergar-se na vivência alheia revela a dimensão estrutural das violências sofridas, mas também a possibilidade de superação através do coletivo.

Durante as nossas supervisões, as inquietações provocadas pelos Círculos de Cultura nos ajudaram a nos deslocar de algumas práticas cristalizadas no cotidiano do serviço e a elaborar outros caminhos para o cuidado. Além disso, durante os encontros, era possível perceber lados diferentes dos/as usuários/as que acompanhamos em atendimentos individuais, sendo que os assuntos que vinham à tona durante os Círculos, muitas vezes, eram trabalhados com maior profundidade dentro do consultório. Esse retorno espontâneo dos/as usuários/as às temáticas dos Círculos de Cultura durante a terapia reforçou para nós a relevância dos temas escolhidos e permitiu que os processos de elaboração iniciados nas rodas tivessem continuidade.

Quanto a mim, do ponto de vista de minha trajetória pessoal, o principal impacto dos Círculos de Cultura foi a descoberta de uma prática em Psicologia que faz todo sentido com o que venho aprendendo no curso, na militância e na vida. Inclusive tenho facilitado estratégias de desenvolvimento participativo similares em outros espaços, como dentro do movimento feminista. Sinto que os Círculos me ajudaram a me sentir mais confiante, implicada e espontânea durante o estágio, mas com certeza me deixaram com mais inquietações do que respostas em relação ao que é e ao que pode ser a Psicologia.

Reconhecer que os interesses que embasam a nossa prática são ambíguos é, ao mesmo tempo, entender que existe uma disputa em jogo. Se, por um lado, a Psicologia na América Latina esteve historicamente focada em uma clientela rica, a partir de uma abordagem individualista para os problemas de saúde mental; por outro, há um movimento insurgente de psicólogos e psicólogas que defendem um referencial teórico decolonial e popular para a nossa profissão. Para o autor Ignácio Martín-Baró, não se trata de abandonar a Psicologia – precisamos colocar o saber psicológico a serviço da construção de uma sociedade mais justa, no lugar de reforçar e naturalizar desigualdades sociais e a desumanização (MARTÍN-BARÓ, 1996).

Tecer uma alternativa para a tradição patologizante e discriminatória da Psicologia não é uma tarefa simples. É um trabalho coletivo que requer tempo e coragem de nós, psicólogos/as. Coragem para reconhecer as atrocidades que já foram cometidas em nome da ciência e a insuficiência das teorias clássicas para entender os traumas causados pela exclusão (o que não significa ignorar a importância de vários desses saberes). Coragem também para lutar por outra formação acadêmica e profissional, mais crítica e comprometida com a transformação social. Coragem para enfrentar as instituições médicas hegemônicas e as ameaças fundamentalistas no Congresso Nacional e no Conselho Federal de Psicologia. E coragem, sobretudo, para enfrentarmos os ideais racistas, capitalistas e cisheteropatriarcais que persistem dentro de nós.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Brasília: Ministério da Saúde, 2013.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

DUMARESQ, Leila. Ensaio (travesti) sobre a escuta (cisgênera). Periódicus, Salvador, v. 1, n. 5, p. 121-131, maio/out. 2016.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. São Paulo: Paz e Terra, 1921.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1977.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.

MARTÍN-BARÓ, Ignácio. O papel do Psicólogo. Estudos de Psicologia, Natal, v. 2, n. 1, p. 7-27, 1996.

MCCARTHY, Julie; GALVÃO, Karla. Projeto ArtPad: um recurso para teatro, participação e desenvolvimento. [S.I.]: Centre For Applied Theatre Research, 2001.

RECIFE. Secretaria de Saúde. Política Municipal de Saúde Integral para População LGBT. Recife, 2014. 9 p. Disponível em: http://tiny.cc/pns2uz. Acesso em: 20 maio 2021.

SIMÃO, Caio Ragazzi Pauli; ZURBA, Magda do Canto; NUNES, Alana de Siqueira Branis. Educação Popular em Saúde: o círculo de cultura como ferramenta de promoção de participação popular no SUS. In: ZURBA, Magda do Canto (org.). Psicologia e Saúde Coletiva. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2012. Cap. 4. p. 75-102.

[1] Graduada em Psicologia. ORCID: 0000-0002-1943-2992.

[2] Doutoranda em Saúde Pública. ORCID: 0000-0002-0942-8818.

[3] Graduado em Psicologia. ORCID: 0000-0001-9417-5087.

[4] Orientadora. ORCID: 0000-0002-5705-1795.

Enviado: Outubro, 2022.

Aprovado: Dezembro, 2022.

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Bruna Pires Belo e Lira

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