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Socialidades e identidade em “O quieto animal da esquina”, de João Gilberto Noll

RC: 42902
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

RAMOS, Rosimara da Silva Oliveira [1], GATTO, Dante [2]

RAMOS, Rosimara da Silva Oliveira. GATTO, Dante. Socialidades e identidade em “O quieto animal da esquina”, de João Gilberto Noll. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 04, Ed. 12, Vol. 08, pp. 72-91. Dezembro de 2019. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/literatura/socialidades-e-identidade

RESUMO

Neste trabalho, realizamos uma análise da obra “O quieto animal da esquina”, do escritor gaúcho João Gilberto Noll no intuito de explicitar que a forma de organização social representada neste romance corresponde à imagem de uma sociedade como a contemporânea. Tentamos, ainda, discorrer analiticamente sobre os caminhos percorridos pelo narrador protagonista para verificar o tipo de relação existente entre ele e seu entorno com o intuito de explicar a influência do mundo exterior representado na obra em sua formação identitária. Para a caracterização do que se entende como sociedade contemporânea ocidental, recorremos a autores como Jameson, Crespi, Vattimo, Lasch e Giddens. Para esboçar um perfil identitário do sujeito contemporâneo nos ancoramos, principalmente, em teóricos como Melucci e Birman. Concluímos, a partir da análise da obra de Noll, que o narrador protagonista representa um sujeito altamente descentrado e letárgico e que isso faz com que a obra levante uma crítica em relação à sociedade contemporânea e sua ação sobre seres.

Palavras-chave: Literatura Contemporânea, sociedade, identidade.

1. INTRODUÇÃO

A arte é, por tradição, um forte objeto de estudo e a literatura, em particular, mostra-se um campo propício também para o estudo das diversas manifestações e transformações no campo social. Seja nas grandes epopeias da antiguidade, na literatura engajada surgida no período moderno, ou na literatura com tendência a expressar o estado esquizofrênico dos homens da atualidade, podemos realizar análises das mais variadas, uma vez que o autor capta a aura social que emana de sua época e a materializa por meio da linguagem (ROSENFELD, 1976).

Acreditando nesta possibilidade de representação, tentaremos mostrar, por meio deste trabalho, que consiste em uma análise da obra “O quieto animal da esquina” do escritor gaúcho João Gilberto Noll, que a forma de organização social representada neste romance corresponde à imagem de uma sociedade como a contemporânea. Tentaremos, ainda, discorrer analiticamente sobre os caminhos percorridos pelo narrador protagonista para verificar o tipo de relação existente entre ele e seu entorno com o intuito de explicar a influência do mundo exterior representado na obra em sua formação identitária. Diante disso, buscaremos responder a seguinte questão: que imagem de mundo e de sujeito é representada na obra?

Na tentativa de desvendar esta incógnita e responder tal questionamento, analisaremos a narrativa pelas vias dos aspectos estruturais e linguísticos manifestados nos relatos desconexos e à vezes incompreensíveis pela via da razão humana, os quais são bem evidentes na obra, e pela combinação de elementos de pontuação cujo valor simbólico está direcionado a surtir um efeito bem particular.

Configurando-se como uma pesquisa de cunho bibliográfico, como elenca Both, et al (2007), ou seja, como aquela em que o pesquisador “se utiliza principalmente de fontes e referências bibliográficas, tais como, livros, revistas especializadas, publicações periódicas, dissertação de mestrado, etc.” e tendo como corpus de análise o romance “O quieto animal da esquina”, de João Gilberto Noll, este trabalho se estrutura a partir de um olhar teórico e analítico sobre o referido objeto.

Vale salientar que a importância desse trabalho reside no fato de ele poder contribuir para uma reflexão sobre as narrativas contemporâneas e seus esforços para representar os percalços da existência humana nessa época.  Acreditamos, ainda, que ele possa contribuir para chamar a atenção dos leitores no sentido de olharem para as suas próprias condições existenciais a partir da comparação com as características da sociedade contemporânea delineadas nesse trabalho e com o rarefeito perfil do protagonista representado na obra de João Gilberto Noll.

2. O MATERIALISMO HISTÓRICO E SUAS IMPLICAÇÕES NA SOCIEDADE MODERNA E PÓS-MODERNA

A organização humana desde os primórdios da humanidade se tem transformado a cada período histórico que se tem registros.  Foram várias as formas de estrutura e organização que sustentaram, estabeleceram relações e distanciamentos entre os diversos povos e nações. Trataremos aqui neste trabalho, mais especificamente, dois períodos da história social cujo entendimento será de grande valia para analisarmos a obra “O quieto animal da esquina” de João Gilberto Noll. Por modernidade, entenderemos um período que antecede o que se convencionou chamar de pós-modernidade, também nomeada aqui de contemporaneidade. O estudo deste último período se justifica pelo fato de a referida obra de Noll ser produzida nesse âmbito contextual e, o estudo da primeira dá-se pela razão de que para entendermos o momento contemporâneo se faz necessário analisar a transição sofrida de uma para outra época já que, como indica o prefixo pós, a contemporaneidade sucederia à modernidade.

O período moderno ou a modernidade é definido por Vattimo (1992), apud Ferigolo Melo (2013), como o momento histórico fundado na forte crença do progresso e fé em uma história unitária que direcionaria o homem ao alcance da total redenção nesta dimensão terrena. Nesta fase histórica, segundo o autor, o novo tem um valor essencial já que remete no imaginário modernista sempre à ideia de progresso, evolução, superação do estabelecido. Discutindo também em seu livro intitulado Pós-Modernismo, Jameson (1996) assinala e reforça que neste período histórico houve uma euforia e excitação social para saudar o advento da máquina, cuja força motriz, que emanava desta época, foi refletida em diversos campos do social, como no das artes, na escola literária do futurismo. Alimentada pela ideia do progresso, a modernidade viveu sob a crença de um futuro prometeico ancorado na razão e no conhecimento como meios de se alcançar a plenitude do ser e chegar a um estágio último em que o homem alcançaria a redenção total (FERIGOLO MELO, 2013).

A transição da época moderna, em que predominava a crença utópica de um futuro como horizonte de perfeição (FERIGOLO MELO, 2013) e o depósito de confiança no sujeito e na máquina, para a pós-moderna, foi marcada por eventos na esfera social e na esfera subjetiva dos indivíduos. Para melhor definir esta transição se considera que

“[…] a modernidade […] termina quando – por múltiplas razões – já não parece possível falar de história como qualquer coisa de unitário. […] A crise da ideia de história traz consigo a da ideia de progresso: se não há um curso unitário dos acontecimentos humanos, também não se poderá sustentar que eles avançam para um fim, que realizam um plano racional de melhoramento, educação, emancipação”. (VATTIMO, 1992, p. 8-9).

Nesta mesma esteira, Jameson (1996) elenca outro evento, no âmbito econômico, que foi o catalisador do surgimento desta nova fase. Na concepção do autor, que discute Mandel, foi no fim da Segunda Guerra Mundial que os pré-requisitos tecnológicos estavam lançados para a delimitação histórica da nova fase. Com o efeito da Segunda Guerra Mundial os países reorganizaram suas relações internacionais, aceleraram o processo de descolonização e lançaram as bases para o surgimento de uma terceira fase do capitalismo, com alcance e conexão mundial. Após o suprimento da falta de bens de consumo e quando os danos do pós-guerra foram reparados, abriram-se as portas para a introdução de novos produtos e novas tecnologias. Inicia-se, neste contexto econômico, a “explosão midiática” (JAMESON, 1996).

Sobre a perda ou “esmaecimento da historicidade” que anuncia o alvorecer desta nova etapa do capitalismo, Jameson (1996) analisa esses sintomas na esfera cultural, mais precisamente nas artes cinematográficas e nas produções literárias. Nos dizeres do autor, as artes supramencionadas tendem a enfatizar o presente por meio do esquecimento do passado e inventar um futuro fictício, ou seja, parece não haver possibilidade para vivenciar o presente como história.

A nova face social que se apresenta atualmente e que já apontamos de maneira introdutória acima foi denominada por alguns estudiosos com várias terminologias. Neste aspecto, são muitas as divergências dos estudiosos da questão. Para discutir estas terminologias,

“Hoje no final do século XX, muita gente argumenta que estamos no limiar de uma nova era, a qual as ciências sociais devem responder e que está nos levando para além da própria modernidade. Uma estonteante variedade de termos tem sido sugerida para esta transição, alguns dos quais se referem positivamente à emergência de um novo tipo de sistema social (tal como a ‘sociedade de informação’ ou a ‘sociedade de consumo’), mas cuja maioria sugere que, mais do que um estado de coisas precedente está chegando a um encerramento (‘pós-modernidade’, ‘pós-modernismo’. ‘Sociedade pós-industrial’ e assim por diante)” (GIDDENS, 1994, p.3).

Há, ainda, quem considere que não seja uma fase que esteja separada da anterior, a modernidade. Jameson (1996) acredita que esta nova face social seja consequência apenas do próprio capitalismo em seu terceiro estágio[3], já que

“Uma cultura verdadeiramente nova somente poderia surgir através da luta coletiva para se criar um novo sistema social […] o pós-modernismo não é a dominante cultural de uma ordem social totalmente nova […], mas é apenas reflexo e aspecto concomitante de mais uma modificação sistêmica do próprio capitalismo” (JAMESON, 1996, p16.).

Independente das terminologias utilizadas nos parece que os autores estão em concordância sobre o mesmo objeto analisado, ou seja, tentam explicar as mesmas mudanças sociais ocorridas no fim do século XX.

Neste novo contexto histórico, o da contemporaneidade, com as transformações sofridas no âmbito econômico e social, o ser humano, que na modernidade se orientou sob a perspectiva da “fé no sujeito, no saber, no progresso e na história como mecanismos redencionistas” (VATTIMO, 1992, apud MELO, 2013), no contexto atual esses elementos estão enfraquecidos ou nulos. A confiança na máquina, na técnica, que reinava na modernidade, se esvai e o ser humano começa a sentir sua impotência ante o novo sistema social instalado, o capitalista. Analisando estes dois períodos históricos,

“Si en efecto se considera la modernidad […] como la época caracterizada por el triunfo de la técnica […] y como la época en la cual el proceso histórico es interpretado como un continuo progreso y superación, entonces, y con respecto a ese sentido, la actual experiencia de la modernidad tardía puede aparecer como el comienzo de una nueva era, en la cual la técnica antes que una promesa de conquistas superiores se revela sobre todo en su carácter de imposición y en que el nihilismo pone en crisis tanto los valores humanísticos como los grandes relatos historicistas” (CRESPI, 2004, P.164).

O não cumprimento das promessas anunciadas por um modelo social que se mostrava promissor da emancipação do ser e da construção social progressista atinge a dimensão subjetiva do sujeito. Desacreditados de tais promessas e incapacitados de agir sobre o mundo em que vivem, pois se tornaram presas do capitalismo cujos “[…] senhores incógnitos continuam a reajustar as estratégicas econômicas que limitam nossas vidas […]”, (JAMESON, 1996, p.44), resta apenas o ajuste do sujeito à estrutura social porque não há quem possa receber nossas reivindicações. Se na modernidade existia uma ideia de classe dominante que formava a ideologia da sociedade burguesa, nos dias atuais reina uma heterogeneidade estilística e discursiva sem norma.

2.1 CONFIGURAÇÕES DA IDENTIDADE E O LUGAR DA SUBJETIVIDADE NA SOCIEDADE PÓS-MODERNA

Partindo do pressuposto de que a identidade é a “continuidade do sujeito, independente das variações no tempo e das adaptações ao ambiente; delimitação desse sujeito em relação aos outros; e capacidade de reconhecer e ser reconhecido” (MELUCCI, 2004, p. 44), inevitavelmente teremos que concordar com este autor quando afirma que “nossa identidade fundamenta-se unicamente em uma relação social e que depende da interação, do reconhecimento recíproco entre nós e os outros”.

A face social contemporânea se mostra muito mais complexa do que as outras que a antecederam. As relações sociais estão cada vez mais tênues e vivemos constantemente ao lado de pessoas desconhecidas e mergulhados em mundos virtuais que nos leva ao passado e nos lançam ao futuro, tirando-nos da realidade na qual estamos inseridos. Diante disso, nos perguntamos: como se comportaria o processo de formação identitária nesse contexto?

Primeiramente apresentaremos um primeiro entrave para a configuração de um sujeito forte, o tempo. O ritmo em que marcha a sociedade atualmente não se harmoniza com o ritmo potencial do ser humano.  Melucci (2004) expõe que o modelo de sociedade em que vivemos deixa-nos como “herança” uma representação temporal em que predominam suas referências essenciais “a máquina e a meta […] que criam uma definição artificial e objetiva da experiência temporal. Cancela-se aquela marcação de tempo referida nos ciclos do dia e noite, das estações do ano, marcas de nascimento e de morte” (MELUCCI, 2004, p.26). O autor explica que este tempo é medido por meio de máquinas que a percepção agora não está mais ligada à sensibilidade humana, mas a da máquina-relógio do capitalismo industrial. Sendo elemento essencial do novo sistema de organização social, o capitalismo, o tempo do qual estamos tratando pode ser medido por via de valores monetários, ou seja, pode ser vendido, comprado, equiparado, etc. Ainda, na esteira do autor, há “tempos cuja medida é impossível determinar, tempos diluídos e tempos fortemente acelerados” (MELUCCI, 2004, p. 27), Segundo o autor, as novas tecnologias e meios de informação dispostas no mercado, como a televisão, imagens gráficas, publicidades, dentre tantas outras, nos permitem viajar através do tempo migrando instantaneamente do passado para o futuro, conduzindo-nos sob ritmos temporais bem distintos, fazendo-nos marchar sob incertos compassos, que muitas vezes não conseguimos sequer acompanhar. Esses contínuos deslocamentos nos fazem entrar em choque com o nosso tempo interior, onde estão situados nossos desejos, sonhos, emoções e os afetos.

Na história das culturas houve mudança na relação estabelecida pelo ser humano entre o tempo social e o tempo interior, que atualmente apresenta certos descompassos. Nesta relação se pode afirmar que,

“[…] nas sociedades do passado, a relativa homogeneidade e a lentidão das mudanças garantiam uma certa integração entre a experiência temporal subjetivamente vivida e as definições do tempo reguladas pela sociedade. Em sistemas contemporâneos altamente diferenciados, podemos pertencer simultaneamente a uma multiplicidade de grupos sociais e desempenhar papéis distintos: as regras temporais são quase sempre específicas aos diversos âmbitos, multiplicando, assim, a necessidade de passagens entre os sistemas de referência e destes, às dimensões mais íntimas da experiência” (MELUCCI, 2014, P.27).

Atualmente, nossa dinâmica em estabelecer a harmonia entre o tempo exterior (o social) e o tempo interior (o subjetivo) apresenta diversos problemas uma vez que, na “tentativa de preencher os vazios, os distanciamentos e as dissonâncias entre essas passagens” têm gerado novas patologias. Como afirma Jameson “a identidade pessoal é, em si mesma, efeito de certa unificação temporal entre o presente, o passado e o futuro da pessoa” (JAMESON, 1997, p.53).

Outra implicação para a formação da identidade do sujeito, uma vez que ela se constrói a partir das relações sociais, na adaptação do sujeito com seu entorno e na dinâmica do reconhecer e ser reconhecido, são as diferenças sociais. Melucci (2004, p. 48 -49) afirma que,

“[…] as diferenças individuais, a diversidade de posição social e a velocidade das mudanças que nos investem aumentam a distância existente entre nós e os outros. A reciprocidade torna-se impossível, aflora a competição por recursos escassos e entramos em uma situação de conflito” (MELUCCI 2004, p. 48 -49).

Nesse sentido, podemos supor que na contemporaneidade, o estabelecimento da identidade se comprometeria, porque, nos dizeres do Jameson (1997), a relação do homem com o tempo, com espaço e com os outros é tão intensa que ele não consegue constituir-se.

2.2 A ORGANIZAÇÃO SOCIAL E O SER HUMANO

Acreditamos que a forma de organização social é determinante para a consolidação do sujeito. Na contemporaneidade há um fenômeno que acreditamos ser a força propulsora que sustenta este novo modelo social, o fenômeno da falta. Este fenômeno é também discorrido por Melucci (2014) ao afirmar que a percepção da sensação de falta parece ser uma das alavancas mais poderosas do comportamento. Argumenta, ainda, que a espécie humana se distancia das demais espécies de animais no que tange à sua capacidade de “produzir a linguagem e representar simbolicamente a falta, junto à tensão de superá-la” (MELUCCI, 2014, p. 38). Na sociedade em que vivemos, a capitalista, em que a intervenção social rege sua estrutura e superestrutura, a falta torna-se objeto de forte conotação simbólica. É o sistema social (capitalista) que dita nossas necessidades e oferece os suprimentos para tais. Assim,

“Não temos mais simplesmente sede ou fome, tampouco necessidade de nos vestir; a falta que sentimos já vem orientada para objetos específicos, construídos simbolicamente pela informação, pelo mercado, pela comunicação publicitária e pelas redes sociais à quais pertencemos. Assim, temos sede de A, podemos vestir somente B, no café da manhã desejamos C; definimos, pois, nossa falta conforme os códigos específicos do campo cultural cotidiano ao qual pertencemos e no qual acontece a comunicação” (MELUCCI, 2014, p. 39 – 40).

Ainda na esteira do autor, a natureza humana, uma vez que forçada a determinados comportamentos autômatos, como os discutidos aqui, tende a se rebelar e voltar-se contra as regras prescritas. Começamos a conceber nosso corpo físico, nossos sentimentos e desejos como algo pertencente a nós mesmos e de nossa autonomia. Essa consciência leva-nos a criar a ilusão de que podemos fugir às regras e relações sociais. O fato de alimentar tal ilusão, segundo o autor, também nos leva a simplesmente negar “os vínculos originados pelo nosso pertencer a uma sociedade” e dar origem a um sintoma patológico, como a depressão. Além das necessidades físicas, a sociedade ainda dita nossas necessidades psicológicas, emoafetivas, familiares, etc. Se o indivíduo não tem autonomia para escolher seu modo de vida e suas relações sociais, ainda que “ouse” escolher, sofrerá coerção social e seu comportamento será classificado como distúrbio.

É difícil situar o lugar do sujeito dentro desta acelerada e complexa sociedade contemporânea. Alberto Melucci na tentativa de explicar o lugar do sujeito na contemporaneidade afirma que “O grupo se torna regra obrigatória em que precisamos nos inserir para saber quem somos” (MELUCCI, 2014, p. 41). O desajuste do sujeito nesta ordem pré-estabelecida torna-se responsabilidade da pólis uma vez que é ela quem lança mão desse instrumento de controle social, a socialização do indivíduo. O autor argumenta que o reconhecimento, por parte dos indivíduos, da necessidade da socialização é “condição para a participação na vida civil” (MELUCCI, 2014, p. 43).

Dentro desse sistema social, o ser, parece não ter autonomia para orientar-se. Diante disso, nos perguntamos: o que acontece com o “eu” dentro deste novo modelo social? Na tentativa de responder tal pergunta nos ancoramos em Lasch que afirma que “A nossa crescente dependência frente à tecnologia que ninguém parece compreender ou controlar deu origem a um sentimento generalizado de impotência e vitimação” (LASCH,1986, p.34).  O autor ainda afirma que com o “sentimento de que estranhos controlam a nossa vida” (LASCH, 1986, p. 34), vivemos em estado de passividade uma vez que a autonomia e a autoconfiança são corroídas pela tecnologia moderna.

Analisaremos, a seguir, a obra “O quieto da Esquina”, partindo do pressuposto de que esta obra literária representa os problemas para a constituição de uma identidade quando o indivíduo está inserido em uma sociedade como a contemporânea.

3. O QUIETO ANIMAL DA ESQUINA

A obra “O quieto animal da esquina”, do escritor gaúcho João Gilberto Noll, é narrada em primeira pessoa e é constituída por relatos superficiais de acontecimentos vividos ou presenciados pelo narrador protagonista. No início da narrativa, o narrador, que também é o protagonista da obra, é um jovem de dezenove anos que vive com a mãe em um bairro de Porto Alegre, chamado Glória, no estado do Rio Grande do Sul. À medida que ele segue narrando os fatos, percebe-se que ele vai envelhecendo, porém, não sabemos o quanto envelhece já que a sua idade final não é revelada. Em toda a extensão da narrativa, não nos é dado a conhecer o seu nome. O cenário inicial são as ruas de Porto Alegre em que o protagonista anda por meses à procura de emprego já que acaba de perder o atual. Cafés, filas de emprego, banca de revistas, banheiros públicos e sebos tornam-se lugares costumeiros para o rapaz que, na vida do ócio, busca matar o tempo até encontrar outro trabalho. Ele vive com a mãe em um apartamento de um prédio inacabado que foi invadido por ele inicialmente e, depois, por outras famílias. A mãe não trabalha e o sustento da casa fica a cargo do jovem.

No desenrolar da trama, alguns acontecimentos são decisivos para a vida do personagem. O primeiro foi ao término de um dia comum de procura de emprego.  O rapaz desce até o térreo do prédio abandonado para tomar um ar e ouve uma voz que entoava uma balada romântica. Constatado que era uma garota chamada Mariana, que morava no mesmo prédio, o personagem tenta travar conversa com ela, porém, parece ser ignorado. Momentos depois, sem saber como, ele se vê muito perto de Mariana e seus instintos o levam a cometer um estupro para satisfazer seus desejos sexuais. No dia seguinte ao estupro contra a garota, o personagem vai para a prisão onde permanece por algum tempo que não é determinado pelo narrador.

Outro acontecimento importante na narrativa é o internamento do narrador protagonista em uma clínica psiquiátrica em que foi encaminhado a partir da prisão e conduzido por um homem enigmático vestido de preto. Ele permanece neste lugar por um determinado período, que também não sabemos quanto, antes de ser encaminhado para uma residência familiar rural pertencente ao mesmo homem que o conduziu à clínica cujo nome é dado a saber no dia em que teve alta e em que foi obrigado a participar de um misterioso culto alemão realizado nas dependências da própria instituição. O homem se chamava Kurt, vivia em uma chácara com sua esposa Gerda e um agregado da família que se chamava Otávio.

O último acontecimento chave é a ida do narrador protagonista para a casa de Kurt onde passa a conviver com aquelas pessoas sem exigir qualquer tipo de explicação sobre o motivo pelo qual está sendo inserido nesta família, apenas deixa-se levar pelas vontades alheias. Desprovido de qualquer justificativa, o personagem permanece nesta casa rural até o término da narrativa.

3.1 SOBRE O NARRADOR PROTAGONISTA: QUEM É ELE?

A narrativa de Noll apresenta como personagem principal um sujeito enigmático e revestido de mistério. Este narrador protagonista não se apresenta ao leitor e vamos fazendo a leitura dos acontecimentos sem saber de quem se trata. Só temos consciência de que ele perdeu o emprego, que vaga pelas ruas de Porto Alegre em busca de uma nova labuta, porém não sabemos sua origem, suas características físicas, elementos essenciais para a constituição, por parte do leitor, da imagem do personagem para acompanhá-lo no decorrer da trama. Assim, ele nos aparece como uma figura sem contornos definidos que vaga pelos espaços da narrativa sem que consigamos identificá-lo verdadeiramente.

Outra forte característica da obra é a falta de referente temporal cronológico específico. O narrador protagonista segue narrando os fatos sem situar o leitor no tempo, pois não há datas ou marco histórico que possam nos orientar e passamos a questionar quando ocorreram os fatos. Aliado a falta de características que possam defini-lo como ser e distingui-lo dos demais personagens está a sua falta de capacidade de registrar sua história. Se para se constituir como sujeito, ter uma identidade e ser reconhecido, segundo Melucci (2004), se faz necessário a relação de continuidade no tempo, sua delimitação em relação aos outros e a dialética de reconhecer e ser reconhecido, então acreditamos que a identidade do protagonista estaria comprometida dentro da obra, uma vez que ele não se lembra de seu passado, não carrega uma bagagem de vida que sirva de suporte para se orientar no presente e/ou planejar seu futuro. Suas lembranças se perdem tão logo que os fatos acontecem ou surgem de repente, em determinados momentos, lapsos entre algum acontecimento que ele viveu, porém, são somente pequenas recordações que ele procura, logo a seguir, apagar voluntariamente.

“[…]na verdade parecia que de repente o meu destino tinha me ultrapassado, a mim e a todas as canções que costumavam sair de cor da minha boca, de tal modo, que chegaria um tempo em que eu viraria para trás e não teria mais nada que reconhecer. Daqui a pouco não precisarei mais mover uma palha para evitar o meu passado, pensei com desafogo” (NOLL, 2003, p.47).

Esta perda ou “esmaecimento da historicidade” que vemos no protagonista é, segundo Jameson (1997), um fenômeno da contemporaneidade. O autor analisa este fenômeno refletido no âmbito cultural em que as artes cinematográficas e as produções literárias, nos dizeres do autor, tendem a enfatizar o presente por meio do esquecimento do passado e inventar um futuro fictício. Dentro desta sociedade altamente acelerada e complexa, parece não haver possibilidade para vivenciar o presente como história. O sujeito representado na obra parece reproduzir exatamente esta mesma incapacidade de se fazer história.  Entendemos que o presente, vivido por ele, não é registrado como história uma vez que ele não se preocupa com o passado vivido nem detêm esperanças no porvir, apenas vive agarrado ao presente como se fosse o último momento para ser vivido, fato que podemos constatar nitidamente no trecho a seguir, quando o narrador protagonista chega à casa onde passaria a viver com pessoas até então desconhecidas, depois de receber alta da clínica psiquiátrica Clínica Almanova:

“Eu nunca tinha comido tão bem, aquele vinho que eu esperava ver dali para a frente em todos os almoços, aquilo tudo me instigava a acreditar que chegara a minha vez, me agarraria com unhas e dentes àquela oportunidade única que eu não sabia de onde tinha vindo nem até onde iria, sim, eu não a deixaria escapar, mesmo que tivesse que fazer exatamente o que eles esperassem de mim, aquilo era meu, eu bem que gostaria até que não houvesse muita explicação, adquirir a certeza de que aquilo era meu bastava, e no mais seria esquecer aquele passado de merda” (NOLL, 2003, p. 31).

Agarrado a esta oportunidade de vida que ele não sabia de onde surgira, o personagem procura se adequar à nova realidade sem fazer nenhum questionamento a respeito. Como uma questão de sobrevivência, como discute Lasch (1986) em seu livro O mínimo eu, o protagonista se apresenta como um indivíduo que tenta não sucumbir em um meio que representa a sociedade atual, pois tem a “percepção de que nada, sequer um simples detalhe doméstico, pode ser visto como garantido” (LASCH, 1986, p.53). Diante desta insegurança e “sentimento de perigo”, segundo o autor, o sujeito passa a formar estratégias de sobrevivência. O personagem principal da obra, que a nosso ver parece ser a representação do sujeito contemporâneo, busca viver o presente intensamente usufruindo ao máximo o “aqui” e o “agora” sem preocupar-se com o futuro, às vezes só conjecturando o que pode lhe acontecer no porvir, nem tirar proveito do passado. Notamos, ao longo da narrativa, que o personagem se preocupa apenas em se dar bem, garantir sua sobrevivência momentânea mesmo que isso implica atuar exatamente como esperavam dele “mesmo que tivesse que fazer exatamente o que eles esperassem de mim”. No mundo atual, segundo Lasch (1986, p.24), em que a cultura organizada em torno do consumo estimula o sentimento narcisista, os sujeitos tem a “disposição de ver o mundo como um espelho”, onde o que importa não é o que você é, mas o que os outros querem que você seja e refletir exatamente aquilo que esperam de você. Preocupado com sua sobrevivência, o protagonista praticamente se esquece da mãe, seu único parente familiar apresentado na obra. Ela se mudou para uma localidade de nome São Borja e só aparece na memória do narrador protagonista de vez em quando no decorrer da narrativa quando ele faz menção de algum acontecimento de sua antiga vida de miséria. O narrador não se preocupa com a situação atual dela, a sua já era o suficiente para se ocupar e, toda vez que ele a menciona é para servir de referente à vida ruim que teve antes de ser adotado pela atual família. O que parece importar para ele é o presente, o passado deve ser esquecido.

Dados os eventos elencados acima sobre crise de história que implica uma crise de identidade, nos atentaremos mais um pouco a esta última em virtude da importância de sua explanação para entendermos o sujeito social representado na obra e que nós acreditamos ser a representação de um sujeito da sociedade contemporânea. Ancorados em Melucci quando afirma que “nossa identidade se fundamenta unicamente em uma relação social e que depende da interação, do reconhecimento recíproco entre nós e os outros” (MELUCCI, 2004, p. 44), entendemos que tal dialética estaria comprometida dentro da obra. Tomando novamente como referencial o narrador protagonista, nosso principal foco de análise dentro da obra “O quieto animal de esquina”, vemos que sua relação com o social em com as outras pessoas são quase nulas. Considerando a afirmação de Melucci que sustenta que uma relação bem sucedida é a fundamentada na reciprocidade do reconhecimento do outro, podemos intuir que o personagem não tem consistência identitária nem sucesso nas relações humanas. No campo do social, parece que o sujeito representado não se ajusta ao padrão exigido uma vez que sua conduta parece não ser adequada ao modelo requerido por esta sociedade, a capitalista. Se o modelo de sociedade atual pede que seus membros trabalhem muito para consumir muito, ou seja, estejam encaixados na engrenagem social para alimentar tal forma de organização, o protagonista não se ajusta às exigências citadas acima, uma vez que ele não trabalha e tão pouco pratica o consumo exacerbado, atitude comum e necessária para a manutenção deste modelo social. Desajustado da esfera social, este sujeito parece não ser reconhecido por ela e tende a não reconhece-la, já que não se preocupa em obedecer aos padrões exigidos.

Para Melucci (2004), o complexo modelo de sociedade atual influencia negativamente na construção subjetiva do sujeito. Esse autor indica que algumas características da contemporaneidade como “as diferenças individuais, a diversidade de posição social e a velocidade das mudanças que nos investem aumentam a distância entre nós e os outros”. Sendo assim, a sociedade contemporânea é contraditória em si mesma já que influencia tais diferenças uma vez que pede que seus sujeitos se reconheçam mutualmente para que ocorra a formação identitária.

Na obra em questão, estas diferenças mencionadas por Melucci (2004) são bem visíveis. O narrador protagonista é um sujeito que não possui nenhum bem material e passa a conviver com Kurt e Gerda, descendentes de alemães e donos da propriedade em que vivem e Otávio, um ser misterioso, que já vivia com o casal como agregado antes da chegada do protagonista e é um tipo de “cão farejador” de Kurt. Também há a empregada Amália, que também vive nas dependências da chácara em um galpão. A relação destes cinco personagens é muito tênue. A reciprocidade é quase impossível de acontecer uma vez que há uma distância econômica considerável entre eles. No trecho a seguir, podemos notar as implicações das ditas diferenças quando Otávio, o agregado, diz que:

“- foi sempre assim.

– O quê, Otávio? – Perguntei.

– Assim…

_ O quê? – insisti.

Otávio, sem parar:

– Desde que o vi pela primeira vez, montado no seu cavalo, quando me olhou de cima levemente estrábico e perguntou se eu não queria trabalho, desde aí, passei a ser seu cão farejador, aquele que experimenta antes para poupar o dono de qualquer cilada, pois, se em alguma viagem, num lugar desconhecido ele estranhasse o cheiro da comida, pedia que eu desse a primeira garfada e verificasse se estava tudo em ordem, mesmo com as mulheres, algumas como que degustei para ele previamente como um vinho, era o pavor do veneno que pode se esconder em tudo, então que eu fosse antes e testasse, essa desconfiança mortal que sempre o acometeu, e para saná-la me deu casa e comida, me pagou algumas viagens, não me tirou da coleira a vida toda” (NOLL, 2003, p. 36)

A partir desta declaração de Otávio, podemos sugerir que o que acontecerá com o narrador protagonista será o mesmo. O conflito surgido a partir das diferenças sociais são os mais diversos. Na obra, Otávio e Kurt se agridem várias vezes no alto de um morro, sem motivo aparente, o que resulta em ferimentos graves nos dois personagens.

O narrador protagonista vê em Otávio uma extensão do próprio eu já que sua condição parece semelhante. Porém, ambos, além de Amália, a empregada, veem em Kurt uma garantia de sobrevivência e por isso se acomodam a situação.

“É Amália, agora Otávio, estão votando, pensei, não sabem mais viver fora da alçada de Kurt, tentam se extraviar, mas retornam direitinho ao centro do qual nunca deveriam ter se afastado. E eu, não era um novo agregado de Kurt? Não podia esquecer, ele já estava velho, eu teria pouco tempo para me dar bem, para não ficar como os dois, despido de tudo que conseguisse e refazer longe dali” (NOLL, 2003, p.71).

O trecho acima faz referência à volta de Otávio e Amália, após terem ido embora da chácara e retornado sem qualquer aviso, por parte deles, ou explicação por parte do narrador. Esta dependência dos agregados em relação ao dono da casa comprometeria a dinâmica da reciprocidade uma vez que a relação existente entre eles se dá por certa atitude parasitária do narrador protagonista, de Otávio e Amália para com Kurt e Gerda. Os dois últimos, por outro lado, buscam nos agregados o suprimento de seus sentimentos já que os tratam como filhos. Vivendo nesta condição, os personagens são envoltos em obscuridade e não há interesse, por parte de nenhum deles, em saber mais profundamente sobre a vida do outro e cada um representa seu papel.

3.2 O PROTAGONISTA, O ESPAÇO E O TEMPO

Outro fator comprometedor para a identidade representado na obra seria o tempo, que tem semelhança com a dinâmica temporal da atualidade. Diferentemente das organizações sociais anteriores, a sociedade contemporânea está organizada de maneira mais complexa que as antecedentes. O sujeito social não tem o conhecimento do todo, como nas sociedades antigas. Sendo a identidade pessoal, conforme Jameson (1997, p.53), o “efeito de certa unificação temporal entre o presente, o passado e o futuro da pessoa”.  Na obra, esta unificação parece não existir. Os sujeitos representados, mais especificamente o narrador protagonista, procura apagar o passado, teme pelo seu futuro e se agarra vorazmente ao presente como se fosse seu último momento.  Sobre sua relação com os outros e seu entorno, fazemos nossas as palavras de Jameson (1997) quando argumenta que a relação do homem com o tempo, com espaço e com os outros é tão intensa no atual contexto que o sujeito não consegue constituir-se, de forma que vaga sem perspectivas e sem história.

Marchando sob um ritmo altamente acelerado, que, por vezes, faz a percepção do tempo escapar à capacidade de compreensão humana, como ocorre dentro da obra em relação ao narrador protagonista, a sociedade atual revolucionou os meios de comunicação expondo ao mesmo tempo para as mais remotas localidades inúmeras informações1[4] antes nunca divulgadas. Esta “explosão midiática” (JAMESON, 1997, p. 23) surgida a partir da Segunda Guerra Mundial atinge em cheio o indivíduo social que passa a viver mergulhado em mundos virtuais que contrastam ao mesmo tempo passado, presente e futuro. Esta avalanche de informações traz algumas mudanças para o sujeito como a falta de harmonia entre o tempo interior, o do sujeito, e o tempo exterior, o social. Melucci (2004, p.270), por sua vez, afirma que nas sociedades antigas “a relativa homogeneidade e a lentidão das mudanças garantiam uma certa integração entre a experiência temporal subjetivamente vivida e as definições do tempo reguladas pela sociedade”, o que garantia a correspondência entre o indivíduo e o mundo. Atualmente o ritmo exterior excede à capacidade do ser humano de assimilar internamente o ritmo externo. Esta divergência tem acarretado sérios problemas na atualidade como uma maior disposição do ser humano para determinadas patologias. Esta divergência de tempo e suas implicações podem ser notadas em “O quieto animal da esquina” de João Gilberto Noll. No decorrer da narrativa, podemos notar que o narrador protagonista se perde no tempo exterior e que alguns acontecimentos parecem escapar à sua percepção:

“No mesmo dia Amália desapareceu. Otávio contou que ouvira, ela tinha seguido a caravana dos colonos. Eu agora estava sentado na privada, os cotovelos sobre as pernas, olhando o que a porta me deixava ver do quarto daquele hotel no Rio, Kurt não tinha pisado ainda ali, não saía do hospital onde Gerda estava internada, eu muitas vezes levava alguma roupa para ele mudar […] mas eu agora estava ali sentado na privada, olhando o que a porta aberta me mostrava do quarto do hotel, e eu ali, assim, só podia pensar mais uma vez que aquilo tudo tinha a aparência de pura imaginação […]” (NOLL, 2003, p. 49).

Saltando repentinamente da narrativa do desaparecimento de Amália ocorrido em Porto Alegre para sua localização dentro do banheiro do hotel no Rio de Janeiro, o narrador protagonista deixa uma lacuna a partir da qual o leitor irá se perguntar: o que ocorreu neste período de tempo? Entre a cidade de Porto Alegre e Rio de Janeiro, onde Gerda está internada devido a um câncer, existe uma grande distância geográfica que poderia suscitar muitos acontecimentos e isto nos leva a conjecturar sobre uma possível resposta, a de que o narrador não registrou tais fatos na sua esfera subjetiva. Há, ainda, o momento em que ele precisa lembrar constantemente a si mesmo de sua localização, “Eu agora estava sentado na privada”, “mas eu agora estava ali sentado na privada” e “e eu ali, assim”. O personagem inicia uma chamada pelo próprio “eu” que parece insistir em anular-se devido aos efeitos da exterioridade. Mais adiante, na narrativa, o narrador protagonista substitui Kurt na condição de acompanhante de Gerda no hospital e, de repente, ele se vê novamente estranho no espaço físico:

“Acendi o abajur, e vi Gerda dormindo, um ressonar que soprava uns fios de cabelo azulado bem próximo dos lábios. Engoli em seco, não pelo estado de Gerda, mas porque me enxerguei repentinamente como que indefeso para discernir a minha presença ali: o que fazia eu num quarto de hospital no Rio, ao lado de uma mulher doente praticamente desconhecida?” (NOLL, 2003, p.54).

Diante destes trechos e de muitos outros presentes na obra que materializam a imagem de um sujeito desajustado com o externo e que, por isso, registra esporádicas crises, para entendê-lo, faz-se necessário considerar o pensamento de Birmam (1999) que discute o sujeito dentro-de-si e o sujeito fora-de-si. O autor argumenta que o primeiro conceito, o fora-de-si, foi elaborado por Hegel e alguns alienistas do século XIX cuja definição mais pura seria o estado de psicose em que se encontrava o sujeito e o estado dentro-de-si seria a condição lúcida do indivíduo. Atualmente, segundo Birmam (1999), estes conceitos praticamente se inverteram. O sujeito, antes considerado fora-de-si era o psicótico ou com desvios mentais já que “a exterioridade seria o não sujeito e o antisujeito por excelência” Birmam (1999, p.175). Porém, contemporaneamente, na cultura do narcisismo, como denomina Birmam, este indivíduo fora-de-si é valorizado socialmente já que condensa o autocentramento da subjetividade extraindo apenas aspectos exteriores. Assim, segundo o autor supracitado, “o sujeito autocentrado é efetivamente fora-de-si, pois é exterioridade por excelência”, ou seja, tudo o que o constitui vem do exterior, sua subjetividade (o que é de si) foi anulada já que ele não pode mais decidir sobre sua vida e o seu eu é controlado pelos instrumentos sociais como a mídia, que dita o que lhe é melhor ou pior. Longe de ser um aspecto positivo, a exteriorização do sujeito e a perda da interiorização, segundo Birman (1999) é a perversão legitimada e valorizada socialmente que toma o lugar da psicose. Na obra de Noll, esta perversão da qual fala Birman é facilmente identificada. O sujeito protagonista parece não reconhecer seu próprio corpo no espaço, não consegue acompanhar o tempo. A perda da dimensão temporal é percebida, por exemplo, no assombro, por parte do narrador protagonista, ao notar repentinamente que ele e as pessoas que estão ao seu redor de repente envelheceram:

“Quando Kurt se inclinou para entrar no táxi tive um impulso de ajuda-lo mas parei, como se preferisse assistir ao que eu estava vendo, aquele homem realmente tinha envelhecido além da conta, entrava no táxi com tamanha dificuldade que me deixava boquiaberto, a pensar no meu despreparo para acompanhar a passagem do tempo. Pois Kurt se tornara praticamente um velho final – e eu, se parasse para me perceber, veria sem erro um homem e não mais aquele guri que Kurt tirara da cadeia. Um período tinha se passado desde o dia em que Kurt me trouxera para junto dele, e agora não havia mais dúvida, este período tinha sido maior do que eu chegara a supor. E me perguntei, uma onda de arrepio passando pelo couro cabeludo: por que o meu atraso diante dessa duração?” (NOLL, 2003, p.61)

A falta de percepção de si e dos outros é característica da sociedade contemporânea. Bombardeado constantemente pelos meios de comunicação que nos oferecem a “liberdade de escolher todas as coisas simultaneamente” (LASCH, 1986, p.29) e vetados ao mesmo tempo de fazer tais escolhas já que é impossível viver tudo ao mesmo tempo, o sujeito se perde de si, sai da realidade e entra em colapso consigo o que pode acarretar problemas mentais tamanha a carga externa que o pressiona. No trecho citado acima podemos perceber a incompreensão do personagem diante do fenômeno do envelhecimento, que envolve o tempo e que ele parece não conseguir acompanhar.

A problemática com o tempo é representada em vários aspectos da obra como na narrativa em si, que toma forma, como se vê no fragmento acima, por uma espécie de atropelamento discursivo. A narração longa intermeada de vírgulas e com poucos pontos expressa este ritmo do viver contemporâneo e provoca no leitor certo cansaço, devido a exposição excessiva de fatos sem pausas para reflexão ou descanso:

“Uma cerração, botei as mãos nos bolsos e saí a caminhar, alguns pardais comiam a bosta ainda quente de um cavalo que se afastava por um pasto, vi uma barra de ginástica, corri, dei algumas cambalhotas em volta da barra, me pendurei pelos braços, algumas flexões até a altura do pescoço, prenúncio de suor, com os braços esticados me balancei, por fim saltei, resvalei, caí, bati a mão na outra, me levantei, corri, subi uma pequena elevação, percebi que do outro lado ao pé da elevação, dois homens lutavam, e eram Kurt e Otávio estes dois homens, mesmo naquela cerração dava para ver que estavam machucados aqui e ali, sangue num canto da boca de Kurt, no ombro, do braço de Otávio escorria um fio que aquela distância coberta de cerração se mostrava mais preto que vermelho” (NOLL, 2003 p.32).

Este ritmo acelerado da vida contemporânea, bem visível no fragmento citado pela presença acentuada de verbos de ação, pode ser notado no decorrer de toda a narrativa.  O narrador protagonista vai relatando os fatos aceleradamente sem se atentar a nenhum deles. O relato torna-se uma explosão de informações desconexas que reproduzem no plano do discurso literário a vida cotidiana contemporânea, pois nesse contexto, o tempo para se refletir sobre determinado assunto é escasso em função de nossos inúmeros afazeres. Contraditório em si mesmo, o modelo de sociedade capitalista que define a contemporaneidade, expõe as pessoas à abundância de opções, porém, como sustenta Lasch (1986, p.27), “é justamente a abundância de opções à qual as pessoas estão expostas que fundamenta o mal do homem”, ou seja, oferece inúmeras possibilidades sem que tenhamos condições para viver todas elas. A falsa sensação do livre arbítrio nos ilude enquanto não temos liberdade sequer para fazer nossas escolhas mais íntimas.  Segundo Melucci (2004) todas as nossas necessidades e “falta que sentimos já vem orientada para objetos específicos, construídos simbolicamente pela informação, pelo mercado, pela comunicação publicitária e pelas redes sociais à quais pertencemos” (MELUCCI, 2004, p.42). Ainda, na esteira do autor, a natureza humana uma vez forçada a determinados comportamentos autômatos, tem uma tendência a se rebelar contra as regras, quando tomamos consciência da autonomia de nossos desejos, emoções, sentimentos, nosso corpo físico e nossa sexualidade. Assim que criamos a ilusão de liberdade, passamos a acreditar que podemos agir conforme pede o instinto e fugir a regras sociais. O autor argumenta, ainda, que o fato de alimentarmos tal ilusão, também nos leva a simplesmente negar os vínculos originados pelo nosso pertencer a uma sociedade e dar origem a patologias. Na obra de Noll, este suposto desvio de comportamento pode ser percebido logo no início da narrativa, quando o narrador protagonista vê uma possibilidade de fazer sexo e satisfazer seus desejos ao encontrar Mariana, uma moradora do mesmo prédio em que ele morava:

“De repente me dei conta de que eu estava tão perto da guria cantando que quase podia sentir o hálito dela, eu não dizia nada, ela parou de cantar, notei que havia um paredão cheio de pontas a nos tapar do prédio, fulminei um beijo, ela caiu comigo na terra úmida, a minha língua entrava por um rumor surdo na boca da guria, na certa um grito se seu retirasse a minha boca – e agora já era tarde demais, eu precisava sufocar aquele grito, quando o meu pau entrou gozei, e o rumor surdo, o grito que eu sufocava esmagando a minha boca contra a dela cessou, e eu me levantei”. (NOLL, 2003, p. 14).

A descrição do estupro cometido pelo jovem mostra a preocupação dele apenas em satisfazer suas necessidades sexuais. Porém, inserido em uma sociedade que incrimina a relação sexual não consensual, o narrador protagonista sofre as respectivas coerções, pois é preso após a denúncia de Mariana. Na prisão, após relatar ao delegado sua trajetória de vida, que é ocultada do leitor, ele é encaminhado para uma clínica psiquiátrica e o fato não será mais mencionado, como se não tivesse deixado nem resíduos no interior do sujeito protagonista.

Quando Melucci (2004, p. 41), na tentativa de explicar o lugar do sujeito na sociedade contemporânea afirma que “O grupo torna-se regra obrigatória em que precisamos nos inserir para saber quem somos”, percebemos que a completa concordância do sujeito com as regras pré-estabelecidas se faz necessária para a manutenção da ordem social. A violação das regras sociais é rebatida com as mais diversas coerções e a reeducação do sujeito fica a cargo do estado e de outras instituições autorizadas pelo estado. Na obra “O quieto animal da esquina”, o ajustamento do sujeito se dá pelo seu internamento e, posteriormente, pela tentativa de sua reinserção na vida social por intermédio da adoção da família de Kurt. O reconhecimento da necessidade da socialização, por parte dos indivíduos, segundo Melucci (2004) é condição necessária para a participação na vida civil. Na tentativa de garantir sua sobrevivência em meio ao campo minado da sociedade contemporânea, que nós acreditamos ser representada na obra, o narrador protagonista parece aceitar sua ressocialização e marchar sob o compasso deste modelo social atual. Mas é aí que ele se perde de si, assumindo uma condição fora-de-si, em função da pressão social, sua identidade fica comprometida e, ele vaga vazio pelo mundo, de modo que a narração da sua existência só pode vir, como se constatou, por uma voragem narrativa que expressa a crise do sujeito como consequência da excessiva ação externa sobre ele.

4. CONCLUSÃO

Podemos, a partir deste trabalho, reafirmar a importância da arte e, neste caso mais específico da literatura, na representação de seres, experiências e fatos. Extraindo as emoções, sentimentos, fé e as problemáticas de determinadas épocas históricas, o autor ou o artista nos proporciona, por meio de uma representação feita de linguagem, uma possibilidade de aproximação ou de conhecimento de certas realidades que coloca em cena artisticamente. Na obra “O quieto animal da esquina”, de João Gilberto Noll, pudemos perceber as problemáticas enfrentadas pelo sujeito contemporâneo, que, acreditamos, estão representadas na obra. Ou seja, vemos explicitadas na obra, as peripécias de um ser humano que vive mergulhado em uma sociedade altamente complexa onde desconhece o todo e quase não percebe mais sequer as partes.

O protagonista vive alienado, tendo pequenos momentos de autoconsciência, mas parece impedido de agir sobre o mundo uma vez que até suas emoções mais íntimas foram apropriadas por um contexto que, representando uma sociedade nos moldes capitalistas, desanima o ser. Essa problemática é visível na obra pela angústia do protagonista em pequenos momentos de autoconsciência. Isso indica que mesmo tentando se ajustar a um mundo que produz o esquecimento rápido de tudo e que, provavelmente, não deixaria sequelas no indivíduo, essa também não é uma saída, porque os pequenos lapsos de consciência só acusam a situação problemática de um indivíduo que se dá conta de que fez muita coisa, mas não viveu nada.

Esta falta de vivência, que implica a perda de experiência, é agravante para a formação identitária do sujeito, já que esta, segundo Melucci (2004) constitui-se pela continuidade do sujeito, independente das variações no tempo e das adaptações ao ambiente. É essa falta de continuidade do sujeito que é representada na obra por meio do narrador protagonista, pois ele não se lembra do passado e estranha o mundo físico. Dessa forma, a constituição da identidade do protagonista da obra de Noll se compromete diante dessa impossibilidade de vivência profunda dos fatos e de relação continuada com espaços e demais personagens. Assim, ler e estudar a obra do autor gaúcho mostra-se um desafio, porque ela nos força a nos ver nesse labirinto social que leva mais ao “descentramento” que ao “centramento”. Essa é a grande crítica feita pela obra à sociedade atual e sua grande contribuição e importância.

REFERÊNCIAS

BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 13 -183.

BOTH, Sérgio José (coord.). Et al. Metodologia da Pesquisa Científica: teoria e prática ou prática à teoria. Tangará da Serra: Sanches, 2007.

CRESPI, F. Modernidad: la ética de una edad sin certezas. In: CASULLO, Nicolás (Org). El debate modernidad pos modernidad. Edición ampliada y actualizada. (2° ed.). Buenos Aires, Retórica, 2004.

FERIGOLO MELO, I. O romance estilhaçado: La vida en las ventanas, de Andrés Neuman e Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll. Novas Edições Acadêmicas, 2013.

GIDDENS, A. As consequências da modernidade. Tradução: Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 1991.

JAMESON, F. Pós-modernismo, ou a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996, p. 13 – 79.

LASCH, C. O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis.  São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 9 – 116.

MELUCCI, A. O jogo do eu. São Leopoldo: Unisinos, 2004.

NOLL, J. G. O quieto animal da esquina. São Paulo: Francis, 2003.

ROSENFELD, Anatol. Texto /Contexto. São Paulo, Perspectiva, 1976.

VATTIMO, G. A sociedade transparente. Lisboa: Relógio d’água, 1992.

3. Lembramos que as duas primeiras fases do capitalismo correspondem, na percepção do autor, ao capitalismo colonialista e ao industrial.

1. Quando falamos de informações estamos nos referindo a seus conteúdos circulados nos mais variados suportes: em jornais impressos; televisivas; rádio; livros; as redes sociais, etc.

[1] Mestranda em Estudos Literário; Graduada em Letras/espanhol.

[2] Doutorado em Letras. Mestrado em Letras. Graduação em Letras.

Enviado: Novembro, 2019.

Aprovado: Dezembro, 2019.

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Rosimara da Silva Oliveira Ramos

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