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Brasil e Angola uma Análise Comparativa entre Cinco Dias Depois da Independência e Capitães da Areia e a Compreensão de Texto Direcionado para Criança

RC: 8911
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CONTEÚDO

FILHO, Eliel Moraes dos Santos [1]

FILHO, Eliel Moraes dos Santos. Brasil e Angola uma Análise Comparativa entre Cinco Dias Depois da Independência e Capitães da Areia e a Compreensão de Texto Direcionado para Criança [2]. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Edição 04. Ano 02, Vol. 01. pp 51-68, Julho de 2017. ISSN:2448-0959

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo principal pesquisar e comparar como as narrativas Cinco dias depois da independência e Capitães da Areia dos autores Manoel Rui e Jorge Amado possuem semelhanças no que se refere o texto infantil e não infantil. Neste fito pretende-se analisar como é mostrada a luta pela independência no texto de Manoel Rui envolvendo crianças e como são personificadas as crianças em Capitães da Areia de Jorge Amado no embate de classe social. Com isso questiona-se discutir possibilidades que os respectivos textos podem ser considerados também para o público infantil, visto que, deve-se levar em consideração a época contexto social, político e cultural das obras em questão. Para estabelecimento da discussão utilizaremos como suporte teórico: Daniel Conte, João Henrique Fernandes Leite, Maria Celestina, Murilo Ferreira da Costa, Rita Chaves dentre outros.

Palavras-Chave: Combate, Independência, Narrativas, Angola.

INTRODUÇÃO

Uma narrativa pode passar diversos sentidos estéticos para o leitor podendo ser interpretada ou criticada por diversos vieses a depender de como ela trata os elementos essenciais que configura e dão sentido ao texto. Cada texto possui uma forma de dizer ao leitor, ainda que, o que esteja explícito nele não se entenda como adequado, ou não seja considerado padrão pela indústria cultural ou pelos modelos do que seria apropriado ou não apropriado para um determinado público. Nesse sentido a literatura é fragmentada e imposta como produto cultural ou industrial, visto que, ela também pode ser por assim dizer repartida ou dividida em literatura infantil e não infantil.

No entanto, vale dizer que essa distinção nem sempre foi assim, pois como é sabido o ato de contar uma história, por exemplo, surgiu com os contadores que contavam oralmente para um público misto no qual estavam presentes adultos, jovens, crianças e idosos, todos reunidos em um só ambiente onde não possuía distinção e separação entre crianças e adultos. E o que mais impressionava é que essas histórias possuíam conteúdos dos mais diversos contextos, como violência, sexo, lendas, misticismo… E em épocas posteriores surge a literatura escrita onde foram registrados textos orais que foram ganhando novas releituras até se tornar texto indicado ou direcionado para determinado público, ou seja, o público infantil, não que fosse negado o direito de um adulto poder ter acesso, mais sim indicado para a criança.

Na contemporaneidade o texto infantil possui o formato de um texto que contem uma linguagem simples com poucas palavras, mais com a presença de imagens coloridas nas quais podem aparecer animais, brinquedos e outros elementos do universo infantil. As histórias geralmente são fictícias ou com base em algum fato real que podem ser as fábulas, os contos, as lendas, os poemas… Tudo para que haja uma ligação entre o mundo infantil e mundo que se espera que seria idealizado para uma criança. Porém é preciso ressaltar que o mundo é composto e amplo, existe as múltiplas realidades as quais nem sempre são como queríamos que fosse. Em alguma parte do mundo pode ter existido tranquilidade e paz entre as pessoas, mais se pesquisarmos a história da colonização dos países constata-se que isso foi ocorrido com muitos confrontos e derramamento de sangue e nos dias atuais a realidade não está muito distante disso.

É neste sentido que a literatura infantil angolana surge após um longo período de guerra entre colonizador e colonizado e é com heranças destes combates que nasce a literatura direcionada para o público infantil, visto que, crianças faziam parte do cenário de guerras atuando como protagonistas da história daquela nação. Seus textos diferentes dos textos infantis brasileiros eram escritos em letras grandes e desprovidos de ilustrações, a linguagem era popular bem próxima da oralidade, uma vez que, é da tradição africana o costume de contar histórias oralmente.

Daí a reporta para a visão central que é conhecida nos contos de fadas clássicos que narra uma história, um conflito de ordem existencial onde a mocinha luta pela ascensão, social casa-se com um príncipe, e no final vivem felizes para sempre. Na realidade o que se vê não é isso, mais sim, confrontos, combates, guerras, desventuras, muitas lutas, uns vencendo e outros vencidos, uns na miséria, outros na opulência, uns no que muitos chamam “felicidade”, outros nas mais tristes das desventuras.

Dessa forma, a intensão deste trabalho não é generalizar e nem diminuir o modelo de literatura infantil vigente, mais mostrar que existe um contraste com o que se quer que a criança entenda e pense da realidade que a cerca, pois na verdade tal realidade vivida pelas crianças que estão imbuídas em meio a tantas formas de escravidão dentre as quais uma raça que explora a outra, isso de forma nenhuma pode ser encoberto ou mascarado por trás de histórias que sempre trás como final, “foram felizes para sempre”, por que esta felicidade não existe e não é vivenciada por estas crianças.

É nessa perspectiva que pretendemos comparar como Manoel Rui texto angolano e Jorge Amado texto brasileiro se assemelham um com o outro no que se refere a narrativas onde crianças são os personagens principais. Os autores tercem a ficção com base na mais pura e nítida realidade de seus países. Temos como pergunta de partida: Em que medida pode-se considerar as narrativas Cinco dias depois da independência e Capitães de Areia, textos infantis?

Para tanto, este artigo ficou estruturado da seguinte forma. Discutiremos na primeira seção os elementos que apontam que os textos de Manuel Rui e de Jorge Amado podem ser considerados textos para o público infantil, conforme a época e contexto social, político e cultural. Na segunda seção analisaremos como ocorre o combate pela independência onde crianças são participantes da guerra como adultos, em Manoel Rui e como é mostrado o embate de classe social onde crianças são mais vítimas que agressores na sociedade baiana em Capitães da Areia de Jorge Amado.

A LITERATURA INFANTIL ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA E A NARRATIVA AMADIANA NO CONTEXTO SOCIAL E POLÍTICO BRASILEIRO

A literatura possui um papel importantíssimo na vida dos indivíduos, pois ela tem o poder de desvendar e transformar mundos, por meio dela é possível sair da condição de alienação e tornar-se desalienado, no entanto, se esse papel não é empregado menos indivíduos terão a capacidade de entender o mundo que o cerca. A literatura provoca e impacta na criança não somente a função recreativa e lúdica, mais a função esclarecedora de vê o mundo como ele é, sem vendas e sem disfarces.

Neste sentido convém-nos abordarmos sobre a literatura infantil angolana que surge após um cenário de combates em um período pós-independência. Angola é colonizada pelos portugueses por causas de seus produtos e das riquezas de suas terras, após muitos anos de colonização surgem os movimentos de resistência que um deles leva Angola a se tornar independente e assumir a identidade do povo africano, visto que, sua cultura estaria sendo apagada e introjetada outra, a do português.

Dentro dessa perspectiva faz-se necessário fazermos uma retomada na história angolana no que se refere aos movimentos de libertação deste país, visto que, eles foram a base para a tão sonhada independência. Estes movimentos eram o (MPLA) Movimento popular de libertação de Angola, (FNLA) Frente nacional de libertação de Angola, e (UNITA) União nacional para independência total de Angola. Para que a independência acontecesse junto a estes movimentos, foi preciso o apoio de potências estrangeiras, Estados Unidos, União Soviética, Zaire e China. Para fundamentar com mais propriedade, João Henrique Fernandes Leite no seu trabalho monográfico “O Brasil e a Independência de Angola” apresentado ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense discorre a cerca desta questão.

Em Angola, a luta contra o colonizador se tornou mais organizado com a criação dos movimentos de libertação que receberam apoio de potencias estrangeiras. A União Soviética e os Estados Unidos foram os principais patrocinadores da luta armada angolana junto com Cuba, África do Sul, Zaire e China. Tanto os soviéticos quanto os norte-americanos tinham o interesse em promover suas ideologias na África, para estabelecerem relações politicas, econômicas e estratégicas com os países oriundos da descolonização portuguesa. (FERNANDES, 2010, p.17).

Entende-se que as potências estrangeiras de fato ajudaram a tornar Angola livre do império de Portugal, porém tinha como objetivo fixar aos três movimentos de libertação, pois por trás desse subsidio havia interesses políticos e econômicos da mesma natureza que Portugal possuía. De acordo com, (JOÃO HENRIQUE, 2010, p.17), os três movimentos de independência angolanos, “não escondiam suas desconfianças com o novo governo instaurado com a revolução dos cravos. Contudo, assinaram na segunda metade de 1974 acordos separados de cessar-fogo. E, posteriormente, em 15 de janeiro de 1975, assinaram o acordo de Alvor (em Algarve, Portugal) com o governo português.” Para melhor compreensão faremos um breve resumo dos movimentos que buscavam a independência de Angola.

O FNLA operava a norte do país e tinha como líder Holden Roberto, ante comunista que possuía laços com Zaire, uma vez que, Zaire era abastecida com armas pelos Estados Unidos. De acordo com João Henrique este movimento:

O prestígio internacional de Holden Roberto e um discurso ideológico anticomunista foram essenciais para FNLA receber o apoio dos Estados Unidos. Além do auxilio financeiro dos norte-americanos, o movimento recebeu o apoio logístico e militar do Zaire, sob a presidência do Mobutu Sese Seko. Essa ligação entre Roberto e o ditador Mobuto garantia a luta de guerrilha efetuada pela FNLA no nordeste de Angola. No ex-Congo Belga estavam as bases militares do movimento, que de lá atravessavam a fronteira para atacar seus alvos-portugueses e as forças militares do MPLA – em território angolano.  (FERNANDES, 2010, p. 20)

UNITA dirigida por Jonas Savimbi se estabeleceu a Sul de Angola, Jonas Savimbi que fazia parte do FNLA após divergências internas e com Holden Roberto funda o movimento UNITA. O movimento UNITA possuía apoio de entidades religiosas e política o que fazia com que Savimbi fosse visto pelo seu povo como um líder carismático e amado por todos que o seguia e também possuía fortes laços com os Estados Unidos. Para Henrique o processo de formação do movimento UNITA se deu:

Sabe-se que durante esse período de dois anos, entre a dissidência e a formação da UNITA, Savimbi cogitou sua ida para o MPLA, mais, segundo ele, teria ficado decepcionado com a capacidade de ação militar do movimento de Agostinho Neto, o que o incentivou a criar seu próprio movimento. Já que, para Jonas Savimbi, a solução para o fim do colonialismo português só viria através das armas. Apesar de a UNITA instalar-se ao sul e possuir sua base étnica predominantemente de ovimbundos, a organização conseguiu um forte apoio das populações tchokwé ganguela – situados ao leste de Angola, onde se iniciou a atuação guerrilheira do movimento. (FERNANDES, 2010, p. 22).

O MPLA era dos três movimentos o maior de todos, se estabelecia em Luanda capital, o qual era dirigido por Agostinho Neto e Lucio Lara, se aliou a Cuba Che Guevara e Moscou. Sobre este movimento o mesmo autor supracitado, tem a nos dizer:

A superioridade militar do MPLA é claramente vista na “batalha de Luanda”, em julho de 1975, na qual o movimento de Neto expulsa a UNITA e a FNLA da capital Angola e passa a ser o único movimento no governo controlando militarmente doze das então dezesseis províncias do país. Portanto, ao mesmo tempo em que o apoio externo foi importante para a luta contra o colonialismo português, ele foi decisivo para o fracasso do acordo de Alvor. A presença de países como URSS, Cuba, China, EUA, Zaire e a África do Sul só dificultaram o processo de descolonização em Angola, fazendo do país palco de mais um episodio da guerra Fria. (FERNANDES, 2010, p. 25)

Nota-se que os movimentos foram a base da resistência dos angolanos em busca da independência que conta com ajuda dos estrangeiros para proclamar a república de Angola e não tardou muito para isso acontecer. De acordo com o artigo produzido por Maria Celestina Fernandes, Angola se tornou independente em,

Assim sendo, importa referir que Angola ascendeu à independência a 11 de novembro. Foi as zero hora do dia 11 de novembro de 1975, no Largo 1º de Maio, hoje denominado Largo da Independência, que o primeiro presidente da República, o médico escritor Dr. Antônio Agostinho Neto, pronunciou numa voz embargada pela emoção o discurso da proclamação, imortalizado pelas palavras: “Às 0 horas do dia 11 de novembro de 1975, sob o olhar silencioso de Lénine, o Bureau politico do MPLA proclama solenemente perante a África e o mundo a Republica Popular de Angola”.

É ai que entra o papel da literatura, depois do período de proclamação da república de Angola começam a serem publicadas obras de autores que escreviam na fase efervescente da guerra que de forma nenhuma poderia ter seus escritos publicados, pois eram perseguidos e não lhes eram permitidos escrever sobre suas próprias origens, mais mesmo assim havia autores que escreviam e engavetavam seus trabalhos com a esperança que um dia a libertação ocorresse e seus textos pudessem serem lidos pelos cidadãos angolanos. Sobre este fato Maria Celestina ressalta que:

Um mês depois, a 10 de Dezembro de 1975, foi proclamada a União dos Escritores Angolanos (UEA), por um punhado de cidadãos, alguns já reconhecidos escritores, como Antônio Neto, Antônio Jacinto, Luandino Vieira, Arnaldo Santos, Artur Mauricio Pestana (que usa o apelido de guerra Pepetela, que significa pestana em Kimbundo), Agostinho Mendes de Carvalho (de nome quimbundo Uanhanga Xitu), Manoel Rui Monteiro e outros tantos, alguns ainda desconhecidos. Apenas uma mulher sobrescreveu a acta constitutiva da UEA, essa mulher é Maria Eugenia Neto, esposa de Agostinho Neto, que fazia parte da lista de escritores sem obra publicada na altura.

Vale dizer que esses referidos escritores escreviam, porém não havia destinação entre literatura infantil e não infantil mais sim obras que se aproximavam dos padrões que outros países consideravam apropriado para criança. Um exemplo é a narrativa de Artur Pestana, Pepetela em sua obra As aventuras de Ngunga que pode ser também entendido como um texto voltado para o público infantil, (DANIEL, 2008, p. 14), “As aventuras de Ngunga, que é a epopeia maior da literatura angolana, na qual aparecem as críticas à cultura tradicional, a conscientização da mudança necessária e ainda o processo pelo qual passa o povo até começar a caminhar sozinho…” dentre outras obras do autor as quais se destacam Mayombe, Yaka, O cão e os Calundas, O desejo de Kianda, Cagado velho e A geração da utopia, com indicação para o publico infanto-juvenil.

Dentro desse contexto não poderíamos deixar de explicitar a figura de Manoel Rui autor da obra Cinco dias depois da independência, a qual é objeto deste estudo. Em Cinco dias depois da independência é visto o cenário de guerra onde os principais personagens são crianças que lutam contra o colonizador de seu país, lutam como pessoas adultas em nome de um movimento de libertação de Angola.

Rui transita pelos vários gêneros literários inclusive pela literatura infantil, Maria Celestina, “a Manoel Rui cabe, portanto, a honra de ser o primeiro escritor a produzir obras para crianças em Angola, logo após a independência.”. Vale dizer que ele escreve com base nos acontecimentos no contexto da guerra em Angola onde retrata a triste e cruel realidade dos combates armados. Suas obras são de grande relevância para a literatura africana, pois representa dentre outros um ícone desta literatura. Sobre Manoel Rui, Ricardo Riso nos diz o seguinte.

Manoel Rui Monteiro, ou Manoel Rui, é um escritor multifacetado, pois passeia por diversos gêneros literários como o conto, a poesia, a novela, o romance, além de escrever ensaios, músicas populares, cabe aqui ressaltar a intensa amizade com o compositor brasileiro Martinho da Vila, além de ter participado da luta de libertação contra o jugo colonial português e ser o autor de hino nacional de Angola. Só esta última citação já nos da ideia dá importância deste escritor para o seu país.

Manoel Rui resgata a cultura e a língua africana, uma cultura que o europeu marginalizou e disseminou o mito da superioridade racial quando divide a África em várias línguas para assim dominar a cultura africana. Em Rui nota-se que os aspectos da linguagem nem sempre obedece às regras gramaticais, pois seus textos são oriundos de uma cultura oral, são para serem ouvidos oralizados e suas palavras possuem musicalidade, ritmo o que faz com que o texto seja desprovido de termos gramaticais. Sobre esta questão Rita Chaves em trabalho publicado “Passado Presente na Literatura Africana”, ressalta que,

A presença do passado nesses termos é mais funda e marcada pela contradição que sela a condição colonial. Num mundo em que a escrita vem inserida num clima de trágicas transformações, a relação com a tradição oral se dá como um dilema, um dos tantos com que se debate o escritor angolano. Sobre o assunto, pronunciou-se o poeta e ficcionista Manoel Rui em dois brilhantes ensaios nos quais aborda a complexidade das relações entre esses dois universos culturais de que se forma a identidade angolana. Para ele, a postura invasiva do europeu estabelece uma incompatibilidade que só é revertida pela força da transformação que a resistência assegura. Sintetizada no jogo entre a escrita e o oral, a questão se abre.

Assim, a trajetória da escrita foi alterada pela colonização, pois além de usurparem os recursos da terra foram usurpados também a cultura de um povo juntamente com sua fala, com sua escrita.  E Manoel Rui escreve com o intuito de recuperar o que se perdeu no passado para que no presente ainda se tenha herança dos seus antepassados, visto que, a identidade do africano foi deformada restando apenas uma mistura de linguagem imposta sem nenhuma preocupação com a identidade desta terra. De acordo com Rita Chaves:

Foram muitas as rupturas agenciadas pelo colonizador. Entre as mais drásticas, está o afastamento entre o colonizado e sua língua de origem. E nesse campo, a situação atinge um patamar dramático. Porque aqui se impõe um corte de caráter irreversível. Impedido de falar a sua língua, o dominado também não tem acesso à língua do colonizador. Seu universo fica assim comprometido pelo risco da incompatibilidade, que levaria à morte de toda e qualquer forma cultural. Para à situação de emparedamento, a saída deve se guiar pelo pragmatismo, ou seja, para expressar a luta contra o mal que se abateu sobre o seu mundo, é necessário valer-se de um dos instrumentos de dominação: a língua do outro.

Nesse sentido percebe-se que o colonizador deixou sua marca não somente no processo da independência, mais na forma como a linguagem angolana deveria ser externada, visto que, uma cultura estaria sendo excluída e imposta outra que não condizia com a realidade daquela terra. Nota-se que a forma de falar dos angolanos é expressiva, os gestos fazem parte de suas fala, as expressões emoções e ritmos da linguagem lhes fazem serem identificados como uma linguagem cantada e diferenciada. A cerca da oralidade e a oratura, Maria Celestina Fernandes aborda:

A oralidade está muito presente nas obras como forma de atrair a atenção das crianças pela linguagem e alguns contos são inspirados na oratura a fim de introduzi-las na cultura tradicional. Aparecem personagens que são figuras míticas, como a sereia kianda, a deusa das águas, os gingongos (gêmeos, tidos como pessoas sobrenaturais) e também os seres inanimados da natureza que falam, sentem e se emocionam como os humanos. Os autores identificam-se bastante com o seu meio, a terra de origem. Uma terra circundada por águas misteriosas de mares, rios e lagos, cujos habitantes se apegam a mitos e crenças, particularmente o feitiço e a superstição.

Parafraseando Murilo Ferreira da Costa, “é desta maneira que Rui subverte a norma gramatical dando lugar a escrita griotizada”, ou seja, uma escrita que utiliza como fundamento histórias contadas pelos contadores de história que faz parte da tradição oral africana. Dessa forma convém-nos esclarecer o significado de griotizada que vem da palavra “griô. De acordo com o dicionário Priberam da Língua Portuguesa,

Griô[3]: relativo a pessoa que pertence a uma casta profissional de depositários da tradição oral africana, exercendo funções de poeta, cantor, contador de historias e músico, a quem são frequentemente atribuídos poderes sobrenaturais (ex.: a banda conjuga o fraseado melódico da tradição griô com elementos de musica contemporânea; o cantor pertence a uma família de várias gerações de griôs).

Assim, Manoel Rui procura mostrar em seus textos a identidade de verdadeira do seu povo, o que restou da marginalização colonial e linguística da África, um texto sem imposição de padrões que é considerado para adulto ou para criança, porém um texto que mostra o contexto e a agressão do colonizador, (MANOEL RUI), “mais agora sinto vontade de me apoderar do teu canhão, desmontá-lo peça a peça, refazê-lo e disparar não contra o teu texto não na intenção de liquidar, mas para exterminar dele a parte que me agride”.

Se no texto de Manoel Rui nota-se a luta pelo processo de independência e pela originalidade da cultura angolana, em Capitães da Areia de Jorge Amado percebe-se o contraste entre as classes sociais, onde a luta é pela sobrevivência, na qual a opressão é por assim dizer, materializada pela classe dominante que exclui a outra a menos favorecida, vítima de um sistema cruel e perverso, a esta classe marginalizada lhes são negados os direitos de voz e de vez.

Parafraseando as palavras de Maria Auxiliadora Fontana e Maria Zilda da Cunha, “Jorge Amado em seus textos tratam de questões referentes a exclusão social, a engajamento político, a opressão pelos sistemas de governos, delitos, violências dentre outros”. O autor também possui obras que são destinadas para o público infantil, dente as mais conhecidas destacam-se O gato malhado e a andorinha sinhá, A bola e o goleiro e a ratinha branca de pé de vento e a Bagagem de Otália. De acordo com as referidas autoras, sobre Capitães da Areia “a primeira edição, lançada logo depois da implantação do Estado Novo, foi apreendida, incinerada e proibida por ser considerada uma obra simpatizante da ideologia comunista”.  Maria Auxiliadora e Maria Zilda, apud (JAMESON, 1992), esclarece que,

Capitães da areia traz elementos de um contexto literário marcadamente neorrealista, apresentando ao leitor uma visão social da realidade histórica da década de 30 – uma literatura passível de funcionar como “meditação simbólica sobre o destino de uma comunidade”.

Como foi colocado nas informações acima o escritor engajado enfrenta a censura pra poder denunciar por meio da literatura os problemas de cunho social e político da sociedade baiana, que num entanto, não era somente uma realidade do Estado baiano, mais uma realidade que se percebia em todos os Estados do país, mais notadamente na região nordeste. Ao ler o romance percebe-se que há um embate social entre ricos e pobres onde o pobre jamais via nenhum rico com bons olhos, enquanto o rico desumanizava o pobre e o enxerga como uma classe inferiorizada e perigosa. E os textos que eram publicados precisavam estar em consonância com a base governamental do país. Capitães da Areia sem sombra de dúvidas soou como uma ofensa à sociedade e muito mais aos lideres governantes do período.  De acordo com Maria do Socorro Oliveira,

O regime político militar decretava a censura prévia para a todos os veículos de comunicação em território nacional, assim o Brasil passou a viver um verdadeiro clima de terror. Dessa forma, os meios culturais como o romance, teatro, musica e poesia eram mantidos sobre controle. O produto cultural só era liberado para a sociedade se os sensores o julgassem inofensivo ao sistema político. (OLIVEIRA, 2012, p. 27).

Vale dizer que, Jorge Amado mesmo sendo vítima da censura fez uso da linguagem apoiando no contexto histórico do período em que o neorrealismo de 1930 legitimava uma proposta de mostrar a sociedade os conflitos e as mazelas sociais, visto que, o autor fazia parte do partido comunista brasileiro o qual era reprimido pelo partido da gestão política vigente. Sobre esta questão Maria Auxiliadora aborda que, “Capitães da Areia é um romance escrito em que a literatura amadiana estava voltada à exploração da temática político-ideológica em confluência com a “cartilha” do partido comunista, do qual o autor fazia parte”. Nesse sentido a autora supracitada esclarece,

Influenciada por este contexto histórico, a chamada Geração dos escritores de 30 deixa de lado o entusiasmo inicial do Movimento Modernista no tocante à formação de uma identidade nacional e volta-se para a produção de uma literatura empenhada em retratar as condições miseráveis das classes trabalhadoras e as distancias entre as classes sociais. Desta forma, a arte literária ganha tom de combate e de denuncia.

E dessa forma os grupos sociais e as figuras das classes menos favorecidas e estereotipadas ganham voz por meio da literatura, tornando-se heróis, porém vítimas do sistema, mais que gritavam por justiça. Percebe-se que as personagens principais das tramas de Jorge Amado sempre aparecem as prostitutas, o negro, homossexuais, ladrões dentre outros grupos vítimas da marginalização da sociedade, estas pessoas viviam a margem da pobreza, da miséria sem direito a educação, trabalho laser ou qualquer outra forma de direito essências a vida humana. Maria do Socorro Oliveira apud Bosi (2006), tem a nos dizer:

Segundo Bosi (2006), os anos 30 e 40 foram marcados pelo desejo de presenciar o Brasil dar um salto qualitativo, ancorado no eco da literatura de Caio Prado Jr, José Castro, Jorge Amado dentre outros. Esses autores firmaram com o seu espirito de esperança o seu oficio de escritor por se interessarem pelas aspirações do seu contexto. Um período em que a sociedade vivia a angustia do pós-guerra que indiretamente atingiu o Brasil, da efervescência política e social pelo qual a miséria reinava, o romance moderno veio apresentar a tensão existencial entre o escritor e a sociedade. Contudo, a instância narrativa evoca “[…] a figura do ‘herói problemático’, em tensão com as estruturas incapazes de atuar os valores que a mesma sociedade prega”. (BOSI, 2006, p. 391).

Estes escritores traziam à tona as vozes dos excluídos no período de grande efervescência pós-guerra que consequentemente também atinge o Brasil. Assim como no contexto angolano pós-guerra a literatura seja lá qual for o lugar ou a denominação, infantil ou não infantil, possui papel de extrema importância para a formação crítica da concepção humana, é um veiculo de comunicação desalienante capaz de interferir no processo de formação das vidas das pessoas.

MENINOS NA GUERRA PELA INDEPENDÊNCIA E MENINOS NO COMBATE PELA SOBREVIVÊNCIA NO CONFLITO DE CLASSE SOCIAL

 Cinco dias depois da independência e Capitães da Areia são dois textos de países diferentes, mais com idênticas conotações políticas econômicas e ideológicas. Para tanto confrontaremos as duas obras, no entanto, faz-se necessário apresentarmos brevemente como se passa as histórias e alguns personagens.

Cinco dias depois da independência foi publicado em por Manoel Rui no período próximo à independência de Angola. Conta a história de crianças que são denominadas de pioneiros e que participam da guerra de Angola contra as forças colonizadoras. Essas crianças participavam de ações contra os inimigos e eram exaltadas pela população, entre eles existiam um líder que comandavam as ações do grupo o comandante Kwenha. As crianças não possuíam nomes, mais eram denominados apenas de pioneiros, destacam alguns personagem, como Carlota, camarada Neto, Stela, Nicolau e outros que faziam parte do enredo. Os pioneiros sabiam identificar as armas das Faplas e dos inimigos por meio dos sons que reproduziam. Essas crianças não eram alfabetizadas viviam nas ruas lutando como pessoas adultas contra o colonizador. Estavam acostumados com a barbaridade e com o clima de constante brutalidade da guerra, no entanto sabiam que precisavam lutar para libertar seu país da colonização portuguesa.

Capitães da Areia é um romance de Jorge Amado que conta a história de um grupo de meninos abandonados e marginalizados que aterrorizam a cidade de Salvador tendo como únicas pessoas que se relacionavam com eles um padre e uma mãe de santo. No enredo possui a instituição acolhedora desses menores, que é o reformatório que na verdade é um antro de crueldade, também o papel da polícia que serve para puni-los severamente como se fossem adultos. Os principais personagens do romance são Pedro bala o chefe, filho de um líder sindical, Volta Seca, afilhado de Lampião, que tem ódio das autoridades, Professor, que lê e desenha menino talentoso, Gato, que com seu jeito malandro acaba conquistando prostituas Dalva, prostituta e namorada do Gato, Sem-Pernas, coxo que serve de espião e se finge de órfão, e Pirulito que tinha grande fervor na igreja.

Após termos apresentado as duas obras faremos uma análise confrontando como ocorre no conto de Manoel Rui a luta pela independência e como é mostrado o conflito entre classes sociais nos meninos de Jorge Amado. No fragmento que segue mostra que Rui inicia a narrativa já em meio ao clima de guerra, onde o leitor pode sentir que o ambiente onde se passa essas cenas está repleto de muita agonia e desespero. Pois as palavras são fortes chocantes, como morte, metralhadora, pânico, guerra, correria,… Atentemos,

E quando os rebentamentos espalhavam atrapalhação no nervosismo das pessoas e metralhadoras cantavam de rajada e com mais som seu ritmo de morte, a cidade transformava-se num repentino pânico em que o medo de cada um, ora se fazia por um instante de meditado silêncio, alarido, imobilizada expectativa ou correria. Com impaciência, buzinavam os carros nos engarrafamentos. Qual quê sinal encarnado! Alguns mesmo andando de sentido único e vendo à frente a bicha interminável, viravam de infracção naquela via e iam de acelerada loucura demandar outra rota que lhes desse porto no sítio de morar ou permanecer esperando à noite, toda a noite, os resultados da guerra. (RUI, ano, p. 101).

Percebe-se que pessoas estão fugindo da guerra do combate armado onde nenhum lugar parece seguro o clima é de tensão…. Contrapondo com Rui, Jorge Amado também inicia seu romance com semelhante propósito de impactar o leitor, Jorge é bastante claro com o que  pretende dizer no decorrer de sua narrativa, pois ele inicia seu texto com a reportagem de um jornal da tarde, na página de fatos polícias. Se de inicio for feita uma leitura superficial não compreenderá qual o objetivo do autor, porém ao continuar a leitura percebe-se que os fatos tomam outro sentido. Vejamos o fragmento:

Já por várias vezes o nosso jornal, que é sem dúvida o órgão das mais legítimas aspirações da população baiana, tem trazido notícias sobre a atividade criminosa dos “Capitães da Areia”, nome pelo qual é conhecido o grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam a nossa urbe. Essas crianças que tão cedo se dedicaram à tenebrosa carreira do crime não têm moradia certa ou pelo menos a sua moradia ainda não foi localizada. Como também ainda não foi localizado o local onde escondem o produto dos seus assaltos, que se tornam diários, fazendo jus a uma imediata providência do Juiz de Menores e do dr. Chefe de Polícia. Esse bando que vive da rapina se compõe pelo que se sabe, de um número superior a 100 crianças das mais diversas idades, indo desde os 8 aos 16 anos. Crianças que, naturalmente devido ao desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos, se entregam no verdor dos anos a uma vida criminosa. (AMADO, 2001, p. 03).

Como podemos ver o autor utiliza a reportagem como ironia para mostrar a condição de exclusão dos meninos de rua e o mais interessante é que se trata do inicio do romance a forma como ele apresenta os garotos. Os meninos são tachados pelo jornal como assaltantes e ladrões e a culpa desse rótulo é atribuída exclusivamente aos pais por não ter lhes dado uma boa educação. Daí comparado com Manoel Rui entende-se a semelhança de uma narrativa para a outra. Aqui meninos de rua que são vitimas da sociedade, em Rui o contexto é ainda mais amplo, porque se trata de uma guerra onde crianças são também protagonistas. Neste exceto podemos verificar isto.

Se à frente o luar lampejava clareira que denunciava vultos, eles contornavam. Sem saber ler, distinguiam no entanto, pelo desenho, as palavras de ordem do ÉME. E se numa parede de quintal, a pichagem cheirasse a esturro, eles não iam atravessar.

– Avente!

Corriam velozes os pioneiros nessa corrida de ninguém ver, de ninguém ouvir os senhores da noite. Que mais ninguém que eles conhecia tanto as noites de guerra, conversava com elas em clandestinidade segura, lhe ouvia dolentes queixumes, o latir dos cães, o choro das ambulâncias ou lhes contemplava o brilho das estrelas. E, nesse deambular as noites, semeavam também a certeza da vitória, algo detido ente o real e a imaginação, o sonho, as palavras do camarada Presidente, os cânticos revolucionários, as manifestações e os mortos daquele agora de Luanda, muitos que eles descobriam, cadáveres insepultos, já em putrefação no abandono da chafurada de porcos. Caminhos da noite.  (RUI, ano, p. 131).

Percebe-se que o contexto social dos meninos em Cinco dias depois da independência é igual aos meninos de Capitães da Areia, eles não sabem ler nem escrever e reconhecem as palavras pelo desenho de suas letras. Eram em meio às noites na guerra que lutavam enfrentando os perigos que para eles eram circunstancias comuns como descobrir cadáveres insepultos em estado de putrefação, totalmente jogados a própria sorte, eles eram os senhores da noite, no fundo cultivava o desejo de poder ter uma vida diferente desse contexto. Sua realidade era as metralhadoras ouvir o som das armas que já identificava a qual movimento pertencia, era socorrer feridos que chegavam nas ambulâncias.  Em Capitães da Areia tem-se algo parecido,

João José, o professor desde o dia em que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa da Barra, se tornara perito nestes furtos. Nunca, porém, vendia os livros, que ia empilhando num canto do trapiche, sob tijolos, para que os ratos não os roessem. Lia-os todos muitas noites, contava aos outros histórias de aventureiros de homens do mar, de personagens heróicos e lendários, histórias que faziam aqueles olhos vivos se espicharem para o mar ou para as misteriosas ladeiras da cidade, numa ânsia de aventuras e de heroísmo. João José era o único que lia corretamente entre eles e, no entanto, só estivera na escola por um ano e meio. Mas o treino diário da leitura despertara completamente sua imaginação e talvez fosse ele o único que tivesse uma certa consciência do heróico de suas vidas. (AMADO, ano, p. 24).

Comprova-se a exclusão dos meninos que viviam a margem da sociedade sem nenhum direito que lhes garantisse uma vida melhor. Roubavam para sobreviver, pois não tinha outra opção a não ser fazer isso. Não eram alfabetizados e apenas João José “o professor”, lia, os demais não tinha e não podia ter acesso a educação, porque o sistema não permitia que tivessem, pois o período econômico e político era crítico.  Vale dizer que o ano de 1930 marcou o Brasil com o fim da república velha, da política e da economia do café com leite, acentuando a crise das oligarquias e abrindo as portas para as renovações políticas e econômicas que ocorreram durante a Era Vargas.  Manoel Rui explora em Cinco dias depois da independência.

Ela tinha as mãos bem agarradas no ventre. Assustada, descobria nos braços as únicas armas para defender essa multiplicação que trazia na barriga. Dentro do esgoto, haviam gatinhado uns sete ou oito metros ate o pioneiro dizer aqui. […] (RUI ano p. 134).

[…] – como é? Estamos em guerra e a vitória é certa. Ninguém chora. Olha ainda se o camarada Presidente sabe um camarada a chorar assim! Não pode. Com as lagrimas correndo muitas sobre a face, conteve os soluços, baixou suavemente a cabeça e, envergonhada, embrulhou o rosto com as pontas do vestido. O pioneiro tinha razão. Afinal ela era militante do MPLA. Não devia chorar… (Rui ano, p. 140-141).

Porem Carlota via no pioneiro toda a trajetória da segunda guerra de libertação. O povo correndo pelas ruas de Luanda sem temer o fogo dos fantoches, o povo de mãos abertas a pedir armas e as multidões a gritarem contra o imperialismo. O que mais a contagiava era a certeza na vitória, a maneira como as pessoas se organizavam pensando no futuro, na independência. A maneira como as pessoas teimavam que aquele Governo de Transição só podia ter um fim: o MPLA no poder e os lacaios derrotados. Todos os dias apareciam cadáveres. Mulheres eram violentadas pelo elna. Era grande chamada do Uíde, malanje ou Lubango, para contar a forma como um marido fora esquartejado às vistas da esposa, uma criança apunhalada por falar no MPLA ou uma jovem violada por soldados do elna que no fim lhe raparam o cabelo sabre, lhe obrigando a comer. (Rui ano, p. 148-149).

… Depois de cada vitória. Os pioneiros a desfiar depois de cada desgraça. Os pioneiros a morrer no meio dos tiros quando o princípio da vida se anunciava pela independência próxima. Os pioneiros a fabricarem armas. Os pioneiros presentes nos funerais do povo, com o passo certo, ensaiado natural, pé balanceado na frente, braço projecto bailando no futuro, cabeça virada ao lado, na boca o canto, a musica de antepassado sofrimento e com mais força o grito do gritar a profecia: A luta continua! A vitória é certa! (rui, ano p. 150)

Entende-se que Rui coloca a figura dos pioneiros como heróis, visto que, eles salva a personagem Carlota em fase de gestação transportando-a em um tubo de esgoto para poder se proteger dos ataques. Carlota que era militante do movimento MPLA entra em desespero por temer ser morta e consequentemente seu filho também, mais é ai que os pioneiros mostram ser frios perseverantes e resistentes, pois era preciso lutar para vencer e Carlota via nos meninos a trajetória da segunda guerra pela libertação onde o povo ia em marchava com gritos rumo a independência.

Muitas foram as sequelas e os traumas causados pela guerra, mulheres violentadas, crianças assassinadas, homens esquartejados por defenderem seus ideais que levaria no futuro a tão sonhada independência. Entende-se que o cano de esgoto significa uma metáfora do útero, da gestação que logo em seguida nasceria uma nova nação a nação que seria liberta da colonização. A coragem dos meninos assusta, no entanto, leva-se em consideração o contexto em que eles formam criados numa época de transição e decisão da história de Angola. Nesse mesmo sentido de injustiça e desigualdade social, Jorge Amado ressalta em Capitães da Areia,

E pensando em Deus pensou também nos capitães da areia. Eles furtavam, brigavam nas ruas, xingavam nomes, derrubavam negrinhas no areal, por vezes feriam com navalhas ou punhal homens e polícias. Mais, no entanto, eram bons, uns eram amigos dos outros. Se faziam tudo aquilo é que não tinham casa, nem pai, nem mãe, a vida deles era uma vida sem ter comida certa e dormindo num casarão quase sem teto. Se não fizessem tudo aquilo morreriam de fome, porque eram raras as casas que davam de comer a um, de vestir a outro. E nem toda a cidade poderia da a todos. Pirulito pensou que todos estavam condenados ao inferno. (AMADO, ANO, p. 100-101).

No fragmento supracitado fica claro que os meninos eram mais vítimas da sociedade do que a sociedade era vítima deles, se eles roubavam porque não tinham comida no casarão se praticavam outros atos ilícitos, porque não tiveram quem os norteassem no caminho da vida, sendo que seus pais também eram vítimas do sistema que excluía e não permitia que houvesse igualdade entre as pessoas. Nesse sentido em Capitães da Areia também ocorre guerra, guerra entre as classes às quais em todas as épocas poderão existir, porém com as mesmas ou temáticas diferentes, mais nos mesmos contextos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dessa forma nossa intensão neste trabalho foi comparar o texto Cinco dias depois da independência e Capitães da Areia. E para fazermos isso foi necessário retomar um pouco do contexto social de cada país onde por motivos sociais os escritores escreviam com engajamento levantando questões do meio político econômico e social de suas realidades. Nas narrativas que motivou o desenvolvimento deste trabalho fica claro que tanto uma como a outra é um importante veiculo de transmissão de conhecimento além de ser um instrumento de desalienação. Os textos têm como personagens principais crianças, e com isso entende-se que estes textos podem sim ser adequados para o público infantil, pois em cada época surgem novos olhares em torno dos problemas humanitários. Nos referidos textos as crianças são vitimadas pela sociedade, mais partem em luta por questões de sobrevivência, mas ainda assim elas não deixam de serem crianças.

Assim a literatura também pode ser excludente, porque ainda existem grupos que precisam ser representados para poderem afirmar suas identidades e ocuparem seus direitos com respeito e dignidade, porém isso não acontece livremente a censura existe disfarçada para poder controlar o que pode e o que não pode se mostrado ou esclarecido a sociedade. Toda essa restrição faz parte de um sistema que tem como única exclusividade a exploração e a dominação do outro que não permite que as camadas menos favorecidas tenham voz nem tão pouco permitir outros tipos de representações como representar o negro, o índio, o homossexual, a mulher, dentre outros grupos marginalizados que são vistos de formas estereotipadas.

Portanto, o objetivo aqui não foi de classificar nem apontar os textos como infantil e não infantil, mais sim, questionar que eles podem ser lidos por todos os públicos, visto que, a escrita dos dois autores em estudo é um texto que contem cenas chocantes e seus personagens agem com frieza porque não passam de vítimas da sociedade e elas precisam afirmar seu espaço social, embora esta escrita possa causar impacto no leitor, sabe-se que, o que ela transmite é a mais pura e simples representação da realidade nua e crua sem disfarces algum. Ao contrário de muitos textos que não há representações e onde as crianças não se vejam enquanto cidadãs. Muitos destes textos passam uma mensagem fantasiosa sendo que na verdade a realidade é perversa existem os sistemas que ditam e dominam. Nesse sentido deve-se mostrar a criança o real, a realidade como ela é, pois ela precisará ter esta realidade como fundamento para enfrentar e resistir aos conflitos existências da vida torando-se um cidadão crítico e consciente no espaço onde ele habitar.

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Capitães da areia, 103ª ed. Rio de janeiro. Record, 2001.

FERREIRA, Murilo da costa. Monteiro Lobato e Manoel Rui: Estudo comparativo sobre a formação da literatura infanto-juvenil na Literatura Angolana.

RUI, Manuel. Cinco dias depois da independência. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1979. Coleção 2K.

AUXILIADORA, Maria Fontana Baseio e ZILDA, Maria da Cunha. Capitães da Areia em diálogo de linguagens. Disponível em  www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/cadernoseminal/article/download/14290/12980. Acesso em 19.12.16

CELESTINA, Maria Fernandes. Surgimento e Desenvolvimento da Literatura Infantil Angolana pós- independência. Disponível em http://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/301-surgimento-e-desenvolvimento-da-literatura-infantil-angolana-p%C3%B3s-independ%C3%A Ancia. Acesso em 19.12.16

CHAVES, Rita. Passado presente na literatura africana. Disponível em  http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/49794/53898. Acesso em 19.12.16

CONTE, Daniel. Calados por Deus ou de como Angola foi arrastada pela história: Os tons do silêncio no processo de construção da identidade angolana e sua representação na ficção de Pepetela. Disponível em https://www.ufrgs.br/ppgletras/defesas/2008/Daniel_Conte.pdf. Acesso em 20.12.16

HENRIQUE, João Fernandes Leite. O Brasil e a Independência de Angola. Disponível em    http://www.historia.uff.br/nec/sites/default/files/O_BRASIL_E_A_
INDEPENDENCIA_DE_ANGOLA_protegido.pdf. Acesso em
18.12.16

RISO, Ricardo. Manoel Rui – Cinco dias depois da independência. Disponível em  http://ricardoriso.blogspot.com.br/2009/03/manuel-rui-cinco-dias-depois-da.html. Acesso 23.12.16

SOCORRO, do Maria Oliveira. A infância dos Capitães da Areia: “do trapiche à liberdade das ruas”. Disponível em http://periodicos.uern.br/index.php/dialogodasletras/article/viewFile/887/483. Acesso em 23.12.16

2. Artigo apresentado a Prof.º Dr. Murilo Ferreira da Costa do Componente Curricular, Literatura Infanto-juvenil Africana e Afro-brasileira, da Universidade do Estado da Bahia-Uneb, Campus XXI, Ipiaú do Curso de Pós-Graduação-Especialização em Literatura e Linguagens: O texto infanto-juvenil.

3. Termo encontrado no endereço eletrônico,  https://www.priberam.pt/dlpo/gri%C3%B4, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, [consultado em 28-12-2016].

[1] Discente graduado em Letras e pós-graduando em Literatura infanto-juvenil.

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Eliel Moraes dos Santos Filho

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