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A identidade feminina no conto “Blusa Vermelha” de Ana Miranda

RC: 53000
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/literatura/identidade-feminina

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

ANDRADE, Heidy Elizia Sauer [1]

ANDRADE, Heidy Elizia Sauer. A identidade feminina no conto “Blusa Vermelha” de Ana Miranda. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 06, Vol. 12, pp. 61-71. Junho de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/literatura/identidade-feminina, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/literatura/identidade-feminina

RESUMO

Este artigo propõe a análise do conto Blusa Vermelha, parte integrante da obra Noturnos (1999) de Ana Miranda, focalizando o texto por um viés da psicanálise que possibilita uma leitura do feminino. Para que esta análise fosse possível, fez-se inicialmente uma abordagem histórica da mulher ocidental, desde a existência de um período matriarcal até a atualidade, pois os opostos (homem e mulher) sempre dualizaram a história da humanidade. Enquanto o homem desconhecia sua importância na procriação, as mulheres eram consideradas seres superiores, pois tinham poderes divinos, gerando inclusive a vida. São abordadas também três teorias psicanalíticas que definem o feminino: as teorias de Freud, Jung e Lacan, e posteriormente, são desenvolvidas as análises do conto. Nessas analises há argumentação sobre os elementos femininos percebidos, e o entrelaçamento dos símbolos femininos com a psicanálise e a literatura, demonstrando primeiramente a importância da psicanálise na história da consciência feminina. Nesta parte também, é realizada a análise literário do conto Blusa Vermelha, mostrando as características estruturais do romance e alguns símbolos que permitem afirmar a presença do feminino no conto e por meio deles (dos símbolos) analisar psicanaliticamente a personagem, a qual possui também a voz de narradora. É por meio dos símbolos, também, que pode-se perceber traços do mito de Carmem, figura do século XIX, que representa o arquétipo da mulher fatal. Apesar das particularidades analisadas, a presente visão do referido conto não é suficiente para o seu fechamento, uma vez que ele apresenta-se aberto a questionamentos tanto quanto os propõe.

Palavras-chave: Literatura, psicanálise, feminino.

1. INTRODUÇÃO

Feminino e masculino sempre dualizaram a história e, ainda que não exista a aceitação por toda a classe intelectual da existência de um período matriarcal (que tenha antecedido o patriarcalismo), farta é a literatura sobre o templo da deusa ou da Grande Mãe como fonte de vida e renovação, variados também são os adereços e estatuetas encontrados que expressam de forma arredondada as genitálias femininas, valorizando-as. Nesta perspectiva de uma sociedade matriarcal imaginária anterior à sociedade patriarcal, Monteiro (1998, p. 44) afirma:

[…] havia a ligação entre os seres humanos e a deusa do amo/r e da fertilidade, que renovava avida. A mulher era a mensageira dos atributos da deusa aos seres humanos. A deusa expressava beleza física, sabedoria instintiva e capacidade de conectar emoções e sentimentos. Era associada a natureza desabrochando […].

Tal como a natureza associava-se ao feminino, neste mundo imaginário, a Lua, que possui elementos fecundantes e fertilizantes, e, além disso, ciclos que são semelhantes ao ciclo menstrual feminino, por isso, segundo Brandão (apud Monteiro, 1998, p. 44), somente as mulheres poderiam fazer as colheitas prosperarem, já que possuíam uma proteção direta da Lua. Monteiro cita como possíveis representações da grande deusa: Inana, deusa Suméria; Istar, deusa babilônica; Astarte, deusa Síria e Fenícia; Isís, deusa Egípcia e Oxum, deusa africana.

Embora na Antiguidade Clássica também existissem forças femininas representadas pelas deusas Deméter, Afrodite e Vênus, as civilizações grega e romana já apresentavam uma dinâmica patriarcal embasada na legislação e no pensamento filosófico buscando a luz e a ordem, características existentes nos deuses masculinos, de acordo com Vernant (apud MONTEIRO, 1998, p. 53)

Numa civilização masculina como a da Grécia, a mulher preenchia com o casamento duas funções sociais. Em primeiro lugar, tinha a função de comércio entre as famílias diferentes e aparecia como equivalente aos valores de circulação, como a riqueza móvel dos rebanhos. Em segundo lugar permitia aos homens principiar uma progenitura e assegurar a sobrevivência de sua casa. O casamento era como uma lavragem, a mulher era o sulco e o homem, o lavrador, tendo como objetivo a procriação dos filhos.

A mulher também não tinha espaço na arte. O famoso teatro grego era representado unicamente por homens que utilizavam máscaras para compor os personagens, inclusive os femininos. Na época, considerava-se que a mulher não era capaz de produzir ou representar a grande arte pelo fato de possuir emoções a flor da pele.

Na história oriental, o mundo hebraico foi o que mais enfatizou o patriarcalismo, afinal nele existia um único Deus, criador de tudo e todos. O cristianismo por sua vez, enfatizou ainda mais o patriarcado no mundo, com um atenuante, como diz Monteiro (1998), pois Maria deveria fazer a restauração do patriarcalismo com o matriarcado, pois ela uniria e a terra ao céu criando o Filho e assim criando uma união do homem a Deus. Mas a Idade Média não entendeu Maria como restauração do feminino e sim como um exemplo de virtude maternal. Desta forma, as mulheres começaram a vivenciar um intenso período de repressão interna, pois o único tipo de mulher aceita era aquela que fosse constantemente dedicada ao lar. O sexo foi aceito somente para procriação e por isso as mulheres abandonaram cada vez mais sua natureza instintiva. Ainda durante a idade média as mulheres que questionassem a igreja ou que demonstrassem alguma ligação com a natureza, ou até mesmo os desejos sexuais que sentiam, frequentemente eram mortas, acusadas pela Igreja de bruxaria.

No decorrer dos séculos XVII a XIX, houve uma mudança na situação feminina. A mulher começou a pressionar políticos e educadores em busca de seus direitos. Mas o processo decisivo para ruptura com os valores religiosos e morais existentes foi a crescente industrialização que precisava de mão-de-obra barata em grande quantidade. De acordo com Monteiro (1998, p. 65) “Os americanos foram os primeiros a concordar que a mulher possuía inteligência e resistência física para suportar estudos e trabalhos superiores.”

Coube ao movimento feminista lutar pelos direitos das mulheres e pela derrubada do preconceito existente até mesmo nas próprias mulheres. Em relação ao voto, os Estados Unidos da América, a Austrália e a Nova Zelândia foram os primeiros a concederem esse direito às mulheres, em 1890. Na Europa, as mulheres só puderam exercer o papel de eleitoras a partir de 1920, e no Brasil esse direito foi adquirido mais tarde ainda, somente em 1933, concedendo as mulheres participação nas eleições de 1934. O movimento feminista auxiliou também no avanço da visão feminina, com defesa na literatura. Conforme Moreira (2003, p. 36)

A desuniversalização do ponto de vista masculino na literatura, através da compreensão de que escritoras produzem uma literatura toda sua, obscurecida em sua coerência histórica e temática e sobretudo, em sua importância artística – pelo predomínio dos valores patriarcais na cultura.

1.1 CONCEPÇÕES DO FEMININO NA PSICANÁLISE

Os estudos psicanalíticos inauguraram um novo período para a condição feminina. Embora a amplitude e as contradições no campo psicanalítico sejam inúmeras, é justo salientar que antes dos estudos freudianos a mulher estava limitada aos registros biológicos os quais distinguiam-na do homem por possuir útero, implicações e limitações. Para o discurso freudiano, a feminilidade não está identificada com a mulher propriamente, mas sim com a referência do falo, de acordo com Birman (1999, p. 51)

A feminilidade não seria identificada nem com o ser da mulher, nem tampouco com sexualidade feminina, bem entendido. Isso porque a feminilidade remeteria a algo que transcenderia a diferença de sexos, ultrapassando em muito a oposição entre as figuras do homem e da mulher. Esse registro sexual se caracterizaria pela ausência de referência ao falo. Estaria justamente aí sua originalidade. Com efeito, a feminilidade como registro sexual teria como seu critério definidor a inexistência do falo como eixo de construção do sujeito, sendo, pois, uma forma de ultrapassagem da lógica fálica. Com isso, a feminilidade remeteria a algo presente igualmente no homem e na mulher, transcendendo então a regulação pelo falo.

Ao diferenciar a mulher pela inexistência do falo, e não por simples aspectos anatômicos, Freud trouxe a sexualidade do inconsciente para o domínio do discurso consciente, pois é o inconsciente que é sexual e nele, não se percebe a diferença e sim a falta. Por isso, na concepção freudiana, o masculino é o sexo ativo, potente enquanto o feminino, que é composto por seres mutilados (sem pênis), é o sexo impotente ou passivo. Desta forma, para Freud a inveja do pênis é a base da estrutura do psiquismo da mulher, já que, ao perceber a falta do falo a mulher sente inveja. Como consequência, o ser feminino é marcado pela inveja, pelo ciúme e por ligações intensas, não só do homem, mas também das mulheres como nos diz Moreira (2003, p. 79):

Além da inveja do pênis a mulher também inveja a feminilidade da outra. O que é que ela tem que eu não tenho? Quando a menina descobre sua castração, ela desvaloriza a mãe e a culpabiliza pela própria falta do pênis. Enfim ela quer ser a outra, ou ter o que a outra possui. Feminilidade é o atributo da rival, que a outra sempre é.

Freud ainda diz que um exemplo da mulher que sabe utilizar-se do feminino trabalhando a sedução é a figura de Carmem – muito conhecida no século XIX- e não a figura da prostituta. Segundo Brunel (1997) a figura de Carmem recria o arquétipo da mulher fatal, e é devido a difusão deste mito que temos a atual reabilitação da mulher, pois foi a difusão deste mito que permitiu a reabilitação feminina, o reencontro com a sua sensualidade e individualidade e a consciência de que reprimir os seres é o mesmo que sacrificá-los.

O único problema do mito de Carmem é a época em que ele foi escrito, sendo a princípio rejeitado pela sociedade, pois na época acreditava-se que a mulher verdadeiramente feminina era aquela que desempenhava o papel de mãe e esposa, não o de amante.

Outra teoria psicanalítica que irá trabalhar a questão feminina é a psicologia analítica de Jung. Em contraponto as teorias de Freud, segundo a psicologia analítica aborda que masculino e feminino são formados por duas dinâmicas arquetípicas, animus e anima, que estão presentes tanto no homem como na mulher, como explica Monteiro (1998, p. 89)

Jung, apesar de todas as limitações culturais de seu tempo, pode explicitar o ser mulher: feminino plural, como um lugar de diferenças do homem ou do masculino, postulando não a busca da igualdade, mas a coexistência de diferenças. Partimos do pressuposto dualista de que existem forças opostas que estão em luta entre si, e buscam a unidade destes elementos. Só a consciência dos opostos possibilitará estabelecer a relação e a harmonia entre eles.

Assim, não é possível, segundo a psicologia analítica, simplesmente reduzirmos a dinâmica animus à mulher e a dinâmica amina ao homem, tampouco o reverso, pois de acordo com Moreira (2003) homem e mulher são dois elementos que se percebem, encontram e defrontam e em diferentes proporções ocorre a criação a partir da consciência que ambos possuem de suas potenciais. Podendo ora o feminino encontrar-se no homem, ora na mulher e vice-versa.

Além dos dois discursos psicanalíticos sobre feminino e masculino (Freud e Jung), temos um terceiro discurso: as teorias de Lacan. Embora tanto Lacan como Jung tenham se utilizado das teorias freudianas em seus estudos, há elementos interpretativos em suas teorias que vão além da teoria do mestre, como nos diz Monteiro (1998, p. 82)

Psicanalistas afirmam que Lacan foi além de Freud. Para ele, a mulher não e apenas um ser castrado, a mulher não há, o ser mulher não existe, é o sexo que não é, o que não existe são entes mulheres. Existem duas posições sexuais: a masculina e a feminina, posições a que homens e mulheres pertencem em tempos diferentes.

As concepções de Lacan sobre o feminino vão diferenciar-se das de Freud principalmente no que diz respeito ao sentimento de inferioridade feminina. Para Lacan, este sentimento não existe por causa da ausência do falo, mas sim em consequência da desvalorização feminina em moldes de uma sociedade patriarcal que perdurou por séculos. O teórico admite a existência da inveja na mulher, mas afirma que ela não se dá pela inexistência do falo e sim pela diferenciação das oportunidades, das conquistas e do desenvolvimento, que sempre foram, na sociedade patriarcal, dificultados as mulheres.

Lacan afirma ainda que mesmo a mulher sendo o ser que não existe, devido à inexistência do falo, isso não impede a existência de uma condição feminina, como afirma Soler (2005, p. 29)

No amor, graças ao desejo do parceiro, a falta se converte num efeito, por ser quase compensatória: a mulher se transforma no que não tem. Isso significa que, desde aqueles anos, para Lacan, a falta feminina já está positivada.

Assim, conforme se estreita à relação homem-mulher, a mulher transforma-se no falo, no objeto de desejo da relação, que tem sua mediação no sexo oposto, e, devido às condições sociais impostas, a mulher deve não tanto desejar, mas fazer-se desejar, ou seja, moldar-se às condições do desejo do homem, de acordo com Soler (2005, p. 33), “nas mulheres, portanto, a instância do semblante é acentuada, ou até duplicada por seu lugar no casal sexual, que as obriga estruturalmente a se vestirem com as cores do desejo do Outro.”

É por isso que a teoria de Lacan vai ser tão inovadora, pois segundo ela vai denunciar a coerção original que as imagens e símbolos de uma cultura patriarcal exercem sobre as mulheres, por isso também, a mulher torna-se uma invenção da cultura histórica, que muda de feição conforme as épocas.

Alguns teóricos ainda afirmam que as diferenças entre as teorias de Freud e Lacan se devem à época em que cada um deles escreveu, havendo o período de um século entre elas. É claro que o momento em que cada uma das teorias foi escrita tem influência sobre ela, contudo a grande diferença está na aceitação de cada uma dessas teorias pela sociedade, devido ao momento histórico-cultural que modifica a mentalidade das pessoas.

1.2 CONHECENDO A OBRA NOTURNOS

A obra Noturnos é composta por sessenta e cinco narrativas curtas, que possuem basicamente o mesmo tamanho e estrutura. Todas estas narrativas tem independência a ponto de serem chamadas de contos e ao mesmo tempo, por serem narradas todas por uma voz feminina, possuem uma ligação entre si. Os sessenta e cinco contos que compõem a obra são compostos por um único parágrafo, nos quais não são seguidas regras para pontuação, fato que perpassa ao leitor um tempo interno do narrador.

O tema de todos os contos é sempre o amor. A narradora, uma mulher, do alto de seu apartamento, relembra fatos vividos, ou imagina fatos que gostaria que acontecessem. Em nenhum desses contos aparece o nome da narradora, nem do homem que ela ama, e este, é um dos fatos que aproxima mais os textos e nos dá a liberdade de imaginar que possuem o mesmo narrador. Mas este é apenas um efeito da obra. Segundo a própria autora, muitos dos textos publicados no livro Noturnos, já tinham sido publicados na revista Caros Amigos, o que Ana Miranda fez foi apenas reunir estes contos que como ela mesma diz, foram escritos para a alma.

Não diferente do conjunto de contos que compõe a obra, o conto Blusa vermelha chama a atenção pela introspecção constante que cria nele um efeito de diário, ou ainda, da transcrição dos próprios pensamentos da personagem em sua forma mais pura, sem a utilização de pontos finais, e, com o uso de alguns símbolos que despertam a imaginação de qualquer leitor.

1.3 ANÁLISE DA IDENTIDADE FEMININA NO CONTO “BLUSA VERMELHA”

O conto Blusa Vermelha é composto por um único parágrafo que mostra a cena de uma mulher que está aguardando a chegada de um homem. No texto não fica claro em nenhum momento se este homem chegará, ou sequer se existe ou existiu em algum momento da vida da nossa personagem, tampouco quem este homem é. Escrito em primeira pessoa, o texto não possui ponto final, somente virgulas e pontos de interrogação. Embora não exista a utilização do pronome reto para primeira pessoa, no caso o “eu”, percebemos que se trata de uma narrador-personagem pela conjugação verbal em todo texto que se encontra conjugado na primeira pessoa: “Preciso”, “fecho” e “vejo” (linha 01), “estou só” (linha 2), “acendo” (linha 3). “acaricio” (linha 4), “borrifo” e “escolho” (linha 5), “estendo” (linha 7), “olho” (linha 9), “visto” e “calço” (linha 11), “passo o batom” (linha 13), “as palavras que penso” e “eu mesma espero” (linha 18), assim como outros encontrados pelo texto. Segundo BRAIT (2002, p. 60), em seu livro A personagem,

A condução da narrativa por um narrador em primeira pessoa implica, necessariamente, a sua condição de personagem envolvida com os “acontecimentos” que estão sendo narrados. Por esse processo, os recursos selecionados pelo escritor para descrever, definir, construir os seres fictícios que dão a impressão de vida chegam diretamente ao leitor através de uma personagem. Vemos tudo através da perspectiva da personagem, que arcando com a tarefa de “conhecer-se” e expressar esse conhecimento conduz os traços e atributos que a presentificam e presentificam as demais personagens.

Este tipo de narrador personagem, que é muito utilizado a partir do modernismo, cria o efeito de personagem denso, pois se acredita que é muito mais árdua a tarefa de falarmos sobre nós mesmos do que a de falarmos sobre o outro, ou seja, em terceira pessoa. Verifica-se também como é complexa a definição de uma pessoa por si mesma, já que ela sempre irá querer passar o que “gostaria” de ser e não o que é. E é este artifício que a autora utiliza no conto Blusa Vermelha, onde a personagem narra suas angústias, seus sentimentos. Sobre as características dessa personagem ainda podemos dizer que: é “uma mulher madura de cabelos negros, um rosto grave, olhar pacífico” (linhas 3e4).

O conto analisado, apesar de possuir características bem singulares como a inexistência de ponto final e a construção de um texto a partir de um único parágrafo, possui uma linguagem contemporânea, próxima a do leitor e sem utilização de gírias. A linguagem é tão simples, que o conto aproxima-se de escritos em um diário.

O tempo da narrativa é linear, no presente, isto quer dizer que a história se passa no mesmo momento da leitura, não há qualquer espaço temporal que nos permita verificar alguma outra cena já vivida pela personagem.

O espaço do conto é um local fechado, talvez uma casa ou um apartamento, que nos passa a ideia de um personagem também fechado e solitário, como aparece no texto, “estou só” (linha 2). Neste local onde a personagem se encontra inicia-se um monólogo interior, que fora definido por Norman Friedman e é descrito por Leite (2002, p. 67) como

Um aprofundamento maior nos processos mentais, típico da narrativa deste século. A radicalização dessa sondagem interna da mente acaba deslanchando um verdadeiro fluxo ininterrupto de pensamentos que se exprimem numa linguagem cada vez mais frágil em nexos lógicos.

Este monólogo nos dá a ideia mais uma vez de uma pessoa solitária, e nos leva a refletir sobre nossos pensamentos e nossas vidas. O monólogo fica mais perceptível nos questionamentos da personagem: “e se ele não gostar de batom?” (linha 13), “e se ele não gostar de mim?” (linha 14).

Outra marca importante do conto analisado são os símbolos. Uma blusa vermelha, um perfume, um espelho. Estes símbolos estão em todo o conto e são em sua maioria objetos que para a narradora-personagem tem um significado. Eles auxiliam, entre outras coisas, a perceber as características psíquicas das personagens. Os símbolos oferecem elementos que podem apontar para o feminino, ainda que cada um deles nos ofereça várias interpretações, dentro do texto eles estabelecem uma intenção pré-determinada pelo autor.

A blusa vermelha, por exemplo, poderia ter qualquer cor, mas a autora faz questão de enfatizar que a cor da roupa é vermelha: “uma saia preta e uma blusa vermelha, uma mulher de blusa vermelha está disposta a se entregar” e mais adiante “visto a saia, a blusa vermelha (linha 12) e “me vejo vestida com a blusa vermelha” (linha 25). Segundo Cirlot (1984, p. 172) em seu dicionário de simbologia descreve que: “O simbolismo da cor é dos mais universalmente conhecidos e conscientemente utilizados, em liturgia, heráldica, alquimia, arte e literatura. […]”

A cor vermelha em especial representa por regra geral a cor do sangue palpitante e do fogo, dos sentimentos vivos e ardentes como a paixão, designa também o princípio vivificador e no conto tem a função de demonstrar o impulso do desejo e da paixão. Ela – a blusa vermelha – também simboliza um elemento feminino, pois como o gozo feminino depende do outro (figura masculina), a mulher tem seu gozo não no desejo, mas sim no “fazer desejar”, e por isso utiliza-se de roupas de sugestão sexual. Para Soler (2005, p. 29), isto acontece

Porque a mulher só é o falo no nível de sua relação com o homem. E sempre para um outro, nunca em si que se pode ser o falo, o que nos reconduz a sua parceria com o homem, já acentuada por Freud. A formulação de Lacan certamente enfatiza, ao mesmo tempo, o desejo e a demanda feita ao homem, mas mantém uma definição do ser feminino que passa pela mediação obrigatória do sexo oposto.

Pode-se entender então que a personagem do conto revela traços do feminino, pois é próprio do feminino e da mulher seduzir e obter o prazer por meio do prazer do outro, como

Soler (2005, p. 33) afirma:

O resultado é que a sedução não é uma simples técnica, mas uma arte, talvez, que nunca depende unicamente dos automismos programados pelo imaginário coletivo. O “fazer desejar” que é próprio das mulheres não escapa, portanto as interferências do inconsciente, sempre singular, e o recurso frente a seu mistério é a mascarada, que joga com o imaginário para se ajustar ao Outro e cativar esse desconhecido que é o desejo.

Mesmo assim, percebe-se que o feminino no conto começa a fugir às regras. Isso quer dizer que não temos somente marcas do feminino, mas também marcas da histeria feminina. Segundo Lacan in Soler, o feminino, representado pela mulher, obtêm prazer no fazer desejar e se revela completamente no ato sexual. A histeria vai além, pois enquanto “a mulher quer gozar, a histérica quer ser. E até exige ser, ser alguma coisa para o Outro: não um objeto de gozo, mas o objeto precioso que sustenta o desejo e o amor”. (SOLER, 2005, p. 52).

Assim como a histérica, a personagem do conto não quer e não se satisfaz simplesmente com o fazer desejar, ela busca ser algo além do objeto de desejo e é por isso que ela nunca se revela completamente (linha 25) “me vejo vestida com a blusa vermelha, pronta para me entregar, pouco importa o que eu revelar, nunca será a verdade.”

Ainda a partir das características da personagem do conto “uma mulher madura de cabelos negros, um rosto grave, olhar pacífico” (linhas 3e 4), c de suas vestimentas “uma saia preta e uma blusa vermelha” (linha 12) podemos perceber a inter-relação da personagem com o mito de Carmem, pois segundo Brunel (1997, p.146) Carmem tinha “lindos cabelos negros e um olhar forte” e vestia-se constantemente com a cor vermelha, pois quando “ligado ao negro, o vermelho tem sua importância na iconografia da mulher fatal. Simboliza a extroversão, tendendo à agressão e à provocação.” (BRUNEL, 1997, p. 147), o que reforça ainda mais a ideia de uma mulher que quer se fazer desejar, ou mais, ser o próprio desejo.

Além da blusa vermelha temos como símbolo marcante do texto o espelho que é um símbolo da imaginação com capacidade de reproduzir a realidade formal, e serve ainda para suscitar aparecimentos, revivendo imagens do passado ou anulando distâncias. O espelho pode nos revelar uma mulher sensual a espera de um homem uma mulher que já existiu e um homem que em algum momento também existiu, quer no passado ou na imaginação da personagem. O espelho mostra também a forma como a personagem se vê e não como ela é realmente.

Finalizando, temos a exploração do perfume pela autora: “borrifo perfume em meu corpo” (linha 05), “e se ele não gostar de meu perfume” (linha 13), “derramo o perfume em meu corpo” (linha 24). O perfume reforça a ideia de reminiscências, de lembranças, de pensamento e fantasia, reforçando que a personagem vive um momento do pensamento/fantasia não necessariamente da realidade.

1.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando a interpretação proposta, percebe-se a importância da mulher escrever sobre ela mesma, sobre seus sentimentos, sobre suas angústias, seus medos e suas fantasias, mesmo que em um texto ficcional. Principalmente quando este texto representa, mais do que o sentimento de uma mulher, o sentimento de uma condição imposta a todas as mulheres pela sociedade patriarcal, pois ele nos abre horizontes no entendimento da mulher enquanto ser transformador do mundo.

Sabe-se que a luta das mulheres por seus direitos é de longa data, e que apesar de vivermos em um período de “liberdade”, o preconceito para com a mulher ainda existe, ainda que inconscientemente. O fato mais triste, no entanto, é saber que este preconceito está principalmente nas próprias mulheres, por causa de uma condição que lhes foi imposta por séculos.

Nesta perspectiva, a literatura cumpre um papel importante ao evidenciar perfis femininos que possuem problemas, enfrentam temores, vivenciam momentos felizes, sentem desejos. Enfim, são perfis existentes da mulher, e que sempre foram ocultados na literatura “masculina”, pois o que se buscava era um padrão social, e nele a mulher devia se aproximar da visão feminina religiosa, Maria, e viver em função da “perfeição”. Quando se passa, então, a escrever sobre a mulher numa outra perspectiva, mudam-se também valores sociais, pois como diz o saber popular, “a vida imita a arte e a arte imita a vida”.

Ficou evidente na análise que o feminino no conto é composto pelos aspectos da sedução, que é propriamente feminina, e perceber que o feminino vai ser representado também pela histeria, característica não essencialmente feminina, mas que aparece com mais frequência nas mulheres do que nos homens. Estes traços de personalidade são próprios do mundo moderno, repressor, controlador e ao mesmo tempo aberto para romper com as amarras que diferenciam homens e mulheres nos seus direitos e desejos de liberdade.

Para finalizar, conclui-se que esta foi apenas uma das possibilidades de leitura do texto analisado, o que nos permite em outras pesquisas utilizar o mesmo tema por meio de outro recorte teórico ou mesmo retomá-lo em um aprofundamento de estudos.

REFERÊNCIAS

BIRMAN, Joel. Cartografias do feminino. São Paulo: Editora 34, 1999.

BRAIT, Beth. A personagem. 7. ed. São Paulo: Ática, 2002.

BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio. 1997.

CIRLOT, Juan Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Editora Moraes, 1984.

LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J. B. Vocabulário de psicanálise. 9. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo ou a polêmica em torno da ilusão. 10. ed. São Paulo: Ática, 2002.

MIRANDA, Ana. Noturnos: contos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

MONTEIRO, Dulcinéa da Mata Ribeiro. Mulher feminino plural: mitologia, história e psicanálise. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1998.

MOREIRA, Nadilza Martins de Barros. A condição feminina revisitada: Julia Lopes de Almeida e Kate Chopin. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003.

NETO, João Soares. João Soares Neto entrevista Ana Miranda. Disponível na página www.secrel.com.br/jpoesia/jsoaresnetol.htmI consultado em 10/11/2005.

SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2005.

TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. 2. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1970.

[1] Mestranda Em Educação Pela FUNIBER.

Enviado: Janeiro, 2020.

Aprovado: Junho, 2020.

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Heidy Elizia Sauer Andrade

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