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Ação coletiva: fundamento, microssistema e propostas legislativas de reforma

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SANTOS, Marcelo Fernando Neri [1], FERREIRA, Julia Filipini [2]

SANTOS, Marcelo Fernando Neri. FERREIRA, Julia Filipini. Ação coletiva: fundamento, microssistema e propostas legislativas de reforma. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 07, Vol. 07, pp. 115-134. Julho de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/legislativas-de-reforma

RESUMO

A tutela jurídica é individual ou coletiva e se presta ao deslinde dos conflitos sociais. Individual, porque almeja diluir a contenda existente entre uma ou mais pessoas em razão de fato jurídico determinado e circunscrito a um universo específico de eventos. Coletiva, de outra banda, dado que se presta à solução ampla de conflitos sociais, cujos indivíduos envolvidos são indeterminados ou indetermináveis; fala-se, portanto, de direitos difusos ou coletivos. Tem-se, ainda, a tutela dos direitos individuais homogêneos, direitos individuais coletivizados para proteção jurídica mais efetiva. O Código de Processo Civil, em geral, é a norma base do direito adjetivo individual. Entretanto, há no ordenamento jurídico nacional um conjunto normativo específico dedicado à tutela coletiva. Remonta à década de 1980 a consolidação dessas normas processuais em um microssistema composto principalmente pela Lei da Ação Civil Pública e pelo Código de Defesa do Consumidor. Justamente por isso, a exemplo da atualização das normas gerais de processo civil, em 2015, com a edição de um novo código, a questão norteadora deste artigo será a análise de quais são as propostas de modernização do microssistema e quais são, em resumo, as principais mudanças almejadas. Nessa direção, o presente artigo objetiva compreender determinados aspectos do processo coletivo e de seu processo de atualização (i) desde o seu nascimento; (ii) a partir da interação entre as diversas normas que compõem o microssistema de tutela coletiva; e (iii) avaliando-se os principais pontos das propostas de atualização em trâmite na Câmara dos Deputados. Para que o objetivo em destaque seja alcançado, utilizou-se, como metodologia, a revisão doutrinária e a análise de textos legais. Dessarte, é certo que a pesquisa resultou na constatação de que as três propostas em andamento no Congresso Nacional se propõem a atualizar os institutos e as ferramentas criados a partir da edição das principais normas do microssistema de tutela coletiva nos anos 1980, correndo-se o risco, entretanto, a exemplo das propostas formuladas nos anos 2000, de não progredirem.

Palavras-Chave: bens coletivos, direitos coletivos, microssistema de tutela coletiva, projetos de lei.

1. INTRODUÇÃO

O direito é um sistema de valores constantemente em transformação que corresponde às necessidades da sociedade. Ele, o direito, transforma-se porque a sociedade se transforma. Com o passar do tempo, os costumes mudam, os hábitos sociais se modificam e a inventividade humana dá ensejo a uma série de novas tecnologias que desaguam em novas relações sociais e, portanto, em novas relações jurídicas.

Entretanto, é bem verdade que a interação humana não é sempre pacífica. Por vezes, determinadas soluções não advêm da colaboração entre os indivíduos ou do respeito ao conjunto normativo vigente em determinada época e lugar. Nasce, assim, o litígio.

Diante de desentendimentos e divergências, torna-se necessário solucionar a contenda por intermédio de uma terceira parte. Eis a figura do juiz, sujeito equidistante, cuja atribuição é dirimir os conflitos sociais. Desse modo, uma vez provocado, para que possa adequadamente responder aos desafios ocasionados pela lide, o Estado-juiz se vale de um conjunto de diretrizes que organizam a maneira pela qual as partes poderão formular suas demandas e/ou resistir às demandas encetadas pelo ex adverso. A esse conjunto de regras é dado o nome do processo.

No decorrer do século XX, a sociedade e o direito se transformaram, de modo que novos bens de interesse jurídico surgiram, novos direitos correlatos foram reconhecidos e fez-se necessária a adequação do processo para que os detentores desses direitos pudessem adequadamente se socorrer do Estado para verem resguardados os seus interesses.

Esse é o caso dos direitos difusos e coletivos e do processo coletivo. Ver-se-á que o reconhecimento desses novos bens jurídicos, em geral vinculados, e. g., ao meio ambiente, ao direito do consumidor e às populações vulneráveis, exigiu a criação de ferramentas processuais novas, como a ação popular, a ação civil pública, a ação coletiva, entre outras. Contudo, mais recentemente, essas normas processuais têm reclamado atualizações.

2. BENS COLETIVOS E DIREITOS COLETIVOS

2.1 BENS COLETIVOS

Caio Mário da Silva Pereira (2015, p. 5) assevera que o “Direito é o princípio de adequação da pessoa à vida social”. É certo que o Direito, embora uno, quando encarado sob o prisma do conjunto normativo vigente em determinado país, inicialmente se divide em direito público e direito privado. A diferença entre um e outro pode residir no titular da relação jurídica ou no objeto.

Caio Mário (2015, p. 14) reconhece a dificuldade de diferenciar o direito público do direito privado, mas, citando Ruggiero, esclarece que:

Parece conseguir resultado satisfatório Ruggiero, com a associação do fator objetivo ao elemento subjetivo: público é o direito que tem por finalidade regular as relações do Estado com outro Estado, ou as do Estado com seus súditos, quando procede em razão do poder soberano, e atua na tutela do bem coletivo; direito privado é o que disciplina as relações entre pessoas singulares, nas quais predomina imediatamente o interesse de ordem particular.

A obra de Caio Mario é de fundamental importância para a compreensão do fenômeno jurídico, em especial aquele vinculado às normas de direito civil. Entretanto, a clássica distinção que fez entre direito público e direito privado deixou de lado um conjunto de interesses e direitos que não pertence a nenhum dos dois ramos. Hugo Nigro Mazzilli (2015, p. 48) sintetiza a problemática e explica que as críticas endereçadas à definição clássica decorrem principalmente do fato de a expressão direito público ou interesse público ter se tornado dúbia, quando, segundo ele, passou a ser utilizada também para designar os chamados interesses sociais. Entre o direito público e o direito privado, assim, existiria uma categoria intermediária, a saber, a dos interesses transindividuais ou interesses coletivos lato sensu.

Esclarece Mazzilli (2015, p. 51):

Situados numa posição intermediária entre o interesse público e o interesse privado, existem os interesses transindividuais (também chamados de interesses coletivos, em sentido lato), os quais são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas (como os condôminos de um edifício, os sócios de uma empresa, os membros de uma equipe esportiva, os empregados do mesmo patrão). São interesses que excedem o âmbito estritamente individual, mas não chegam propriamente a constituir interesse público.

Dado que as discussões a respeito do tema se aprofundaram graças à necessidade de se estabelecerem instrumentos processuais adequados à tutela coletiva, é importante reconhecer que a origem do tema está relacionada à identificação dessa categoria intermediária de direitos – a dos direitos difusos e coletivos. A discussão a respeito das ferramentas processuais deu-se em um segundo momento. Essa percepção é reforçada em razão da ideia de que todo direito corresponde a um objeto previamente conhecido.

Nessa direção, explica Sílvio de Salvo Venosa (VENOSA, 2015, p. 315):

Todo o direito tem um objeto sobre o qual repousa. […] O objeto do Direito pode ser a existência mesma da pessoa, seus atributos da personalidade: a honra, a liberdade, a manifestação do pensamento. […] pode traduzir-se também em uma atividade da pessoa; uma prestação; um fazer ou deixar de fazer algo. […] pode recair sobre coisas corpóreas e incorpóreas.

Decorre disso que o direito coletivo possui um objeto, um bem correlato, seja ele imaterial ou material. Tome-se por base o direito ambiental; pode-se afirmar que há bens ambientais (água, fauna, flora, espaços públicos, entre outros) os quais correspondem ao conjunto de normas adjetivas existente. Todavia, a dificuldade de se classificar tais bens como públicos ou privados é latente.

O bem ambiental, assim como as relações contratuais – a exemplo daquelas havidas por ocasião do consumo de bens e serviços – poderiam ser classificados, entretanto, como bens de interesse público ou bens socioambientais.

Nos dizeres de Carlos Frederico Marés de Souza Filho (2006, p. 25):

Em conclusão, o bem cultural – histórico ou artístico – faz parte de uma nova categoria de bens, junto com os demais ambientais, que não se coloca em oposição aos conceitos de privado e público, nem altera a dicotomia, porque ao bem material que suporta a referência cultura ou importância ambiental – este sempre público ou privado –, se agrega um novo bem, imaterial, cujo titular não é o mesmo sujeito do bem material, mas toda a comunidade. Este novo bem que surge da soma dos dois, isto é, do material e do imaterial, ainda não batizado pelo Direito, vem sendo chamado de bem de interesse público, e tem uma titularidade difusa, e talvez outro nome lhe caiba melhor, como bem socioambiental, porque sempre tem que ter qualidade ambiental humanamente referenciada.

Contudo, para além do enquadramento desses direitos em uma das duas grandes áreas da ciência jurídica, a saber, direito público e direito privado, é certo que os interesses ou direitos coletivos encontram no Brasil definição legal específica e estão subdivididos em interesses ou direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos.

2.2 INTERESSES OU DIREITO COLETIVOS

A expressão direito coletivo é genérica e abarca tanto os direitos transindividuais como os direitos individuais homogêneos. Os direitos transindividuais são os direitos difusos e os direitos coletivos stricto sensu. A propósito, Teori Albino Zavascki (2017) esclarece que os direitos individuais homogêneos não são direitos transindividuais, mas simplesmente direitos individuais coletivizados.

De proêmio, cumpre esclarecer que a utilização dos termos interesse e direito é irrelevante para a qualificação dos direitos coletivos. A lei, em diversas passagens, utiliza-se de ambas as palavras ou de só uma delas. A doutrina, por sua vez, divide-se entre aqueles que (i) defendem se tratar de sinonímias, (ii) os que entendem que o correto seria utilizar a terminologia interesse e (iii) os que advogam pela utilização do termo direito. Todavia, essa discussão não tem consequência prática (TARTUCE e NEVES, 2014, pp. 595-596).

Nessa direção, o artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor contém a definição legal dos direitos ou interesses difusos e coletivos, sendo possível sintetizar as principais característica de cada grupo, em especial em razão da titularidade, do objeto e da origem do direito.

Em resumo, os interesses ou direitos difusos são transindividuais e têm natureza indivisível. Seus titulares são indivíduos indetermináveis, ligados entre si por circunstâncias de fato. Como exemplos tem-se: a busca pela preservação do meio ambiente e o combate a determinada publicidade enganosa. Por sua vez, os interesses ou direitos coletivos (direitos coletivos stricto sensu) são transindividuais e possuem natureza indivisível. Estão vinculados a um número determinado de indivíduos, ligados entre si – ou à parte contrária – por uma relação jurídica base. Os titulares desses direitos são determináveis e devem pertencer a um grupo, categoria ou classe. Exemplo possível: alunos de uma universidade que almejam garantir a qualidade do ensino oferecido. Por fim, os interesses ou direitos individuais homogêneos são decorrentes de origem comum, são individuais, divisíveis e seus titulares são determinados. Por exemplo: vício relacionado à determinado produto adquirido por consumidores.

Via de regra, a diferença entre os interesses ou direitos individuais homogêneos e os interesses ou direitos difusos e coletivos está na divisibilidade do direito. Em verdade, como já anotado, os direitos individuais homogêneos são direitos individuais subjetivos, ligado entre si por uma semelhança (MAZZILLI, 2015, pp. 58-59).

A Constituição Federal de 1988 ampara os direitos coletivos e garante sua proteção e defesa. Em especial, o direito do consumidor e o direito ambiental encontram guarida no artigo 5º, inciso XXXII, e no artigo 225, respectivamente.

Esclarece Patrícia Miranda Pizzol (PIZZOL, 2019):

Podem ser considerados essencialmente coletivos, entre outros, os seguintes direitos: a) direito a um tratamento igualitário sem preconceitos de origem, cor, raça, idade, sexo (art. 3º, IV; art. 5º da CF); b) direito à propriedade, observada sua função social (art. 1º, caput, e art. 170, III, da CF); c) direito à redução de riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança (artigo 7º, XXII, da CF); d) direito à educação (art. 205 da CF); e) direito à cultura (arts. 215 e 216 da CF), à ciência e tecnologia (arts. 218 e 219 da CF); f) direito à saúde (arts. 196 a 200 da CF); g) direito ao meio ambiente sadio e equilibrado (art. 225 da CF); h) direito da família, da criança e do adolescente, do idoso (art. 226 a 230 da CF); i) direito à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação ou direito à comunicação social ou à liberdade de informação, principalmente jornalística (arts. 220 a 224 da CF); j) direito à informação (a liberdade de informação deixa de ser função individual e passa a ser função social) (art. 5º, XIV, XXXIII, da CF); k) direito à reparação dos danos materiais, morais e à imagem (art. 5º, V e X, da CF); l) direito de petição (art. 5º, XXXIV, da CF); m) direito de representação coletiva (art. 5º, XXI; art. 8., III, da CF); n) direito de participação (arts. 14, I e II; 29, XIII; 61, §2º; 11; 194, VII; 198, III; 31, §3º, da CF); o) direito à informação sobre os impostos incidentes sobre mercadorias e serviços (art. 150, §5º, da CF); p) direito à ordem urbanística (art. 182 da CF).

Os direitos coletivos são direitos de terceira geração. Contudo, o problema relacionado a esses novos direitos não residiria mais em seu reconhecimento, mas, sim, em sua efetiva proteção. Ensina Norberto Bobbio (1992, p. 25):

Com feito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual sua natureza e seu fundamento, se são direito naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.

Mas, se é verdadeira a afirmação de que todo direito corresponde a um objeto – motivo pelo qual os direitos coletivos estão vinculados a bens coletivos –, é igualmente verdade que a todo direito corresponde uma ação – o Código Civil de 1916, aliás, continha norma expressa nesse sentido em seus artigos 75 e 76, não reproduzidos pelo Código Civil de 2002. Pode-se afirmar, então, na direção do que disse Bobbio, que a preocupação principal a respeito dos direitos coletivos está vinculada à sua efetiva proteção. Daí decorre, assim, que as normas que preveem os instrumentos de defesa da coletividade merecem especial atenção.

3. MICROSSISTEMA DE TUTELA COLETIVA

Do ponto de vista do direito processual, de longa data se reconhecia a necessidade de ferramentas específicas para a tutela dos interesses de grupos, classes ou categorias de pessoas. Explica Mazzilli (2015, p. 48) que o assunto remonta às cortes medievais europeias e às class actions do direito norte-americano, sendo certo que, a partir 1970, em razão da doutrina de Mauro Cappelletti, as principais questões a respeito do processo coletivo começaram a ganhar forma, em especial a representação processual diferenciada, os limites da coisa julgada e a repartição do produto da indenização.

3.1 AÇÃO POPULAR (LEI Nº 4.717/1965)

Historicamente, pode-se considerar que a ação popular, instituída em 1965, constitui o embrião da defesa dos interesses ou direitos coletivos no Brasil. Atualmente, além da Lei nº 4.717/65, a Constituição Federal prevê seu cabimento no artigo 5º, inciso LXXIII.

A ação popular se presta a anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público, ou seja, a de bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico. É legitimado para propor ação popular, qualquer cidadão, de maneira que poderão figurar no polo passivo da demanda pessoas públicas ou privadas, nos termos do artigo 6º (1965).

A ação popular pode ser classificada como direito político fundamental, sendo essencial para o exercício da cidadania e a caracteriza como um direito político fundamental. Ensina Teori Zavascki (2017):

Por outro lado, a faculdade de promover a ação popular, com o poder que dela decorre no controle de atos da Administração Pública, conferiu aos membros da comunidade um meio de participação na vida política, um significativo marco de afirmação dos direitos de cidadania. É o cidadão tutelando em juízo “o direito que tem a coletividade a um governo probo e a uma administração honesta”, lembrava Frederico Marques. Trata-se, inegavelmente, de um direito político fundamental, da mesma natureza de outros direitos políticos previstos na Constituição, como os de alistar-se, habilitar-se a candidaturas para cargos eletivos (CF, art. 14, §§ 1° a 4°) e a nomeações para certos cargos públicos não eletivos (CF, arts. 87; 89, VII; 101; 131, § 1°), participar de sufrágios, votar em eleições, plebiscitos e referendos e apresentar projetos de lei pela via da iniciativa popular (CF, arts. 14, caput, e 61, § 2°).7 Visualizado em seu contexto e em seu sentido histórico (como é apropriado para avaliar adequadamente essa espécie de atributo), o direito à ação popular sempre representou um traço importante nos direitos de cidadania, de muito significado ainda hoje, quando tais direitos assumem novos contornos, mais complexos e multiformes.

A ação popular, entretanto, regulamenta a proteção só de alguns direitos coletivos. Justamente por isso, os direitos individuais homogêneos não poderiam ser tutelados por essa ação. Não à toa, em um primeiro momento, a proteção dos direitos coletivos era limitada, de modo que só com o advento da ação civil pública esse cenário começou a efetivamente mudar.

3.2 LEI DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA (LEI Nº 7.347/85)

Foi com a edição do Plano Nacional do Meio Ambiente, Lei nº 6.938/81, que a ação civil pública foi introduzida no ordenamento jurídico nacional. De acordo com o artigo 14, § 1º, da mencionada lei, caberia ao Ministério Público a propositura de ação civil para responsabilizar o poluidor por danos causados ao meio ambiente. Porém, é com o advento da Lei nº 7.347/85 que a ação civil pública foi definitivamente introduzida no ordenamento jurídico pátrio.

A novel legislação dispôs que, sem prejuízo da ação popular, reger-se-iam pelas normas ali transcritas as ações de responsabilidade por danos ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e por infração da ordem econômica. Legislações posteriores incluíram a responsabilização por danos a qualquer outro interesse difuso ou coletivo, à ordem urbanística, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos e ao patrimônio público e social. Entretanto, em razão da Medida provisória nº 2.180-35, de 2021, esclareceu-se que não seria cabível ação civil pública para discutir questões envolvendo tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários poderiam ser individualmente determinados.

Constitui-se, do mais, rol amplo de legitimados para propositura da ação, a saber, Ministério Público, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista e associação civil que, concomitantemente estivesse constituída há pelo menos 1 (um) ano e incluísse entre suas finalidades a proteção ao direito coletivo ameaçado. Vale destacar que, se o Ministério Público não figurasse como parte, seria interveniente como fiscal da lei.

Mazzilli (2015, p. 73) explica que, antes da promulgação da Lei nº 7.347/85, tinha-se que “a rigor a ação civil pública [seria] a ação de objeto não penal proposta pelo Mistério Público”. Com a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, entretanto, a discussão a respeito do objeto da ação civil pública ganhou novos contornos. Nos dizeres de Mazzilli (2015, p. 74):

Baseados na literalidade do inc. IV do art. 1º da Lei n. 7.347/85 (que só mencionam expressamente os interesses difusos e coletivos) e nos arts. 81 e 91 da Lei n. 8.078/90 (que se referem à tutela coletiva de interesses individuais homogêneos), dizem alguns que as ações para tutela de interesses difusos e coletivos são ações civil públicas, enquanto a tutela de interesses individuais homogêneos se faz por ações coletivas. O entendimento é superficial, pois que há todo um microssistema de tutela coletiva, do qual fazem parte, de forma integrada, tanto a LACP como o CDC (LACP, art. 21; CDC, art. 90). Assim, é perfeitamente possível utilizar a ação civil pública da Lei n. 7. 347/85 para defender quaisquer interesses transindividuais, inclusive aqueles homogêneos, ainda que não apenas de consumidores.

Após a edição da Lei da Ação Civil Pública, o tema foi reforçado pela promulgação da Constituição Federal de 1988.

3.3 CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A Constituição Federal passou a reunir, após a sua promulgação, os fundamentos para a defesa dos interesses ou direitos difusos e coletivos. As principais normas atinentes ao processo coletivo constantes passaram a encontrar lastro no texto constitucional. Ensina Patrícia Pizzol (2019):

Entre os dispositivos constitucionais que fundamentam a tutela jurisdicional coletiva, abrangendo os princípios processuais bem como os instrumentos que se destinam à efetivação dos direitos coletivos assegurados pela ordem constitucional e infraconstitucional, podem ser mencionados: a) art. 5º, XXXV (nenhuma lesão ou ameaça a direito individual ou coletivo pode ser subtraída da apreciação do Poder Judiciário); b) art. 5º, LXXIII (a ação popular é garantida ao cidadão para a tutela de bens coletivos, como patrimônio público, patrimônio histórico, meio ambiente, moralidade administrativa); c) art. 5º, LXIX e LXX (o mandado de segurança é assegurado a toda pessoa que tenha sofrido lesão ou ameaça a direito líquido e certo, individual ou coletivo, em razão de ato de autoridade); d) art. 5º, LXXI e LXXII (o mandado de injunção e o habeas data podem ser impetrados para a tutela de direito individual ou coletivo); e) art. 129, III (é função institucional do Ministério Público defender direitos difusos e coletivos por meio de ação civil pública, podendo, para isso, instaurar inquérito civil); f) art. 127 (é função do Ministério Público defender interesses sociais) g) art. 5º, LIV, LV, XXXVII, LVI; art. 93, IX (todo processo, seja ele individual ou coletivo, deve assegurar às partes contraditório e ampla defesa, juiz natural, provas obtidas por meios lícitos, publicidade dos atos processuais, motivação das decisões judiciais etc.).

Não obstante o legislador constituinte tenha alçado à norma constitucional as bases do sistema de proteção dos interesses e direitos coletivos, foi em razão do Código de Defesa do Consumidor que o microssistema de tutela coletiva se consolidou.

3.4 CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Didier e Zaneti (2007, p. 45) explicam que a Lei nº 8.078/90 (CDC) é responsável pela harmonização e organização do subsistema de tutela coletiva e, juntamente com a Lei da Ação Civil Pública (LACP), constitui seu núcleo duro. O diálogo existente entre ambos os diplomas legais resulta da aplicação do artigo 21 da LACP e do artigo 90 do CDC. Tratam-se, assim, de normas gerais para o processo das ações coletivas, constituindo, como sobredito, as bases do microssistema de proteção dos interesses ou direito difusos e coletivos.

Em seu artigo 81, o Código de Defesa do Consumidor (1990) trouxe a definição de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. De outra banda, reforçou o rol de legitimados para a propositura da ação coletiva, artigo 82, além de estabelecer regras de competência, artigo 93, e instruções a respeito da liquidação e execução de sentença, artigos 97 e 98.

A respeito das regras de competência, Herman Benjamin, Cláudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa explicam que (2021, p. RB 14.13):

Em regra, dois fatores são fundamentais para a definição da competência na hipótese de demanda coletiva que objetiva proteger direitos coletivos do consumidor: 1) a natureza jurídica do fornecedor; 2) a extensão do dano (real e potencial). (…) A natureza jurídica do fornecedor é importante para a eventual definição da competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da Constituição Federal, que dispõe competir aos juízes federais processar e julgar “as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho”. (…) Quando o dano for local (não regional), a competência é da comarca mais próxima. Se o dano (real ou potencial) atingir todo o Estado, a competência é da capital do respectivo Estado; se distrital, a competência é da Justiça do Distrito Federal. Por fim, se o dano for nacional, a ação coletiva deve ser proposta na Capital dos Estados ou na Justiça do Distrito Federal.

O CDC denominou a ação para tutela dos interesses transindividuais como sendo ação coletiva. A discussão a respeito da nomenclatura é indiferente neste momento. Assim, pode-se acrescentar que a ação coletiva – ou ação civil pública – enseja a adoção de procedimento alternativo à técnica tradicional do litisconsórcio ativo facultativo, destinado a permitir a cognição de questões jurídicas comuns a um determinado grupo de indivíduos.

Nos dizeres de Teori Zavascki (2017):

A ação coletiva para tutela de direitos individuais homogêneos representa, portanto, instrumento processual alternativo ao litisconsórcio ativo facultativo previsto no CPC. Consiste num procedimento especial estruturado sob a fórmula da repartição da atividade jurisdicional cognitiva em duas fases: uma, que constitui o objeto da ação coletiva propriamente dita, na qual a cognição se limita às questões fáticas e jurídicas que são comuns à universalidade dos direitos demandados, ou seja, ao seu núcleo de homogeneidade; e outra, a ser promovida em uma ou mais ações posteriores, propostas em caso de procedência da ação coletiva, em que a atividade cognitiva é complementada mediante juízo específico sobre as situações individuais de cada um dos lesados (= margem de heterogeneidade).

Como se vê, o Código de Defesa do Consumidor se preocupou com a tutela dos interesses difusos e coletivo do consumidor e estabeleceu, em razão disso, instrumentos processuais adequados para a defesa desses direitos.

3.5 LEGISLAÇÃO CORRELATA

Além da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor, compõem o microssistema de direito coletivo a já mencionada Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/65), a Lei do Mandado de Segurança (Lei nº 12.016/09) e a Lei da Ação de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92). Ainda, existem normas esparsas no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), no Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03), na Lei dos Investidores dos Mercados de Valores Imobiliários (Lei nº 7.913/89), na Lei das Pessoas Portadoras de Deficiência (Lei nº 7.853/89) e na Lei do Sistema Brasileiro de Concorrência (Lei nº 12.529/11), para citar os diplomas de maior relevo. Não obstante, é certo que, nos termos do artigo 83 do CDC, a defesa dos direitos e interesses coletivos pode ser exercida por todas as espécies de ações.

Em relação à ação de improbidade administrativa, leciona Teori Zavascki (2017):

Na mesma linha da preocupação de tutelar o direito transindividual à probidade da Administração Pública, a Constituição Federal, no seu art. 37, § 4.º, estabeleceu que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. O ponto de referência, aqui, já não é o de preservar ou recompor o patrimônio público ou os atos da administração (objetivo primordial da ação civil pública e da ação popular), mas sim, fundamentalmente, o de punir os responsáveis por atos de improbidade. Foi, pois, com esse objetivo que, regulamentando o dispositivo da Constituição, surgiu a Lei 8.429, de 02.06.1992. Segundo a ementa, é Lei que “dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na Administração Pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências”. Entre as “outras providências”, há regras de natureza processual disciplinando a ação judicial para a imposição das referidas sanções. É a ação de improbidade administrativa. Trata-se, portanto, de ação com caráter eminentemente repressivo, destinada, mais que a tutelar direitos, a aplicar penalidades. Sob esse aspecto, ela é marcadamente diferente da ação civil pública e da ação popular. Todavia, há entre elas um ponto comum de identidade: as três, direta ou indiretamente, servem ao objetivo maior e superior de tutelar o direito transindividual e democrático a um governo probo e a uma administração pública eficiente e honesta.

Também é certo que o Código de Processo Civil (CPC), nos termos do artigo 19 da LACP (1985), tem aplicação subsidiária ao microssistema (TARTUCE e NEVES, 2014, p. 588). E não só, embora não tenha tratado especificamente da tutela coletiva, o CPC estabeleceu o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e os Recursos Repetitivos, de modo que criou mecanismos de tutela coletiva de direitos.

Daniel Amorim e Flávio Tartuce (2014, p. 587) ainda destacam que a terminologia ou mesmo a existência do microssistema não é ponto pacífico na doutrina, embora defendam a utilização do termo, registrando que é o utilizado pela jurisprudência dominante.

Registre-se, antes de tudo, que o termo microssistema coletivo não é tranquilo na doutrina, havendo aqueles que preferem falar em minissistema e outros, em sistema único coletivo. São diferentes nomenclaturas para praticamente o mesmo raciocínio, de forma que a adoção de uma ou de outra não gera qualquer repercussão prática relevante. Prefiro o termo ‘microssistema coletivo’ por ser o mais utilizado, sendo, inclusive, consagrado no Superior Tribunal de Justiça. O mais importante é a definição de como as leis que compõem o microssistema se relacionam e como esse se relaciona com o Código de Processo Civil.

Assim sendo, a tutela coletiva se diferencia da tutela individual em razão dos bens jurídicos em discussão, sendo certo que possui um conjunto de normas processuais específico, que acaba por alterar a aplicação e interpretação que se dá a institutos consagrados, a exemplo da legitimidade para a propositura da demanda, das regras de competência e dos limites da coisa julgada.

3.6 O PROBLEMA DA NOMENCLATURA

A denominação dos procedimentos, embona não essencial, é importante do ponto de vista prático e didático. O nome de determinada ação ora derivaria do direito material nela deduzido ora do pedido imediato no processo e daquele que detém legitimação ativa (ZAVASCKI, 2017). Seria o caso da ação civil pública, vinculada em um primeiro momento ao Ministério Público e, portanto, criada a exemplo da ação penal pública.

A ação civil pública, entretanto, poderia ser classificada como o procedimento destinado a implementar a tutela de direitos transindividuais. Nessa direção, Teori Zavascki (2017):

Embora se saiba que a denominação, em si, não constitui elemento essencial para identificar a natureza dos procedimentos, é certo que ela desempenha um papel de inegável alcance prático e didático, que não deve ser desprezado. Qualquer que seja o nome que se atribua a um procedimento (qualquer que seja o rótulo que se aponha a uma vasilha), é importante que se saiba que, sob aquela denominação (sob aquele rótulo), existe um instrumento (um conteúdo) especial, diferente do contido em outros procedimentos (em outros recipientes). 2 No domínio do processo coletivo, seria importante ter presente que, quando se fala em ação civil pública (seja adequada ou não essa denominação que a Lei 7.347/1985, lhe atribuiu), se está falando de um procedimento destinado a implementar judicialmente a tutela de direitos transindividuais, e não de outros direitos, nomeadamente de direitos individuais, ainda que de direitos individuais homogêneos se trate. Para esses, o procedimento próprio é outro, ao qual também seria importante, para efeitos práticos e didáticos, atribuir por isso mesmo outra denominação (“ação coletiva” e “ação civil coletiva” foi como a denominou o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 91).

Tendo a ação civil pública o fim precípuo de, juridicamente, implementar os direitos transindividuais (difusos ou coletivos), a ação coletiva teria o objetivo de promover a defesa dos interesses individuais homogêneos. Registre-se que, a exemplo do que defende Mazzilli (2015), essa distinção seria, para alguns, uma distinção superficial.

Zavascki, entretanto, conclui que a discussão se limita ao campo da didática e que, do ponto de vista prático, tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm utilizado a expressão ação civil pública indistintamente, inclusive para a tutela dos interesses ou direito individuais homogêneos.

Todavia, essa distinção terminológica, é bom reiterar, não constitui exigência científica. Sua importância é apenas prática e didática, e somente por isso a adotamos. Convém anotar, também, que ela não está sendo observada nem pelo legislador nem pela jurisprudência, que, de um modo geral, conferem a denominação de ação civil pública para todas, ou quase todas, as ações relacionadas com o processo coletivo, inclusive para as que tratam de direitos individuais homogêneos (ZAVASCKI, 2017).

O próprio autor, ao discutir a possibilidade de cumulação de pedidos, deixa claro que seria possível, em ação civil pública, dada a natureza processual da questão e inexistindo óbice, a exemplo do que disciplina o artigo 327 do CPC, formular pedidos cumulados de natureza transindividual e individual homogêneo.

É que a possibilidade de cumulação é questão de natureza processual, que não altera nem compromete a natureza material do direito lesado ou ameaçado. Não é porque podem ter sua proteção postulada em ação civil pública que os direitos individuais homogêneos vão deixar de ser direitos individuais para se transformar em transindividuais. O direito material não nasce com o processo ou por causa dele – é anterior a ele. O processo, que é logicamente um posterius, somente terá razão de ser quando o direito – afirmado como já existente – estiver ameaçado ou for atacado por ato lesivo (ZAVASCKI, 2017).

Embora a discussão a respeito do tema seja válida, tem-se que, à luz do microssistema de proteção e defesa dos interesses ou direitos coletivos, é inegável que os instrumentos processuais à disposição dos legitimados se complementam. Não poderia, assim, o debate constituir óbice para a tutela efetiva desses direitos. Não é demais lembrar que a Constituição Federal garante o acesso ao Poder Judiciário para que os litígios sejam corretamente dirimidos (artigo 5º, inciso XXXV). Do mais, o Código de Processo Civil reconhece que as normas processuais têm de ser interpretadas à luz dos princípios constitucionais (artigo 1º).

4. PROPOSTA DE ATUALIZAÇÃO NORMATIVA

Como se viu, o microssistema de tutela coletiva é composto, principalmente, pela Lei nº 7.347/85 e pela Lei nº 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor. Ambos constituem o núcleo desse subsistema. No caso do CDC, é certo que, além das regras direcionadas à proteção e defesa do consumidor, também se estabeleceram normas a respeito da tutela do consumidor em juízo e do processo coletivo (artigo 81 e s.s.). Entretanto, a existência de múltiplas leis a tratar do tema tende a dificultar a aplicação das normas por elas estabelecidas. Por esse e outros motivos, tem-se discutido, recentemente, a atualização da Lei da Ação Civil Pública.

Em 02 de setembro de 2020, o deputado federal Paulo Teixeira (PT/SP) apresentou o projeto de lei 4441/2020, que disciplina o procedimento da nova lei de ação civil pública. De acordo com as justificativas apresentadas, seria necessário organizar e atualizar o microssistema de tutela coletiva, de modo a incorporar, inclusive, práticas judiciárias e orientações doutrinárias. Esse projeto lei optou por manter a nomenclatura ação civil pública, sob a justificativa de que é termo consagrado e consta expressamente do texto constitucional (artigo 129, inciso III). A proposta, igualmente, destacou (artigo 1º, § 3º) que o Código de Processo Civil é norma procedimental subsidiária, desde que compatível e adequada à solução de conflitos coletivos. A Lei nº 7.347/85 possui norma na mesma direção (artigo 19).

A proposta, ainda, destaca quais são os principais problemas da atual legislação (BRASIL, 2020a):

O projeto parte da premissa de que os principais problemas atualmente no regramento do processo coletivo são as suas relações com as ações individuais, a competência jurisdicional, a frequente cacofonia entre os diversos legitimados e a definição dos beneficiários da coisa julgada. É preciso dar mais segurança jurídica (sobretudo reforçando a tutela jurídica do réu) e efetividade ao processo coletivo.

Do mais, o projeto apresentado pelo deputado Paulo Teixeira (PT-SP) regulamenta de maneira mais detalhada questões relacionadas à petição inicial, saneamento do processo, inquérito civil e acordos coletivos. Do mesmo, o projeto trata da prova por amostragem, das audiências pública, da intervenção do amicus curiae, da eficácia da decisão coletiva, do direcionamento da condenação em dinheiro e disciplina os negócios processuais coletivos, dentre outras alterações (BRASIL, 2020a).

O projeto de lei 4441/2020, entretanto, não foi a única proposta apresentada em 2020. Em 10 de outubro daquele ano, o deputado Marcos Pereira (REPUBLICANOS/SP) apresentou o projeto de lei 4778/2020. Essa proposta resulta de estudos conduzidos pelo Grupo de Trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sob a coordenação da ministra Maria Isabel Diniz Gallotti Rodrigues, com o objetivo de condensar a legislação dispersa e modernizar o sistema de tutela coletiva.

De proêmio, na justificação do projeto, a ministra Isabel Gallotti (BRASIL, 2020b) esclarece que a ação coletiva é gênero do qual a ação civil pública e o mandado de segurança coletivo são espécies. Supera-se, de pronto, a discussão a respeito da correta nomenclatura do instrumento processual.

Ainda, de acordo com a ministra (BRASIL, 2020b), o projeto partiu do pressuposto de que a ação coletiva objetiva:

(a) viabilizar a judicialização de pretensões que não valeria a pena serem individualmente judicializadas; (b) para concretizar a efetiva proteção de direitos que são intrinsecamente coletivos – coletivos estrito senso e difusos; (c) para proporcionar a plena concretização do princípio da isonomia, diminuindo, assim, a sobrecarga de trabalho dos Tribunais.

A proposta também aborda outros pontos importantes, como a iniciativa de se criar cadastro de todas as ações coletivas em curso no país, repositório esse essencial para a publicidade das demandas. O projeto, igualmente, altera a disciplina da coisa julgada e acaba com a discussão a respeito da interrupção ou não do prazo prescricional para as ações individuais. Isabel Gallotti (BRASIL, 2020b) também esclarece que a nova lei objetiva desestimula aventuras judiciárias, de modo que a disciplina das custas processuais de sucumbência passa a observar aquilo que preconiza o Código de Processo Civil.

Mas os projetos apresentados no ano de 2020 não foram os únicos. O deputado Paulo Teixeira (PT/SP) apresentou substituto ao projeto de lei originalmente protocolado. Trata-se, agora, do PL 1641/2021.

Resultado do trabalho de membros do Instituto Brasileiro de Direito Processual, sob a presidência de Paulo Henrique dos Santos Lucon, o objetivo da proposta é aprimorar o microssistema de tutela coletiva, cujo núcleo é composto pela Lei da Ação Civil Pública e pelo Código de Defesa do Consumidor. Para tanto, incorporou-se parte da jurisprudência consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal. A figura do inquérito civil, ademais, sofreu ajustes, sendo certo que se buscou incentivar a solução pacífica de conflitos.

Algumas alterações propostas merecem especial destaque (BRASIL, 2021):

I) Inclui-se um artigo específico sobre os princípios que regem a tutela coletiva, demonstrando a peculiaridade da matéria e criando um ambiente axiológico propício para a sua compreensão e a aplicação; (…) II) é ofertado um tratamento mais extenso para os direitos individuais homogêneos, disciplinando as hipóteses em que se afigura adequada a sua tutela coletiva e a possibilidade de tutela puramente declaratória. Consolida-se, com isso, tendência provida de especial relevância para aprimorar o uso do instituto; a resolução de possíveis conflitos envolvendo juízos igualmente competentes; (…) VII) é elaborada nova disciplina de fixação da competência jurisdicional para as ações coletivas, estabelecendo-se como competente o foro do local onde ocorreu ou deva ocorrer a ação, a omissão, o dano ou o ilícito. Adotou-se, ainda, o moderno critério da competência adequada para a resolução de possíveis conflitos envolvendo juízos igualmente competentes; (…) XVI) adotou-se o regime da formação da coisa julgada independentemente do resultado do processo, bem como se passou a disciplinar expressamente que a coisa julgada tem eficácia erga omnes ou ultra partes em todo o território nacional; (…) XIX) são incorporadas melhorias na autocomposição coletiva, consolidando o gênero como comum aos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Sob esse prisma, pretende-se assegurar que as particularidades do caso concreto sejam respeitadas. Ainda, são relacionados no art. 37 princípios voltados ao tema, e é expressamente permitida a autocomposição coletiva por adesão dos titulares de direitos individuais (…).

As mudanças propostas pelos projetos de lei em testilha não foram as primeiras iniciativas doutrinárias e legislativas de atualização do microssistema de tutela coletiva. Em meados dos anos 2000, no âmbito da Universidade de São Paulo, discutiu-se a elaboração de um Código Brasileiro de Processo Coletivo; não à toa, dada a importância do tema e os debates ocorridos à época, o Poder Executivo apresentou o projeto de lei 5139/09, que não avançou no Congresso Nacional (BRASIL, 2009).

5. CONCLUSÃO

Este artigo se propôs a discutir aspectos do microssistema de tutela coletiva. Para tanto, identificou que os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos correspondem a bens jurídicos coletivos. Entendeu-se que esse foi um dos principais motivos para a criação de instrumentos processuais específicos.

No início, a tutela coletiva no Brasil esteve limitada à proteção dos bens jurídicos tutelados pela lei da ação popular, ou seja, a busca pela declaração de nulidade, por qualquer cidadão, de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações, de empresas incorporadas ao patrimônio estatal, de quaisquer entidades que recebam recursos públicos etc.

Posteriormente, na década de 1980, a expressão ação civil pública começou a ser utilizada para designar a ação para tutela de interesses difusos. A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente foi a primeira a se valer de tal nomenclatura. Após, editou-se a Lei da Ação Civil Pública, em 1985. Com isso, ampliou-se o rol de legitimados para a defesa desses interesses e estabeleceu-se que o Ministério Público poderia instaurar inquérito civil para colheita prévia de subsídios para propositura da ação civil pública. Ainda na década de 1980, a Constituição de 1988 consagrou a expressão ação civil pública, sendo certo que, o Código de Defesa do Consumidor, graças a sua preocupação com a defesa coletiva dos consumidores, trouxe uma série de normas a respeito do processo coletivo.

A Lei da Ação Civil Pública e o CDC passaram a constituir o núcleo do microssistema de tutela coletiva. Não obstante, dada a profusão de normas a respeito do tema, nos anos 2000 discussões a respeito da consolidação dessa legislação tiveram início. Sem que as iniciativas do começo do século tivessem sucesso, somente em 2020 o debate ganhou novo fôlego, graças a propositura de três novos anteprojetos de lei, cujo objetivo comum é modernizar a legislação de proteção e defesa dos interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

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[1] Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, pós-graduado em Direito das Relações de Consumo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestrando em Direitos Difusos e Coletivos também pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

[2] Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestranda em Direitos Difusos e Coletivos também pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Enviado: Julho, 2021.

Aprovado: Julho, 2021.

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Marcelo Fernando Neri Santos

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