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A legítima dos herdeiros necessários e proteção constitucional à herança: possibilidade de adaptação à nova realidade no âmbito familiar?

RC: 102537
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

PEREIRA, Renata Ramos Carrara [1], PEGHINI, Cesar Calo [2]

PEREIRA, Renata Ramos Carrara. PEGHINI, Cesar Calo. A legítima dos herdeiros necessários e proteção constitucional à herança: possibilidade de adaptação à nova realidade no âmbito familiar?. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 06, Ed. 12, Vol. 01, pp. 50-83. Dezembro de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/protecao-constitucional

RESUMO

A herança necessária e a legítima dela decorrente tem sido objeto de grande discussão doutrinária nos moldes em que se encontra atualmente, levando ao questionamento se a legítima dos herdeiros necessários estaria atendendo aos princípios constitucionais relacionados ao direito sucessório. Diante deste cenário, o presente artigo tem por objetivo identificar os principais argumentos nos quais se pautam tais discussões e analisá-los sob uma visão constitucional do tema. Para tanto, a partir de uma análise qualitativa de levantamento bibliográfico e jurisprudencial, bem como da legislação vigente, é feito um estudo, sob a metodologia do direito civil constitucional, trazendo, num primeiro momento, aspectos da forma como a família é tratada atualmente por esta visão de constitucionalização do direito civil, a fim de fazer um paralelo entre a evolução do tratamento jurídico familiar e do direito sucessório. O intuito, nesse primeiro momento, é demonstrar que o direito sucessório não acompanhou a evolução do tratamento dado ao direito de família, especialmente com base nas recentes decisões dos tribunais superiores sobre o tema. A seguir, identifica-se os elementos legais configuradores da herança necessária no intuito de demonstrar sua atual configuração, passando então para a visão constitucional da herança elevada ao patamar de direito fundamental, sua conformação e influência na legítima dos herdeiros necessários, conforme diversos entendimento doutrinários. Com base no levantamento efetuado, identifica-se a função social como requisito a ser observado no direito sucessório e a solidariedade dela decorrente como fatores legitimadores para limitar a autonomia privada do autor da herança, o que não mais se verifica na atual conformação da legítima dos herdeiros necessários. Chega-se, assim, à conclusão de que a legítima conforme sua atual configuração não está atendendo corretamente a funcionalidade imposta constitucionalmente à herança, merecendo revisão para que se adapte a um direito civil interpretado sob valores constitucionais, também no âmbito do direito das sucessões.

Palavras-Chave: Direito sucessório, Direito fundamental à herança, Herança necessária, Legítima, Solidariedade.

1. INTRODUÇÃO

Culturalmente, o brasileiro não gosta de tratar de assuntos relacionados à morte, podendo, inclusive, ser esse um dos motivos pela pouca utilização de testamentos no Brasil, o que pode se levar a crer que a forma como a lei determina que se dê a sucessão após a morte estejam atendendo aos anseios sociais.

Contudo, cada vez mais se verifica no âmbito doutrinário questões relativas a planejamentos sucessórios, o que provavelmente decorre do grande número de litígios que se verifica nos inventários judiciais em que os herdeiros não conseguem chegar a um consenso quanto a partilha dos bens deixados pelo autor da herança, levando as pessoas a deixarem de lado o tabu do assunto morte para começarem a buscar possíveis soluções a fim de evitarem tais conflitos.

Nesse contexto, de litígios sucessórios e maior preocupação dos titulares do patrimônio com o destino que será dado aos seus bens após a sua morte surge o questionamento, norteador do presente estudo, se realmente a forma como a sucessão está sendo legalmente imposta atende às expectativas sociais e familiares ou se está no momento de uma reestruturação do tema.

Aqui, o enfoque que se dá não é na forma como está estabelecida pela lei a sucessão legítima, mas sim no que diz respeito à herança necessária, à limitação imposta ao autor da herança em virtude da legítima, em caso de existência de herdeiros necessários.

Questiona-se, portanto, se a legítima dos herdeiros necessários estaria atendendo aos princípios constitucionais relacionados ao direito sucessório.

Assim, através do presente artigo, o que se pretende é demonstrar, pautado na análise qualitativa de posições doutrinárias e decisões jurisprudenciais, bem como na análise da legislação vigente, que a configuração da legítima como está regulada pela lei atualmente não está atendendo os princípios constitucionais da solidariedade e da afetividade familiar e, consequentemente, à função social da herança, representando o descompasso do direito sucessório brasileiro com os novos valores trazidos pela Constituição Federal de 1988.

2. EVOLUÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA X ESTAGNAÇÃO DO DIREITO DAS SUCESSÕES

 O Direito de Família tem sofrido grandes mudanças nos últimos tempos, principalmente após o advento da Constituição Federal de 1988, que trouxe uma verdadeira quebra de paradigma neste ramo do direito.

A partir de então o Direito Civil passou a ser interpretado sob uma visão constitucional, no sentido de se fazer valer os valores e princípios trazidos pela Constituição, que passaram a ser vistos sob um caráter normativo.

Assim, a família, como se verá adiante, passou a ser tratada com maior igualdade, tanto quanto aos seus integrantes quanto com relação as mais diversas formas de sua composição. Nesse sentido, inclusive, decidiu o STF pelo reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar merecedoras de proteção estatal no julgamento da ADI 4277/DF.

A preocupação com o indivíduo e seu desenvolvimento pessoal, com base na dignidade da pessoa humana, fez com que a “instituição família” sucumbisse, no sentido de, agora, ela servir àqueles na busca da felicidade individual de cada um, e não mais ser por eles servida para sua manutenção a todo custo.

A afetividade e a solidariedade passaram a ser os pilares de sustentação da família atual, e esta, por sua vez, a base do Estado que nela só deve intervir para lhe proporcionar a devida proteção, e não para delimitar a autonomia privada de seus integrantes,

Assim, não é mais o Estado quem deverá determinar qual a sua própria base, mas sim as pessoas que farão parte de cada uma das entidades familiares, de modo que possuem liberdade para constituir suas famílias, na forma que melhor lhes atendam, desde que não contrariem direitos constitucionais fundamentais e normas de ordem pública, bem como de deixarem delas fazer parte quando não mais lhe aprouver, o que proporcionou num um cenário de fluidez das relações familiares.

Contudo, toda essa evolução no Direito de Família não se refletiu no Direito das Sucessões, que como se verá adiante, pouca alteração sofreu desde os primórdios da legislação sucessória brasileira, especialmente no tocante a questão da herança necessária, mesmo com a promulgação do Código Civil de 2002, quando já vigente a atual Constituição Federal e o novo paradigma familiar.

Nesse sentido discorre Rolf Madaleno (2020, p. 357):

O Direito de Família e o Direito das Sucessões têm entre eles uma induvidosa integração, não se mostrando adequado e atualizado que apenas o Direito de Família evolua e que o Direito das Sucessões permaneça absolutamente estático, como se a sociedade civil não tivesse passado por importantes mudanças ao longo das décadas transcorridas desde as Ordenações no Brasil, como se a autonomia privada só tivesse avançado no domínio do Direito de Família e sem nenhum avanço no campo das sucessões, em cuja ciência jurídica justamente significaria reconhecer uma maior liberdade de testar, não se afigurando acertado possam os casais transigir sobre as questões matrimoniais e não possam transigir sobre as questões sucessórias, como se nesta última seara ainda sobrevivesse um interesse absoluto de ordem pública e como se a família tivesse evoluído e estivesse em razão dessa evolução se privatizando apenas na constância do relacionamento estável ou conjugal e perdendo sua autonomia com a morte de qualquer dos cônjuges ou conviventes; e como se efeitos jurídicos projetados pelos cônjuges em seus pactos matrimoniais deixassem de ser negócios de família pelo evento morte, ou, dito de outra forma, como se a morte apagasse todos os interesses projetados para a constância e para a transcendência do relacionamento.

Assim, o que se vê, portanto é um descompasso do desenvolvimento da autonomia privada quando examinada no âmbito do direito familiar, comparado com o atual cenário do direito sucessório, no qual resta ela prejudicada, inclusive em virtude da reserva legitimaria dos herdeiros necessários. Verifica-se uma ampla liberdade no que diz respeito à formação familiar, embasado no princípio da solidariedade familiar, que não se observa no campo sucessório, onde a neutralidade de suas regras acaba por ir contra esse mesmo princípio.

2.1 EVOLUÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA E A FAMÍLIA APÓS A CF DE 1988

O Código Civil de 1916 apenas reconhecia como entidade familiar aquela formada pelo matrimônio. O tratamento jurídico então dado à família se pautava no paternalismo, no caráter patrimonial e nas relações monogâmicas e heterossexuais, não havia campo para discussão sobre o reconhecimento jurídico de outras formas de família.

Os cônjuges eram tratados com total desigualdade, tendo o homem como único chefe da família e o ditador de todas as decisões no âmbito familiar, sendo inicialmente a mulher tratada como uma relativamente incapaz.

Havia extrema discriminação dos filhos, conforme sua origem, sendo diferenciados entre legítimo ou ilegítimos, conforme fruto da relação matrimonial ou não. Os ilegítimos, eram tratados como naturais, se fruto de relação sem impedimentos para o casamento, ou espúrios, os quais eram classificados entre adulterinos, ou incestuosos. O tratamento a cada uma dessas classes de filhos era totalmente diverso, especialmente no que diz respeito ao direito sucessório.

Explicitando, Rodrigo da Cunha Pereira (2016, p. 186):

O Código Civil de 1916 regulava essa família patriarcal sustentada pela suposta hegemonia de poder do pai, na hierarquização das funções, na desigualdade de direitos entre marido e mulher, na discriminação dos filhos, na desconsideração das entidades familiares e no predomínio dos interesses patrimoniais em detrimento do aspecto afetivo.

A família era tida como uma instituição, quase considerada como um ente independente de seus membros, e que deveria ser protegida a todo custo, inclusive em prejuízo dos indivíduos que a formavam, esses deviam viver em prol desta, e pela sua manutenção, ainda que significasse abdicar de seus legítimos sentimentos e realizações pessoais.

De forma elucidativa, Maria Berenice Dias (2016, p. 22) descreve a família regulamentada pelo CC de 1916:

Em uma sociedade conservadora, para merecer aceitação social e reconhecimento jurídico, o núcleo familiar dispunha de perfil hierarquizado e patriarcal. Necessitava ser chancelado pelo que se convencionou chamar de matrimônio. A família tinha formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Tratava-se de uma entidade patrimonializada, cujos membros representavam força de trabalho. O crescimento da família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos.

O principal aspecto a se destacar aqui é o caráter patrimonialista da família do Código de 1916. Sendo a família o ente de destaque merecedor de proteção, o que se buscava era assegurar a perpetuidade patrimonial dentre aqueles que a ela pertenceriam legitimamente, sob o manto do matrimônio. Qualquer outra relação, ainda que envolvida por afeto e vontade dos envolvidos não recebia a proteção do Estado no que diz respeito ao direito de família.

Nesse cenário, havia o que poderia ser considerado uma família legítima, criada sob o aval do Estado, e uma “família ilegítima”, no sentido de não ser reconhecida pelo ordenamento jurídico. Então, sob a ideologia da época, se justificava a manutenção do patrimônio familiar pautado nos laços sanguíneos e formais, que se verifica na forma como era e praticamente continua sendo assegurada a legítima.

Mas com a promulgação da Constituição de 1988 houve uma quebra desse paradigma jurídico-familiar. A então entidade familiar, sacralizada, cede espaço para o afeto e a solidariedade, e ganha uma função social, a realização de seus membros na busca da felicidade individual e desenvolvimento pleno de suas personalidades. O que passa a legitimar a família, portanto, são as relações afetivas, e não mais o Estado.

Diante desse novo cenário, questiona-se se a manutenção das regras sucessórias no que diz respeito à herança necessária e a reserva da legítima se justificam atualmente. Dentro de um espaço, onde a autonomia privada ganha um relevante destaque e novas entidades familiares aparecem, famílias se transformam com facilidade, tudo com base na afetividade dos envolvidos e na solidariedade, pergunta-se se o novo paradigma jurídico-familiar constitucional, que exige uma releitura do Direito Civil, estaria sendo observado.

2.2 EVOLUÇÃO DA LEGÍTIMA NO DIREITO SUCESSÓRIO: CÓDIGOS CIVIS DE 1916 E 2002

Como já visto, o Direito Civil, diferente do que ocorreu no campo do direito de família, pouco evoluiu no âmbito sucessório, sendo que a maioria das mudanças são reflexos da nova ordem constitucional, mais especificamente à equiparação dos filhos independentemente da origem e da igualdade entre os cônjuges e companheiros

Cabe aqui, contudo, apontar as mudanças identificadas no que diz respeito à legítima especificamente, num comparativo entre o Código Civil de 1916 e o atual, e nesse aspecto, a única alteração verificada diz respeito à elevação do cônjuge à qualidade de herdeiro necessário, e sua concorrência com os demais, ascendentes e descendentes.

Em aspectos quantitativos nada foi alterado, permanece a mesma porcentagem de 50% do patrimônio do falecido como reserva legítima dos herdeiros necessários, a qual não pode ser objeto de disposição testamentária na existência destes últimos, bem como, permanece seu aspecto de neutralidade quanto à qualidade dos destinatários. Não se analisa a questão afetiva nesse aspecto, e até mesmo a solidariedade resta prejudicada, uma vez que não se avalia nenhum aspecto pessoal quanto aos herdeiros em termos de necessidade

A discussão de maior relevo, contudo, não decorre da inovação da lei civil em si, mas sim da decisão do STF[3] pela inconstitucionalidade do artigo 1.790, do Código Civil e se a partir de então o companheiro passou a ser considerado herdeiro necessário ou não. Nesse ponto a doutrina diverge.

Flávio Tartuce (2020, p. 176) e Anderson Schreiber (2020, p. 1024) entendem que a partir da mencionada decisão do STF o companheiro passou a integrar o rol de herdeiros necessários do Código Civil.

Já Mario Luiz Delgado (2018) se posiciona contrário a esse entendimento, e levanta quatro fortes argumentos em sua defesa: como um primeiro argumento enfatiza da diferença entre o casamento e a união estável quanto a sua formação, sendo aquele decorrente de um ato solene e esta decorrer do mundo dos fatos, sem necessidade de qualquer formalidade, e o fato de que “o status de herdeiro necessário também decorre do preenchimento dessas formalidades próprias do casamento, dispondo a lei, de forma explícita, que somente quem possua o estado civil de “casado” portará o título de sucessor legitimário”.

Num segundo argumento aponta que a norma inscrita no artigo 1.845 do Código Civil configura verdadeira restrição de direitos com relação ao livre exercício da autonomia privada do autor da herança, o qual também deve ser entendido como titular do direito fundamental à herança assegurado constitucionalmente. Diante disso, tal norma deve ser interpretada de forma restrita no sentido de não abarcar o companheiro como herdeiro necessário.

Em terceiro, identifica a restrição da liberdade testamentária como um descompasso com a realidade social, em virtude da “interinidade dos vínculos conjugais”. Por fim, alega que “o STF não se manifestou, em momento algum, sobre a aplicação do art. 1.845 à sucessão da união estável”, e não sendo possível fazer tal dedução com base na fundamentação apresentada no julgamento.

3. HERANÇA NECESSÁRIA

 Antes de analisar os aspectos relacionados à herança necessária, uma observação se faz necessária quanto a esta classificação. A sucessão após a morte pode se dar de três formas:

a) Por meio da sucessão legítima, que decorre da lei, a qual indicará a ordem de vocação hereditária, que seria uma vontade presumida do de cujus quanto ao destino de seu patrimônio após sua morte, desde que o falecido não tenha deixado testamento ou o tenha feito apenas com relação a parte dos bens, de modo que a parte do patrimônio não contemplada seguirá as regras da sucessão legítima, ou em caso de nulidade, anulabilidade ou caducidade de testamento existente;

Com relação a esta forma de sucessão, Gustavo Tepedino, Ana Luiza Nevares e Rose Melo Venceslau Meireles (2020, p. 06) fazem relevante observação quanto ao seu atual fundamento, que deixou de ser a vontade presumida, ou a perpetuação da propriedade na família, mas sim o interesse da família em si, como instituição de importância social.

b) Pela sucessão testamentária, que decorre de ato de última vontade do autor da herança, o qual, por testamento, no exercício da sua autonomia privada, dispõe de seus bens, de forma total ou parcial, após o advento da morte;

c) Conforme a sucessão necessária, condizente à classe de herdeiros, que, salvo hipótese de exclusão por indignidade ou deserdação, participam da sucessão, tendo direito a reserva da de metade do patrimônio do autor da herança (legítima);

Quanto a esta forma de classificação:

Não se confundem os títulos da sucessão. Na testamentária, o herdeiro (ou legatário) é chamado a suceder pela exclusiva vontade do autor da herança. Na sucessão legítima, o herdeiro é chamado a suceder segundo a ordem de vocação prevista na lei, recolhendo o que lhe couber, tomando por base o patrimônio que existir ao tempo do óbito. Na sucessão legitimária, o herdeiro necessário tem direito à “legítima”, e esta é calculada não apenas com base no valor dos bens existentes à data de abertura da sucessão, mas também sobre o dos bens doados e sujeitos à colação. Em outras palavras, o objeto da sucessão legitimária não coincide, necessariamente, com o objeto da sucessão legítima.” (DELGADO, 2018)

Adota-se tal distinção, pois, em que pese a sucessão necessária siga as regras impostas pela sucessão legítima, ela implica em forte limitação à sucessão testamentária, uma vez que existam herdeiros necessários. Assim, ao enquadrar a sucessão necessária como um título sucessório independente, permite-se melhor análise das restrições impostas pela legítima na autonomia privada do autor da herança.

Cabe agora, portanto, a análise da legítima em si e das figuras dos herdeiros necessários, conforme estabelecido pela lei civil, para melhor compreensão da configuração desta limitação legalmente imposta à autonomia privada no âmbito sucessório.

3.1 LEGÍTIMA E HERDEIROS NECESSÁRIOS

São herdeiros necessários, nos termos do artigo 1.845, CC[4], os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Tais herdeiros têm direito à legítima, nos termos do artigo seguinte do Código Civil[5], a qual representa metade do patrimônio do falecido, não podendo ser excluídos da herança por testamento, salvo deserdação, nem terem seus quinhões referentes à legitima reduzidos.

Dessa forma, a legítima consiste numa verdadeira limitação à autonomia privada do autor da herança, pois, havendo a existência de herdeiros necessário, o direito de doar em vida ou de testar com relação aos seus bens ficará limitado, podendo aquele dispor nesse sentido apenas com relação à metade de seu patrimônio, sob pena de a doação ser considerada nula e o testamento sofrer redução de suas disposições quanto ao excedente.

A situação se agravou com o Código Civil de 2002 que trouxe previsão no artigo 1829, incisos I e II do direito concorrencial do cônjuge com descendentes e ascendentes respectivamente, tendo o STJ[6] já pacificado entendimento de que tal direito é assegurado ao cônjuge mesmo no regime da separação convencional de bens sob o título de herdeiro necessário. E conforme entendimento majoritário da doutrina, tais regras se estenderiam aos companheiros em virtude da declaração de inconstitucionalidade do artigo 1790, do Código Civil, equiparando o companheiro ao cônjuge para fins sucessórios, no julgamento dos Recursos Extraordinários nº 878.694/MG[7] e nº 646.721/RS[8], com repercussão geral.

3.2 ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À LEGÍTIMA

A reserva legitimária trouxe benefícios ao direito sucessório, pois limitou a autonomia de vontade do testador no que diz respeito ao seu aspecto individualista e passou a valorizar a família sob o enfoque da solidariedade. Assim explica Anderson Schreiber (2020, p. 1025):

A doutrina mais atual tem afirmado, em uma leitura atenta aos valores constitucionais, que a solução adotada pelo direito brasileiro” concilia a liberdade e a solidariedade no âmbito do direito das sucessões”, sendo certo que a reserva hereditária “desempenha, para os membros da família, a função de instrumento para a concretização de uma vida digna, uma vez que estabelece mecanismos econômicos capazes de libertá-los de suas necessidades.

Dessa forma, não resta aniquilada a autonomia privada do autor da herança, que mantém plena liberdade de testar quanto ao futuro de seus bens após a morte, desde que não existam herdeiros necessários, ou poderá fazê-lo quanto à metade de seu patrimônio na existência destes.

Ao mesmo tempo, pela legítima, resta preservada a família, tanto sob o aspecto público de proteção estatal assegurada constitucionalmente, quanto no que diz respeito a solidariedade, pois traz a ela a ideia de continuidade e de necessidade de preservação entre seus membros. Assim entende Renata Raupp Gomes (2019, p. 179):

Vale repisar que a função social da herança legitimaria é entendida neste trabalho como a forma de resgate e preservação do corpo coletivo representado pela família que, personalizado constitucionalmente, tem seus interesses e suas pautas sobrelevadas as dos particulares e do próprio Estado. Isso porque se traduz na conciliação dos interesses situados tanto na dimensão pública, ocupada pelo Estado, quanto na dimensão privada, em que se situa o indivíduo, como também na dimensão coletiva, na qual convergem os interesses dos indivíduos voltados à consecução dos fins específicos de cada agrupamento social.

Para a autora, a legítima, em que pese ter sido criada sob a égide em que se assegurava juridicamente proteção a um único tipo de família, formada pelo matrimônio, é o que assegura o atual tratamento constitucional dado à família e aos princípios constitucionais a ela relativos, em suas palavras:

Nesse contexto, demonstrou-se cumprir a legítima a função social de realizar o modelo familiar proposto constitucionalmente mediante uma reserva sucessória destinada aos herdeiros necessários, devendo-se compreendê-la como garantia do espaço coletivo familiar, único meio de realização plena da dimensão individual de seus componentes. Sob esse olhar, a legítima tem função social de promovente das potencialidades humanas, garantindo que a família não se torne um empecilho ao indivíduo, mas, ao contrário, uma fonte de estímulo e de proteção de sua personalidade, resgatando as dimensões da personalidade humana ligadas à comunhão e à transcendência, sem olvidar-se do seu traço de individualidade. (GOMES, 2019)

Sob esse entendimento, portanto, a legítima vem para potencializar a função social familiar, no sentido de assegurar a realização de seus membros individualmente, pois afasta possíveis desigualdades entre os herdeiros necessários, que poderiam ser impostas pelo autor da herança injustificadamente, bem como impede a manipulação familiar daquele que tem o poder de ditar o destino do patrimônio, tido por familiar, após sua morte.

3.3 ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À LEGÍTIMA

As principais críticas doutrinárias referentes à legítima dos descendentes e ascendentes dizem mais respeito a sua neutralidade e a falta de flexibilização em si. O fato de a legislação reservar metade do patrimônio do autor da herança aos herdeiros necessários, sem nenhuma correlação com aspectos como necessidade ou merecimento, e sem o autor da herança poder influenciar em nada, principalmente com relação ao segundo critério, portanto, são as principais fontes de discussões quanto a forma como a legítima está regulada pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Tais críticas ganham maior destaque, devido à relevante mudança social que se verifica no âmbito familiar na atualidade. A fluidez das famílias aliada a pluralidade das formas de família, bem como a facilidade de composição, dissolução e recomposição das famílias e o grande enfoque na afetividade como elemento configurador das relações familiares despontam o questionamento se a legítima na configuração atual estaria atendendo os anseios sociais e a solidariedade familiar.

Outros aspectos sociais também fomentam tais discussões, como a questão da maior longevidade, que faz com que os herdeiros, no momento da sucessão, normalmente não precisem mais daqueles bens da herança para prover o seu sustento, o que não justificaria, portanto, a limitação da autonomia privada do autor da herança com relação à disposição de seu patrimônio para após a morte.

Com relação aos cônjuges, a crítica é ainda maior, pois o que se defende é que em virtude da facilidade de composição e dissolução dos casais e da consequente fluidez dessas relações, a atribuição do cônjuge como herdeiro necessário estaria mais relacionada a uma questão de destino, ou sorte, de estar ocupando aquela posição no momento da morte de seu consorte, do que uma questão de solidariedade familiar. Até mesmo porque, a partir de então o patrimônio herdado seguiria destino a um tronco familiar diverso daquele ao qual pertencia o falecido, o que afastaria a tão almejada proteção patrimonial e familiar almejada pela herança.

Mario Luiz delgado (2018), numa reanálise da legítima, trata de tais críticas de forma exaustiva, merecendo aqui ser elencadas, pois traz um panorama geral das principais apreciações levantadas ao instituto em questão.

Com relação aos cônjuges, por conta do crescimento das famílias recompostas e da facilidade e rapidez para a mudança do estado civil, entende o autor que o cônjuge sobrevivente não deveria figurar como herdeiro necessário, uma vez que tal imposição não estaria relacionada a questões de afeto ou de solidariedade, mas sim, ao preenchimento de mero requisito formal, qual seja, estar casado no momento da morte de seu cônjuge.

Aponta ainda como elementos que justificam a necessidade de reavaliar a legítima: a perda da função familiar como unidade de produção, o que não justificaria a obrigatoriedade de transmissão da forma imposta atualmente pela lei, sem qualquer mérito; o patrimônio como fruto do trabalho individual, o que deveria deixar a possibilidade da pessoa dispor desse patrimônio após sua morte com maior liberdade, inclusive frente as atuais formas variadas de composição familiar existentes; inutilidade e ineficácia da legítima frente a existência de outros mecanismos de proteção da família, além do direito sucessório, e a longevidade crescente da população; e, por fim, questiona se há adesão social quanto a tais regras que limitam a liberdade de testar, sendo que muitas vezes se verifica conflitos familiares de ordem patrimonial entre os herdeiros no momento da sucessão.

Da mesma posição se filiam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2020, p. 37), os quais questionam a eficácia social e a justiça da legítima com a conformação atual, uma vez que o que se verifica na realidade são muitas ações judiciais em virtude da discórdia entre os herdeiros e parentes, e refletem:

Poderia, talvez, o legislador resguardar a necessidade da preservação da legítima apenas enquanto os herdeiros fossem menores, ou caso padecessem de alguma causa de incapacidade, situações que justificariam a restrição à faculdade de disposição do autor da herança. (…)Ademais, se quisesse beneficiar um descendente seu ou a esposa, que mais lhe dedicou afeto, especialmente nos últimos anos de vida, poderia fazê-lo por testamento, sem que isso, em nosso sentir, significasse injustiça ou desigualdade, uma vez que o direcionamento do seu patrimônio deve ter por norte especialmente a afetividade.

As críticas apresentadas nos convidam a repensar a conformação da legítima como ora está estabelecida, e, então, abre-se o questionamento se tal conformação se coaduna com o texto constitucional e os princípios dele decorrentes, análise essa que se propõe a seguir.

4. HERANÇA SOB UM PONTO DE VISTA CONSTITUCIONAL

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXX assegura o direito à herança, sem especificar seu conteúdo e sem trazer maiores detalhes, relegando tal função à legislação ordinária, à qual deverá conformar tal direito atendendo os limites constitucionais. Mas a questão que aqui se abre diz respeito a quais seriam esses limites, ou seja, qual seria o conteúdo do direito fundamental à herança garantido constitucionalmente.

4.1 HERANÇA COMO DIREITO FUNDAMENTAL

 Que o direito à herança é um direito fundamental como visto, é inquestionável, contudo, a doutrina diverge quanto ao conteúdo desse direito, e a quem ele se destina.

Dois entendimentos divergentes podem ser identificados na doutrina. Uma primeira corrente entende tal direito como um reforço do direito constitucional de propriedade e outra que enxerga tal direito como um direito fundamental autônomo, cujo conteúdo em nada se confunde com o direito de propriedade.

Para a primeira corrente, o direito fundamental à herança funcionaria como prolongamento do direito de propriedade no sentido de ser um direito de defesa contra o Estado, a fim de este não se aproprie do patrimônio do particular após sua morte. Para esse viés interpretativo, o que se busca proteger aqui é o titular dos bens, garantindo-lhe que o patrimônio adquirido em vida seguirá para seus entes mais queridos, o que acaba, indiretamente, beneficiando a sociedade, no sentido de ser um estímulo à produção de riquezas. Rolf Madaleno (2020, p. 11) explica de forma elucidativa:

Com a morte do titular dos bens, o direito constitucional resguarda a transmissão da propriedade sob a ótica do patrimônio familiar, a consolidação da solidariedade familiar e o princípio da solidariedade sucessória. Sendo a família a base da sociedade, seus pilares precisam estar firmemente fundados e, do ponto de vista econômico, não é possível conceber a continuação e sobrevivência da família, se dela é abstraído o direito à sucessão dos bens familiares.(…) Seria realmente inconcebível imaginar pudesse uma pessoa trabalhar por toda sua vida, desenvolver seus negócios, construir empreendimentos e economizar, sabendo de antemão que seus bens não seriam transferidos para sua família com seu passamento, ou que seu acervo construído com o sacrifício de toda uma existência iria para o Estado(…)

No mesmo sentido, discorrem Gustavo Tepedino; Ana Luiza Nevares e Rose Melo Venceslau Meireles (2020, p. 03):

A Constituição da República garante o direito de herança, em seu artigo 5º, inciso XXX, do Título II, concernente aos direitos e garantias fundamentais. Assegura-se, assim, a sucessão mortis causa privada, não havendo a apropriação pelo Estado dos bens de uma pessoa após a sua morte. Tais bens deverão ser transmitidos aos sucessores do finado, conforme as prescrições da lei civil, só passando para o ente público na ausência dos sucessores legais ou testamentários, hipótese em que se considera a herança vacante.

Segundo essa linha de pensamento, Rodrigo Mazzei[9] aponta que seria necessário diferenciar o direito de herança do direito à herança, tomando por base a titularidade da propriedade. Assim, o que a Constituição garante no inciso XXX do Artigo 5º, seria o direito de herança com relação a esta titularidade, ou seja, assegura que a propriedade do autor da herança será transmitida aos seus familiares ou eleitos, conforme as disposições legais ou testamentárias, dando a ideia de continuidade desta propriedade, e levando em consideração a ideia de função social da propriedade privada e da solidariedade familiar. A partir de então fala-se de direito à herança, com relação aos sucessores que a receberão, nos termos que a lei ou o ato de última vontade estabelecer, mas este direito não constituiria o direito fundamental assegurado constitucionalmente.

O professor alerta, contudo, que o direito constitucional de herança, há de ser exercido de acordo com os primados constitucionais, notadamente a dimensão da função social da propriedade e da solidariedade familiar, situação que impede que uma liberdade ampla. É possível, assim, que a legislação infraconstitucional restrinja ou até descarte célula de proteção (espaço ocupado pela legítima) se ficar configurado que os que pleiteiam à herança não se encontram em situação de vulnerabilidade.

Mario Luiz Delgado (2018) demonstra tal preocupação voltada ao autor da herança, propondo uma visualização do direito fundamento à herança que vai no sentido acima exposto:

O direito fundamental à herança não pode ser visto apenas sob a ótica do herdeiro, mas deve se pautar também pelos interesses do autor da herança, pois o exercício da autonomia privada integra o núcleo da dignidade da pessoa humana. A designação legitimária é dever imposto ao autor da sucessão de reservar parte de seus bens a determinados herdeiros. A norma institui restrição ao livre exercício da autonomia privada, restringe, sem dúvida, a sua liberdade de disposição, constituindo, por isso, exceção no ordenamento jurídico e, conforme as regras ancestrais de hermenêutica, não se pode dar interpretação ampliativa à norma restritiva. Normas restritivas de direitos devem ser interpretadas sempre de forma também restrita

Já para a segunda corrente, esta visão do direito fundamental à herança teria um caráter reducionista, pois não confere a real importância à elevação do direito de herança a direito fundamental constitucionalmente protegido, confundindo-o com o conteúdo do direito fundamental de propriedade.

Adepta dessa corrente, Renata Raupp Gomes (2019) defende que o direito fundamental à herança consiste num direito subjetivo que se traduz numa obrigação negativa do Estado para que não crie embaraços à sucessão hereditária e para que não altere características ou situações de fato dos titulares do direito à herança e no direito à não eliminação de posições jurídicas, bem como, abrange também direitos às prestações positivas do Estado no sentido de que elabore as normas aptas a concretizar o direito de herança, embasadas da devida justificativa constitucional proporcional, uma vez que representará uma restrição a este direito, inicialmente amplo, mas restringível.

Para a autora, o direito à legítima (com relação aos ascendentes e descendentes, e não com relação ao cônjuge sobrevivente) se pauta na solidariedade familiar e na dignidade da pessoa humana em seu aspecto existencial, que seria muito maior do que uma questão meramente assistencialista, de cunho material, abrangendo também questões afetivas e de responsabilidade recíproca. Além disso, a legítima assegura, em virtude da isonomia sobre a qual é construída, que o titular do patrimônio não manipule a vida de seus parentes mais próximo, sob ameaça de retirar-lhes o direito à herança.

Na mesma direção segue Paulo Lôbo (2021). Segundo o autor, a Constituição garante o direito à herança e não o direito à sucessão, de modo que a sucessão legítima deve prevalecer à vontade do testador, uma vez que a proteção constitucional se dá em direção aos herdeiros, e não a qualquer sucessor, sendo que a definição daqueles caberá ao legislador infraconstitucional que, nessa atividade deverá atender ao fim social da norma constitucional, que seria a proteção dos familiares do autor da herança, sendo que aos demais sucessores, a tutela se dará somente no âmbito infraconstitucional. Aqui o enfoque está quanto à destinação da herança, deixando para segundo plano qualquer possibilidade de direito fundamental relacionado à herança para seu autor.

O professor sustenta seu argumento com base na evolução do tratamento jurídico dado ao direito das sucessões no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que, inicialmente, nas Ordenações Filipinas, a preferência era dada à sucessão testamentária, fundamentada na autonomia privada e no individualismo, ideia mantida pelo CC/16, não tendo sido o que se verificou na realidade social brasileira

Atualmente, segundo constata o autor, se utiliza muito pouco da sucessão testamentária, sendo na maioria das vezes observadas as regras da sucessão legítima. Aliado a este fato, a ascensão de valores sociais, com a CF/88 e da solidariedade familiar, consequentemente, justifica o tratamento do direito à herança como direito fundamental, no sentido de privilegiar o direito do herdeiro em detrimento da vontade do autor da herança, o que vem assegurado no CC/2002, na presunção de conciliar os interesses individuais com os interesses sociais do grupo familiar e com a solidariedade familiar

A diferenciação aqui apontada quanto ao tratamento a ser dado ao direito fundamental à herança é de extrema relevância para a análise a ser feita quanto à possibilidade de alteração da legítima dos herdeiros necessários, no sentido de se privilegiar a autonomia privada do testador.

Entendendo o direito à herança como um direito do titular dos bens que assim não verá seu trabalho em vida sendo absorvido ao final pelo Estado ou por quem quer que este entenda mais conveniente, mas sim sendo transferido àqueles por quem tem um apreço afetivo, admissível a redução da legítima, sua conformação ou até mesmo sua extinção caso a função social da herança, pautada no princípio da solidariedade, esteja sendo atendida. Aqui a autonomia privada do testador ganha destaque, as relações familiares passam a ser vistas no que diz aos aspectos sucessórios sob uma visão mais humanizada, podendo haver uma melhor distribuição da herança conforme as necessidades e vulnerabilidades familiares eventualmente existentes e na percepção do autor da herança quanto à qualidade dos vínculos afetivos estabelecidos em vida.

Por outro lado, a visão de que o direito assegurado constitucionalmente se destina aos herdeiros, limita a alteração e conformação da legítima às novas configurações sociais, pois qualquer alteração na legislação ordinária tendente a reduzir tal direito poderia ser tida por inconstitucional.

4.2 DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL

Conforme Anderson Schreiber e Carlos Konder (2016, p. 10), o direito civil constitucional constitui, na verdade numa corrente metodológica que surgiu no Brasil, após os anos 90, com o intuito de compatibilizar a interpretação do direito civil então vigente, o qual era impregnado de uma ótica individualista, patrimonialista, liberal e voluntarista, com as inovações e os novos valores introduzidos no ordenamento jurídico brasileiro pela CF/88, tendo na redemocratização um campo fértil para seu desenvolvimento.

O objetivo da metodologia do direito civil constitucional, portanto, é proporcionar uma releitura do direito civil sob essa nova perspectiva e com base nos seguintes fundamentos: a natureza normativa da Constituição; a complexidade e unidade do ordenamento jurídico e o pluralismo de fontes do direito; e o desenvolvimento de uma renovada teoria da interpretação, de fins aplicativos.

Por esses fundamentos, no que diz respeito ao âmbito de incidência do direito civil, a aplicabilidade das normas constitucionais se dá de forma direta, de modo que passam a ser consideradas com força normativa, nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira (2016, p. 43):

Com a evolução e o desenvolvimento de um Direito Civil-Constitucional, os princípios ganharam uma força normativa muito maior e, consequentemente, perderam seu caráter de mera supletividade (…). São equivocados a ideia e o pensamento de que os princípios vêm por último no ato interpretativo integrativo. Ao contrário, os princípios, como norma que são, vêm em primeiro lugar e são a porta de entrada para qualquer leitura interpretativa do Direito.

Além disso, deve-se buscar a compreensão do sistema jurídico como um todo, exatamente porque interpretado de forma uniforme com base nos valores constitucionais. Por sua vez, essa proposta de compreensão e aplicação do direito civil exige do intérprete que viabilize a máxima observação dos valores constitucionais, ainda que de forma criativa, se assim demonstrar necessário o valor fundamental extraído da constituição, sendo que será tal valor que trará legítimo fundamento para a aplicação da interpretação criada para o caso concreto.

O que se propõe, portanto é uma atuação criativa do aplicador da lei quando da sua interpretação, não de forma discricionária, mas sim fundamentada nos valores assegurados constitucionalmente, a fim de se amparar as situações fáticas por meio de um direito civil de viés constitucional.

4.3 HERANÇA – FUNDAMENTOS E FUNÇÃO SOCIAL

Diante do exposto anteriormente, é preciso fazer uma análise do Direito das Sucessões e, mais especificamente da herança sob um ponto de vista constitucional, seguindo a tendência de metodologia de interpretação dos institutos civis que lhes trazem legitimação.

Nesse sentido, busca-se aqui trazer quais os fundamentos da herança, bem como identificar qual a função social a ser por ela exercida sob o olhar da Constituição Federal brasileira de 1988 e da consequente inovação valorativa e interpretativa trazida para todo o ordenamento jurídico.

Um dos fundamentos do direito das sucessões seria a harmonização entre o interesse social e o interesse pessoal, uma vez que há um interesse pessoal natural com relação à aquisição de bens, e ampliação patrimonial, reforçado exatamente pela transmissão desses bens, o que acaba por estimular a produção de riquezas, a acumulação de capital, a poupança e a economia, favorecendo, assim, o interesse social.

Assim dispõe Carlos Roberto Gonçalves (2017, p. 23):

É indubitável o interesse da sociedade em conservar o direito hereditário como um corolário do direito de propriedade. Deve o Poder Público assegurar ao indivíduo a possibilidade de transmitir seus bens a seus sucessores, pois, assim fazendo, estimula-o a produzir cada vez mais, o que coincide com o interesse da sociedade. A Constituição Federal de 1988, por isso, no art. 5º, XXII e XXX, garante o direito de propriedade e o direito de herança.

Fundamenta também o direito sucessório, e a herança, portanto, o interesse do Estado de que o patrimônio não fique sem titular, o que poderia gerar conflitos. Por isso é assegurado constitucionalmente o direito à sucessão, no intuito de proteger a família e estimular a capacidade produtiva de seus integrantes, o que acaba por favorecer também a economia. Nesse sentido ensina Rolf Madaleno (2020, p. 15):

A transmissão dos bens do morto para seus herdeiros legítimos e testamentários, quando houver, tem por escopo a continuação das relações jurídicas do autor da herança, que assim atende a uma relevante exigência social, eis que, se porventura tivesse ausente o direito sucessório, a morte de uma pessoa acabaria com suas obrigações e com todo o sistema de crédito, tão essencial para o trânsito comercial de uma sociedade moderna, além de deixar sem dono os bens largados pelo falecido, que poderiam ser adquiridos pelo primeiro ocupante, representando, certamente, um completo caos social que o direito sucessório impede de acontecer.

Mas o que está por trás efetivamente dessas teses é a combinação do direito de propriedade com o direito de família, uma vez que a transmissão causa mortis garante a perpetuidade da propriedade, a continuidade patrimonial, bem como a proteção familiar.

Enfatizando a propriedade como fundamento do direito sucessório, constatam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2020, p. 33/34):

É forçoso convir que sistemas jurídicos que consagram a propriedade privada como fundamento, acabam, por via oblíqua, justificando a existência do direito hereditário, como projeção post mortem do próprio instituto jurídico tutelado. (…) Por isso, entendemos que somente se pode falar em Direito das Sucessões quando a sociedade admite a propriedade individual, não havendo como se conceber a herança em situações de titularidade coletiva.

No mesmo sentido, entende Carlos Roberto Gonçalves (2017, p. 22), para quem: “Em realidade, enquanto perdurar a organização do Estado capitalista, fundado no princípio da livre iniciativa, e admitindo a apropriação privada dos bens de consumo e de produção, a herança subsistirá, como consequência natural e necessária.”

Com relação à família como fundamento do direito sucessório e, portanto, da herança, Gustavo Tepedino, Ana Luiza Nevares e Rose Melo Venceslau Meireles (2020, p. 06) discorrem:

De outra parte, mostra-se intensa a interação entre o Direito de Família e o Direito Sucessório, uma vez que o legislador determina o rol de sucessores de uma pessoa baseado em seus vínculos mais estreitos de solidariedade, que se encontram em sua comunidade familiar, estabelecendo a devolução da herança para aqueles mais próximos à pessoa falecida. Assim, a concepção de família que informa determinado ordenamento jurídico influencia diretamente a regulamentação do fenômeno sucessório, em especial o estabelecimento da ordem de vocação hereditária e os respectivos direitos conferidos aos sucessores legais.

Nesse contexto, de propriedade e família como base do fundamento à sucessão hereditária, ganham destaque a função social da propriedade, a autonomia privada, o princípio da solidariedade e a função social da herança.

A Constituição Federal traz a propriedade como um direito fundamental, assegurado em seu artigo 5º, XXII, mas não o faz de forma ilimitada, uma vez que impõe aos titulares desse direito a necessidade de cumprimento de uma função social[10]. Assim, o titular da propriedade, ao exercer seu direito, deverá conformá-lo com outros direitos assegurados constitucionalmente, de caráter social.

A propriedade, antes de caráter exclusivamente individualista, para que esteja em conformidade com o atual texto constitucional, precisa ser funcional e, portanto, deve atender a interesses coletivos que a ela se sobrepõem, conforme sua própria conformação constitucional atual, adquirindo um caráter mais solidário e condizente com a dignidade da pessoa humana.

Gustavo Tepedino; Ana Luiza Nevares e Rose Melo Venceslau Meireles (2020) realçam a importância da observância desta função social no que diz respeito à transferência da propriedade no âmbito do direito sucessório:

Nessa direção, o direito regula o destino dos bens e suas vicissitudes, como instrumentos para a realização do projeto constitucional. Dito de outro modo, a apropriação de bens deve ser tutelada buscando-se a titularidade funcional, ou seja, a titularidade dirigida à manutenção da dignidade da pessoa. Nessa esteira, a transmissão causa mortis da situação proprietária assume especial relevo, na medida em que a modificação de seu titular poderá interferir diretamente no cumprimento da função social da propriedade, o que não pode ser desconsiderado pelo Direito Sucessório.

Assim, a função social que deve ser observada pela herança está diretamente relacionada à função social que a Constituição impõe à própria propriedade privada, uma vez que ao se tratar de direito das sucessões, está se regulando a transmissão de titularidade de um patrimônio, e, portanto, da propriedade também.

Mas a função social não se limita à funcionalidade determinada constitucionalmente à propriedade privada, pois, como vistos, sua fundamentação se dá também com relação à família. E, sob esse aspecto, a função social da herança se verifica no campo da solidariedade familiar.

Pode-se dizer que a solidariedade familiar seria o que dá embasamento à função social da família, pois apenas com uma atitude de solidariedade entre os membros integrantes da entidade familiar, poderão todos atingir sua realização pessoal. Assim, o cuidado, a preocupação, o auxílio financeiro e emocional, e o incentivo ao crescimento alheio, seriam elementos identificadores da solidariedade familiar, logo, essa não se presume pela simples existência da família formal, precisa ser analisada no interior de cada entidade familiar, e em cada momento de sua evolução.

A solidariedade familiar é tida como elemento estruturador da legítima, conforme leciona Rolf Madaleno (2020, p. 343/344):

Como pode ser facilmente deduzido das explicações até agora colacionadas, o direito sucessório à legítima, em especial, está inteiramente estruturado no dever de solidariedade que se apresenta entre os membros de uma família, e que em seu olhar sucessório, com viés constitucional, é justamente o escopo do direito à sucessão, que guarda esta função de proteção integral da pessoa humana, prevista no artigo 1º, inc. III, da Carta Federal e, nessa perspectiva, vista como um princípio da solidariedade que guardam os familiares diante apenas de sua proximidade parental ou afetiva, consagrando uma sucessão obrigatória mínima e que assegura uma porção da herança para estes herdeiros necessários(…)

Assim, o que se questiona, é se a ausência dos elementos intrínsecos da solidariedade num ambiente formalmente familiar, e não “essencialmente” familiar, permitiria a alteração da atual conformação da herança necessária, uma vez que a legítima impõe verdadeira limitação à autonomia privada do autor da herança. Tal restrição somente se justificaria se a solidariedade se verificasse efetivamente, por se tratar na hipótese de colisão de princípios, autonomia privada e solidariedade familiar, que devem ser ponderados no caso concreto.

Tal constatação se deve ao fato de tanto a solidariedade familiar, quanto a autonomia privada decorrerem de previsão constitucional, sendo a primeira decorrente do artigo 5º, inciso II[11], e a segunda do tratamento constitucional dada à família como um todo, que se baseia num caráter de solidariedade entre seus membros e entre família, sociedade e Estado.

Assim, da mesma forma que o direito à propriedade deve ser exercido com base na função social, também o deve ser o direito à herança, no sentido de preservar a autonomia privada do autor da herança, não sob o olhar do individualismo, ora superado, mas sim com base na própria solidariedade familiar, através da qual ele poderá determinar o melhor destino de seus bens, pensando no futuro da própria família e de seus entes mais próximos ou mais queridos, sem que se perca a preocupação com um caráter assistencialista familiar, o qual, sim, excepcionalmente, pode ser assegurado por lei. Nesse sentido, Rafael Candido da Silva (2019, p. 163):

A partir desse processo de superação do dogma da vontade passa-se a falar, então, não mais em autonomia da vontade, mas em autonomia privada, conferindo à vontade do sujeito o papel de causas das relações jurídicas. Em contrapartida, a autonomia privada seria conceito mais consentâneo com o papel atual da vontade, com contornos mais objetivos, enfocado no seu ponto de vista técnico e de valor. A rigor, não se trata de um novo princípio, senão de uma mudança qualitativa do conteúdo da autonomia privada, que não corresponde ao lema dos fisiocratas laissez-faire, laissez-passer, le monde va de lui même, encontrando-se hoje “circunscrita por todos os lados, contida em limites estritamente demarcados por princípios os mais diversos, a começar pelos valores constitucionais, entre os quis primam a solidariedade e a dignidade humana”.

Portanto, sob um viés constitucional e da análise dos princípios que envolvem a temática sucessória, verifica-se que uma revisitação da herança necessária seria admitida pelo ordenamento jurídico brasileiro, se não até recomendado, pois estaria indo ao encontro dos fundamentos ora analisados, conforme será visto a seguir.

5. A LEGÍTIMA SOB O ENFOQUE CONSTITUCIONAL E A POSSIBILIDADE DE SUA ALTERAÇÃO

A abordagem da legítima sob um enfoque constitucional exige que sejam analisados: a herança como direito fundamental; a solidariedade no âmbito do direito sucessório, como decorrência da solidariedade familiar; a autonomia privada do testador, bem como a função social da herança.

Assim, num primeiro momento, deve-se identificar qual a compreensão da herança como direito fundamental deve ser considerada como a mais adequada: a herança sob o enfoque do direito de propriedade e, portanto, uma segurança de que os bens do autor da herança serão destinados a seus herdeiros, por ele escolhidos ou pela lei determinados; ou a herança como direito autônomo, sob a perspectiva dos sucessores, sendo, uma garantia a eles asseguradas, pautada na solidariedade familiar.

Para tanto, se faz necessário analisar tal direito sob uma interpretação sistemática e teleológica. A Constituição assegura o direito à propriedade privada, o condiciona à função social e assegura a autonomia privada dos indivíduos, não mais sob um aspecto individualista, mas baseado na solidariedade e na função social dos institutos civis como um todo.

Por outro lado, também encontramos na Constituição Federal a mudança de paradigma no âmbito familiar, que valoriza o afeto entre os indivíduos a fim de identificar a configuração dos laços de família, bem como a solidariedade entre seus membros, no sentido de promover o desenvolvimento de cada um dos indivíduos que a compõem.

Dessa forma, a herança como direito fundamental, pode ser vista como continuidade do direito de propriedade, mas que com esse não se confunde, pois sua função social não se limita à função social apenas nos moldes estabelecidos pela Constituição ao direito de propriedade em si, mas também à função social da família, que é, ao lado da propriedade, fundamento do direito sucessório e da herança.

Através desse raciocínio deve ser analisada a legítima, sob um enfoque constitucional, bem como a possibilidade e conveniência de alteração de sua conformação atual. Da forma como as regras estão impostas atualmente, além de limitação irrazoável à autonomia privada do autor da herança, verifica-se um descompasso com o conteúdo da solidariedade familiar.

A solidariedade familiar exige a realização de todos os membros da entidade familiar, para tanto, as peculiaridades dos indivíduos devem ser levadas em consideração para uma plena realização. Preocupações com alguns familiares específicos que dependem de maior auxílio, bem como questões de afetos correspondidos devem ser levadas em conta no momento da determinação dos bens para depois da morte daquele que batalhou por uma árdua conquista patrimonial.

A solidariedade familiar não pode ser reduzida à segurança econômica de seus membros, sem qualquer contrapartida, merecimento ou análise de eventuais vulnerabilidades de seus indivíduos. Por isso, nada impede, em termos constitucionais, aliás, se recomenda, uma adequação da legítima ao cenário familiar atual.

Isso não significa que o ambiente familiar se tornaria um polo de manipulação ou um retrocesso ao patriarcalismo, em virtude das próprias mudanças sociais que verificamos ao longo dos tempos. Questões desse tipo poderiam ser inclusive ser levadas para o campo indenizatório, mas devem ser vistas como excepcionais e não o padrão familiar existente atualmente.

Além disso, questões assistencialistas poderiam ser asseguradas aos familiares preteridos por outros meios, ou até mesmo pelo direito sucessório, mas com a configuração de uma herança necessária com olhos voltados para os indivíduos e não para categorias ou classes de pessoas.

Neste cenário, interessante as propostas feitas por Ana Luiza Maia Nevares (2020): para adaptação da legítima. Defende a autora a primazia da tutela dos vulneráveis, com reserva rígida para filhos dependentes, idosos e deficientes, sendo que aos demais herdeiros necessários restaria o direito de reclamar a legítima em caso de terem sido excluídos da herança por testamento e se encontrarem desamparados por ocasião da abertura da sucessão, cabendo ao juiz julgar tal requerimento com base em critérios fixos determinados por lei.

Sugere também, que no lugar de assegurar uma parcela rígida aos herdeiros necessários, sejam garantidos alimentos legítimos aos parentes próximos, necessários para uma existência digna; que seja permitida a conversão da reserva hereditária em dinheiro, a fim de ampliar as prerrogativas do testador, favorecendo um melhor planejamento sucessório; bem como que se admita a deserdação por abandono afetivo voluntário também quando caracterizada quebra dos deveres de solidariedade familiar;

Por fim traz como outras sugestões, a proteção dos idosos dependentes, por meio de tutela sucessória concorrencial para idosos dependentes em usufruto, e a ampliação do direito real de habitação com relação ao imóvel destinado à residência familiar para outros parentes que sejam dependentes dessa moradia, que o exercerão coletivamente, levando em consideração a pessoa do sucessor.

6. A LEGÍTIMA COMO ENTRAVE AO PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO

Flávio Tartuce e Giselda Fernandes Novaes Hironaka (2020, p. 433) conceituam planejamento sucessório como sendo:

O conjunto de atos e negócios jurídicos efetuados por pessoas que mantêm entre si alguma relação jurídica familiar ou sucessória, com o intuito de idealizar a divisão do patrimônio de alguém, evitando conflitos desnecessários e procurando concretizar a última vontade da pessoa cujos bens formam o seu objeto.

Assim, por meio da escolha do regime de bens do casamento ou da união estável, por meio de doações, através da partilha em vida, constituição de holding familiares, pactos parassociais, testamento, dentre outros mecanismos, é possível o planejamento da sucessão post mortem em vida com o intuito de minimizar eventuais conflitos entre os futuros sucessores e fazer uma melhor distribuição dos bens, conforme a vontade do titular deste planejamento.

Contudo, a liberdade ao planejamento sucessório não é ampla, uma vez que esta se esbarra na proibição dos pactos sucessórios, ou seja, não se pode contratar a respeito de herança de pessoa viva, bem como, em qualquer hipótese deve-se observar, na sua efetivação, o limite da legítima dos herdeiros necessários.

Neste ponto, a legítima constitui verdadeiro entrave para elaboração de um planejamento sucessório que efetivamente revele as reais intenções do futuro autor da herança, o que acaba se revelando em tentativas fraudulentas com o intuito de tentar driblar tal restrição legalmente impostas.

Dentre essas possíveis fraudes, Mario Luiz Delgado e Janio Urbano Marinho Júnior (2020, p. 325/348) elencam as seguintes hipóteses: compra e venda visando esconder doação dissimulada em favor de determinado herdeiro ou afastar a incidência do ITCMD; compra e venda de ascendente a descendente por interposta pessoa; integralização de capital social em fraude à legítima; doação e venda de cotas sociais com o objetivo de beneficiar determinados herdeiros; pactos sucessórios em pactos antenupciais ou em contratos de convivência para afastar herança do cônjuge ou companheiro; utilização de Trust como forma de fraudar a legítima, ao nomear somente alguns herdeiros como beneficiários; planos de previdência privada e seguro de vida em benefício de terceiro que não os herdeiros necessários, revertendo ao plano grande parte do patrimônio.

Esta situação acaba por refletir a incompatibilidade das atuais regras sucessórias com o desejo da sociedade neste âmbito, o que está acabando por criar situações fraudulentas que acabam prejudicando os próprios herdeiros, o que talvez poderia ser evitado se o autor da herança tivesse sua autonomia privada mais privilegiada.

Colaborando para percepção desta perspectiva, Flávio Tartuce e Giselda Fernandes Novaes Hironaka (2020, p. 434) relatam suas experiências:

De fato, na nossa experiência na advocacia consultiva, temos visto nos últimos anos atos de blindagem patrimonial e de suposto planejamento com claro intuito fraudatório, como transações, permutas e dações em pagamento desproporcionais realizadas entre marido e mulher ou entre pais e filhos, de maneira simulada, com o intuito de excluir filhos havidos fora do casamento. Para que o planejamento sucessório não se desvie dos seus fins lícitos, é preciso observar as duas regras de ouro que permitem a sua efetivação (…)

Diante desse cenário, e levando-se em consideração que o assunto planejamento sucessório está em destaque atualmente, mais uma vez resta revelada a necessidade de alteração das regras sucessórias, em especial, à limitação trazida pela legítima dos herdeiros necessários para uma devida harmonização da lei civil com as garantias constitucionais.

7. PROJETO DE LEI 3799/19

O projeto de Lei 3799/19, que trata da reforma do direito sucessório, traz previsões com o intuito de alterar a questão da legítima, excluindo o cônjuge e o companheiro do rol de herdeiros necessários e restringindo o direito concorrencial, propondo a alteração da redação dos artigos 1829 e 1845 do Código Civil, os quais, caso aprovado o projeto, passariam a ter a seguinte redação:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – Aos descendentes, em concorrência com o cônjuge ou com o companheiro sobrevivente; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge ou com o companheiro sobrevivente; III – ao cônjuge ou ao companheiro sobrevivente; IV – aos colaterais.

Parágrafo único. A concorrência sucessória do cônjuge ou companheiro, prevista nos incisos I e II do caput deste artigo, incidirá apenas sobre os seguintes bens, independentemente do regime patrimonial adotado: I – os bens adquiridos onerosamente, na constância do casamento ou união estável, ainda que só em nome de um dos cônjuges ou companheiros; II – os bens adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anterior; III – os bens adquiridos por doação, herança ou legado, em favor de ambos os cônjuges ou companheiros; IV – as benfeitorias e acessões em bens particulares de cada cônjuge ou companheiro, produzidos na constância do casamento ou união estável; V – os frutos e produtos dos bens comuns ou dos particulares de cada cônjuge ou companheiro, percebidos na constância do casamento ou união estável, ou pendentes ao tempo da abertura da sucessão.”

Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes e os ascendentes.

Além disso traz previsão que permite maior maleabilidade no tratamento da legítima autorizando que o ator da herança beneficie herdeiros considerados vulneráveis, conforme alteração do artigo 1846, o qual passaria a conter dois parágrafos inexistentes no atual texto do dispositivo com o seguinte conteúdo:

Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.

§ 1º O testador poderá destinar um quarto da legítima a descendentes, ascendentes, a cônjuge ou companheiro com vulnerabilidade. § 2º Considera-se pessoa com vulnerabilidade, para fins deste artigo, toda aquela que tenha impedimento de longo prazo ou permanente, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em relação a sua idade ou meio social, implica desvantagens consideráveis para sua integração familiar, social, educacional ou laboral, obstruindo sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”

Como pode se ver, tal proposta de alteração da legítima vai ao encontro dos anseios sociais, compatibilizando o direito sucessório com as alterações familiares acima tratadas e enfatizando a solidariedade familiar, bem como a autonomia privada do autor da herança, estando em maior conformidade com a principiologia constitucional atual.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme visto inicialmente, a reserva legítima, que autoriza ao testador dispor livremente de parte de seus bens, reservando outra parte aos herdeiros necessários, atende, concomitantemente, o exercício do direito de propriedade, com a consagração da autonomia privada, fundamento da RFB, à solidariedade constitucional (artigo 3º, I, CF), bem como à especial proteção à família, garantida no artigo 226, CF, ao determinar a distribuição compulsória apenas de parte do patrimônio do autor da herança, após a sua morte aos parentes mais próximos;

Em prol da solidariedade familiar, e tendo a Constituição colocado a família como base da sociedade, portanto, conclui-se que a abolição da reserva legítima não seria medida constitucional, mas, conforme os argumentos levantados, em resposta à questão norteadora do presente trabalho, seus contornos podem ser revistos, sem qualquer inconstitucionalidade.

Aliás, tal revisão, no sentido de trazer uma proteção à família, levando em consideração a pessoa de cada um de seus membros, e a situação de vulnerabilidade que cada um eventualmente se encontre, conferindo maior maleabilidade ao autor da herança, poderia concretizar ainda melhor o princípio da solidariedade familiar e a dignidade da pessoa humana, sem ferir substancialmente o princípio da autonomia privada do testador.

Desse modo, o que se buscou demonstrar no presente estudo é a incompatibilidade da forma como a legítima está estruturada atualmente, especialmente no que diz respeito à neutralidade de sua conformação atual, levando-se em consideração uma interpretação do direito sucessório pautado nos valores constitucionais.

Assim, ainda que se compreenda pela abrangência da legítima no direito fundamental à herança constitucionalmente protegido, levando-se em consideração os titulares do direito de herança como protegidos pelo princípio constitucional, necessário se faz uma adaptação da legislação infraconstitucional, baseado em um juízo de ponderação dos princípios constitucionais, frente a evolução social ora vivenciada que não mais vê seus anseios atendidos frente as regras da forma como estão postas atualmente.

O que deve ser revisto, em verdade, é o conteúdo do princípio da solidariedade familiar, como meio de concretizar a função social da herança e da legítima em si. A solidariedade que privilegie o afeto, a vulnerabilidade dos familiares, e neste sentido a autonomia privada do autor da herança, não numa visão individualista, mas numa visão baseada no princípio eudemonista dentro da coletividade familiar que atualmente se configura das mais diversas formas.

Muitas vezes, os herdeiros negligenciam todo o trabalho efetuado pelos ascendentes, indo contra a própria função social da herança. Nada mais justo e até constitucional seria que o autor da herança pudesse fazer uma avaliação prévia da situação em vida, do que seria mais proveitoso para a família e, indiretamente para a sociedade, tanto pelo aspecto de ver os mais necessitados atendidos, quanto na identificação dos mais aptos para figurar como herdeiro de seu patrimônio.

Forçar a sucessão patrimonial após a morte de forma neutra, como o faz a legítima na configuração atual, independentemente de voltar os olhos para questões afetivas e de necessidade pessoal, que são questões que envolvem a  dignidade da pessoa humana, vai contra a solidariedade familiar e a própria função social da herança, a qual deve servir para a realização pessoal de seus membros, ainda que com efeitos para após a morte.

Portanto, conclui-se ante o exposto, que o direito fundamental à herança, previsto constitucionalmente, deve ser visto tanto como direito assegurado ao autor da herança, levando-se em conta o direito de propriedade e sua autonomia privada, bem como, como direito dos herdeiros necessários, o qual se pauta na solidariedade familiar. Direito esse que deve atender a uma função social, a qual não se restringe à função social típica do direito de propriedade, mas que vai além, pois deve atender substancialmente a solidariedade mencionada.

Assim, a partir do que fora demonstrado e respondendo à questão norteadora, as normas de direito sucessório no que diz respeito à herança necessária, não estão atendendo aos valores constitucionalmente assegurados. Além disso, a neutralidade da legítima e o grau de restrição à autonomia privada do autor da herança dela decorrente, estão em desacordo com as modificações sociais e o tratamento jurisprudencial dado a tais modificações no que diz respeito ao âmbito do direito de família. Dessa forma, nem só é possível, como recomendada a adaptação de tais regras para que o direito fundamental à herança seja atendido levando em consideração os valores constitucionais envolvidos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 21 nov. 2020.

BRASIL. Lei n. 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 21 nov. 2020.

DELGADO, Mario Luiz. Os Novos Herdeiros Legitimários. In: Revista Nacional de Família e Sucessões – Edições 22 – Jan/Fev 2018.

DELGADO, Mario Luiz; MARINHO JUNIOR, Janio Urbano. Fraudes no planejamento sucessório. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (Coord.). Arquitetura do planejamento sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2020.

DIAS, Maria Berenice Manual de direito das Famílias [livro eletrônico] – 4 ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

Gagliano, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo – Novo curso de direito civil, volume 7: direito das sucessões –  7 ed. São Paulo: Saraiva educação, 2020.

GOMES, Renata Raupp. A função social da legítima no direito brasileiro. Rio de Janeiro:  Lumen Juris, 2019.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 7 : direito das sucessões – 11. ed. – São Paulo: Saraiva, 2017.

HIRONAKA, Giselda Maria Fernades Novaes; TARTUCE, Flávio. Planejamento sucessório: conceito, mecanismos e limitações. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (Coord.). Arquitetura do planejamento sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2020.

LOBO, Paulo. Direito Constitucional à herança, saisine e liberdade de testar. Disponível em: https://www.ibdfam.org.br/assets/upload/anais/290.pdf. Acesso em: 25 nov. 2020.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha Pereira. Princípios fundamentais norteadores do direito de família – 3. Ed. – São Paulo: saraiva, 2016.

MADALENO, Rolf. Direito de Família – 10 ed. – Rio de Janeiro\; Forense, 2020.

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NEVARES. Ana Luiza Maia Nevares. A crise da legítima no direito brasileiro. In: Contratos, família e sucessões: diálogos complementares/ Alexandre Miranda Oliveira… [et al.]; coordenado por Ana Carolina Brochado Teixeira, Renata de Lima Rodrigues – Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2019.

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TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito de família – v. 5 – 15 ed – Rio de Janeiro: Forense, 2020.

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TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana Luiza; MEIRELES Rose Melo Vencelau Meireles; Fundamentos do Direito Civil – Direito das sucessões – v. 7 – Edição do Kindle – Rio de Janeiro: Forense, 2020.

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

3. Ementa: Direito constitucional e civil. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Inconstitucionalidade da distinção de regime sucessório entre cônjuges e companheiros. 1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável. 2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. 3. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e da vedação do retrocesso. 4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. 5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”. (RE 878694, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-021 DIVULG 05-02-2018 PUBLIC 06-02-2018)

4. Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

5. Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.

6. CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE. HERDEIRO NECESSÁRIO. ART. 1.845 DO CC. REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS. CONCORRÊNCIA COM DESCENDENTE. POSSIBILIDADE. ART. 1.829, I, DO CC. 1. O cônjuge, qualquer que seja o regime de bens adotado pelo casal, é herdeiro necessário (art.1.845 do Código Civil). 2. No regime de separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes do falecido. A lei afasta a concorrência apenas quanto ao regime da separação legal de bens prevista no art. 1.641 do Código Civil. Interpretação do art. 1.829, I, do Código Civil. 3. Recurso especial desprovido. (REsp 1382170/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/04/2015, DJe 26/05/2015). AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE SUCESSÃO. CÔNJUGE.HERDEIRO NECESSÁRIO. EXEGESE DOS ARTS. 1.845 E 1.829, II, DO CÓDIGO CIVIL/2002. REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS. REGRAMENTO VOLTADO PARA AS SITUAÇÕES DE PARTILHA EM VIDA. CONDIÇÃO DE HERDEIRO NECESSÁRIO INDISPONÍVEL POR PACTO ANTENUPCIAL. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. Segunda Seção do STJ pacificou o entendimento de que “o cônjuge sobrevivente casado sob o regime de separação convencional de bens ostenta a condição de herdeiro necessário”. Precedentes. 2. Verificada a harmonia entre o acórdão recorrido e o entendimento desta Corte Superior, tem incidência o enunciado n. 83/STJ, inviabilizando o provimento do recurso especial. 3. Agravo interno desprovido. (AgInt no REsp 1840911/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/08/2020, DJe 01/09/2020)

7. RE 878694/MG – Ementa: Direito constitucional e civil. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Inconstitucionalidade da distinção de regime sucessório entre cônjuges e companheiros. 1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável. 2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. 3. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e da vedação do retrocesso. 4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. 5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.Acórdãos no mesmo sentido (RE 878694 ED PROCESSO ELETRÔNICO JULG-26-10-2018 UF-MG TURMA-TP MIN-ROBERTO BARROSO N.PÁG-006 DJe-238 DIVULG 08-11-2018 PUBLIC 09-11-2018)

8. RE 646721/RS – Ementa: Direito constitucional e civil. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Aplicação do artigo 1.790 do Código Civil à sucessão em união estável homoafetiva. Inconstitucionalidade da distinção de regime sucessório entre cônjuges e companheiros. 1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável, hetero ou homoafetivas. O STF já reconheceu a “inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico”, aplicando-se a união estável entre pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e mesas consequências da união estável heteroafetiva (ADI 4277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05.05.2011) 2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso. 3. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. 4. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”. (RE646.721/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, TRIBUNAL PLENO, Julgamento: 10/05/2017; Publicação: 11/09/2017)

9. Em conversa pessoal por e-mail datado de 27 de outubro de 2020.

10. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;

11. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

[1] Mestranda em Soluções Alternativas de Controvérsias Empresariais pela Escola Paulista de Direito (EPD). Mestranda em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP). Especialista em Direito Notarial e Registral pelo Instituto Damásio de Direito. Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera – Uniderp. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6841-9671.

[2] Orientador. Pós-doutorando em Direito pela Università degli Studi di Messina, Itália. Doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP). Especialista em Direito do Consumidor na experiência do Tribunal de Justiça da União Europeia e na Jurisprudência Espanhola. Especialista em Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino (ITE). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Graduado em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9595-3266.

Enviado: Julho, 2021.

Aprovado: Dezembro, 2021.

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Renata Ramos Carrara Pereira

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