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Problemas sociorrelacionais em Bonheur d’occasion, da franco-canadense Gabrielle Roy

RC: 148347
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/literatura/bonheur-doccasion

CONTEÚDO

ARTIGO DE REVISÃO

MAGALHÃES, Ismar dos Reis [1]

MAGALHÃES, Ismar dos Reis. Problemas sociorrelacionais em Bonheur d’occasion, da franco-canadense Gabrielle Roy. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 09, Vol. 02, pp. 08-21. Setembro de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/literatura/bonheur-doccasion, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/literatura/bonheur-doccasion

RESUMO

A língua francesa conecta muitos povos. Contudo, as obras literárias francófonas são pouco acessadas pelo público brasileiro, principalmente quando não são traduzidas para o português, é o caso da obra Bonheur d’occasion, de 1945, da franco-canadense Gabrielle Roy. Este trabalho visa comentar esta obra, que cogitamos ser uma narrativa de amor, da paixão de Florentine Lacasse por Jean Lévesque, todavia, tem como subtemas a miséria, os problemas sociorrelacionais e a Segunda Guerra Mundial. Para o intuito de discutir as intenções da autora no que tange aos subtemas apreendemos de Candido (2006) as Variações dos tipos de Estudos Sociológicos em Literatura, e recorremos aos comentaristas Lemire (1969), Blais (1970) e Boivin (1996), dentre outros.

Palavras-chave: Bonheur d’occasion, Gabrielle Roy, pobreza, problemas sociorrelacionais.

1. INTRODUÇÃO

Quando se refere à literatura franco-canadense pode-se contemplar ou não Gabrielle Roy. Contudo, não conceberíamos essa alusão sem o seu nome. Se a consideramos relevante, para aquele público ela deve ser deveras significativa.

Desse modo, pode ser interessante para o público brasileiro que lê em outras línguas conhecê-la, visto não haver muitas opções, mas em francês (original), inglês ou espanhol, consonante nossa investigação. No entanto, existe uma obra discursiva em português sobre alguns dos seus trabalhos: “Entre Memórias e Desejos: o discurso feminino de Gabrielle Roy e Marguerite Duras”, de Maria Angélica Werneck da Silva.

Este artigo visa a análise da sua obra-prima, Bonheur d’occasion [Felicidade de Segunda Mão, tradução nossa], de 1945, um fenômeno editorial para então. Mas previamente apresentaremos a escritora, de forma bem concisa. Sequencialmente, sendo considerado um romance centrado em relacionamento social, com o suporte de Candido (2006), visualizá-la-emos em Variações do Estudo do tipo Sociológico em Literatura (VETSL), em virtude de não se encontrar hegemonia quando se trata do humano, e literatura é criação humana.

Para chegarmos até aqui apoiamo-nos nos ombros de gigantes — paráfrase de Isaac Newton —, os quais foram precipuamente Lemire (1969), Blais (1970) e Boivin (1996).

Desta feita, queremos incentivar a leitura desta obra, e, sob um escopo amplo, reverberar a ânsia por conhecimentos literários além-fronteiras brasileiras.

2. DESENVOLVIMENTO

Marie Rose Emma Gabrielle Roy foi uma escritora franco-canadense, conhecida no meio literário como Gabrielle Roy. Nasceu em 22 de março de 1909, em Saint Boniface, e faleceu em 13 de julho de 1983, de infarto, na cidade de Quebeque, aos 74 anos de idade.

A obra Bonheur d’occasion consagrou-se no Canadá e nos Estados Unidos, por ilustrar o problema social devido ao êxodo rural, aos efeitos da Primeira Guerra Mundial, à pós-crise 1929 e aos preparativos para a Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido, a ficção começa a ser descrita com base na realidade e os transtornos sociais.

O bairro cenário de Saint-Henri, na cidade de Montreal, é o desenho da pobreza e do desemprego. Para piorar, a guerra torna-se o pesadelo da maioria, mas um alento para alguns, tendo em vista que ela salvá-los-ia da penúria material.

A narrativa apresenta dezenas de personagens, entretanto focaremos em cinco: o casal Rose-Anna e Azarius Lacasse, a filha Florentine Lacasse, Jean Lévesque e Emmanuel Létourneau. Os três últimos são jovens e formam um triângulo romântico.

Florentine e Jean tiveram um relacionamento, ela estava apaixonada e objetivava o casamento como meio de sair da paupérie, havia reciprocidade, mas os propósitos de ascensão social pelos estudos e trabalho dele tinham prioridade. Florentine, ao ver que Jean não a assumia e grávida dele — precisava esconder para evitar problemas —, aceita a aproximação de Emmanuel.

A família Lacasse retrata os franco-canadenses rurais que viviam a penúria e a inadaptação na cidade. Mas não era apenas uma família, deveriam ser centenas no bairro e milhares no Canadá.

O que será que fizemos para chegar a este ponto, escrevemos no presente por não ser apenas na ficção de então. Passadas cerca de oito décadas, temos mais de 2 bilhões de pessoas famintas e em insegurança alimentar no mundo (NAÇÕES UNIDAS, 2022).

O amor é o tema principal da narrativa e os problemas econômicos e sociorrelacionais de um bairro, com foco em uma família, e a guerra são subtemas.

Desta feita, o romance transcorre durante os preparativos militares e à espera para rumar aos combates em solos europeus. Grosso modo, quase todos tinham interesses nos­­ conflito global, pelas participações canadense, de familiares (Azarius e Eugène, marido e filho de Rose-Anna), de amigos e da França.

A guerra era relevante para os soldados, pois os seus soldos estariam garantidos enquanto estivessem sob combate, logo eles e seus familiares estariam afastados da escassez material. Inclusive o leniente Azarius se alistou. Sua filha Florentine disse à mãe que foi a melhor atitude que pai tomara até então (ROY, 2009).

Entendemos que o romance Bonheur d’occasion seja uma crítica à sociedade canadense. Portanto, faz-se mister discutir noções da Crítica Sociológica (CS) e as Variações do Estudo de tipo Sociológico em Literatura (VETSL).

Silva (2009) registra que a Crítica Sociológica (CS) tem como precursores na França, Anne-Louise Germaine de Staël-Holstein, conhecida como Madame de Staël (1766–1817) e Hippolyte Taine (1828–1893). Ela aborda no livro “Da literatura nas suas relações com as instituições sociais”, 1800, as relações contidas no título, com abrangência aos mais diversos segmentos — moral, costumes, cultura em geral, política e histórica —, por isso, impõe-se como crítica que reputa a literatura integrada ao contexto social. Estudou como a Revolução Francesa influenciou a literatura dos países europeus, transformando-a para outra literatura, com características do ponto histórico.

Enquanto Taine alicerçava-se no determinismo — o futuro do indivíduo é determinado pela sociedade que nasce e cresce e por sua raça. Logo, a produção da obra está imbricada sobretudo à vida do autor e ao momento histórico

No Brasil do século XIX, o pioneiro da CS é Sílvio Romero, pesquisador bibliográfico que se envolveu com as características sociológicas entre o autor e a obra (SILVA, 2009; ABL, 2022).

Logo acima, vimos que há dificuldade para a definição, tais contrapelos dão-se devido à multiplicidade de pontos de vistas. Exemplificando, há alguma similaridade entre a Crítica Sociológica (CS) e a Crítica Cultural Materialista (CCM). A primeira relaciona a obra e o meio social, a segunda enaltece a ingerência do capitalismo nas ocorrências sociais, e na arte sempre há relação de causa e efeito entre o trabalhador explorado (o artista) pelo sistema e a sua obra. A CCM apresenta um viés ideológico-político acentuado.

A tradição materialista auxilia a crítica cultural a aceitar que a cultura contempla as relações socio-históricas e verifica como a arte representa as relações em pauta, o que fez com que a crítica cultural materialista atingisse destaque na academia, no século XX (CEVASCO, 2013).

Expandida a característica relacional arte e sociedade, constata-se que CCM apresenta um viés político-ideológico, bem como a atuação capitalista nos processos produtivos não permitiria o aparte entre arte e meio social devido o ser humano constituir um conjunto, não se podendo controlar o lado trabalhador do homem do seu artístico, e deixando esse em liberdade (CEVASCO, 2013).

A CS não se atém ao aspecto político da sociedade porque não é possível separá-los. Assim, o ser humano é um conjunto, e isso inclui tudo o que a ele se reporta. O ponto de diferenciação entre a CS e a CCM quiçá seja a sobrevalorização da discussão sociopolítica no sistema capitalista, indigesto à primeira.

Por sua vez, Candido (2006) considera que há inúmeras Variações do Estudo de tipo Sociológico em Literatura (VETSL) embasadas entre a sociologia, a história e a crítica. Por esse motivo, ele apresenta as principais:

Variação 1: Relaciona o conjunto da literatura de um período e certo gênero com as condições sociais. É o enfoque tradicional, tendo como precursor o francês Taine, no século XVIII. Essa variação tenta diferenciar uma ordenação para a compreensão geral de uma época. Contudo, falha em apresentar a integração da sociedade e das obras em questão e a ligação entre as condições sociais e as obras, mesmo que efetue citação dos fatores, observe os eventos políticos, econômicos e somente as obras de forma intuitiva ou de acordo com a tradição. Grande parte dos representantes atrela o determinismo entre os fatos sociais e o produto artístico;

Variação 2: Constituída por análises para atestar como as obras traduzem a sociedade, detalhando-a. É o mais simples e comum dos estudos sociológicos, correlaciona os pontos reais e os da literatura. A crítica sociológica, ou em sociologia da literatura, tende a cogitar esta variação; porém ela tem maior relação com a sociologia elementar do que com a crítica literária;

Variação 3: Esta é meramente sociologia, e muito mais coerente, feito por meio da relação entre a obra e o leitor, no que tange ao seu destino, à sua aceitação, os quais são interdependentes. Se o autor foca o fato histórico da aceitação pública através do tempo ocorre uma nuance menos sociológica e mais centrada no desenvolvimento da erudição;

Variação 4: Também é exclusivo na sociologia. Ela fundamenta-se entre o nível social do escritor e relaciona a sua posição com a sua obra, e sua posição social e a sua obra com a sociedade;

Variação 5: Uma modificação da variação 4, em que pesquisa o papel político das obras e dos seus autores. Normalmente, há um viés ideológico, tanto é que é o preferido dos marxistas;

Variação 6: Utiliza-se das origens hipotéticas da literatura em geral ou de certos gêneros literários. Pode versar sobre as raízes da poesia, a correlação entre o trabalho e o ritmo poético, desde que mantenham as características da origem.

Todas as VETSL, se consideradas teorias e história sociológica da literatura ou sociologia da literatura, apresentam maior direcionamento aos fatores da sociedade do que às obras, o qual resulta em menor proveito ao crítico. Visto que a literatura, dentre outros sujeitos, constitui-se e caracteriza-se do imbricamento do que se relaciona à sociedade, o que é de extrema importância aos estudiosos da sociedade, mas não da literatura, compulsoriamente, dado que podem não contribuir para a essência de uma obra. Afinal, a literatura está além da representação da realidade na obra (CANDIDO, 2006).

Silva (2009) diz que análise crítica da literatura alcunhada, genericamente, de crítica sociológica, apresenta dificuldades para que seja definida, haja vista que se tentou alocar muitas diversidades sob uma mesma denominação.

Cândido (2006) parece ter dirimido essa celeuma ao apresentar o que chamou de VETSL, o que nos parece abarcar a alusão ampla da crítica sociológica e não a admite totalmente como um tipo de crítica, mesmo que possa ser uma ferramenta para o crítico literário. A literatura pertence às ciências humanas, por isso aceita respostas polissêmicas, temporárias, ambíguas para questões.

Candido (2006) apresenta as seis VETSL, mas não as define como crítica sociológica, sem embargo utilizando-se de critérios embasados entre a sociologia, a história e a crítica.

Afigura-nos que a seu pensar, a influência social nas artes apresenta matizes que não devem ser catalogados na mesma descrição ou definição.

Diante do exposto, cogitamos que as variações 1 e 2 podem aproximar-se do nosso romance. Visto que, amiúde, o homem influencia o meio, e esse intervém em sua vida.

A análise da obra Bonheur d’occasion é a de que a autora observou e tentou entender as causas pelas quais aquele momento social acontecia. Se nos ativermos à variação 1, temos uma lacuna por não se tratar do conjunto literário de um período e de um gênero com aquelas condições sociais; mas se insere na variação 2, por inserir na obra aquelas condições sociais.  Segundo Candido, esta variação está mais afeta à sociologia do que à crítica literária. Sugerimos que a obra é uma análise social, mesmo que não estejamos no campo de estudo da sociologia. Assim, a variação mais próxima da obra seja a 6, que se utiliza das origens hipotéticas da literatura em geral ou de certos gêneros literários.

Candido (2006) discorre que a crítica sociológica e as áreas correlacionadas devem observar como a sociedade transforma-se em parte da estrutura literária, essa ao ser investigada permite assimilar a função de uma obra e contribuir para a análise literária.

É notável observar que o imbricamento sociedade e obra é relativo, visto não determinar que o meio será representado em uma obra, mas pode sê-lo. Se a obra for uma representação social estará subordinada a multifatores, tais como, a decisão do autor, a influência que sofre do meio, a ideologia que professa e se quer ou não publicizá-la, o nível de inovação, a aceitação da inovação em um movimento artístico, dentre outros.

Acreditamos que uma obra de arte não tem que possuir um viés utilitarista, mas pode existir para o deleite do artista e/ou dos apreciadores.

Nessa comparação entre os dois autores vimos a utilidade da teoria sociológica, pois é vista como uma crítica literária por Silva (2009); e Candido (2006) tem-na como um estudo sociológico da literatura, com mais interesse para os estudiosos da sociologia e da história e muito pouco para a crítica literária.

O que Cevasco (2013) apresenta como CCM é alcunhada de variação 5 dentre as VETSL, conforme Candido (2006). Entremeada, encontra-se Silva (2009, p. 177), ao apresenta que ” há quem ache que a crítica marxista é uma variação de crítica sociológica e há quem separe totalmente as duas.”

Essa visão de Candido ao apresentar as seis VETSL figura-se como um posicionamento amplo para julgar a consideração das ideias prévias do que havia em vários campos de estudo de como o meio social influenciava a produção artística.

No que se refere à obra especificamente, Boivin (1996) caracteriza Bonheur d’occasion como um romance social e de modos urbanos.

Por sua vez, Blais (1970) é incisivo ao mencionar que os louros a Bonheur d’occasion são comumente acompanhados de ressalvas de alguns críticos, por exemplo, os comentários de André Renaud e de Réjean Robidoux, de que “o romance não é perfeito” (RENAUD; ROBIDOUX,1966 apud BLAIS, 1970).

A caracterização da obra por Boivin (1996) vem ao nosso encontro de que ela versa sobre os problemas de uma comunidade urbana. E quanto a Blais (1970), não acreditamos haver fissuras entre o seu ponto de vista e a obra, porquanto a perfeição não é da seara humana, bem como a crítica pode não compreender o estilo do romance ou não encontrar bases para o empreendimento da escritora. Não há porque existir unanimidade entre os críticos ou entre esses e os artistas.

  • O desenovelar da trama dá-se por oposições, a pobreza do bairro Saint-Henri e os privilegiados que vivem ao lado da montanha tal como a família Lacasse é o sinal da precariedade financeira familiar acompanhada do aumento contínuo da família com a diminuição das moradias, devido a menos dinheiro (BOIVIN, 1996).

Agregaríamos uma outra oposição, quiçá a mais demorada para se apresentar e a de maior intensidade em toda o decurso da história, a família Lacasse passa do pauperismo inicial ao bem-estar material ao final.

Contudo, Blais (1970) tece comentários de que não é uma obra inovadora, é uma narrativa linear habitual e não tem bom desenvolvimento da história. Mesmo assim, tem-na como complexa e densa por suas segmentações e é deveras descritiva, com número expressivo de capítulos, sem títulos, um e outro assemelham-se acessórios. Também considera relevante a análise das condições socioeconômicas, psicológicas e históricas, as quais são importantes para a trama.

Enquanto Lemire (1969) afirma que, não obstante certo estranhamento na escritura e titubeios no desenvolvimento de Bonheur d’occasion, mas apresenta profundidade e acuracidade que não tinha visto no romance quebequense. E adiciona que Roy ilustrou o drama de uma população em que a vida urbana era pior que a guerra.

Sugere-se que alguns itens abordados que Blais (1970) fundamentaram-se em sua predileção a um estilo de escrita.  Ideamos que o romance poderia ser mais breve, há eventos que são repetitivos, como o fato de Azarius nunca conseguir um emprego permanente, mas é questão de escolha, por isso, é descritivo, mas a vantagem é que os detalhes facilitam a inserção do leitor no cenário.

Outros pontos que divergimos de Blais (1970) é que a não denominação dos capítulos nada afeta, bem como não visualizamos a complexidade referida. Todavia, a história é densa, afinal, contém 442 páginas.

Não conseguimos observar a razão para Lemire (1996) adjetivar a obra de estranha, contudo se não fossem os titubeios — o que Blais (1970) denomina de falta de desenvolvimento —, ela poderia ser menos longa.

Boivin (1996) aponta que a guerra é o subtema do romance. Muitos não a veem como um problema, mas, sim, como uma salvação para o bairro Saint-Henri, exceto Rose-Anna; o que leva à sugestão do título Salvação pela guerra.

Sobre imbróglio bélico, tanto Lemire (1969) quanto Boivin (1996) superestimam a sua valoração nos rumos da narrativa por intitularem os seus artigos como Bonheur d’occasion ou Le salut par la guerre [Felicidade de segunda mão ou a salvação pela guerra, tradução nossa].

No tocante a essa dupla sugestão, opinamos que o título verdadeiro, Bonheur d’occasion, engloba tanto Florentine Lacasse que não conquistou o amor de Jean, mas obteve êxito quanto ao abandono da miséria ao desposar Emmanuel.

Por outro lado, o título proposto também ilustra a mudança de vida da Florentine pelo casamento antecipado devido a partida de Emmanuel para a luta, da Rose-Anna, pelo marido sempre desempregado ter se decidido pelas batalhas.

Posto isso, opinamos que ambos os títulos são coerentes, é uma questão de perspectiva, de valores de quem analisa as opções, como fizeram Lemire (1969) e Boivin (1996).

Elucubramos uma mensagem subliminar na obra: uma repreensão social generalizada sobre como a sociedade é organizada. Porque após três quartos de um século (19452023), não nos atreveríamos a afirmar que nos desenvolvemos no aspecto da solução de litígios por meios outros além dos bélicos e dos entraves sociais.

Blais (1970) apoia a construção das personagens Florentine e Rose-Anna, por suas forças e expressividades e a tibieza dos principais personagens masculinos, Jean e Emanuel.

A tessitura analítica de Blais (1970) é interessante por conseguir enfatizar as suas observações e prover-nos um panorama.

Rannaud (2022) demonstra uma visão diferente dos demais comentadores. Foca a formação da sua capacidade literária e a conquista de público por Roy. As experiências como jornalista na La Revue Moderne e no Le Bulletin des Agriculteurs propiciaram especializar-se em contos sentimentais, que satisfaziam a classe média franco-canadense, mormente as mulheres.

Por certo que as experiências nas duas revistas possibilitaram-lhe o desenvolvimento da escrita para o sucesso de Bonheur d’occasion, porém acrescentamos outras, a página feminina do hebdomadário Le Jour, artigos no Je suis partout (Paris) e em jornais canadenses, no período em que morou na Europa, de 1938 a 1940 (ROY, 2009).

Gabrielle Roy teve uma postura de vanguarda, não se prendia aos padrões sociais da sua época. Ela inseriu os seus comportamentos e pensamentos na obra ao focar nas vidas de Florentine e Rose-Anna, e mostrou os obstáculos delas em uma sociedade patriarcal. Dessa feita, ela apresentou a possibilidade de protagonismo feminino, dadas as suas importâncias no lar e nas relações difíceis (HARVEY, 2021).

Entendemos que a construção do romance com a preponderância das personagens Florentine e Rose-Anna mostrou a importância das mulheres no gerenciamento familiar e expôs as relações sociais entre as mulheres e a sociedade, como também as relações sociais intrafamiliares, as duas não tinham boas relações. Pode-se dizer que temos vários tipos de relações sociais que, são muitas vezes, cerceados por uma cultura, costumes e tradições que causam obstáculos para os avanços das relações sociais.

O ponto de vista de Harvey também diferenciou-se por extrapolar os aspectos sociais voltados à obtenção da subsistência material, da conquista e/ou manutenção de alguma hegemonia (o poder político ou social, por exemplo), mas de outra que é de fundamental relevância, as relações sociais que deve haver para o bem-estar das pessoas, enquanto indivíduos, mas também para construir e manter o funcionamento da sociedade e da família como marcos civilizatórios e de crescimento interior.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Temos limites e/ou barreiras para o desenvolvimento humano. Assim, as áreas do conhecimento devem tentar ausentar-se dessas imposições para que o saber seja acessível ao público e propiciar o seu desenvolvimento.

A literatura é um bem universal, logo devemos trabalhá-la como um objeto de estudo sem nuances fronteiriças ou mesmo de conceitos que impeçam o acesso dos interessados.

Quase tudo tem o seu porquê. Por que Gabrielle Roy escreveu o romance Bonheur d’occasion? Por que resolvemos escrever sobre essa obra? e assim por diante.

A razão de o iniciarmos é a baixa existência de ofertas de obras franco-canadenses aos brasileiros. Esta, por exemplo, não é disponibilizada em português. Se o interesse aumentar pode-se incrementar também o número de opções traduzidas de autores vários. Outro foi: por que os Lacasse tiveram problemas? Eles foram de diversos tipos e montas, por exemplo, a prole extensa, um momento econômico multifacetado, tais como, o quadro socioeconômico pós Primeira Guerra Mundial, a crise econômica de 1929, o êxodo rural, a desqualificação profissional da família e a iminência da Segunda Guerra Mundial.  Poderíamos resumir isso em problemas socioeconômico-culturais e relacionais. Se ainda quisermos abreviar, sociais. Afinal, os seres humanos não são apenas matéria.

Para conectar a feitura da obra, sua trama e a realidade de então, recorremos às Variações do Estudo do tipo Sociológico em literatura para embasar o romance. O que nos sugere que a narrativa trata das agruras sociorrelacionais da família Lacasse.

Sendo uma análise baseada no aspecto social, esses personagens não sofreram ou partiram para guerra sozinhos, tinha-se a população, de maneira próxima ou não, mas ninguém estava ileso.

Os articulistas (Lemire,1969; Boivin,1996) propuseram a mudança do título Bonheur d’occasion para Le salu par la guerre. Ela não é de todo desconexa, porém desviaria o foco da protagonista Florentine e a sua busca para evadir-se da paupérie por via do casamento, concentraria a atenção sobre muitos outros personagens, como o conflito mundial mudaria muitas vidas e até salvaria outras da morte pela fome, a sua inserção na fila de possíveis mortos nos campos de confrontação, o que requereria arranjos. Acreditamos que o título real cumpre o seu papel.

Não obstante a obra ser antiga, ela é meritória de ser mais investigada por e para lusofalantes, por ser a primeira dentre tantas obras de uma reconhecida autora franco-canadense e por sua importância em um momento socio-histórico canadense.

REFERÊNCIAS

ABL. Sílvio Romero – Biografia. 2022. Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/silvio-romero/biografia. Acesso em: 26 dez. 2022.

BLAIS, Jacques. L’unité organique de « Bonheur d’occasion ». Études françaises, Volume 6, numéro 1, février 1970. Disponível em: https://id.erudit.org/iderudit/036429ar. Acesso em 15 abr. 2019

BOIVIN, Aurélien. Bonheur d’occasion ou le salut par la guerre. Québec français, n.102, été 1996. Disponível em: https://www.erudit.org/en/journals/qf/1996-n102-qf1377394/58639ac.pdf. Acesso em: 28 out. 2022.

CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 9ª. edição revista pelo autor, 2006, 198 páginas.

CEVASCO, Maria Elisa. O Diferencial da Crítica Materialista. Ideias, Campinas, SP, v. 4, n. 2, 2013, p. 15-30. Disponível em:  https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ideias/article/view/8649378. Acesso em   26 set. 2021

HARVEY, Carol J. Gabrielle Roy, pionnière en paroles et en gestes. Cahiers franco-canadiens de l’Ouest, 33(1-2), 2021, p. 227–243.  Disponível em: https://www.erudit.org/fr/revues/cfco/2021-v33-n1-2-cfco06546/1083773ar/. Acesso em: 11 ago. 2023.

LEMIRE, Maurice. Bonheur d’occasion ou le salut par la guerre. Recherches sociographiques, v. 10, n.1, 1969. Disponível em: https://www.erudit.org/en/journals/rs/1969-v10-n1-rs1523/055438ar.pdf. Acesso em: 28 out. 2022.

NAÇÕES UNIDAS. Fome cresce no mundo e atinge 9,8% da população global. 2022. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2022/07/1794722. Acesso em: 05 jun. 2023.

ROY, Gabrielle. Bonheur d’occasion. Montreal: Boréal, 2009, 442 páginas.

RANNAUD, Adrien. Désirs d’amour, magazine et culture moyenne chez Gabrielle Roy. Autour de trois nouvelles sentimentales publiées dans La Revue moderne en 1940. Études françaises, 58(1), 2022, p. 77–94. Disponível em: https://www.erudit.org/fr/revues/etudfr/2022-v58-n1-etudfr07041/1089742ar.pdf. Acesso em: 11 ago. 2023.

SILVA, Marisa Corrêa. Crítica Sociológica. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Org.). Teoria Literária: Abordagens Históricas e Tendências Contemporâneas. 3ª. ed. rev. e ampl. Maringá: Eduem, 2009, p. 177-188.

[1] Mestrando em Letras, Estudos Literários, na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Graduado em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). ORCID: 0000-0002-8847-7684. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8409663613960319.

Enviado: 21 de agosto, 2023.

Aprovado: 24 de agosto, 2023.

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Ismar dos Reis Magalhães

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