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Uma perspectiva da evolução da aplicação do foro especial por prerrogativa de função

RC: 108447
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/foro-especial

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SANTOS, Amanda Tobias Alves dos [1]

SANTOS, Amanda Tobias Alves dos. Uma perspectiva da evolução da aplicação do foro especial por prerrogativa de função. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 07, Ed. 03, Vol. 02, pp. 154-168. Março de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/foro-especial, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/foro-especial

RESUMO

O instituto do foro especial por prerrogativa de função é previsto na Constituição Federal em um rol taxativo para seus detentores, este instituto evoluiu com o tempo e sofreu mudanças significativas com o passar das Constituições, porém, ainda assim podem ocorrer equívocos no tocante a sua aplicação o que gerou a necessidade de uma delimitação do mesmo. A questão norteadora deste artigo consiste em saber como ocorreu a evolução do instituto do foro por prerrogativa no nosso ordenamento jurídico ao longo do tempo e como ele é aplicado no atual cenário brasileiro. Desta forma, este artigo busca analisar o instituto do foro especial por prerrogativa de função no ordenamento jurídico brasileiro em face de evolução temporal e os desdobramentos legais de sua aplicação, apresentando como objetivo realizar um estudo sob o instituto, passando pela sua evolução nas constituições brasileira, no princípio constitucional da isonomia e no marco acerca de sua aplicação, que foi do julgamento da Ação Penal nº 937 pelo STF. Foi adotado para tal um estudo de revisão bibliográfica, onde foram utilizados artigos científicos, obras acadêmicas e literárias. Como resultado da pesquisa foi possível comprovar que embora, muitas vezes, tendo sua interpretação e aplicação equivocada, o instituto, pode ser eficaz desde que seguido à risca os casos que a Constituição abarca em seu texto.

Palavras-chave: Foro, Foro especial por Prerrogativa de Função, Constituição, Julgamento.

1. INTRODUÇÃO

O Foro por prerrogativa da função de acordo com o autor Leonardo Barreto (2020, p. 310), é a competência jurídica que, ao menos em tese, visa privilegiar o cargo ocupado, nunca, pois, a pessoa propriamente dita que o exerce, o que levaria a uma injustiça desigualdade entre os cidadãos. Embora, vulgarmente seja difundido que o instituto traz uma proteção às pessoas, o autor é pontual e claro em dizer que tal prerrogativa jurídica se confere em natureza do cargo ocupado.

Cabe ressaltar que, conforme o autor Marcelo Novelino (2020, p. 686) o foro por prerrogativa de função é assegurado exclusivamente na seara penal, não sendo extensível às causas de outra natureza, portanto, trata-se de uma prerrogativa jurídica que define a competência do julgamento criminal por conta de uma pessoa ocupante de determinado cargo sendo fundamentado na proteção da função e da coisa pública. Não se tratando assim de uma competência pessoal, e sim, tecnicamente falando de uma competência em razão da prerrogativa.

Deste modo, sendo questão norteadora desse artigo como ocorreu a evolução do instituto do foro por prerrogativa no nosso ordenamento jurídico ao longo do tempo e como ele é aplicado no atual cenário brasileiro. Para que seja possível responder a esta questão, torna-se importante discutir o instituto jurídico do foro privilegiado e a sua evolução no ordenamento jurídico brasileiro até a atualidade, a relevância deste trabalho não está apenas nas possíveis controvérsias causadas pelo instrumento do foro privilegiado. O objetivo geral deste trabalho é realizar uma análise do instituto do foro especial por prerrogativa de função no ordenamento jurídico brasileiro, sua evolução temporal, passando pela sua evolução nas constituições brasileira, no princípio constitucional da isonomia e no marco acerca da sua aplicação, que foi o do julgamento da Ação Penal nº 937 pelo STF.

O presente artigo foi realizado baseando-se na pesquisa bibliográfica, legislação e doutrina nacional adotando o método indutivo, na análise de um tema específico para chegar a uma conclusão.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA

No Brasil, o foro privilegiado sempre existiu desde a época da colonização, na época vigoravam as Leis Filipinas, crimes cometidos por fidalgos ou qualquer autoridade vinculada à Coroa não eram julgados por magistrados eram remetidos diretamente ao rei. Um exemplo disso e também o mais conhecido era a questão do adultério, Livro V, título XXV, das Ordenações Filipinas (Ordenações Filipinas nº 26 de 05/04/1451 / BC – Brasil Colônia):

Do que dorme com mulher casada. Mandamos que o homem, que dormir com mulher casada, e que em fama de casada stiver, morra por ello. Porém, se o adúltero fôr de maior condição, que o marido della, assi como, se o adultero fosse Fidalgo, e o marido cavalleiro, ou scudeiro, e o marido peão, não farão as justiças nelle execução, até nol-o fazerem saber, e verem sobre isso nosso mandado. (BRASIL COLÔNIA, 1451).

O instituto do foro especial por prerrogativa de função surgiu no nosso ordenamento na Constituição de 1824 em seu artigo 47, conferindo tal prerrogativa a pessoas ligadas à coroa (BRASIL, 1824). Em seu dispositivo estava descrito que, membros pertencentes à Família Imperial, Deputados e Senadores no período de sua legislatura, ministros e entre outros deveriam ser julgados pelo Senado (BRASIL, 1824). O Imperador possuía privilégio total, pois era pessoa considerada inviolável e sagrada, conforme art. 99 e não se sujeitava a nenhum tipo de responsabilidade.

Com o advento da Proclamação da República e a promulgação da constituição de 1891 o foro foi instituído em seu artigo 57 §2° e dava competência para o Senado julgar os membros do STF, e a este para julgar juízes federais inferiores. Veja: O Senado julgará os membros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade, e este os Juízes federais inferiores. (BRASIL, 1891)

Em 1934, o artigo 58 da Constituição trouxe uma mudança significativa no órgão que seria responsável pelo julgamento caso o réu fosse o presidente da república se tratando de crime de responsabilidade, ele seria julgado realizado por tribunal especial composto de 10 membros, sendo presidente deste o presidente da Corte Especial e como membros nove Juízes, sendo três Ministros da Corte Suprema, três membros do Senado Federal e três membros da Câmara dos Deputados, e não pelo Senado. (BRASIL, 1934) Já quanto aos crimes comuns conforme art. 76, alíneas a), b) e c), o presidente e os ministros da corte seriam julgados pela Corte Suprema, bem como, os Ministros de Estado, o Procurador-Geral da República, os Juízes dos Tribunais federais e bem assim os das Cortes de Apelação dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, os Ministros do Tribunal de Contas e os Embaixadores e Ministros diplomáticos nos crimes comuns e nos de responsabilidade, (BRASIL, 1934).

Já em 1937, a Constituição manteve o foro da anterior conforme citado acima em seus artigos 86, 89, 100, 101, 1 a) e b) (BRASIL, 1937) porém, definiu a competência para um Conselho Federal, composto por 10 membros nomeados pelo próprio presidente da república sem grandes mudanças significativas quanto aos contemplados pela prerrogativa. Foi só em 1946, que a competência tornou- se muito semelhante à que conhecemos hoje, incluindo no rol de seu art. 101, I, c) os juízes dos Tribunais Superiores Federais, dos Tribunais Regionais do Trabalho, dos Tribunais de Justiça dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, os Ministros do Tribunal de Contas e os Chefes de missão diplomática de caráter permanente como detentores do foro por prerrogativa de função (BRASIL, 1946). Ademais, conforme o art. 44 da mesma, o Senado tinha competência privativa para julgar o presidente em crimes de responsabilidade e também ministros se cometerem o mesmo em conexão com o presidente. (BRASIL, 1946)

Desta forma, em 1946 foi fixado o Supremo Tribunal Federal com competência originária de processar e julgar o Presidente da República nos crimes comuns, se estendendo aos ministros (BRASIL, 1946) e com o advento da emenda constitucional de 1969 conforme art. 32, §2º, CF/69 o Supremo Tribunal Federal se tornou responsável por julgar também os crimes comuns praticados pelos deputados e senadores. (BRASIL, 1969) Desta forma, conclui-se que a partir de 1946 o instituto do foro se tornou mais próximo ao que conhecemos atualmente. Logo após essa breve análise podemos concluir que o foro esteve presente em todas as nossas constituições sempre com alterações no instituto que ora restringiam os direitos, ora expandiam o foro.

2.1.2 PREVISÃO LEGAL NA LEGISLAÇÃO VIGENTE

A Constituição Federal possui um rol taxativo as autoridades que possuem a prerrogativa de foro privilegiado por prerrogativa da função, vejam, o Inciso X do artigo 29 da CF/88 traz o foro para prefeitos, que deverão ser julgados pelo Tribunal de Justiça estadual, sendo assim, qualquer ilícito penal cometido, ainda que seja um crime doloso contra vida, em regra, quem terá a competência para julgar será o Tribunal de Justiça. (BRASIL, 1988)

No artigo 53, § 1°, ainda na Constituição Federal, encontra-se a competência para julgamento de Deputados Federais e Senadores que, desde o advento da mesma, só poderão ser julgados perante o STF (BRASIL, 1988). Segundo o texto do artigo 102, §1°:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I – processar e julgar, originariamente:

b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República. (BRASIL, 1988)

Conforme o artigo 102, alínea c, também da Constituição Federal: “é do STF a competência de julgar os Ministros de Estado, Comandantes das Forças Armadas, membros do Tribunal de Contas da União, chefes de missão diplomática de caráter permanente e seus próprios ministros nos casos de crimes comuns.” (BRASIL, 1988)

Já no Código de Processo Penal podemos mencionar o seu Art. 84 (BRASIL, 1941) conforme se segue:

A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade. § 1º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública. § 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º. (NR dada ao artigo pela Lei nº 10.628, de 24.12.2002)

O Art. 4º da Lei n° 1.079/50 (Lei dos crimes de responsabilidade) (BRASIL, 1950) define os crimes de responsabilidade:

São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra: I – A existência da União: II – O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados; III – O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: IV – A segurança interna do país: V – A probidade na administração; VI – A lei orçamentária; VII – A guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos; VIII – O cumprimento das decisões judiciárias. (Art. 4º, Lei n° 1.079/50)

Tratando-se de delitos específicos de fácil diferenciação de um crime comum explicitado pelo código penal, ou seja, crimes de responsabilidade são crimes próprios, outros tipos de agente não praticam crimes de responsabilidade, os mesmos só podem ser praticados por agentes públicos.

No ano de 2018, o Ministro Roberto Barroso levantou no julgamento da Ação Penal de n° 937 (STF, 2018) uma questão de ordem, a qual abrangia todos os tipos de crimes cometidos pelos possuidores do foro por prerrogativa, isso porém, desaguou em uma fuga no tocante o julgamento de seus crimes pois, gerou um precedente para estender os efeitos do foro de julgamento a crimes praticados antes do mandato ou cargo, tornando-se um privilégio em razão da pessoa e não do cargo que ocupa, foi a partir desse momento que começaram a surgir as polêmicas em razão do tema.

Conforme explica o Min. Luís Roberto Barroso (BRASIL, 2018) na questão de ordem da Ação Penal de nº 937:

[…] Ademais, não há, no Direito Comparado, nenhuma democracia consolidada que consagre a prerrogativa de foro com abrangência comparável à brasileira. No Reino Unido, na Alemanha. nos Estados Unidos e no Canadá a prerrogativa de função sequer existe. Entre os países com foro privilegiado, a maioria o institui para um rol reduzido de autoridades. Na Itália, a prerrogativa de foro se aplica somente ao Presidente da República. Na França, o foro especial é instituído apenas para os membros do governo (os Ministros e secretários de Estado). Em Portugal, são três as autoridades que detêm foro privilegiado: o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro. (AP 937, STF, 2018)

Porém, a questão em si da discussão atual não é o direito ao foro, mas sim o seu uso indiscriminado levando em conta o grande universo de autoridades que a possuem que gera uma imensidão de processos sob essa tutela o que prejudica a eficiência dos Tribunais julgadores.

2.1.3 CONSEQUÊNCIAS DA APLICAÇÃO DO FORO POR PRERROGATIVA

Como já mencionado o foro privilegiado não é da pessoa mas, sim do cargo que ela ocupa, porém, levando em conta o número de detentores da prerrogativa do instituto conforme mencionado em tópico anterior, muitos podem ser os desdobramentos em nossa estrutura judiciária, por conta disso a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), no ano de 2007, realizou uma pesquisa chamada: “Juízes Contra a Corrupção: Diagnóstico do Problema da Impunidade e Possíveis Soluções propostas pela AMB”, com o objetivo de apresentar soluções propostas por seus membros para os problemas que podem ser originados, dentre os citados está a impunidade e o congestionamento de julgamento dessas ações a pesquisa mostrou a realidade da situação STF no período pela aplicação deste instituto de dezembro de 1988 a junho de 2007 (BRASIL, 2007).

O material publicado concluiu que, cerca de cento e trinta processos criminais contra detentores do foro que tramitaram no STF, na época, nenhum réu sofreu condenação. (BRASIL, 2007) Cabe ressaltar que, determinada pesquisa apresenta dados de um período de mais de 10 anos atrás, presume-se que atualmente esses números possam ser bem maiores. Ela mostra também certa ineficácia do instituto, pois a maior parte das ações tem a sua competência redistribuída, prescreve ou recebe sentença de absolvição, o que pode ocorrer é que muitos réus podem estar aproveitando da prerrogativa que possuem para postergar seu julgamento e se valer de uma possível prescrição sendo assim uma afronta jurídica ao instituto e aos tribunais brasileiros que têm se deparado com a impunidade (BRASIL, 2007).

Sendo assim, o ministro Roberto Barroso (BRASIL, 2018) com influência das críticas sociais e jurídicas propôs e discutiu recentemente em questão de ordem a qual veremos mais à frente, e acabou por restringir a abrangência do foro especial para conferir mais celeridade aos processos onde figuram autoridades acusadas de crimes funcionais, desta forma, o foro especial passa a se adequar aos princípios éticos constitucionais, sobretudo no que diz respeito ao princípio da isonomia a qual será abordado a seguir.

2.1.4 O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO X PRINCÍPIO DA ISONOMIA

O princípio da isonomia está previsto no artigo 5º da Constituição Federal: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. (BRASIL, 1988).

De acordo com Marcelo Novelino (2020) A concepção material de igualdade tem como ponto de partida a fórmula clássica de Aristóteles, segundo a qual os iguais devem ser tratados igualmente e os desiguais desigualmente, na medida de sua desigualdade

Traduzindo a ideia, o princípio da isonomia traduz um dever jurídico de conceder igual tratamento a todos os indivíduos sem impor diferenças independente da classe, grupo, situação ou categoria. Conforme o ex Ministro do STF Eros Grau (2006): a concreção do princípio da igualdade reclama a prévia determinação de quais sejam os iguais e os desiguais. O direito deve distinguir pessoas e situações distintas entre si, a fim de conferir tratamentos normativos diversos a pessoas e a situações que não sejam iguais. (STF – ADI 3.305, Rel. Min. Eros Grau. DJ 24.11.2006) Desse modo, as leis, sendo a Constituição ou a legislação ordinária, podem fazer distinções dando tratamento diferenciado desde que, respeitando critérios que dêem tratamento isonômico, sem favorecer ou prejudicar um ou outro apenas para oferecer tratamento igualitário. Deste modo, o foro por prerrogativa de função, atenderia esse princípio com relação a tratamento desigual, porém, por se tratar de prerrogativa concedida a determinados agentes públicos reconhecendo a importância da função dos mesmos e acreditando estar sujeita às intercorrências características de interferências políticas e seus desdobramentos, mereceriam tratamento desigual dando direito a superioridade de julgamento o que pode gerar algumas discussões.

Discutem-se quais seriam os delitos abarcados pelo direito a prerrogativa, sendo assim levando em conta que, conforme o Marcelo Novelino:

Nos termos da Constituição, desde a expedição do diploma, os Deputados e Senadores serão processados e julgados, por crimes comuns, perante o Supremo Tribunal Federal (CF, art.53§1°). A locução constitucional “infrações penais comuns” (grifo do autor) (CF, art. 102, I, b) abrange, inclusive, os crimes dolosos contra a vida, os delitos eleitorais e as contravenções penais. (NOVELINO, 2020, p. 686)

Já para os autores Júlio César de Aguiar e João Paulo Lacerda Oliveira (2017), o foro por prerrogativa só é cabível de aplicação para crimes de responsabilidade:

[…] O foro especial por prerrogativa de função não deve permanecer para o julgamento dos crimes comuns por claramente violar o tratamento isonômico garantido aos indivíduos pela Carta Constitucional. A clara violação ao referido princípio é vista, por exemplo, nos casos em que o crime é praticado antes do mandato eletivo e, com a diplomação do parlamentar, o processo é automaticamente encaminhado ao Supremo. Destarte, a prerrogativa do foro privilegiado somente estará de acordo com o preceito da igualdade se for concebida, exclusivamente, para os crimes cometidos no estrito desempenho da função pública. (AGUIAR e OLIVEIRA, 2017, p. 12)

Por conseguinte, o privilégio tem exigido uma necessidade dos legisladores definirem de forma clara a tipificação criminal restringindo o mesmo apenas a crimes de responsabilidade, pois, se tratam crimes de práticas mais elaboradas, com características peculiares, sendo assim, os tribunais superiores teriam melhores condições para seguir o curso do processo já que os crimes comuns não seriam alcançados pelo foro por prerrogativa de função, desta forma, o Supremo Tribunal Federal decidiu por levantar uma questão de ordem para delimitar a aplicação do foro.

2.1.5 A RESTRIÇÃO DO FORO ESPECIAL

No decorrer do julgamento da Ação Penal nº 937 – RJ, no ano de 2017, ação esta proposta pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em face de Marcos da Rocha acusado por cometer o crime eleitoral de compra de votos, o ministro Luís Roberto Barroso levantou novamente uma questão de ordem que tratava da restrição do foro especial para membros do Congresso Nacional, para aplicar interpretação restritiva às regras que estabelecem o foro por prerrogativa de função visando uma solução para debates que traz a prerrogativa.

Sendo assim, buscava uma redução considerável do campo de aplicação afastando do foro que se costumava afirmar que possuía prerrogativa apenas funcional a cobertura por práticas de crimes comuns, estabelecendo um marco temporal como limite para estabelecimento de competência para realização do julgamento relacionado às ações como foro especial por prerrogativa de função.

Dessa forma o ministro Luís Roberto Barroso, relator da ação penal requereu manifestação desse julgamento ao plenário acerca da possibilidade de restringir a prerrogativa de foro, ou seja, para que o STF aplicasse a mutação constitucional, alterar o entendimento da legislação sem alterar seu texto, algo que só pode ser realizado pelo Supremo, leia-se: “[…] estabelecem as hipóteses de foro por prerrogativa de função, de modo a limitar tais competências jurisdicionais aos crimes cometidos em razão do ofício e que digam respeito estritamente ao desempenho daquele cargo.” (BRASIL, 2018).

Deste modo, o ministro relator Luís Roberto Barroso, entendeu que os crimes cometidos antes e após a posse não possuem relação com o desempenho do cargo, não podendo assim ser submetidos ao mesmo tratamento jurídico que os crimes cometidos no exercício da função. No tocante à leitura do inteiro teor do despacho da referida Ação em que o ministro relator levantou duas questões de ordem para melhor esclarecer o caso em plenário. Neste sentido, o ministro Luís Roberto Barroso (BRASIL, 2018, p. 25) ressalta que:

A primeira diz respeito à possibilidade de se conferir interpretação restritiva às normas da Constituição de 1988 que estabelecem as hipóteses de foro por prerrogativa de função, de modo a limitar tais competências jurisdicionais às acusações por crimes que tenham sido cometidos: (i) no cargo, i.e., após a diplomação do parlamentar ou, no caso de outras autoridades, após a investidura na posição que garanta o foro especial; e (ii) em razão do cargo, i.e., que guardem conexão direta ou digam respeito ao desempenho do mandato parlamentar ou de outro cargo ao qual a Constituição assegure o foro privilegiado. (BRASIL, 2018, p. 25)

Quando ele se refere à interpretação restritiva das normas da Constituição, o ministro teve a intenção de identificar os valores que nela estão incorporados, seja do ponto de vista axiológico ou político, de forma que possam se concretizar e configurar uma interpretação não tão próxima da realidade brasileira, não podendo ignorar que a Constituição é a nossa lei maior, ou fundante, nossa Carta Magna. Sendo assim, ficou decidido o seguinte na sessão do dia 31 de maio de 2017 (BRASIL, 2018, p. 59):

Decisão: Após o voto do Ministro Roberto Barroso (Relator), resolvendo questão de ordem com a fixação das seguintes teses: “(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”, com o entendimento de que esta nova linha interpretativa deve se aplicar imediatamente aos processos em curso, com a ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e pelos demais juízos com base na jurisprudência anterior, conforme precedente firmado na Questão de Ordem no Inquérito 687 (Rel. Min. Sydney Sanches, j. 25.08.1999), e, como resultado, no caso concreto, determinando a baixa da ação penal ao Juízo da 256ª Zona Eleitoral do Rio de Janeiro para julgamento, tendo em vista que (i) os crimes imputados ao réu não foram cometidos no cargo de Deputado Federal ou em razão dele; (ii) o réu renunciou ao cargo para assumir a Prefeitura de Cabo Frio; e (iii) a instrução processual se encerrou perante a 1ª instância, antes do deslocamento de competência para o Supremo Tribunal Federal, o julgamento foi suspenso. Falaram: pelo Ministério Público Federal, o Dr. Rodrigo Janot Monteiro de Barros, Procurador Geral da República, e, pelo réu, Marcos da Rocha Mendes, o Dr. Carlos Magno Soares de Carvalho. Presidência da Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 31.05.2017. (BRASIL, 2018, p. 59)

Toda a discussão envolvida nessa decisão começou a levantar a possibilidade de conferir uma Interpretação Restritiva às normas da Constituição Federal de 1988, as quais estabelecem em rol taxativo as hipóteses de Foro por Prerrogativa de Função de modo a limitar a sua aplicação às acusações por crimes cometidos no cargo que digam respeito estritamente ao exercício da função, como por exemplo, os crimes de responsabilidade ou de improbidade administrativa. Desta forma, as pautas políticas, sociais, culturais, jurídicas e acadêmicas tomaram parte sobre a decisão das questões de ordem para melhor compreender a sua aplicação aos casos concretos e tentar combater a corrupção que está enraizada no Congresso Nacional brasileiro, enquanto a sociedade brasileira pressiona com suas justas razões que haja punição de todos envolvidos, acabando, assim, com o sentimento de impunidade.

Nessa perspectiva da proteção da função pública, “[…] o poder do Estado é exercido pelos seus agentes investidos de garantias para executar fielmente e com impessoalidade as funções estatais. Entre essas garantias têm-se o foro por prerrogativa de função.” (BRASIL, 2018, p. 122). Nessa breve análise podemos perceber que a maioria dos votos dos ministros foi no sentido de aplicar a interpretação restritiva ao Foro por Prerrogativa de Função e definir sua incidência apenas nos casos de crimes cometidos no exercício do desempenho do cargo.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O foro por prerrogativa de função existe desde a nossa primeira Constituição no Brasil Império quando era conhecido por foro privilegiado porque conferia a possibilidade de julgamento diferenciado para autoridades ligadas a Coroa, a prerrogativa como conhecemos veio para o ordenamento através da Constituição de 1988, após passar por inúmeras modificações ao longo da história das constituições brasileiras. Atualmente, tratando-se de uma necessidade do Estado conferir proteção a função pública e não a pessoa em espécie que é detentora do cargo, sendo assim, questão norteadora deste artigo consistiu em saber como ocorreu a evolução do instituto do foro por prerrogativa no ordenamento jurídico ao longo do tempo e como ele é aplicado no atual cenário brasileiro.

Foi possível ao longo do desdobramento do artigo observar a evolução do dispositivo do foro privilegiado e como o mesmo legalmente foi movimentando-se com o passar do tempo para atender as necessidades legais, porém, ainda hoje, lidamos com algumas controvérsias jurídicas no tocante a sua aplicação, permeando o princípio da isonomia que doutrinariamente falando baseia-se em conferir um tratamento desigual a indivíduos em situações de provável vulnerabilidade, o mesmo pode ser contemplado como um dos fundamentos para o foro, porém, ainda existem divergências acerca de sua abrangência quanto a matéria legal que ora se restringe a julgamentos de matéria penal, ora para casos de improbidade administrativa.

Desta forma, um dos mais marcantes desdobramentos da evolução jurídica da aplicação do foro privilegiado no ordenamento jurídico brasileiro é a Ação Penal 937, que foi um marco para a sociedade por ter dado fim a essas controvérsias e limitado o Foro por Prerrogativa de Função apenas para delitos cometidos durante o mandato e associados a função, fazendo cair por terra a dúvida a crimes estranhos a estes como no caso de ilícito penal, assim, a partir da visão dos mais relevantes votos dos ministros do STF foi possível afirmar que o foro evoluiu a ponto de finalmente existir uma limitação ao instituto do Foro Privilegiado, o que pode vir a reduzir o uso do instituto no cenário político nacional conforme o decorrer de sua aplicação levando em conta que o limitar apenas às matérias previstas em lei o torna não só mais eficaz, como também delimita a quantidade de julgamentos a serem realizados pelo STF.

O marco da evolução do instituto encontra-se no fato de que a Ação Penal 937 que definiu que os dispositivos que o abarcam sejam interpretados por meio da interpretação restritiva, ou seja, apenas ao previsto na constituição e nas demais leis subordinadas, delimitando assim o julgamento de outras matérias estranhas a estas, tal ação foi o determinante na definição das regras de aplicação do foro com isso, é possível perceber que o instituto está se consolidando no país, de forma gradativa. O foro especial por prerrogativa de função deve continuar evoluindo com a sociedade, mas sempre seguindo o estabelecido conforme a norma legal, não violando o princípio da isonomia para favorecer indivíduos ou ferindo a lei.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Júlio César de; OLIVEIRA, João Paulo Lacerda. O fim do foro especial por prerrogativa de função. RIL Brasília a. 55 n. 217 jan./mar. 2018 p. 115-134.

BARRETO, Leonardo. Sinopse de Processo Penal – Parte Geral. 10 ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. 441p.

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[1] Pós-graduada em Direito Público, Pós-graduada em Direito Administrativo, Bacharela em Direito. ORCID: 0000-0002-8367-9009.

Enviado: Janeiro, 2022.

Aprovado: Março, 2022.

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Amanda Tobias Alves dos Santos

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