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Ordem discursiva (Pedagogias Culturais) em torno da inclusão de surdos: análise de material midiático

RC: 89461
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

MATOS, Heider Carlos [1], CRUZ, Carla Fernanda da [2], ROSSI, Claudia Maria Soares [3]

MATOS, Heider Carlos. CRUZ, Carla Fernanda da. ROSSI, Claudia Maria Soares. Ordem discursiva (Pedagogias Culturais) em torno da inclusão de surdos: análise de material midiático. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 06, Vol. 14, pp. 05-19. Junho de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/material-midiatico

RESUMO

Este trabalho resulta de uma pesquisa que discute sobre pedagogias culturais, inclusão e educação de surdos. O objetivo central foi identificar, em artefatos culturais-midiáticos, ordens discursivas (pedagogias culturais) que imperam em torno da inclusão de surdos. Para tanto, a metodologia utilizada foi revisão bibliográfica e análise documental. Buscou-se amparo nos estudos de Hall (1999) que versam sobre identidade cultural na pós-modernidade e Foucault (2010). Considerou-se, também, os estudos dos membros do Collège de France: 1979-1980, Lockmann e de Machado e Freitas (2017). Esses oferecem suporte necessário para entender o processo de educacionalização do social e as implicações na escola contemporânea. Popkewitz e Sverker Lindblad (2001) também serão abordados, uma vez que entendem as estatísticas educacionais como um sistema de razão, bem como versam sobre as relações entre governo da educação e inclusão e exclusão sociais. Thoma (2012), por outro lado, contribui com a pesquisa porque propicia o entendimento sobre a afirmação da diferença e da cultura surda no cenário da educação inclusiva, discutindo sobre os desafios para o currículo. A partir do estudo de Magalhães e Cardoso (2010) discutir-se-á sobre a crise das identidades na contemporaneidade dentro da inclusão de surdos. Lopes e Veiga (2011) contribuem com a inserção de uma discussão sobre a inclusão, exclusão, in/exclusão. Ficou evidente nos três artefatos selecionados que existe uma ordem discursiva entorno da inclusão de surdos que imputa formas de ser, agir e pensar, principalmente na formação de sujeitos. O discurso imputa, ainda, um caráter pragmático em torno da inclusão, apresentando-se como regra a ser seguida.

Palavras-chave: Estudos culturais, Educação de surdos, Pedagogias culturais, Inclusão.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo dedica-se a estudar as pedagogias culturais e como elas operam como um dispositivo da sociedade para formação de sujeitos, voltadas, também, à implementação de formas de ser, agir e pensar. Pensa-se nas pedagogias como um dispositivo utilizado sempre que os conceitos precisam ser revistos, sempre que a sociedade se reorganiza e precisa, então, reorganizar-se. Escolheu-se, então, um pequeno nicho da sociedade para analisar de que forma tal dispositivo opera e/ou age. No século XX, viu-se a necessidade de revisão de diversos conceitos, antes sacralizados e tido como “normais”. O termo “inclusão” ganhou força como sinônimo de algo necessário para diminuir a desigualdade e incluir diversos seguimentos que antes não tinham espaços na sociedade, entres eles: negros, LGBTQIA+, portadores de necessidades especiais, entre outros.

É a partir das necessidades e demandas deste último público que este estudo, visando analisar os discursos entorno da inclusão de surdos no ambiente escolar. É preocupação central deste artigo, primeiramente, entender as pedagogias culturais em torno do discurso da inclusão. É possível apontar, inicialmente, que há uma ordem discursiva em torno desta temática e que opera na atividade docente. Há equívocos que vão além da semântica. A inclusão é associada e limitada à acessibilidade, presa à materialidade (adaptação de espaço físico), pragmática, vendida como algo correto, necessário e urgente. A escola é o campo escolhido para que tais pedagogias sejam implementadas, sendo o centro de um ordenamento, tendo, como intuito, a resolução de problemas. Partindo-se desta hipótese, este trabalho reitera que a escola é acionada, sempre que a sociedade precisa se reorganizar e se ressignificar.

Logo, é a primeira, ou deveria ser, a se adaptar para que tais pedagogias sejam implementadas. Para exemplificar e identificar a ordem discursiva em torno da inclusão, suas pedagogias, imperativos e como elas estão presentes, parte-se de três artefatos culturais, três matérias/reportagens jornalísticas publicadas em veículos e períodos diferentes que tratam da temática inclusão de alunos surdos. Para tal análise, buscou-se os estudos feitos por Hall (1999), Foucault (2010), Lockmann, Machado e Freitas (2017), Popkewitz e Sverker Lindblad (2001), Thoma (2012), Magalhães e Cardoso (2010) e Lopes e Veiga (2011).

2. PEDAGOGIAS CULTURAIS EM TORNO DO DISCURSO DA INCLUSÃO

É pertinente a este estudo a conceituação envolta da inclusão. Esta é subdivida em três etapas: primeiro, pretende-se discutir sobre as características da pessoa com deficiência e sobre a crise das identidades; em segundo lugar, discute-se sobre a inclusão, exclusão e in/exclusão; e, por fim, reflete-se sobre a diferença, subjetivação e inclusão. No texto “A pessoa com deficiência e a crise das identidades na contemporaneidade”, de Magalhães e Cardoso (2010), as autoras defendem a ideia de uma crise da identidade que se desenvolve a partir da constatação das inúmeras e profundas mudanças estruturais realizadas no decorrer das sociedades modernas, desde o final do século XX, influenciando em aspectos da vida social dos indivíduos. Discutir identidade e diferença no momento inicial do artigo é necessário para entender a conceituação de inclusão no contexto brasileiro, bem como as implicações e tudo que a cerca.

Faz-se necessário, também, o entendimento inicial sobre a conceituação de identidade, diferença e o impacto das relações de saber e poder no indivíduo. Tal conceituação tão ampla é possível de ser notada em diversos campos da sociedade e aplicável no campo que hoje se entende e se aplica como inclusão. É possível notar que nossa identidade é produto histórico e social e que sua constituição exerce impacto direto nas relações de poder e, assim como aponta Hall: “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente” (HALL, 1999, p. 13). Mais à frente, Hall (1999), aponta, em sua reflexão, que sociedades contemporâneas são caracterizadas por variedades diferentes de posições do cidadão, ou seja, de identidades para os indivíduos. São  processos múltiplos de diferenciação e identificação modernos, e, desse modo, passaram a ter influência, gerando, assim, a formação de identidades.

Estes processos são mediados pelas relações de poder que passam a sugerir o alvo das identificações e diferenciações, porém, o que será incluído, e, ainda, o que deve ser excluído de tais processos (HALL, 1999 apud MAGALHÃES; CARDOSO, 2010). Magalhães e Cardoso (2010) relatam que marcadores identitários, tais como etnia, nacionalidade, sexualidade e classe, antes assentados em bases mais sólidas e constantes, parecem patinar em areia movediça, ou seja, passam por uma revisão conceitual. Para Bauman (2008), tais sociedades pós-modernas têm caracterização por mudanças rápidas, permanente e contínuas, existindo uma combinação de aspectos culturais no contexto da globalização, aspectos esses que são econômicos, fomentando, portanto, alterações nos padrões do consumo e da produção, influenciando, diretamente, na constituição das identidades (HALL, 1999; WOODWARD, 2000).

Como efeito, a constituição das identidades, hoje em dia, reflete a perda sofrida pelos sujeitos do “sentido de si” (HALL, 1999) e de suas referências sociais e até pessoais (MAGALHÃES; CARDOSO, 2010, p. 47) Tem-se, diante desse contexto, o gancho necessário para entrarmos no segundo momento do artigo, em que discute-se a inclusão, exclusão e in/exclusão sob a ótica de Veiga-Neto e Lopes (2011). No primeiro momento, os autores dedicam-se a traçar um histórico sobre a políticas de inclusão em determinados governos. Posteriormente, discutiram sobre o uso do termo inclusão como sinônimo de acessibilidade, com enfoque na ideia de espaço físico. Tratam, ainda, da escola como instituição capaz de resolver todos os problemas sociais, iniciando-se, aqui, uma discussão que será abordada em outros pontos do artigo:

[…] torna-se urgente questionar os usos da palavra inclusão para se referir a um número cada vez maior e mais diversos de indivíduos a incluir ou já incluídos. Torna-se urgente, também, questionar os usos alargados da palavra exclusão, quando ela é entendida como “o outro da inclusão”. Nesse caso, excluídos refere-se àqueles que, de alguma maneira, são discriminados pelo Estado e/ou pela sociedade (LOPES; VEIGA, 2011, p. 122).

Destacam-se alguns fragmentos necessários à compreensão da temática. O primeiro é ponto em que o autor define o objetivo, a pesquisa e a forma binária de como é tratada a temática.

Como referimos, neste texto interessam-nos os discursos sobre a inclusão que circulam entre nós, no período compreendido entre os anos de 1995 e 2011. Sendo mais objetivos, pretendemos problematizar o caráter natural que é atribuído à inclusão, entendendo que as políticas que a promovem, bem como os usos da palavra inclusão em circulação, afinam-se tanto com a lógica do binário moderno inclusão x exclusão quanto com a lógica contemporânea em que a inclusão se funde com a exclusão. É em decorrência de tal fusão que, de uns anos para cá, temos grafado in/exclusão para designar algumas situações, conforme explicaremos a seguir (MAGALHÃES; CARDOSO, 2010, p. 125).

Outro ponto que é possível destacar é a crítica feita pelos autores, já apontada anteriormente, crítica essa relacionada ao uso exacerbado e aplicação generalizada da palavra inclusão:

O uso alargado da palavra inclusão, além de banalizar o conceito e o sentido ético que pode ser dado a ela, também reduz o princípio universal das condições de igualdade para todos a uma simples introdução “de todos” num mesmo espaço físico. Ao submetermos tais conceitos a um exame cuidadoso, veremos que se há, por parte do Estado, o reconhecimento da existência do cidadão, politicamente ele não é um excluído (MAGALHÃES; CARDOSO, 2010, p. 129).

Assim sendo, torna-se necessária a discussão sobre o discurso que constitui a ideia de “educação inclusiva” e as ações estratégicas necessárias para tal.

3. ORDEM DISCURSIVA ENTORNO DE UMA ESCOLA INCLUSIVA

Há que se discutir sobre os conceitos que evocam as ideias de diferença, subjetivação e inclusão assumidas por este texto. A obra “A inclusão, a escola e a subjetivação docente: analisando o contexto do município do Rio Grande”, de autoria Kamila Lockmann, Roseli Belmonte Machado e Débora Duarte Freitas promove reflexões relevantes a este estudo. As autoras defendem a ideia de que há uma ordem discursiva sobre a proposta de uma escola inclusiva que opera sob a atividade docente:

Ao analisar os discursos recorrentemente presentes na mídia foi possível identificar certa ordem discursiva sobre o exercício da docência que define, entre outras coisas, um modelo ideal de ser professor. Conforme já apontado por Luís Henrique Sommer (2010, p. 27) “há um modelo hegemônico de professor sendo produzido desde os anos de 1990”. Tal modelo parece estar envolvido com uma proposta de escola inclusiva, ou seja, com a capacidade de lidar com as diferenças e com a promoção de um processo educativo mais flexível, humano e democrático (FREITAS; MACHADO; LOCKMANN, 2017, p. 4).

Lockmann; Machado e Freitas (2017) partem do pressuposto de que os discursos, práticas e associações que estabelecemos são feitos no interior de um jogo de saber-poder-verdade, sendo que, como resultado deste jogo, acaba-se gerando efeitos em cada um dos sujeitos envolvidos, sendo que essas influências repercutem em novas formas de agir e viver no mundo. Este conhecimento possibilita, portanto, a construção de novas visões para o campo da educação, especialmente no que toca às novas formas de inclusão escolar que devem ser repercutidas na formação de professores, no aperfeiçoamento destes. Outros autores trabalhados no artigo corroboram com esse entendimento. Os estudos de Sommer (2005, p. 61), por exemplo, nos mostram que “nas práticas discursivas que enunciam o papel do professor, mais uma vez, a palavra ensino está interditada”.

Fabris (2010, p. 4) nos lembra que “[…] a escola moderna vem se desenvolvendo neste lugar privilegiado de ancoragem de muitos imperativos”. Um desses imperativos contemporâneos foi enfatizado por Lopes (2009). Destaca, em seu estudo, aponta a inclusão como um imperativo de Estado. Entre esses estudos, qualquer um aparenta se relacionar, de certa forma, com discussões que foram apresentadas nesse texto. Pesquisadores reiteram o entendimento de que há uma ordem que é determinada para a circulação e produção dos discursos pedagógicos (LOCKMANN; MACHATO; FREITAS, 2017, p. 6). Foucault (2010, p. 72) endossa a inclusão como um imperativo de Estado. Esta, ao longo da evolução da humanidade, foi estabelecida como uma verdade, gerando efeitos sobre os indivíduos, mudando sua subjetividade. Essa verdade da inclusão, mostrada pelos documentos oficiais, discursos do Ministério da Educação, pela mídia, passa-se a se tornar uma verdade do próprio sujeito desde o momento em que ele diz: “é verdadeiro, portanto, eu me inclino”. Concluem que:

Como podemos perceber a escola não se preocupa apenas com os conhecimentos que estão sendo adquiridos ou não pelos alunos. Ela age sobre os corpos e almas moldando os sujeitos a partir de um padrão moral considerado necessário para a vida coletiva, intervém nos atos, gestos, condutas. Deste modo, forja subjetividades e fabrica formas de vida (LOCKMANN; MACHATO; FREITAS, 2017, p. 9).

Explanado este cenário, cabe a discussão sobre o processo de inclusão e exclusão para que seja possível refletir sobre essas diferenças.

3.1 INCLUSÃO VERSUS EXCLUSÃO

Popkewitz e Lindblad (2001) propõem um estudo acerca das estatísticas educacionais, entendidas como um sistema de razão: relações entre governo, educação e inclusão e exclusão social. O método articula-se a partir de três partes: a primeira entende a estatística como uma forma de resolver ou expor determinados problemas. O segundo momento entende a estatística como mecanismo de poder que integra regras, padrões ligados ao Estado. A terceira parte, com base nos números, parte da ideia da grandeza dos números e concentra nos impactos destes no cotidiano das pessoas, uma vez que influenciam, diretamente, em seus planejamentos sociais e em seu modo de agir. Por fim, abordam a noção de risco. Com base nos relatórios políticos e estatísticos, os autores concluem que há um conjunto de regras de raciocínio que impactam vidas e produzem seus modos de ser e agir: incluindo e excluindo.

Lopes (2007) traz à tona novamente os conceitos de inclusão e exclusão. Ela, por sua vez, propõe uma discussão em que não coloca inclusão e exclusão como opostos, mas sim como termos articulados dentro de uma mesma matriz epistemológica, política, cultura e ideológica. Defende, ainda, a ideia de que inclusão e exclusão são construções sociais, independentes e necessárias uma à outra. Ludwuig Wittgenstein (1979), citado por Lopes (2007), defende a ideia de que a invenção da inclusão ganha status de verdade e de realidade quando se começa a produzir narrativas, bandeiras de lutas em diferentes grupos e diferentes formas de mecanismos de vigilância e controle. Lopes (2007) argumenta que a exclusão foi um termo criado como mecanismo de vigilância e controle, como forma de delimitar uma fronteira, para ser o oposto, associado àqueles que são diferentes. Coloca-se do lado de dentro o desejado.

3.2 AFIRMAÇÃO DA DIFERENÇA DA CULTURA SURDA

Thoma (2012) demonstra o quão desafiadora é a educação inclusiva e assevera o quanto complexa é a sua implementação. Em paralelo com os textos trabalhado até aqui é possível perceber que a educação inclusiva chega como imperativo (algo necessário e bom para todos), como o modo de ser correto. Entretanto, parece, ainda, patinar. O autor aponta para três direcionamentos teóricos sobre a inclusão: discussão sobre os direitos e da promoção de formas de educação que constituam sujeitos mais solidários e atentos a outro; investigação sobre o tema da acessibilidade e das tecnologias assistivas que possam auxiliar nos processos de inclusão de alunos com deficiência etc.; e há a linha que entende a inclusão como estratégia de governamento da população. É nesta última linha teórica que a temática proposta se desenvolve, sem, portanto, desprender-se das demais.

Diante desse cenário, entende-se que: “as identidades surdas são construídas dentro das representações possíveis da cultura surda” e “se moldam de acordo com maior ou menor representatividade cultural assumida pelo sujeito” (PERLIN, 1998, p. 130). Frisa-se, ainda, que elas são produzidas pelas relações de poder que se estabelecem tanto entre ouvintes e surdos como entre os próprios sujeitos surdos. A escola, bem como suas práticas curriculares, acaba, sempre, instaurando ações de disciplinamento e conduta e visam produzir sujeitos governados. O currículo é, por sua vez, o menor agente de produção de sujeitos. Suas ações podem legitimar determinados padrões de sujeitos (THOMA, 2012). A escola é, portanto, o lugar acionado para a implementação destas novas ideias, de utilização de mecanismos de controle, vigilância e poder.

A escola é o agente aplicador de tais metodologias e de tais conceitos. Para tanto, faz-se necessário promover mudanças curriculares e adaptações para que tais medidas sejam implementadas. Mas a autora adverte que tais adaptações não bastam, e, desse modo, o conhecimento continua sendo a base. Thoma conclui que é nesta singularidade que a educação surda se une, produzindo novas maneiras de se pensar uma educação e um currículo atrelados aos saberes escolares. Torna-se necessária, portanto, a narração acerca dos saberes subjetivos da cultura e identidade surda (THOMA, 2012, p. 214).

3.3 PROCESSO DE EDUCACIONALIZAÇÃO

Com base no texto “A educacionalização do social e as implicações na escola contemporânea”, de autoria de Kamila Lockmann (2016), é possível concluir que a escola passar a exercer um papel fundamental e é utilizada como centro para resoluções de problemas. A autora relata que a escola passa por um alargamento de suas funções e transcende ao papel disciplinar do ambiente escolar, expandindo para questões do mundo externo. Para trabalhar o conceito geral de educacionalização, bem como as implicações da assistência social, a autora traça um percurso para analisar os cálculos estatísticos que seriam certificadores ou exemplificadores de uma tal verdade científica voltada à reconfiguração da escola contemporânea e ao alargamento de suas funções. No Brasil, tal processo ainda é considerado inicial. As estatísticas são utilizadas como métricas em documentos para que seja feita uma análise do cenário social brasileiro.

É justamente na análise que se cria e/ou fortalece uma verdade que destaca a educação como mecanismo para resoluções de problemas sociais. A autora utiliza texto de Foucalt (2010) para explicar o fenômeno. As estatísticas funcionam como regime (poder) que legitimam a verdade cientifica. O resultado disso é que o os indivíduos aceitaram a verdade de que a escola resolverá ou é o meio de solução de problemas e modificará condições de vida. A autora esclarece que os problemas sociais caminham para além dos problemas educacionais e que a escola não pode ser responsabilizada por todos os males.  Em resumo, a autora evidencia, com base em discursos materializados em documentos que legislam (que utilizam dados estatísticos) para produzir verdade, que há um processo de educacionalização (ou responsabilização) dos problemas sociais e imputam responsabilidades diversas às escolas.

Num segundo momento, a autora destaca duas reconfigurações: a primeira é o papel expansionista da escola e as múltiplas funções a ela atribuídas, e, assim, este espaço passa a ter uma considerável responsabilidade; e a redefinição dos conceitos e conhecimentos escolares. Trabalha-se, neste processo, para que cada sujeito governe sua própria vida. Antes de avançar é preciso ressaltar que são as políticas sociais que acionam a escola como lugar de resolução de problemas. A escola, portanto, deixa de centrar suas ações tão somente em conhecimentos escolares e amplia para uma variedade de âmbitos da vida humana e isso impacta diretamente nos currículos escolares e na práxis de gestores, professores e profissionais diversos relacionados com o campo da educação.

Em conclusão, frisa-se que a o processo de Educacionalização, no Brasil, ainda está em fase inicial, mas percebe-se um forte movimento que imputa, à escola, uma série de novas responsabilidades, sendo que o espaço educacional, nesse contexto, não se prende à disciplina e à transmissão de conteúdo. A escola se torna um agente comprometido com a resolução de problemas sociais, adquirindo um caráter expansionista, bem como age para que os sujeitos tornem-se capazes de governarem a si próprios.

4. ANÁLISE DOS ARTEFATOS CULTURAIS

Na tabela 1, apresenta-se os dados sobre os artefatos culturais a serem considerados nesta discussão, com ênfase nos vídeos:

Tabela 1 – Dados sobre os vídeos analisados

Fonte: Autores (2021)

4.1 VÍDEO DIFICULDADE DA INCLUSÃO DE SURDOS NAS ESCOLAS– SIC TV AFILIADA À RECORD TV EM RONDÔNIA

O artefato escolhido foi matéria produzida pela Record TV sobre o tema do ENEM 2017: Os Desafios para a formação de surdos no Brasil. A reportagem trata sobre as dificuldades de inclusão de surdos nas escolas. Num primeiro momento, mostra duas crianças conversando em Libras, com o questionamento, ao espectador, sobre qual Língua as duas conversam. Em seguida, é mostrado o conceito e sua utilização, bem como esta também é língua oficial do Brasil e que há uma Lei que obriga o ensino de Libras na Rede Pública de Ensino. Em seguida, demonstra-se que na região norte do país apenas uma escola oferece o ensino bilíngue com foco em Libras. Posteriormente, é exposto, por uma representante da escola, o modus operandi do ensino bilíngue na referida escola. Entre as dificuldades trabalhadas, a matéria expõe que há mitos em relação aos surdos, entre eles, que surdos não podem falar.

Num segundo desdobramento, discute-se sobre os impactos provocados pela redação do Enem e o curioso dado de que muitos alunos desconhecem a temática e isso refletiu nos resultados. São poucas escolas, poucos professores e pouca oferta para alunos com deficiência auditiva. É perceptível no artefato cultural escolhido para esta análise que há um conjunto de regras com deveres e “direitos” que age de forma imperativa, e, assim, acaba produzindo novos comportamentos, novos modos de ser e de agir. Mesmo que timidamente, a métrica (estatística) é utilizada como forma de exemplificar determinado modo de ser e de agir. É perceptível que há uma ordem discursiva que aciona a escola como o local para a resolução de um novo conceito. Há, também, o que pode ser considerado como um equívoco, visto que a interlocutora associa constantemente a inclusão a um espaço físico e como sinônimo de acessibilidade.

De certa forma, parece que a inclusão ganhou um caráter pragmático, passando a se preocupar, portanto, com a execução de normas previamente estabelecidas, em que os atores têm tão somente a preocupação de aplicá-la. É perceptível, ainda, que esta ordem discursiva impõe um novo comportamento e novas práticas para os profissionais de educação e que esta ordem discursiva se apresenta como verdade absoluta e como comportamento a ser seguido.

4.2 SAIBA A IMPORTÂNCIA DA LIBRAS PARA A INCLUSÃO DE SURDOS – TV BRASIL

A matéria tem como ponto de partida a apresentação do caso do menino Felipe, que nasceu com deficiência auditiva e passou por uma cirurgia para colocação de implante auditivo e passou por sessões de estimulação da fala. Aos catorzes anos, consegue se comunicar por meio da Libras e da comunicação falada. Quase 1200 alunos estudam na escola, destes, 15 são surdos. A matéria informa que o lema da escola é “promover a inclusão sempre”. A reportagem traz mais um exemplo de aluno, desta vez, o de alguém que aprendeu Libras para se comunicar com os pais, que possuem deficiência auditiva. Em seguida, a matéria informa que a escola trabalha a Libras como segunda língua há mais de 20 anos e, como consequência, muitos alcançaram êxito e espaço na sociedade. Mais um exemplo é trazido para a reportagem, desta vez, de uma profissional que ficou surda em virtude de uma febre alta que suscitou uma medicação errada, porém, conseguiu vencer essa adversidade.

A reportagem trabalha, ainda, em seu desenvolvimento, com a comemoração à oficialização da língua brasileira de sinais. Logo em seguida, dados estatísticos são trazidos como forma de demostrar o cenário de alunos surdos incluídos no ambiente escolar e as medidas adotadas pelo Ministério da Educação que contemplam essa parcela de alunos, entre elas, a ampliação da escola bilíngue no país. É mais um exemplo de que o discurso sobre educação inclusiva se apresenta como imperativo, necessário e correto. É possível perceber que a escola, como trabalhado na parte conceitual deste artigo e exemplificado aqui, é o locus acionado para resolução e aplicação de medidas. Isso fica mais evidente quando é exposto o tema da instituição. A matéria não informa de forma clara e precisa, mas é notável que há um conjunto de regras, valores, deveres (imperativos) que agem sobre os indivíduos, formando personalidades, formas de agir, ser e pensar.

Tal fato é exemplificado, também, quando é informado que o Governo (MEC) trabalha por mais medidas que sejam capazes de beneficiar os alunos surdos ou com algum deficiência auditiva.

4.3 DESAFIO PARA FORMAÇÃO EDUCACIONAL DE SURDOS – TV FOLHA

Em formato de documentário, apresenta-se, inicialmente, o relato de uma mãe que aponta que muitas pessoas não sabem o que significa inclusão; em seguida traz dados do quantitativo de pessoas que são surdas ou possuem algum tipo de deficiência auditiva. Demonstra, também, os relatos de pessoas que argumentam sobre as dificuldades de comunicação e inclusão. Alguns dos argumentos são: (I) “A Escola tem de oferecer o que o aluno precisa”, relata a publicitária oralizada; (II) “O meu medo é que o ensino do futuro dela: é ela mudar de escola e ficar parada, bloqueada, excluída. Porque não existe inclusão”, relata uma mãe. Posteriormente, a matéria trata da importância da Língua Brasileira de Sinais para os surdos e introduz um breve relato relacionado à contextualização da temática. O apresentador comenta sobre uma educação especializada, que deve contar com professores treinados em Libras.

É bem notório, neste artefato cultural, considerando o contexto aqui apresentado, que, a escola, mais uma vez, é acionada como local no qual a inclusão de surdos deve ser implementada, sendo que ela deve partir de meios efetivos, diferente, portanto, dos outros artefatos até aqui trabalhados, visto que o ambiente físico não é a escola, mas esta é citada constantemente. É perceptível, também, que, a ordem discursiva, assim como todo o conjunto de pedagogias culturais que circundam a temática da inclusão de surdos devem ser discutidos. O imperativo não é contundente, mas se apresenta como verdade a ser seguida. O docente é acionado como sujeito a ser formado (impactado por tais pedagogias) para atender uma determinada demanda. Não é perceptível, neste artefato, a associação de inclusão aos espaços físicos, mas sim à necessidade em atender a uma deficiência da sociedade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É evidente que há necessidade de um processo que inclua camadas da sociedade ainda consideradas excluídas, contudo, não foi preocupação deste artigo analisar tal mérito. É perceptível, nos artefatos culturais escolhidos para esta análise, que há um conjunto de regras com deveres e “direitos” que agem de forma imperativa, introduzindo novos comportamentos, novos modos de ser e de agir. Isso impacta diretamente nos docentes e, consequentemente, na forma de agir, ser e se comportar no ambiente escolar. A inclusão ganhou um caráter pragmático, e, assim, preocupa-se com a execução de normas previamente estabelecidas, em que os atores têm tão somente a preocupação de aplicá-las. Os artefatos escolhidos demostram o quão desafiadora é a educação inclusiva e o quão complexa é a sua implementação.

REFERÊNCIAS

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FOLHA DE SÃO PAULO, TV. Desafio para formação educacional de surdos. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fsdBJTK6-TE&ab_channel=TVFOLHA. Acesso em: 01 dez. 2020.

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VEIGA-NETO, A.; LOPES, M. C. Inclusão, exclusão, in/exclusão. verve. Revista Semestral Autogestionária do Nu-Sol., n. 20, p. 121-135, 2011.

[1] Mestrando em Educação pela Universidade Luterana do Brasil – Especialista em Docência pelo IFMG. Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Estácio de Sá.

[2] Mestranda em Ciências Criminológicas-Forense, pela Universidad de La Empresa (UDE-Uruguai). Especialista em Direito Penal Militar e Processo Penal Militar pelo Centro de Pesquisa e Pós-Graduação da Academia da Polícia Militar de Minas Gerais (2016). Especialista em Ciências Penais pelo Instituto de Educação Continuada – IEC, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2015). Graduada em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2013).

[3] Mestre Em Educação – Especialista Em Didática E Metodologia Do Ensino, Psicopedagogia E Inspeção Escolar. Pedagoga.

Enviado: Fevereiro, 2021.

Aprovado: Junho, 2021.

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Heider Carlos Matos

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