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Autoridade, autoritarismo, política, poder, liberdade e violência no Instituto de Filosofia e Teologia (IFT): uma análise através de Hannah Arendt e Norberto Bobbio

RC: 122419
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/autoridade

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

PAULA, Sérgio Peres de [1]

PAULA, Sérgio Peres de.  Autoridade, autoritarismo, política, poder, liberdade e violência no Instituto de Filosofia e Teologia (IFT): uma análise através de Hannah Arendt e Norberto Bobbio. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 07, Vol. 05, pp. 64-92. Julho de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/autoridade, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/autoridade

RESUMO

Através de uma discussão de alguns conceitos como “Autoridade”, “Autoritarismo”, Política, Poder, Liberdade e Violência, a partir de Hannah Arendt e Norberto Bobbio, é feita uma abordagem sobre o Instituto de Filosofia e Teologia (IFT), que existiu em São Paulo, Brasil. Instituição Inter congregacional, que surgiu como proposta de adequar a formação sacerdotal às novidades do Concílio Vaticano II, em 1965, dentro de um contexto de polêmicas e contestações políticas externas e internas à Igreja Católica, o IFT foi extinto em 1969. A forma como H. Arendt e N. Bobbio abordam os conceitos de Autoridade e seus correlatos ajuda a entender melhor os fatos.

Palavras-chave: Autoridade-Autoritarismo, Liberdade-Violência, Igreja Católica no Brasil, Igreja-Estado, Pós-Concílio Vaticano II.

1. INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é fazer uma abordagem sobre alguns conceitos correlatos como autoridade, autoritarismo, política, poder, liberdade e violência, tendo como referência os autores Hannah Arendt e Norberto Bobbio. O motivo da abordagem é uma pesquisa histórica ainda em elaboração sobre o Instituto de Filosofia e Teologia, também chamado num segundo momento de Instituto de Formação Teológica, preservando sempre a sigla IFT, que existiu em São Paulo entre 1965 e 1969. No IFT, religiosos agostinianos recoletos da então Província de Santa Rita de Cássia estudaram Teologia e tiveram participação ativa, sobretudo no Diretório Acadêmico XI.X (Onze de Outubro) durante o período de existência do instituto.

A pesquisa em torno do IFT envolve uma instituição formada por um grupo de ordens e congregações religiosas, criada pela Conferência dos Religiosos do Brasil, com vínculos de subordinação a uma instituição maior que é a hierarquia da Igreja Católica em São Paulo, na pessoa do então Cardeal Arcebispo D. Agnelo Rossi. As atividades do IFT se iniciaram em 1965, funcionando no antigo Colégio Des Oiseaux, das Cônegas de Santo Agostinho, na região central de São Paulo. A partir de 1968, o IFT passou a funcionar no convento dos Carmelitas, na Rua Martiniano de Carvalho, no bairro do Bela Vista. Em 1969, após conflitos com o cardeal, o IFT foi extinto.

O contexto da curta existência dessa instituição se enquadra no período do regime militar no Brasil. Os estudantes do IFT estiveram ligados aos movimentos estudantis e à resistência ao regime na época. O período marca o início de um relacionamento tenso entre a Igreja Católica no Brasil e o Estado governado sob o regime militar.

Na pesquisa, estão envolvidos vários conceitos e análises de cunho sociopolítico em questão para o funcionamento institucional, seja do IFT, seja da Igreja Católica, seja do Estado e do regime militar. Uma instituição é marcada por uma organização interna que supõe relações de poder, autoridade, vigor de seus representantes, tradições e discursos que formam um “corpus” ideológico. Para a pesquisa é importante analisar as formas de organização das diversas instituições envolvidas, como se davam as relações de poder e autoridade e que tradições e discursos estiveram em choque naquele momento. O regime militar em vigor naquela ocasião, com restrições cada vez maiores a liberdades civis e com características cada vez mais autoritárias, foi alvo de manifestações contrárias e resistência por parte de um número expressivo de estudantes do IFT. Assim, não só nesse contexto, mas ampliando a uma conjuntura maior que questionava autoridades e tradições, é necessário buscar uma compreensão do que é uma instituição política, como se caracterizaram as relações de poder e autoridade, o que motivou o uso da violência com os que resistiam ao regime e se as ações do cardeal arcebispo de São Paulo na época que levaram à extinção do IFT foram arbitrárias e autoritárias.

Para o presente artigo, algumas obras de H. Arendt e Norberto Bobbio foram utilizadas para a busca de uma compreensão dos conceitos referidos acima. O pensamento de Hannah Arendt, escritora judia, nascida em Hannover, Alemanha em 1906, de uma família rica e intelectualizada é bastante interessante em relação ao período citado. Ela ingressou na universidade em Marburg em 1924, e depois em Heidelberg, onde foi aluna de Martin Heidegger e Karl Jaspers. Com o advento da ascensão ao poder do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães e uma série de perseguições aos judeus, Hannah Arendt, após fugir de um campo de concentração, refugia-se nos Estados Unidos em 1941, vivendo como “apátrida” até 1951, quando conseguiu a cidadania norte-americana. De vasta cultura acadêmica, escreveu diversas obras, sobretudo de análises políticas. Faleceu aos 69 anos de idade em Nova York, em 1975.

Norberto Bobbio (1909-2004), filósofo político, historiador do pensamento político, escritor e senador italiano, tem como uma de suas obras o “Dicionário de Política”, que foi utilizada neste trabalho, em seus verbetes “Autoridade”, “Autoritarismo” e “Violência”. Uma das características de N. Bobbio é escrever de forma clara, concisa, lógica, precisa e densa, tratando cada tema em diversos aspectos e considerando muitos pensadores recentes, quando escreveu, relacionados ao tema.

Iniciamos com uma abordagem sobre a questão do totalitarismo e sua relação com a narrativa história em H. Arendt uma vez que na década de 1960, em clima de guerra fria, a iminência de predomínio dos pensamentos totalitários era sempre um perigo real, seja pelo avanço do comunismo, seja pelo regime militar, seja pelos movimentos contestatórios do período. Um desdobramento do totalitarismo são os conceitos de “mal radical” e “mal banal”, cujas manifestações efetivas se fizeram presentes nos atos de violência e brutalidade nos diversos grupos em choque. Em seguida, serão sintetizados os conceitos de “autoridade” e “autoritarismo” conforme as abordagens de H. Arendt e N. Bobbio e, através da contextualização da Igreja na década de 1960, será possível perceber como estes conceitos foram duramente questionados. Por fim, será destacado brevemente a relação presente entre política, como espaço do debate e da liberdade, e o uso da violência sempre como uma transgressão à esfera política. Alguns aspectos da história do IFT evidenciam as consequências nefastas que podem ter a compreensão indevida da autoridade, o exercício unilateral do poder e a ausência do diálogo ou do debate livre.

2. HANNAH ARENDT: TOTALITARISMO E NARRATIVA HISTÓRICA

Karin A. Fry, estudiosa do pensamento de Hannah Arendt, diz que “a integralidade da teoria de Arendt defende a importância de opiniões diferentes e procura evitar a repressão do livre intercâmbio de ideias, comuns em governos totalitários” (FRY, 2010, p. 11). Ainda segundo esta autora, Hannah Arendt afirma em sua obra “A condição humana” que seu projeto intelectual se ocupa com “nada mais do que pensar o que estamos fazendo” (FRY, 2010, p. 11; ARENDT, 2007, p. 13). Compreender a teoria e suas relações com práticas cotidianas no mundo constituem a essência da obra de Hannah Arendt. Dentre os principais conceitos discutidos e aprofundados por Hannah Arendt estão: “totalitarismo”, “banalidade do mal”, “liberdade e prática política”, autoridade, poder e violência. Hannah Arendt faz também análises dos movimentos reivindicatórios e estudantis da década de 1960.

A abordagem de Hannah Arendt sobre o “totalitarismo” é interessante não só para compreender o regime militar, no Brasil, nos anos de 1960-1970, mas também para analisar os movimentos de resistência a ele. Tanto o regime militar reivindicava para si uma “garantia de liberdade” como os movimentos de protesto contra ele alegavam a busca de liberdade. O regime militar usou de violência contra os resistentes, através de prisão e até mesmo a prática da tortura, assim como não se pode negligenciar que muitos grupos de resistência, sobretudo as guerrilhas urbanas armadas, em geral marxistas, igualmente se utilizaram da violência, da tortura, da prática de “justiçamentos”[2], do roubo e assalto, sobretudo a bancos, dos atentados a instituições e locais públicos, dos sequestros e das diversas formas de guerrilha, em nome de uma suposta “democracia”, cujo discurso ocultava, no entanto, projetos de imposição de uma “ditadura do proletariado”. O que temos aí são os conflitos entre duas “ditaduras”, ambas com “discurso democrático”. Quais os elementos ideológicos presentes no regime militar e nos movimentos de resistência que os conceitos de “totalitarismo”, “banalidade do mal”, autoridade, “liberdade e política”, poder e uso da violência, o pensamento de Hannah Arendt torna mais compreensível?

Quando Hannah Arendt trata sobre as origens do totalitarismo, nome de uma de suas obras, ela pretende mostrar “como o totalitarismo emergiu politicamente e quais as falhas políticas e individuais permitiram seu surgimento” (FRY, 2010, p. 19). Em “Origens do Totalitarismo” (1951) e “Eichmann em Jerusalém” (1963), H. Arendt examinou as condições que permitiram o surgimento e as brutalidades dos regimes totalitários. Nas análises que faz sobre o julgamento e condenação à força de Adolf Eichmann, responsável pelas deportações de milhões de judeus para os campos de concentração, H. Arendt teoriza sobre o mecanismo que, no interior de cada pessoa, permite o florescimento do totalitarismo. Na compreensão desse fenômeno, ela busca encontrar sentido no “sem sentido” do totalitarismo e tenta definir a essência desse sistema político como um fenômeno novo, que não é planejado ou estruturado, caracterizando-se, no entanto, como um movimento caótico de destruição, não utilitário, insanamente dinâmico, que ataca todos os atributos da natureza humana e do mundo humano que possam tornar possível a política (FRY, 2010, p. 21-23).

Em “As Origens do Totalitarismo”, sobretudo no final revisado, intitulado “Ideologia e Terror” (ARENDT, 198, p. 512-531), H. Arendt critica as relações entre totalitarismo e certas teorias da história e da natureza: as teorias teleológicas modernas da história ou teorias que afirmam que a história humana é um processo universal que está se movendo em direção a um fim, objetivo e propósito específicos, um “telos”. A ideia central nessas teorias consiste na afirmação de que a espécie humana está progredindo ao longo da história e incrementando-se ao longo do tempo. Hegel e Marx afirmam não só um fim para a história, mas a possibilidade de conhecer o conteúdo desse fim. Marx ainda sugere que algo pode ser feito para “apressar” o fim, o que implica a emancipação do trabalhador. A história é algo que pode ser administrado, controlado e se refere mais ao futuro que ao passado. “Agir” é o que provoca o fim da história, o que implica uma política ao invés de um simples resumo do passado.

Os totalitarismos modernos no século XX supõem a crença de que os líderes podem ter acesso aos segredos da história e da natureza; e controlá-los. O foco está mais na compreensão do movimento e do processo da história e da natureza do que na meta; esta, por sua vez, inatingível. Assim, os conceitos de “desenvolvimento” e “progresso” tornam-se chaves para compreender os processos. A história é vista então na perspectiva de como os processos se realizam, como podem ser controlados e reproduzidos. Os seres humanos não são simples observadores, mas “fabricadores” dos processos históricos. A metodologia dos regimes totalitários consiste assim na fabricação dos processos da história ou da natureza. Na visão totalitária da natureza e da história estão implicados a “intervenção na natureza” ou a “intervenção na história” para indicar o efeito político de tais crenças ideológicas.

O Nazismo consistiu no regime totalitário guiado por um forjamento da lei da natureza com o compromisso de criar uma raça pura de seres humanos. Sua meta era auxiliar o processo na natureza a fim de manter a lei da natureza que, de alguma forma, malogrou em manter a si mesma. O Stalinismo, por sua vez, consistia na falsificação da lei da história devido a seu compromisso com a criação infinita de uma sociedade marxista/stalinista.

No seu modo de funcionamento, o totalitarismo coloca um poder inigualável nas mãos de um único indivíduo ou governante, que sacrifica interesses imediatos em prol de uma realidade extrema e fictícia a ser concretizada em um futuro distante. Pretende-se assim acelerar as leis o mais rápido e expansivamente possível. As classes consideradas “agonizantes” ou decadentes pela “história” ou pela “natureza” serão entregues à destruição. Aí está colocada a possibilidade de “matar” porções da sociedade porque, afinal, já estão em declínio.

A infalibilidade da força do líder para controlar a sociedade e a história mostram a impotência da pessoa comum. O sucesso do regime se dá em se mover e se expandir rumo à meta jamais alcançada com o sacrifício de tudo pela ideologia. Coloca-se assim uma bitola rígida de pensamento que não encoraja o questionamento livre do regime. A atmosfera de paranoia e de medo desencoraja a ação política livre e visa pôr fim a qualquer dissenção. “Quando os movimentos totalitários começam a surtir efeitos, é extremamente difícil pôr-lhes fim, a menos que o líder seja removido de alguma forma, ou morto” (KARIN, 2010, p. 41).

A teoria da história de H. Arendt está em contraste com a ideologia totalitária: a história consiste em narrativas e histórias que recordam as ações de indivíduos singulares e lhes confere um significado para a comunidade. A origem da história encontra-se nas lendas, que são significativas porque explicam o verdadeiro significado de um acontecimento para uma comunidade. Não consistem em representações factuais do que aconteceu no passado, mas servem como correções tardias de fatos e acontecimentos reais, porque elas sublinham o verdadeiro significado do acontecimento para a comunidade independentemente dos fatos. A condição pré-política e pré-histórica é o fato de que cada vida particular entre o nascimento e a morte, pode, no fim das contas, ser narrada como uma história com começo e fim. Após a morte, tudo o que resta de uma vida são as histórias que outros podem contar sobre aquela pessoa. Assim, historiador, poeta, artista, escritor e construtor de monumentos são pessoas que constroem narrativas acerca do passado, que podem revelar a ação humana.

As narrativas históricas podem ser construídas porque as ações políticas sempre produzem histórias que são criadas retrospectivamente e tais histórias podem ser partilhadas publicamente. Não é um conto conclusivo das ações de uma pessoa. Podem ser reelaboradas e seu significado mudar com o tempo. Assim como o significado da história pode ser revisado, a arte de contar histórias revela o significado sem incorrer no erro de defini-lo e dá ensejo a interpretações diferentes do significado de uma ação no futuro. A História celebra as ações individuais e não trata a pessoa como supérflua, mas como contribuinte importante para a comunidade.

Nas teorias teleológicas e totalitárias da história, os acontecimentos negativos podem ser justificados como efeitos colaterais infelizes, mas necessários, devido ao grandioso esquema da história. A pessoa é sacrificada aos fins da história ou da natureza. Assim, segmentos inteiros da sociedade podem ser eliminados a fim de abrir caminho para as leis ideológicas da natureza ou da história.

A narrativa em H. Arendt não estabelece as metas da história, mas interpreta a ação após o fato. Ela conserva o significado para acontecimentos particulares sem construir uma metanarrativa e evita o presunçoso senso de controle que está no núcleo das teorias totalitárias da história e da natureza (KARIN, 2010, p. 21-44).

À medida em que a resistência ao regime por diversos grupos, desde os movimentos estudantis até os movimentos de guerrilha armada, aumentou a sua atuação, dentro de um contexto mundial de guerra fria e, no Brasil, de um regime de exceção que cada vez mais ia se caracterizando como uma guerra interna, as prisões sumárias e a tortura de um lado se tornaram práticas recorrentes. De outro lado, no entanto, por parte dos grupos de resistência, as práticas não eram menos assustadoras e criminosas: sequestros, assaltos, atentados a lugares públicos como aeroportos e a entidades militares, mortes de civis e militares de forma cruel.

A partir de 1967, uma parcela dos estudantes do IFT se engajou progressivamente nos movimentos estudantis. Até o momento presente, 34 nomes, alguns ainda duvidosos, outros claramente de integrantes do IFT, sobretudo no seu quadro discente, foram localizados com prontuários nos arquivos do “Departamento de Ordem Política e Social” – DEOPS de São Paulo, órgão de segurança pública do Estado. Destes nomes encontrados, alguns constam como membros ativos em movimentos de resistência ao regime militar como a Ação Popular, AP, mais tarde, a partir de 1971, chamada de Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil (APML do B), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) ou em partidos políticos na clandestinidade, como o Partido Comunista do Brasil (PC do B). Todos estes grupos eram marxistas que visavam uma luta armada com o intuito de implantar a ditadura do proletariado em vista de uma sociedade comunista.

3. HANNAH ARENDT: “MAL RADICAL” E “MAL BANAL”

Em 1963, H. Arendt acompanhou o julgamento e condenação de Adolf Eichmann e sobre o qual escreveu uma obra: “Eichmann em Jerusalém”. Nela, H. Arendt procura compreender o processo mental em jogo naqueles que se transformaram de cidadãos comuns em pessoas que participaram ativamente no assassinato em massa de outros cidadãos e qual o impacto da ideologia totalitária sobre a criminalidade de um indivíduo particular.

Em “Origens do Totalitarismo”, H. Arendt aborda o conceito de “mal radical”, que se sustenta na crença na superfluidade de certos seres humanos. No caso de Eichmann, ela desenvolveu o conceito de “banalidade do mal”, considerando que ele não era um monstro diabólico, perverso, calculista e sádico. Para H. Arendt, os regimes totalitários engendram frequentemente pessoas incapazes de pensar por si mesmas e de compreender a imoralidade de suas ações, visto que tudo o que faziam era sancionado pela lei e apoiado pelo regime vigente. Assim, o mal não é trivial porque é desimportante, mas porque pode acontecer sem intenção diabólica e, frequentemente, é o resultado de uma colossal falha no pensamento. O totalitarismo promove um colapso no modo de pensar das pessoas. Eichmann era um homem pouco inteligente, cuja falha de caráter mais significativa era a incapacidade de olhar para qualquer coisa a partir da perspectiva do outro, a insensibilidade e a disposição para participar das práticas brutais dos nazistas. A grande deficiência de Eichmann era a indisposição dele em comprometer-se com o pensamento moral. Ele defendeu suas práticas imorais ao agir dentro da lei, dando o melhor de si para cumprir sua tarefa de obediência à lei. Para H. Arendt, as ações políticas perversas não são sempre realizadas por monstros, mas podem acontecer mediante uma extrema insensibilidade e falta de reflexão, mesmo entre pessoas que, no começo, não são particularmente más. Uma vez que a falta de habilidade de pensamento crítico é promovida numa sociedade totalitária, as pessoas são capazes de aderir a códigos ou regras de comportamento. O regime totalitário, no entanto, pode mudar o conteúdo dos códigos de conduta a qualquer momento e a nova orientação ganha aceitação por causa da falta de conhecimento moral para avaliar a mudança. Assim, o totalitarismo gera um novo tipo de criminoso: que mata como parte da carreira e não sabe sequer que o faz é errado. O juízo político é outra faculdade que se atrofia no totalitarismo.

Uma vez que o totalitarismo trabalha para promover a superfluidade das pessoas, uma descrição do mal como “banal” parece condensar a superfluidade do indivíduo, inerente ao conceito de “mal radical” (ARENDT, 1989, p. 45-50).

O totalitarismo surge parcialmente porque o livre pensar e falar são negados, e devido a isso, o bom-senso perde seu gancho com a realidade. O governante totalitário oculta ou torna inacessível a prova dos horrores cometidos pelo regime, de modo que, até mesmo para o mundo exterior, o senso comum se nega a crer no que deveras está acontecendo na comunidade (ARENDT, 1989, p. 51).

O senso comum truncado numa porção expressiva da sociedade, assim como a restrita capacidade para avaliar adequadamente a situação política, permitiu que novos costumes fossem adotados entre tais grupos e promoveu a passividade política entre aqueles cujo pensamento moral não estava tão comprometido.

H. Arendt desenvolve uma visão política que destaca a primazia da individualidade e a unicidade do ator humano, portanto, oposta a toda política que considera os cidadãos como supérfluos (ARENDT, 1989, p. 52-53).

A existência de toda e qualquer instituição é um fato político-social que exige conceitos como liberdade, poder, autoridade que, por sua vez, delimitam as justificativas para o uso da coerção e da violência. O IFT existiu como uma instituição de formação filosófica e teológica, organizada por um grupo de ordens e congregações religiosas. Dentro dessa instituição existiu um diretório acadêmico que, por sua vez, definia as ações dos estudantes nele integrados e de forma organizada promovia as manifestações contra o regime militar em vigor. A Igreja Católica, que promovera um concílio ecumênico com novas perspectivas para o agir cristão e eclesiástico, trazia também consigo um forte peso de tradição e disciplina interna, fortemente questionados na época. O Estado brasileiro, politicamente marcado por grandes instabilidades institucionais, num contexto de guerra fria, de uma tradição anticomunista estava marcado na época por grandes divergências internas entre as propostas socialistas, animadas pela recente vitória da revolução cubana, e a continuidade com um alinhamento capitalista. Na violência do Estado sob o regime militar, com traços progressivos de um autoritarismo para uma ditadura, e dos grupos de resistência, os conceitos de “mal radical” e “mal banal” ajudam a compreender as bestialidades cometidas em atos de tortura, de atentados e de mortes brutais tanto por uns quanto por outros. A tendência nos estudos históricos nas últimas décadas está focada nas violências cometidas pelo Estado. Pouco se estuda e se publica sobre a violência cometida pelos grupos de resistência armada. Se existiu um “mal banal” no Estado sob o regime militar, tal se manifestou também nos grupos de guerrilha tanto urbana quanto rural e não foi menos cruel.

3.1 AUTORIDADE E AUTORITARISMO

Em muitos ensaios H. Arendt investiga conceitos políticos relevantes como autoridade, poder e liberdade. Dentre suas obras mais difundidas nesta investigação estão “Entre o Passado e o Futuro”, “Sobre a Revolução” e “Sobre a Violência”. Em sua obra “Entre o Passado e o Futuro” ela aborda sua investigação em capítulos tais como “Que é autoridade?”, “Que é liberdade?” e “Verdade e Política”. O foco da abordagem a seguir está no conceito de “Autoridade”, sob a perspectiva de H. Arendt e N. Bobbio.

Segundo H. Arendt, o mundo moderno se caracteriza por uma crise constante, crescente e cada vez profunda da “autoridade”, resultante dos próprios regimes ou movimentos políticos, como a tensão entre os regimes totalitários e os sistemas de partidos políticos. Esta crise de autoridade afeta até mesmo as áreas “pré-políticas”, como a criação dos filhos e a educação, onde era entendida como “necessidade natural” para a sobrevivência tanto do indivíduo-criança como do grupo social. Esta forma de pensar se constituiu tradicionalmente como base para muitas formas autoritárias de governo. “Tanto prática como teoricamente, não estamos mais em posição de saber o que a autoridade realmente é” (ARENDT, 2011, p. 128).

Uma das formas que N. Bobbio trata o conceito de autoridade como “poder estabilizado”. O termo deriva do latim “auctoritas”, que originalmente mantém uma estreita relação com a noção de “poder”, sendo utilizado às vezes como sinônimos ou distinguindo-se como uma espécie ou uma fonte de poder. Assim, a autoridade pode ser entendida como “poder estabilizado” e “institucionalizado”, a quem os súditos prestam “obediência incondicional”. Geralmente, tal compreensão se aplica bastante claramente no âmbito da administração, implicando com frequência a sujeição às ordens sem avaliação do conteúdo delas. A obediência aí é entendida como recepção de uma ordem ou sinal emitido por alguém, que transmite a mensagem sem dar as razões desta, e espera que seja aceito incondicionalmente (BOBBIO, 1998, p. 88).

A noção de autoridade, tanto para H. Arendt, como para N. Bobbio, contrasta com a noção de poder por persuasão, ou seja, o uso de argumentos em favor do dever ou da oportunidade de certo comportamento na relação de autoridade (BOBBIO, 1998, p. 89). Para H. Arendt, não só contrasta, como para ela autoridade e persuasão são incompatíveis, uma vez que esta pressupõe a igualdade e opera mediante a argumentação. “Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso” (ARENDT, 2011, p. 129). Isto porque, segundo ela, a ordem igualitária da persuasão não se compagina com a ordem autoritária, sempre hierárquica.

Enquanto “poder estável” e institucionalizado, N. Bobbio se utiliza de algumas distinções de tipos de poder, como “coercitivo”, “remunerativo” e “normativo”; e de orientação dos subalternos em relação ao poder, como “alienado”, “calculador” e “moral”. Tal como em H. Arendt, compreendido assim, as relações de autoridade são frequentes e difusas na sociedade, como na relação entre pais e filhos, professor e aluno, líder religioso e fiéis, empresários e empregados, chefe militar e soldados, governo e cidadãos. Dessa forma, a autoridade forma a estrutura de base de qualquer tipo de organização cujas relações são assimétricas, mantém uma ordem hierárquica e visam uma unidade social. Tal entendimento se funda no caráter hierárquico e estável da autoridade, não estando isento de conflitos entre “autoridade estabelecida” e “autoridade emergente” (BOBBIO, 1998, p. 89-90).

Uma outra abordagem apresentada por N. Bobbio é de autoridade como “Poder legítimo”, uma vez que se apresenta com frequência uma aparente contradição entre “autoridade coercitiva” ante certas formas de poder por usurpadores, conquistadores e tiranos. Assim, nem todo poder estável seria “autoridade”, fazendo surgir a noção desta como “poder legítimo”. Enquanto “poder legítimo”, a autoridade mantém um valor positivo em sua relação com o poder, implicando um juízo de valor e a participação de indivíduos ou grupos numa mesma relação de poder. O juízo de valor se refere à própria fonte do poder, definindo os âmbitos do direito de mandar e do dever de obedecer. Essa noção de autoridade, que considera a aceitação do poder como legítimo, produz a estabilidade e a disposição à obediência, podendo ser “durável”, mas não permanente (BOBBIO, 1998, p. 90).

Para H. Arendt, uma definição de autoridade exige a contraposição à coerção pela força e à persuasão através de argumentos. Uma relação “autoritária” entre aquele que manda e aquele que obedece, não se assenta na razão comum, nem no poder de quem manda, mas na própria hierarquia, reconhecida como legítima por ambos e que predetermina o lugar de cada um. Para ela, a perda da autoridade no mundo moderno é a fase final de um processo que por séculos solapou a religião e a tradição. Com a perda da tradição, perdeu-se o fio de segurança dos domínios passados. A perda da religião se deveu ao duvidar da verdade religiosa, o que não implica necessariamente uma “perda da fé” (ARENDT, 2011, p. 129-130).

H. Arendt compreende a tirania como a forma de governo exercida de acordo com o arbítrio do tirano, enquanto o governo autoritário é limitado por leis e tem a origem de sua autoridade numa força externa e superior ao próprio poder, que lhe dá legitimidade e confirmação (ARENDT, 2011, p. 134; ARENDT, 2011, p. 278).

Traduzindo em imagens, H. Arendt se utiliza da “pirâmide” e da “cebola” para falar sobre os modelos de caráter autoritário. Na forma piramidal, a sede do poder está no topo, a partir da qual “a autoridade e o poder se filtram para a base”, em camadas com poder cada vez menor em relação às camadas superiores, mas que se inter-relacionam com o ponto comum: o topo da pirâmide; e à fonte transcendente de autoridade acima dela. Tal é o modelo cristão de governo autoritário. A “estrutura da cebola”, segundo ela, é a imagem para o governo e organização totalitários. No centro, está o líder. O que quer que ele faça, seja integração do organismo político, seja opressão dos súditos, ele o faz de dentro, e não de fora ou de cima. Tal estrutura se apresenta como “ficção de um mundo normal”, onde supostamente fanatismos e extremismos estão ausentes (ARENDT, 2011, p. 135-136). A partir dessas estruturas, ela aborda algumas tendências no mundo ocidental, como o liberalismo, focado na liberdade, o conservadorismo, centrado na questão da autoridade, e as “Ciências Sociais”, caracterizadas pela funcionalização dos conceitos e ideias. Em todas estas, frequentemente a violência é vista em função da autoridade (ARENDT, 2011, p. 138-140).

A relação com a violência determina tanto para H. Arendt, como para N. Bobbio, a ambiguidade na noção de autoridade, enquanto “outros meios para exercer o poder”, considerando legítimo o seu uso sobre os “dissidentes”. “O emprego da violência torna-se possível em grau maior ou menor, a partir da crença na legitimidade que transforma o poder em autoridade” (BOBBIO, 1998, p. 92). A crença é um fator psicológico e com forte caráter ideológico. Uma crença menor na legitimidade do poder e do uso da violência estabelece um profundo conflito, sendo uma das características do autoritarismo: alegar um direito de comando sem o consenso dos subordinados; pretender obediência incondicional quando os súditos entendem colocar em discussão o conteúdo das ordens recebidas; ter o poder como legítimo por quem o detém, mas não reconhecido como tal por quem a ele está sujeito (BOBBIO, 1998, p. 92-94).

A autoridade é muitas vezes contaminada e apresenta, sob vários aspectos, uma característica de ambiguidade. Ela pode ser geradora de violência, na medida em que a crença na legitimidade de alguns consente o emprego da força em relação a outros; pode ser “falsa”, na medida em que a crença na legitimidade não é uma fonte mas uma consequência psicológica, que tende a esconder ou deformar; pode ser apenas “aparente” , na medida em que o titular legítimo do poder não detém o poder efetivo; e pode transformar-se em autoritarismo na medida em que a legitimidade é contestada e a pretensão do governante em mandar se torna, aos olhos dos subordinados uma pretensão arbitrária de mando (BOBBIO, 1998, p. 94).

Quando trata sobre o “autoritarismo”, N. Bobbio o faz a partir de três contextos, a saber: nos sistemas políticos, caracterizado sobretudo pelo aniquilamento, redução e esvaziamento da oposição; nas disposições psicológicas em personalidades com atitudes extremas de adulação aos “superiores” e desprezo aos hierarquicamente ou socialmente “inferiores”; e, por fim, nas ideologias, como negação da igualdade entre os seres humanos, com destaque ao princípio hierárquico e a exaltação, como virtude, dos traços da personalidade autoritária.

O autoritarismo mantém como centralidade o “princípio da autoridade”, mas sob um viés específico: a relação entre “comando apodítico” e obediência incondicional; o sentido reduzido e condicionado pela estrutura profundamente hierárquica amparado sobre a visão da desigualdade entre os homens; a exclusão ou redução ao mínimo da participação do povo no poder; o emprego notável de meios coercitivos que impõem a obediência, prescinde do consenso dos súditos e oprimem a liberdade. Frequentemente, termos como autoritarismo, ditadura e totalitarismo são utilizados em oposição à democracia, porém, as fronteiras entre eles são pouco claras e instáveis nos diversos contextos. O termo autoritarismo normalmente se aplica aos sistemas não democráticos, com baixo grau de mobilização e penetração da sociedade (BOBBIO, 1998, p. 94-95).

“A oposição entre autoritarismo e democracia está na direção em que é transmitida a autoridade, e no grau de autonomia dos subsistemas políticos (os partidos, os sindicatos e todos os grupos de pressão em geral)” (BOBBIO, 1998, p. 100). Assim, os regimes e instituições autoritárias se caracterizam pela ausência de Parlamento e de eleições populares, pelo caráter meramente cerimonial das instituições, pela ausência de liberdade dos subsistemas e oposição suprimida ou obstruída. Três formas de regimes autoritários são constatáveis: os regimes sem partidos, os de partido único e os pluripartidários. Uma característica comum a todos eles é a limitada penetração e mobilização da sociedade. Em relação à democracia, diz N. Bobbio: “Um sistema político democrático pressupõe uma sociedade democrática” (BOBBIO, 1998, p. 103). A simples congruência entre sociedade e regime político não implica necessariamente um “isomorfismo”.

Estudos sobre a personalidade e atitude autoritária mostram a presença destas tanto nas ideologias “fascistas” como nas ideologias de esquerda, sendo que existe uma tendência em minimizar a aplicação do termo a estas últimas, que podem ao menos ser incluídas dentro das ideologias “totalitárias”. As personalidades e atitudes autoritárias se caracterizam normalmente pela sensibilidade à propaganda antidemocrática; pela crença na autoridade e na obediência voltada para os superiores e desprezo pelos inferiores; pela disposição em atacar pessoas débeis; pela aguda sensibilidade pelo poder de forma rígida e conformista; pelo “pensar”  voltado para o poder; pela intolerância ambígua, que busca refúgio numa ordem estruturada de modo elementar e inflexível, sob estereótipos de pensamento e comportamento; pela ambivalência em relação à autoridade com atitudes de submissão de um lado, e hostilidade e agressividade de outro.

As ideologias autoritárias não só defendem uma organização hierárquica da sociedade, mas fazem dessa organização o princípio exclusivo para alcançar a ordem, considerada um bem supremo. Em geral, as doutrinas autoritárias são antirracionalistas e anti-igualitárias, com preocupação obsessiva pela ordem (BOBBIO, 1998, p. 95). Para H. Arendt, as ideologias modernas se constituem como os atuais “ópios do povo”.

“As ideologias modernas, sejam elas políticas, psicológicas ou sociais, são muito mais qualificadas para imunizar a alma do homem contra o impacto traumatizante da realidade do que qualquer religião tradicional que conheçamos” (ARENDT, 2011, p. 179).

O IFT era uma instituição eclesiástica e, enquanto tal, não democrática. A organização eclesiástica é baseada num senso de autoridade, com uma complexidade de níveis e pesos diversos, que vão desde instâncias colegiadas, como os concílios, sínodos, conferências episcopais, conferências de religiosos, capítulos nas ordens e congregações religiosas, conselhos diocesanos, paroquiais e comunitários, até os graus hierárquicos dos bispos, padres e diáconos. A imagem da pirâmide, e muito menos a da cebola, utilizadas por H. Arendt, não dá uma visão exata da dimensão do senso de autoridade e exercício do poder na Igreja, sendo demasiadamente simplista. A década de 1960, no entanto, é um período em que as formas rígidas de compreensão da autoridade e do exercício de poder foram incisivamente questionadas em busca de novas formas de organização institucional. O que se deu foi uma tensão entre as formas estabelecidas e a busca de novas experiências em meio a um vácuo jurídico após o Concílio Vaticano II, cujo código de direito canônico entrou em processo de revisão e só foi outorgado em 1983.

4. CONTEXTO ECLESIAL NA DÉCADA DE 1960: RUPTURA COM A TRADIÇÃO?

O abandono da era tridentina e o encontro com a modernidade levaram muitos setores do clero e seminários a uma crise de identidade nos anos 1960 e 1970. Esse período foi marcado por um protesto generalizado contra aquilo que se considerava a “ordem tridentina obsoleta”: teologia maquinal, pedagogia tíbia, disciplina autoritária e repressão sexual. Tanto seminaristas como padres se empenharam na construção de um novo modelo de sacerdócio; reavaliaram a vocação sacerdotal e religiosa e sua função social; modernizaram, politizaram e profissionalizaram o sacerdócio mediante novas formas de teologia, pedagogia e espiritualidade.

Os seminaristas, nesse período, tentaram se organizar a nível nacional, desafiando bispos e até mesmo o governo militar do Brasil. O radicalismo estudantil entre seminaristas e religiosos, numa espécie de “contracultura eclesiástica”, manifestava-se como protesto político, exigência de maior abertura para o mundo e clamor por justiça social. “A escolha dos caminhos nem sempre lhes foi clara, e decerto não foi inevitável” (SERBIN, 2008, p. 157). Entre 1961 e 1967, representantes dos seminaristas do Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Guanabara, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Bahia, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e do Colégio Pio Brasileiro em Roma, se organizaram e se reuniram diversas vezes, tentando criar a “União Nacional dos Seminaristas Maiores do Brasil”.

A convocação do Concílio Vaticano II “abriu as comportas da inovação”; produziu ambivalência e paradoxos: alegria, júbilo, decepção, confusão, raiva e insegurança; e, no Brasil, coincidiu com a agitação política que levou à deposição do presidente João Goulart em 1964, à repressão e uso de tortura pelo regime militar, com a sequente crise entre a Igreja e o Estado, a Igreja e as Forças Armadas. Nesse mesmo período, setores da Igreja se apresentavam como “Igreja dos Pobres” ou “Igreja progressista”, com novas expressões pastorais e religiosas.

A reforma dos seminários tinha por base a crítica ao sistema tridentino, porém, faltava clareza em seu programa. A complexidade do momento, as críticas a um programa único para todos os seminários, a exigência de uma adaptação ao contexto local impulsionou, por um lado, o “aggiornamento” e gerou outras duras críticas como “antidisciplina”. Para os defensores da reforma dos seminários, o “isolamento do sistema tridentino” distorcia a realidade e o desenvolvimento emocional, afetivo, social e cultural dos seminaristas; reivindicou-se o “celibato opcional” e se questionaram as concepções católicas de sexualidade e relações de gênero.

O comportamento mais livre dos seminaristas quanto a horário, uso de batina, oração comunitária, incomodava os superiores, que tentavam preservar alguns “velhos costumes”. A oposição acirrada ao autoritarismo e à “obediência cega” enfatizava a busca do “diálogo” e a vivência de um “catolicismo adulto”. A busca de um caráter mais prático e pastoral provocou até mesmo a pretensão de se eliminar a Filosofia dos estudos eclesiásticos, substituindo-a pelas ciências humanas, como Sociologia, Antropologia, Economia, História ou Psicologia, e à pretensão de se desintelectualizar a Teologia, tornando-a um instrumento pastoral mais compreensível aos leigos.

Em lugar dos grandes seminários, buscou-se constituir pequenas comunidades em bairros periféricos. O esforço de “humanizar” o sacerdócio impeliu muitos para as causas políticas, ao nacionalismo e à rejeição da romanização. “Quando o movimento estudantil irrompeu no mundo todo, o movimento dos seminaristas já havia adotado o humanismo do Vaticano II” (SERBIN, 2008, p. 186).[3]

As tensões foram tais que muitos seminários foram fechados no Brasil. Em São Paulo, o IFT, em atividade desde 1965 e cuja diretoria era formada por religiosos de diversas congregações, desentendeu-se com o Cardeal Agnelo Rossi e com as autoridades militares. A participação dos estudantes do IFT em manifestações contra o regime e as críticas do diretor, Fr. José Freitas Neves, a Paulo VI e à “Humanae Vitae” na televisão foram argumentos que induziram para o seu fechamento em fins de 1969.

O Livro de Atas do Diretório Acadêmico XI de Outubro, também escrito sob a forma D.A.XI.X, órgão oficial representativo dos estudantes do IFT, consiste num conjunto encadernado com capa preta, de folhas pautadas e numeradas na frente e no verso, num total de 100 páginas, sendo 98 páginas escritas; faltam as páginas 39 e 40 (percebe-se que foram arrancadas); as páginas 52, 53 e 84 encontram-se em branco. Contém a Ata de Fundação e o Estatuto, ambos datados de 23 de abril de 1966, o resultado das eleições e uma relação de 102 inscritos. Ao todo foram contadas 27 atas de reuniões. Anexado ao livro, em folhas separadas e soltas, estão uma cópia de carta dirigida ao cardeal D. Agnelo Rossi, datada de 23 de setembro de 1968, na qual o D. A. o convida para uma visita de “diálogo” com os estudantes; e uma relação de perguntas a serem dirigidas ao cardeal e outras questões para reflexão do D.A. Este documento abre perspectivas para uma pesquisa mais aprofundada sobre a relação dos estudantes religiosos com a hierarquia eclesiástica, com o regime militar e com as organizações estudantis da época. Ao que tudo indica, a palavra “diálogo” entre o cardeal e um grupo que questionava seus métodos e procedimentos era uma novidade ainda não bem assimilada.

Nas atas, em geral se discute as relações dos estudantes com a União Nacional dos Estudantes (UNE) e com a União Estadual dos Estudantes (UEE). Muitos temas tratados se referem à relação entre os valores cristãos e os sistemas capitalista e socialista; ao envolvimento dos cristãos com os movimentos políticos e sociais; e à resistência ao regime militar, inclusive às formas de manifestações contra o regime e meios para que a hierarquia da Igreja se posicionasse mais claramente frente à conjuntura política do país[4]. Um dos presidentes do D.A. foi Fr. Tito Alencar, dominicano, preso, torturado, exilado. Ele sofreu distúrbios psiquiátricos e se suicidou na França em 08 de agosto de 1974. As atas também mostram um papel ativo de estudantes que ingressaram no IFT desde sua fundação, em 1965, até o encerramento de suas atividades, em 1969.

O discurso nebuloso sobre a vocação sacerdotal após o concílio provocou muitos estudos, gerou inúmeros textos e pesquisas. Para K. Serbin, a transição entre o mal-estar pré-conciliar e a confusão pós-conciliar foi excessivamente rápida, levando à crise no clero. Padres mais velhos não entendiam as reformas e os jovens se impacientavam ante a demora na efetivação das reformas pretendidas. Ele aponta três causas alegadas para o êxodo de padres e seminaristas no final da década de 1960: o celibato obrigatório; a ausência de uma postura firme dos bispos contra o regime; e a decepção quanto às expectativas sobre o Concílio Vaticano II.

No parecer de K. Serbin, a modernização da Igreja não passou de uma “tímida democratização”, uma vez que “Trento não desapareceu”; os seminaristas dos anos de 1960-1970 se constituíram como uma geração idealista. “Talvez esperavam revolucionar todas as facetas do sacerdócio em um piscar de olhos” (SERBIN, 2008, p. 200). Aqueles jovens partilharam as aspirações dos demais jovens radicais de outras partes do mundo. Muitos buscaram uma identidade nacional autêntica entre as classes menos favorecidas, mas não estiveram isentos de um outro paradoxo: a veneração pelos pobres de um lado e a rejeição da religiosidade popular, por outro. Somente algumas décadas mais tarde se iria buscar um contrapeso nesse paradoxo (SERBIN, 2008, p. 78-201).

Numa outra obra, a partir de documentos secretos que se tornaram públicos a partir da década de 1990, Kenneth Serbin analisou as relações entre a Igreja e o Exército, procurando discutir seus elementos comuns, suas diferenças e incompatibilidades, em que momentos cooperaram entre si e os motivos que levaram ao conflito entre a “cruz” e a “espada” após 1964 (SERBIN, 2001, p. 79). Para ele, tanto a Igreja quanto o Exército foram instituições que buscaram influenciar no processo de implantação da República no país, ante as tensões entre a “tradição” e o desenvolvimento econômico, a urbanização rápida e maciça, as tentativas intermitentes de democracia e a lentidão nas reformas sociais.

Ambas as instituições mantiveram um relacionamento dialético de colaboração e competição e procuraram se apresentar como representantes da ideologia nacional brasileira, da tradição religiosa, do patriotismo e da ordem social. A Igreja o fazia através da ideia do “Brasil cristão” e os Militares, através da ética positivista da “ordem e progresso”. Igreja e Forças Armadas eram as únicas instituições espalhadas pelo território nacional, para cuja “integração nacional” colaboraram dando ênfase na hierarquia, obediência e disciplina. Em ambas predominavam o elemento masculino, porém, continham igualmente diferenças ideológicas: uma com a espiritualidade, pregava a paz; outra, mantinha-se em prontidão para a guerra; uma constituía-se como organização transnacional e a outra, uma instituição nacional. A formação nas academias e nos seminários traziam consigo visões contrastantes de sociedade.

Durante o período republicano, constantemente os militares efetuaram intervenções na política do país, com críticas duras à negligência do governo em relação ao Exército e à incompetência dos políticos civis. Cultivando um rígido respeito à autoridade, buscou manter a unidade nacional, redefinir seu propósito e seus mecanismos de controle social. Isto lhe permitiu um fortalecimento institucional e disciplinar. A partir dos anos de 1950, num contexto internacional de “guerra fria”, os militares aderiram ao discurso da “segurança nacional”.

A Igreja Católica, que sofreu de uma fraqueza institucional crônica, após a relação tensa com a monarquia no final do Império e com o Exército no início da República, num processo de restauração interna sob a direção da Sé Romana, fortaleceu-se institucionalmente. Cultivando uma ideologia de neocristandade, a partir da década de 1920, ambicionou o monopólio religioso e adquiriu maior peso político sob a liderança do Cardeal Leme a “concordata moral” com o governo de Getúlio Vargas e que prosseguiu informalmente com os governos sucessivos até o início do regime militar.

Vários fatores haviam favorecido também a aproximação da Igreja com o Exército: o declínio do positivismo, a colaboração da Igreja no recrutamento militar, a restauração das capelanias militares nos anos 1930, a adesão da Igreja ao discurso anticomunista, o envio de capelães junto com os expedicionários durante a Segunda Guerra Mundial. Os anos 1950 se caracterizam como o apogeu do modelo de neocristandade e da política de “boa vizinhança” entre a Igreja, o Estado e o Exército. O que os mantinham unidos eram o discurso anticomunista, os projetos de desenvolvimento econômico e a colaboração mútua nas obras sociais.

Segundo Kenneth Serbin, a Igreja Católica e as Forças Armadas no Brasil, entre 1955 e 1974, realizaram uma “Revolução dupla”, ou seja, empreenderam um esforço de modernização e desenvolveram novas ideologias em resposta a novos desafios. A partir da década de 1960, as diferenças internas se polarizaram e ambas realizaram a “revolução dupla”, não social, mas institucional, política e religiosa.

As Forças Armadas, com a deposição de João Goulart, pretenderam evitar a “comunização” do país. A Igreja Católica apoiou o golpe, pois, igualmente, temia o comunismo. O uso da violência na radicalização do golpe, no entanto, polarizou as relações entre a Igreja e as Forças Armadas.

A Igreja Católica, num processo de “revolução religiosa”, enfatizou no seu discurso a Justiça Social e incrementou a militância política e social nas novas gerações. Sob a “Doutrina da Segurança Nacional”, militância cristã e Estado se chocaram.

Kenneth Serbin apontou também para um outro fator: a competição por influência política entre a Escola Superior de Guerra, a CNBB, o Partido Comunista Brasileiro e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Para ele, é preciso considerar também que dentro do Exército havia diversas tendências, mas predominaram os “linha-dura” a partir de 1968, com o Ato Institucional nº 5 (AI5), a política antiguerrilha das Forças Armadas e policiais e o uso da tortura.

A partir do final dos anos 1940, vários bispos brasileiros pediram a reforma no sistema fundiário. Durante a década seguinte, um grande setor da Igreja Católica aderiu ao nacionalismo econômico e ao discurso de transformação social, questionando o modelo de “neocristandade”. Com a criação da CNBB, a partir de 1952, o episcopado pôde coordenar melhor o catolicismo brasileiro e adquirir maior peso político interno e externo. No início nos anos de 1960, emergiu uma vigorosa esquerda católica, sobretudo dentro da Ação Católica Brasileira. As mudanças de orientação pastoral com o Concílio Vaticano II enfatizavam o diálogo entre as ideologias políticas, os direitos humanos e a busca de uma nova identidade católica, geradora de incertezas. Dentro da própria Igreja, as tendências se polarizaram entre os conservadores sociais e religiosos e os militantes que apoiavam as reformas sociais e religiosas.

Ante o golpe militar, em março de 1964, a CNBB fez um pronunciamento confuso e contraditório, agradecendo as Forças Armadas por “salvarem” o Brasil do comunismo e pedindo o fim dos ataques aos ativistas da Igreja e a proteção contra o “capitalismo liberal”. Até o início de 1970, os bispos mantiveram-se muito cautelosos em relação ao regime militar e silenciaram em relação à prisão e tortura de católicos “radicais”. Alguns bispos colaboraram na denúncia e detenção de “padres subversivos”.

Referindo-se ao “Relatório Kissinger”, elaborado no início dos anos 1970, a Igreja foi apontada como a “única instituição politicamente viável que restara no Brasil”, portadora de grande força moral e a única capaz de apoiar ou desafiar o governo. O relatório indicava ainda a existência de quatro grupos dentro da Igreja Católica: os reacionários, os conservadores moderados, os progressistas e os radicais.

Ao final da década de 1960, a repressão do regime militar agravou as tensões entre ultraconservadores e progressistas. Alguns bispos começaram a denunciar a tortura e a violência. Os setores de comando do Exército viam a Igreja como um ninho de subversão. Para eles, a Igreja havia abandonado suas funções religiosas e exagerado na intervenção de assuntos do Estado. Em 1967, soldados do Exército invadiram a casa de D. Waldyr Calheiros, em Volta Redonda, Rio de Janeiro. Tal fato provocou uma grande indignação no clero nacional e exacerbou as tensões entre os bispos e os generais. Durante o governo Médici (1969-1974), órgãos de segurança do Estado fizeram uma vigilância ostensiva sobre a Igreja. Entre 1968 e 1974, mais de 100 padres foram presos, sete mortos, vários torturados, alguns padres estrangeiros foram expulsos do país, muitos edifícios religiosos foram invadidos. Ameaças, indiciamentos, sequestros, infiltração de agentes do governo, censura, documentos falsificados e forjados para comprometer padres e religiosos tornaram-se frequentes. Cerca de 30 bispos sofreram a repressão. Vários padres enfrentaram processos por causa de críticas ao governo nos sermões, por alegadas participações em organizações subversivas, por colaborarem com fugitivos e por defenderem os direitos humanos. Os ataques verbais das autoridades do regime militar contra a Igreja tornaram-se frequentes. Os organismos de segurança do governo, como o Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS) e do Exército, como o Departamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) realizaram uma coleta de dados e elaboraram vários relatórios de bispos e padres.

Kenneth Serbin afirmou ainda que as estratégias do regime militar contra a Igreja progressista consistiam em gerar um descrédito dos padres radicais através da difamação; em conceder maior espaço para as religiões concorrentes (umbanda e movimentos pentecostais, por exemplo); e em denunciar as imoralidades sexuais do clero.

A Igreja Católica incrementou suas críticas ao regime, sobretudo após a prisão do Pe. Nathanael de Moraes Campos, em Volta Redonda. A reação da Igreja, para K. Serbin, ocorreu através da promoção dos direitos humanos e da denúncia das atrocidades do regime; do estímulo às mudanças sociais e ideológicas que contestavam a estratégia de desenvolvimento dos militares; de um movimento pacífico, porém extremamente ativo, de resistência com esquemas próprios para evitar a repressão, como por exemplo: os padres e lideranças deveriam andar somente com a Bíblia. A estratégia de reação da Igreja implicou também a montagem de um serviço próprio de informações e o apoio a intelectuais, com o intuito de minar o regime militar. A atuação de intelectuais como Alceu Amoroso Lima, Paul Singer, Fernando Henrique Cardoso e Ruth Cardoso foram relevantes nesse intuito.

Segundo K. Serbin, a tensão entre a Igreja e as Forças Armadas ocorreu como uma consequência do esforço doloroso da Igreja em “modernizar-se”. A visão unidimensional do conceito de “segurança nacional” nas Forças Armadas encarou as mudanças provocadas pelo Concílio Vaticano II e o novo engajamento de alguns setores do clero com as camadas populares da sociedade como ameaça à estrutura de classes e à proeminência social e política dos militares. Ainda para o brasilianista, a deterioração das relações entre a Igreja e as Forças Armadas ocorreu devido a diferentes formas de analisar questões relativas à Justiça Social e à subversão (SERBIN, 2001, p. 79-133; MAINWARING, 2004, p. 101-134).

Segundo José Oscar Beozzo, padre e historiador da Igreja Católica, o Concílio Vaticano II tentou superar a ruptura secular entre o Oriente e o Ocidente cristãos e promover a unidade da Igreja através de um diálogo com as demais igrejas cristãs (BEOZZO, 2005, p. 43-62). A complexidade se evidencia na própria semântica de “Igreja Católica”, com sua variedade de ritos, e nas nomenclaturas das Igrejas. Igualmente, tentou superar a ruptura com o mundo moderno, iniciada com o Concílio de Trento, no século XVI. Para ele, o Concílio Vaticano II “[…] quebrou a ingênua visão de um monolitismo de posições dentro da Igreja Católica”, abriu um amplo debate pelo episcopado, uma revisão e aprofundamento das estruturas internas da Igreja e suas relações com as demais Igrejas, religiões não-cristãs e mesmo com não-crentes. Dentre as principais mudanças operadas pelo concílio, ele destacou:

  1. Reformou as estruturas internas da Igreja; remodelou sua liturgia; alterou a vinculação da Igreja Católica Ocidental com a língua latina (nos estudos e na liturgia); deslocou o eixo da missa do celebrante para a assembleia dos fiéis e sua participação; deu igual relevância à mesa da Palavra e à mesa da Eucaristia;
  2. Na eclesiologia, acentuou o conceito de “Povo de Deus”; a igual dignidade de todos os batizados, agrupados em igrejas locais, nas quais o ministério hierárquico se estrutura como serviço aos batizados;
  3. Na doutrina da colegialidade, buscou um ponto de convergência e equilíbrio entre o primado petrino (primazia papal) e o reconhecimento do “colégio dos doze” e seus sucessores, os bispos, como autoridade com responsabilidade local e sobre o conjunto da Igreja;
  4. Sobre o ecumenismo, acentuou a comunhão e a busca da Unidade entre as Igrejas cristãs e o diálogo com as religiões não-cristãs, destacando a necessidade de cooperação e respeito mútuos;
  5. Reformulou as relações da Igreja com o mundo.

Durante o concílio, o episcopado brasileiro se chocou ante a diversidade de línguas, culturas, raças, ritos, costumes, correntes teológicas e eclesiológicas, frequentemente conflitantes, no interior da própria Igreja Católica. Tanto durante, quanto após o concílio, houve uma intensa produção teológica e o surgimento de muitas revistas e boletins, que mostravam a efervescência intelectual e religiosa do momento. Dentro do próprio episcopado, focos de resistência, teólogos tradicionais e parte da opinião pública contrastavam com as novidades propostas pelo concílio.

De toda forma, o Concílio abriu um período de incertezas, de redistribuição do poder interno, de surgimento de novos organismos e experiências eclesiais, de acolhida ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso e de reformulação da tradição anterior, com uma volta às fontes e à grande tradição dos primeiros séculos (BEOZZO, 2005, p. 52-53).

E não só incertezas, mas também um período de atrito, disputas, desilusões na implementação das reformas, agravado pela insegurança jurídica. Por cerca de 20 anos a Igreja Católica viveu um “vazio jurídico”, um intenso debate interno sobre as possibilidades de se eliminar o direito canônico tradicional, substituindo-o por uma “Lex Fundamentalis” da Igreja, com aplicação prática nas Igrejas Particulares, e os defensores da elaboração de um novo “Código de Direito Canônico”. Prevaleceu a segunda tendência, com a aprovação no novo código em 1983.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Liberdade” é uma categoria decisiva para H. Arendt. Para ela, a ação política é expressão da espontaneidade e começo da liberdade. A manifestação da liberdade exige a comunicação com outras pessoas e contrasta com a “liberdade interior da Vontade”, tema comum na tradição filosófica. Se as pessoas desejam ser livres, devem renunciar precisamente à soberania, pois suas ações são intrinsecamente imprevisíveis e não podem ser forjadas. A liberdade existe entre pessoas e é externa ao espírito individual (FRY, 2010, p. 89-91).

“A supressão do espaço público para a troca de opiniões altera a política, e o governo começa a funcionar como uma instituição que assegura a discussão pública das opiniões” (FRY, 2010, p. 92). A violência é sempre uma transgressão à esfera política; é sempre exterior a ela e, no caso da revolução, é pré-política. A violência permanece fora da política porque lhe falta o discurso.

A autoridade, para H. Arendt, implica uma obediência na qual as pessoas mantêm sua liberdade. Ela, a autoridade, equilibra a relação entre a liberdade e a necessidade de obedecer, relação esta necessária para um governo funcionar. Além disso, ela proporciona um senso de durabilidade, estabilidade e de conexão com o passado.

A autoridade exige o livre consentimento. Num governo, ela não pode ser identificada com “autoritarismo”, pois é concedida livremente e é necessária para um governo estável. Assim, pensar todos os casos de autoridade em termos de autoritarismo é confundir o poder legítimo com o poder ilegítimo.

É impossível impingir a verdadeira autoridade mediante a violência porque a autoridade existe fora daqueles que estão no poder e deve ser concedida pela opção dos cidadãos. Os regimes totalitários aproveitaram-se da perda moderna da autoridade para interferir quando a autoridade governamental já não era reconhecida (FRY, 2010, p. 105-107).

Ao abordar sobre os movimentos estudantis na década de 1960, H. Arendt discute o uso político da violência e seu papel negativo na política como supressão da liberdade, em contraste com a violência que pode ser necessária para revoluções que visam à liberdade. Em geral, no entanto, a violência é o oposto da liberdade, uma vez que utilizada por aqueles que estão no comando do governo a fim de pressionar e coagir, resultando na supressão da liberdade do povo. Enquanto a ação política é loquaz, a violência é muda, silencia a troca de opiniões e é usada como meio de obter determinados fins pela força. A violência é ineficaz como instrumento político para a manutenção de um poder soberano, porque os meios podem sobrepujar totalmente o fim.

O uso da violência é intrinsecamente imprevisível e perigoso porque jamais garante o resultado adequado. Uma vez introduzida a violência, dor e sofrimento espalham-se em níveis que não podem ser enfrentados ou controlados e, portanto, quaisquer objetivos de longo prazo, buscados por meio da violência, tornam-se na melhor das hipóteses, instáveis. Assim, a prática da violência, como toda ação, muda o mundo, mas a mudança mais provável é rumo a um mundo mais violento.

H. Arendt discorda da combinação do termo “poder” com “violência”, pois o poder para ela surge em grupos mediante a livre escolha. Os governos tirânicos e despóticos carecem de poder, porque o poder se dá entre pessoas que falam e agem conjuntamente, em harmonia, necessária para fazer a vontade de alguém aparecer no mundo, e não diz respeito à força bruta. Ela faz uma distinção entre poder e vigor, força e autoridade (ARENDT, 2011, p. 60-61; FRY, 2010, p. 98-99).

O vigor diz respeito a uma só pessoa, ou pertence a um objeto; o poder diz respeito a pessoas no plural, que trabalham juntas. O vigor é uma propriedade independente de um indivíduo; o poder surge entre muitos.

A força caracteriza-se como energia dispensada por uma reação física ou por um movimento social. A autoridade envolve o inquestionável reconhecimento da parte daqueles que livremente escolheram obedecer à norma governamental.

O poder não é poder sobre os outros, mas surge com os outros; não é mantido dentre do agente, mas reside entre agentes quando atuam juntos. O poder é sempre “relacional”.

Para N. Bobbio, a violência é compreendida como intervenção física de indivíduo ou grupo contra outro indivíduo, grupo ou a si mesmo, de forma voluntária, com a finalidade de destruir, ofender e coagir, sendo tal ação sempre contra a vontade da vítima. Distingue-se do poder, uma vez que o poder é a modificação da conduta do indivíduo ou grupo, dotada de um mínimo de vontade própria, e afeta a vontade do outro. A violência, no entanto, caracteriza-se como alteração danosa do estado físico de indivíduos ou grupos; afeta o estado do corpo ou de suas possibilidades ambientais e instrumentais. A violência pode ser distinta como poder coercitivo baseado em sanções ou como violência sob ameaça ou em ato. Para N. Bobbio, outras formas de poder coercitivo com sanções diferentes da força se caracterizam mais especificamente como “manipulação” (BOBBIO, 1998, p. 1291-1292).

Um poder baseado unicamente na violência não pode existir porque todos os governos precisam de uma base de apoio de crentes para agir. Assim, o uso da violência assinala a impotência dos governantes que não podem convencer o povo através dos meios normais da causa deles e o surgimento da violência indica que o poder está em risco. A tirania constitui-se como a tentativa abortiva de substituir o poder pela violência; tentativa esta frustrada, pois o consenso das pessoas não pode ser autenticamente obtido por meio da violência. A violência pode destruir o poder mediante a intimidação e o medo, mas não pode criá-lo para gerar apoio para uma causa. O terror surge quando todo o poder é destruído em uma comunidade política e a violência então jamais declina, como no caso do totalitarismo.

Poder e violência são opostos porque, em um estado guiado pelo poder, a violência está ausente, pois é desnecessária; enquanto num estado violento, o poder está ausente e não pode ser gerado à força. O declínio de poder em uma comunidade torna-se um convite aberto à violência. Os líderes pensam erroneamente que podem manter o controle através de meios violentos (FRY, 2010, p. 99-100).

H. Arendt é cética em relação à militância estudantil na década de 1960 pois defendiam o uso da violência, como no caso do movimento negro nos EUA, ou, como no caso da “nova esquerda”, defendia o uso político da violência para pôr fim à opressão.

Revoluções frequentemente exigem a violência para estabelecer novas leis e novo governo para assegurar a liberdade. Assim, se a revolução surge ligada à causa da liberdade, com o consenso dos cidadãos, a violência pode ser admissível. O poder, no entanto, não é algo a ser imposto através da vontade de um único indivíduo, mas surge entre pessoas que chegam a um consenso. A política abre o espaço à livre discussão e à divergência. Assim, os métodos violentos tornam-se desnecessários porque o processo da política produz o poder do povo, que chegou a um acordo através da persuasão (FRY, 2010, p. 100-102; ARENDT, 2011, p. 63-74).

Todos esses conceitos de totalitarismo, mal radical e mal banal, autoridade, liberdade, poder e prática política, tais como investigados por H. Arendt e N. Bobbio, são instrumentos iluminadores para o IFT e suas relações institucionais em diversos níveis. Num momento em que a noção de autoridade foi colocada em “xeque”, tanto no âmbito da política de Estado, como no mundo eclesiástico e universitário, as formas de organização e discursos internos em cada um destes num determinado momento se chocaram: o IFT com o regime militar e a hierarquia da Igreja Católica em São Paulo; a Igreja Católica com o próprio regime militar posteriormente. O uso da violência física ou sob outras formas de manipulação entrou em ação, resultando, dentre outras consequências muito mais nefastas, na extinção do IFT. “Conservar a autoridade requer respeito pela pessoa ou pelo cargo. O maior inimigo da autoridade é, portanto, o desprezo, e o mais seguro meio para miná-la é a risada” (ARENDT, 2011, p. 62).

REFERÊNCIAS

ATA DO D. A. X. I. X. Diretório Acadêmico Onze de Outubro, p. 100.

ARENDT, H., A Condição Humana, 10.ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense Universitária, 2007.

___________, Entre o Passado e o Futuro, 7.ed., São Paulo, Ed. Perspectiva, 2011.

___________, Origens do Totalitarismo. Anti-semitismo. Imperialismo. Totalitarismo, São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

___________, Sobre a Revolução, São Paulo, Cia das Letras, 2011.

FRY, K. A. Compreender Hannah Arendt. Rio de Janeiro, Vozes, 2010.

BOBBIO, N. Dicionário de Política, Brasília, 11.ed., Ed. UnB, 1998.

BEOZZO, J. O. A igreja do Brasil no Concílio Vaticano II (1959-1965). São Paulo: Paulinas, 2005

MAINWARING, S. Igreja católica e política no Brasil: 1916-1985. São Paulo: Brasiliense, 2004.

SERBIN, K. P., Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2001

_________________, Padres, celibato e conflito social: uma história da igreja católica no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2008

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

2. Ato ou efeito de justiçar; de punir com morte ou castigo físico severo, por meio de julgamentos ilegais conduzidos por governos de exceção ou grupos justiceiros. Fonte: https://www.dicio.com.br/justicamento, acessado no dia 01 de julho de 2020 às 18:15.

3. Algumas fontes diretas vêm de encontro a toda abordagem tratada por K. Serbin, como o Decreto Optatam Totius in COMPÊNDIO DO CONCÍLIO VATICANO II, Constituições, decretos e declarações, 25ª ed., Petrópolis, Vozes, 1996, p. 507-525; outras que se encontram no arquivo da Ordem dos Agostinianos Recoletos, em Ribeirão Preto, referentes ao capítulo Provincial de 1966, como: Elenco de questões do Capítulo, elaborado por Fr. Félix Pardo; Atas das sessões capitulares; As decisões do capítulo sobre a formação; Relatório do Padre Provincial, Fr. José Gonçalves; Relatórios sobre o IFT apresentado por Fr. Agostinho Borges e Fr. Adaury Fiorotti; os anexos: “Respostas às questões apresentadas por Fr. Lauro sobre o IFT e nossos Teólogos que nele estudam” e “Reflexão em termos de formação” (documento elaborado pelos seminaristas e encaminhado ao capítulo).

4. ATA DO D.A.X.I.X., Diretório Acadêmico Onze de Outubro, 100 p.

[1] Graduação e Mestrado em História pela Unesp – Campus de Franca/SP. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História na PUC-SP – Campus Monte Alegre, Perdizes, São Paulo. ORCID: 0000-0001-5897-6610.

Enviado: Março, 2022.

Aprovado: Julho, 2022.

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Sérgio Peres de Paula

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