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O “batedor de si”: uma proposta para a construção de uma narrativa cívica para o homem moderno

RC: 149285
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/batedor-de-si

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SCHIER, Ubirajara Theodoro [1]

SCHIER, Ubirajara Theodoro. O “batedor de si”: uma proposta para a construção de uma narrativa cívica para o homem moderno. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 10, Vol. 02, pp. 76-84. Outubro de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/batedor-de-si, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/batedor-de-si

RESUMO

Este artigo explora o modo de vida cínico como proposta para a elaboração de uma narrativa cínica para a libertação do homem moderno. Segundo Adorno e Horkheimer, a relação entre a sociedade e o homem moderno pode ser considerada uma relação de servidão do homem à sociedade. Nessa relação, a liberdade individual cedeu ao propósito utilitarista imposto pela sociedade ao homem moderno. O cinismo, por sua vez, representa um modo de vida oposto, em que o indivíduo é plenamente livre e não submisso socialmente. Apesar de representar uma utopia para os tempos atuais – a ideia da libertação plena do indivíduo – verificou-se que existem pontos não explorados do modo de viver cínico que podem servir para a recuperação gradual da liberdade individual do homem moderno. Esses pontos são apresentados como proposta para a construção de uma narrativa cínica para libertação do indivíduo encarcerado pela sociedade moderna.

Palavras-chave: Cinismo, Dialética do esclarecimento, Liberdade e sociedade.

1. INTRODUÇÃO

Uma das consequências da era moderna é a determinação do modo de vida do homem moderno, caracterizado por sua atenção essencialmente voltada para o ciclo vicioso de produção e consumo, bem como todas as condições necessárias para garantir esse ciclo nas sociedades modernas. As liberdades individuais do homem moderno são suprimidas a partir do momento em que ele é condicionado a transformar seu lazer e tempo “livre” em consumo, exigindo, portanto, mais produção. Em outras palavras, o homem moderno é incentivado a consumir nos finais de semana o que produziu durante a semana através do seu trabalho. Ele trabalha para pagar o que consome para trabalhar – o sustento da sua rotina diária – e, quando folga ou descansa, consome novamente, para depois ter que trabalhar para produzir novamente e pagar o que consumiu em seu tempo de descanso. Isso resulta em um “enlatamento” do modo de vida do homem moderno. Para Adorno e Horkheimer (2006, p.117), “Para o consumidor, não há nada mais a classificar que não tenha sido antecipado no esquematismo da produção”. Além disso, segundo os autores:

O princípio impõe que todas as necessidades lhe sejam apresentadas como podendo ser satisfeitas pela indústria cultural, mas, por outro lado, que essas necessidades sejam de antemão organizadas de tal sorte que ele se veja nelas unicamente como um eterno consumidor, como objeto da indústria cultural. Não somente ela lhe faz crer que o logro que ela oferece seria a satisfação, mas dá a entender além disso que ele teria, seja como for, de se arranjar com o que lhe é oferecido (Adorno e Horkheimer, 2006, p.133).

A vida passa e o homem moderno conta os anos para, teoricamente, não precisar mais trabalhar, o sonho da aposentadoria. Com o tempo, as histórias que ouvimos tornam-se repetitivas: referem-se a algo que passou na TV, algo que viralizou na internet, selfies em viagens para as mesmas paisagens, entre outros. As experiências de vida do homem moderno, devido ao “enlatamento” do seu modo de viver, são muito semelhantes. Raramente ouvimos narrativas sobre algo singular, presenciado ou vivenciado por alguém que tenha arriscado sair, seja por um breve momento ou indefinidamente, do círculo de escravidão social em que se encontra o homem moderno. Refiro-me aqui às histórias narradas diretamente pelas pessoas que as realizaram.

De acordo com a Hypeness (2012), em 2012 foi lançada uma campanha publicitária com o slogan “When was the last time you did something for the first time?” (Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?), com o objetivo de lembrar das coisas que sempre tivemos vontade de fazer, mas por diversos motivos, não fizemos. Embora a campanha já não esteja vigente, de acordo com uma pesquisa realizada no sistema de busca Google, no dia 8, do mês maio, do ano 2023, o slogan da campanha em consideração mantém uma contagem de aproximadamente 88.700 resultados em páginas de diferentes idiomas.

A falta de respostas a essa pergunta para a maioria das pessoas na sociedade moderna mantém viva sua problemática, lembrando, ao mesmo tempo, que a liberdade do indivíduo continua subjugada ao modo de viver estruturante da sociedade moderna. Por outro lado, é justamente a busca por uma resposta que dá origem à construção de uma narrativa.

Neste texto, exploraremos o desenvolvimento da ideia de uma “narrativa cínica moderna”, buscando em Foucault e Walter Benjamin elementos que ajudem a traçar as condições necessárias para sair, por meio de nossa própria vontade, do círculo social vicioso que aprisiona a liberdade do indivíduo.

2. DESENVOLVIMENTO

Um dos elementos a ser utilizado na construção da ideia de uma “narrativa cínica moderna” é o próprio cinismo. Em suas características fundamentais, segundo Foucault:

O cinismo não se contenta, portanto, com acoplar ou fazer se corresponder numa harmonia ou numa homofonia um tipo de discurso e uma vida conforme apenas aos princípios enunciados no discurso. O cinismo vincula o modo de vida e a verdade a um modo muito mais estrito, muito mais preciso. Ele faz da forma da existência uma condição essencial para o dizer-a-verdade. Ele faz da forma da existência a prática redutora que vai abrir espaço para o dizer-a-verdade. Ele faz enfim da formada existência um modo de tornar visível, nos gestos, nos corpos, na maneira de se vestir, na maneira de se conduzir e de viver, a própria verdade. Em suma, o cinismo faz da vida, da existência, do bios, o que podemos chamar de uma aleturgia, uma manifestação da verdade (Foucault, 2011, p. 150).

Do cinismo nos interessa em um primeiro momento seu modo de vida. Trata-se de um modo de vida independente e, portanto, livre das amarras sociais. O cínico – que possivelmente se extinguiu com o cristianismo e posteriormente com a modernidade – representa o outro extremo da balança: ele representa o sonho da liberdade plena para o homem moderno. É importante ressaltar que, entretanto, aos olhos do homem moderno, essa liberdade se torna inatingível, pois o modo de vida do cínico representa a rejeição completa de seu modo de viver em sociedade. Para Foucault, o cínico é livre enquanto indivíduo, mas também é antissocial:

O cínico é o homem do cajado, é o homem da mochila, é o homem do manto, é o homem das sandálias ou dos pés descalços, é o homem de barba hirsuta, é o homem sujo. É também o homem errante, é o homem que não tem nenhuma inserção, não tem nem casa nem família nem lar nem pátria – lembrem-se do texto que citei —, é o homem da mendicidade também. E temos vários testemunhos de que esse gênero de vida forma um corpo único com à filosofia cínica, que não é um simples ornamento (Foucault, 2011, p. 148).

O modo de vida do cínico representa um sonho utópico, em que o homem moderno idolatra a liberdade que este modo de viver proporciona ao indivíduo, mas sabe, ao mesmo tempo, que se trata de uma realidade impossível ao homem que aprendeu a viver em sociedade. Enquanto o modo de viver do cínico representa a liberdade, mas também sofrimento, o modo de viver do homem moderno representa a escravidão, mas também a segurança. São estes os extremos que podemos verificar ao observarmos o modo de viver do cínico e do homem moderno. Na “narrativa cínica moderna”, procura-se encontrar algo que esteja situado entre dois extremos: a liberdade do indivíduo social. Um ponto de partida é analisar o papel do cínico, conforme descrito por Epicteto em Foucault (2011):

Nesse capítulo, Epicteto explica que o papel do cínico é exercer a função de espia, de batedor. Ele emprega a palavra “katáskopos”, que tem um sentido preciso no vocabulário militar: são as pessoas enviadas um pouco à frente do exército para espiar o mais discretamente possível o que o inimigo está fazendo. É uma metáfora que Epicteto utiliza aqui, pois ele diz que o cínico é enviado como batedor à frente, além do front da humanidade, para determinar que nas coisas do mundo pode ser favorável ao homem ou pode lhe ser hostil. A função do cínico será a de determinar onde estão os exércitos inimigos e onde estão os pontos de apoio ou os auxílios que poderemos encontrar, de que será possível tirar proveito em nossa luta. É para isso que o cínico, enviado como batedor, não poderá ter abrigo nem lar nem mesmo pátria. Ele é o homem da errância, é o homem do galope à frente da humanidade. E depois dessa errância, depois desse galope à frente da humanidade, depois de ter bem observado e consumado sua tarefa de “katáskopos”, o cínico deve voltar. Ele voltará para anunciar à verdade (appageilai talethê), anunciar as coisas verdadeiras sem, acrescenta Epicteto, se deixar paralisar pelo medo. Temos aqui a própria definição da parresia como exercício do dizer-a-verdade que é anunciado aos homens sem nunca se deixar impressionar pelo medo (Foucault, 2011, p. 144).

Segundo Foucault (2011), Epicteto atribui ao cínico o papel de desbravador de novos horizontes. Por se ver livre de quaisquer amarras, o cínico não tem nada a perder e, justamente por isso, é o único que realmente tem condições de se aventurar no novo, pois não há nada para o cínico abandonar. Em uma sociedade, cabe ao cínico atuar como o batedor militar: verificar o que vem à frente e retornar com a verdade para aqueles que ficaram. Como não possui nada, nada desvia o cínico em relação à verdade. Sem medo ou ambição, o cínico é o único capaz de enxergar a realidade sem distorções para poder transmiti-la em sua integridade.

Ao contrário do cínico, as sociedades atuais impõem ao homem moderno medos e ambições. Para adotar o modo de vida cínico – que possibilitaria desempenhar o papel de batedor – seria necessário abandonar seus medos e ambições, seria um passo ao desconhecido, equivalente a avançar em direção a um precipício de olhos vendados. O homem moderno – mesmo que socialmente condicionado – possui raros momentos que lhe permitem ainda ter vislumbres da liberdade, de forma que ele sabe que ela existe, mas o preço a ser pago pelo que deve ser abandonado para conquistá-la é alto demais. Desta forma, adotar um modo de vida plenamente livre – como o modo de viver do cínico – é, para o homem moderno, um passo intransponível.

O homem moderno precisa antes estabelecer um novo objetivo de vida. Uma opção é buscar um modo de vida que esteja entre seu atual modo de viver em sociedade – privado de sua liberdade individual – e o modo de viver do cínico – antissocial, mas com liberdade plena. Para isso, entretanto, não é preciso adotar o modo de vida cínico para arriscar-se, aos poucos, no papel de batedor. Um batedor diferente, não com o objetivo de revelar a verdade descoberta aos que ficaram, mas a si mesmo. Se deixar tudo para trás de uma única vez é um passo maior do que as pernas que o homem moderno pode dar, deixar tudo somente por algum tempo, experimentar novos modos de viver e então retornar, parece ser uma opção factível. Uma estratégia viável consiste em ir aos poucos, aumentando a frequência e a duração das incursões a novos modos de viver, estes sim libertos dos medos e ambições impostos pela sociedade. Para isso, o homem moderno pode adotar como hábito fazer algumas “incursões seguras” a um novo modo de vida, sendo “batedor de si”. Caberá a ele planejar saídas temporárias do círculo que o mantêm preso e desbravar o desconhecido, buscando consolidar seu novo modo de vida que possibilite viver em sociedade, mas sem renunciar a sua liberdade individual.

Uma analogia do “batedor de si” pode ser representada como se um preso tivesse cavado um túnel em sua cela. Inicialmente, ele passa a experimentar a liberdade, fugindo durante alguns minutos e retornando, com receio de ser descoberto e por não saber ainda para onde ir e o que fazer lá fora. Aos poucos, o prisioneiro passa a fazer “incursões seguras” de 30 minutos, uma hora, duas horas, aumentando a duração e a frequência de suas saídas. Com isso, ele vai não somente descobrindo o que fazer e para onde ir, como também vivenciando e experimentando suas descobertas. Aos poucos, o preso vai constituindo um novo modo de viver, lá fora, não mais limitado pelas grades e pela rotina da prisão, galgando assim sua liberdade gradativamente à medida que avança sua coragem em viver algo novo.

Depois de um tempo, o prisioneiro “batedor de si” vê-se animado com suas descobertas, passando a contar aos demais presos sua experiência. Não significa que, de uma para outra, os demais presos simplesmente fugirão da prisão. Eles continuariam sem saber para onde ir e o que fazer lá fora. Seria preciso que cada preso descobrisse por si mesmo – e aos poucos, como o primeiro preso o fez – um novo modo de viver lá fora.

A narrativa cínica moderna que propomos neste trabalho é, portanto, a narrativa singular do homem moderno enquanto “batedor de si”, que passa a ser o narrador de sua própria história de libertação. Não se trata de um discurso de alguém que supõe como é a vida lá fora, mas sim a narrativa de alguém que se arriscou a viver “lá fora”, além dos limites impostos pela sociedade moderna. A narrativa cínica do homem moderno traz em si um modo de vida singular, único e construído a partir de cada indivíduo. Traz consigo também a força do exemplo, uma “sugestão prática”, tal como define Benjamin (1987, p. 200):

Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida — de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos (Benjamin, 1987, p. 200).

3. CONCLUSÃO

As amarras impostas pela “indústria cultural” de Adorno e Horkheimer (2006) constituem uma ameaça concreta à liberdade do indivíduo, onde seu valor se resume ao quanto o mesmo pode contribuir para a sociedade onde vive. Mesmo quando não está trabalhando, o homem moderno está consumindo e pagando por aquilo que irá produzir no dia seguinte, repetindo o ciclo de consumo e produção. A prisão imposta pela indústria cultural pode ser comparada a um aquário. O peixe que nele vive não conhece outra realidade. Em uma realidade oposta, onde impera a liberdade plena, encontramos o exemplo do modo de vida cínico, livre das amarras sociais. O modo de vida cínico é o retrato de um modo de vida singular e, tal como podemos comparar ao modo de vida em sociedade, é solitário, pois não permite criar laços interdependentes com outros indivíduos. Em outras palavras, a liberdade plena implica a capacidade da solitude plena.

O “batedor de si” constitui uma estratégia proposta não a partir do modo de vida do cínico, mas a partir do papel que este desempenha enquanto batedor, segundo a versão de Epicteto apresentada por Foucault (2011). Assim, o primeiro passo para o homem moderno é perceber sua prisão social, para, a partir daí, desempenhar aos poucos o papel de batedor de sua própria liberdade, construindo, aos poucos, um modo de vida que proporcione, ao menos, mais liberdade para poder fazer o que quer e o que acredita e não o que determina a indústria cultural. Gradativamente mais livre, menos socialmente dependente. A medida será dada pelo próprio homem em sua descoberta e construção de um novo modo de viver.

A coragem da verdade de Foucault (2011), extinta na forma “cínica” de viver, pode acender como uma esperança ao homem moderno, que precisa começar a assumir o papel “batedor de si” de sua própria existência.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W.; Horkheimer, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução Guido António de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. 252 p.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história: Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, v. 1, 1987. 253 p.

FOUCAULT, Michel. A CORAGEM DA VERDADE: o governo de si e dos outros II. Curso dado no Collège de France (1983-1984). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2011. 368 p.

REDAÇÃO HYPENESS. Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez? Hypeness, 2012. Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2012/06/quando-foi-a-ultima-vez-que-voce-fez-algo-pela-primeira-vez/. Acesso em: 8 mai. 2023.

[1] Mestrando (Stricto Sensu) em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. ORCID: 0000-0003-2643-9268. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7694231233129530.

Enviado: 25 de agosto, 2023.

Aprovado: 13 de setembro, 2023.

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Ubirajara Theodoro Schier

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