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O silêncio seletivo do acusado no interrogatório

RC: 57719
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/silencio-seletivo

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

DELFINO, Leonardo [1], SILVA, Marco Antonio Marques da [2]

DELFINO, Leonardo. SILVA, Marco Antonio Marques da. O silêncio seletivo do acusado no interrogatório. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 08, Vol. 08, pp. 25-39. Agosto de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/silencio-seletivo, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/silencio-seletivo

RESUMO

Decorrência do princípio do nemo tenetur se detegere, segundo o qual nenhuma pessoa deve ser obrigada a produzir prova contra si mesma ou se declarar culpada, o exercício do direito ao silêncio pelo acusado, previsto no artigo 5º, LXIII, da Constituição, na ocasião do interrogatório em juízo (artigos 185 a 196 do Código de Processo Penal) recebe controversa interpretação pelos juízes, sobretudo acerca da possibilidade de exercê-lo seletivamente. A partir de uma interpretação literal do artigo 188 do Código de Processo Penal, membros do Poder Judiciário – parcela minoritária, diga-se – decidem que o acusado que manifesta o desejo não responder às perguntas do juiz de direito e do órgão acusador, na ocasião do interrogatório, não possui o direito de expor a sua versão dos fatos no referido ato, tampouco de responder às perguntas do seu defensor. Por meio de pesquisa bibliográfica e análise legislativa, o presente artigo tem como objetivo justificar a legalidade e a constitucionalidade da prática do silêncio, na forma seletiva, no interrogatório judicial, bem como expor as razões por que a aludida conduta, por parte das autoridades judiciárias, é equivocada sob as ópticas constitucional, convencional e legal.

Palavras-chave: nemo tenetur se detegere, direito ao silêncio, silêncio seletivo, interrogatório, processo penal.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Recentemente circularam por meio das redes sociais ao menos três gravações (ROSA; ROCHA; PITARI, 2020) de audiências de instrução e julgamento em que as autoridades judiciais encerraram o interrogatório do acusado, sem ouvi-lo, diante da afirmação, por parte deste, de que responderia apenas aos questionamentos formulados pelo seu defensor; exercendo, assim, o seu direito ao silêncio na forma seletiva.

De acordo com esses magistrados, o interrogatório é meio de prova, consistindo em ato processual destinado à satisfação da cognição da autoridade judicial acerca dos fatos, de modo que a acusação e a defesa se limitam à formulação de questionamentos complementares acerca de algum fato não esclarecido, nos termos do artigo 188 do Código de Processo Penal.

Portanto, na linha deste entendimento, não assiste razão ao acusado de invocar o direito ao silêncio, previsto no art. 5º, LXIII, da Constituição, apenas em relação aos questionamentos realizados pela autoridade judicial e pela acusação na ocasião do interrogatório (de forma seletiva). A rejeição em responder às perguntas do magistrado implica encerramento do interrogatório, pelo que nenhuma pergunta será feita pela defesa, tampouco alguma versão dos fatos será exposta pelo acusado.

Neste breve ensaio, procura-se, inicialmente, demonstrar a adoção de forma expressa do princípio nemo tenetur se detegere pelo ordenamento jurídico brasileiro, cuja uma das vertentes é o direito do acusado em sede de processo penal de permanecer em silêncio perante as autoridades públicas.

Somado a isto, será esclarecido por que, em nossa opinião, o interrogatório não consiste, tão somente, em meio de prova, de modo que seu objetivo vai muito além do mero esclarecimento dos fatos pelo acusado à autoridade judicial.

Com esta demonstração, e evidenciado que o ordenamento processual penal brasileiro permite o exercício do direito ao silêncio na forma seletiva pelo acusado, serão expostas as consequências processuais da sua vedação.

2. O DIREITO AO SILÊNCIO E DE NÃO PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO

Segundo o princípio nemo tenetur se detegere o sujeito passivo da persecução penal não pode sofrer nenhuma espécie de prejuízo jurídico por se omitir de colaborar com a atividade probatória da acusação ou por exercer o seu direito ao silêncio na ocasião do interrogatório (LOPES JUNIOR, 2020).

O referido princípio encontra origem no período do Iluminismo e era associado ao interrogatório do acusado. Segundo Queijo (2012), foi nessa época, marcada pela construção e reconhecimento de garantias penais e processuais penais que persistem até a atualidade, que o princípio nemo tenetur se detegere surgiu como uma garantia que visava a resguardar o acusado na ocasião do seu interrogatório.

Nesse período o acusado não era mais visto apenas como objeto da prova, de modo que os iluministas combateram o emprego da tortura e a imposição de declaração juramentada, por parte do acusado, destacando que qualquer afirmação autoincriminatória não era natural, bem como que eram imorais os meios utilizados para pressionar o acusado a falar ou a se autoincriminar (QUEIJO, 2012).

A evolução do referido princípio implicou afastamento da presunção de culpabilidade e, consequentemente, de prejuízo processual ao acusado que exercesse a prerrogativa de não se autoincriminar.

O direito ao silêncio é apenas uma das vertentes do princípio nemo tenetur se detegere. Isso porque, além de agasalhar a negativa de declaração, isto é, a possibilidade de não responder a nenhuma pergunta que resulte em autoincriminação, também inserem-se na esfera de proteção do aludido princípio: a) condutas ativas, como comparecimento à reconstituição dos fatos, comparecimento para depor, fornecimento de documentos para exames grafotécnicos e realização de teste de etilômetro; b) comportamentos passivos que possam induzir à formação de substrato probatório incriminatório, a exemplo de submissão ao reconhecimento e à extração coativa de material para ser analisado, como coleta de sangue, de esperma, de saliva, de urina; c) a invasividade interna, como a introdução de agulhas para extração de sangue ou de outros líquidos do corpo, a introdução de substâncias químicas via sondas, a intervenção cirúrgica, com o objetivo de obtenção da prova; d) a invasividade externa, por manter relação com a interna, como a extração de cabelos, pelos, unhas; e) a impossibilidade de se interpretar o silêncio ou o não fazer contra o sujeito, não só nos interrogatórios, como também nos momentos das abordagens policiais e sempre que a conduta possa produzir autoincriminação (GIACOMOLLI , 2016).

Antes da Constituição de 1988 o princípio nemo tenetur se detegere, sobretudo na vertente do direito ao silêncio, não era respaldado no direito brasileiro. Em razão disso, o Código de Processo Penal dispunha, no artigo 186 (antiga redação), que embora o acusado não estivesse obrigado a responder a todas as indagações, o seu silêncio poderia ser interpretado em prejuízo à sua própria defesa. No mesmo sentido, a antiga redação do artigo 191 do CPP estabelecia que “consignar-se-ão as perguntas que o réu deixar de responder e as razões que invocar para não fazê-lo”, o que demonstra, mais uma vez, que ainda que o acusado exercesse o seu direito ao silêncio visando a não se autoincriminar, as perguntas de caráter incriminatório seriam anotadas nos autos, a fim de militar contra a sua defesa.

O princípio nemo tenetur se detegere foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro tardiamente, com a Constituição de 1988, apenas na vertente do direito ao silêncio, uma vez que no art. 5º, LXIII, foi estabelecido que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada assistência da família e de advogado.”

Malgrado o dispositivo constitucional faça menção apenas ao preso, compreende-se que o direito de não se autoincriminar é atribuído a qualquer pessoa, presa, ou solta, suspeita em investigação, indiciada ou acusada em procedimento criminal, ou ainda a qualquer pessoa diante de indagação por autoridade pública cuja resposta possa implicar imputação, ao declarante, de prática de crime (BOTTINO, 2009, p. 598).

Além da previsão constitucional, o princípio nemo tenetur se detegere possui previsão expressa no ordenamento jurídico brasileiro, já que está previsto em dois instrumentos internacionais sobre direitos humanos ratificados pela República Federativa do Brasil.

O primeiro deles foi o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que foi adotado na XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, e que entrou em vigor no Brasil no dia 24 de abril de 1992, por força do Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992. Este pacto dispõe no seu artigo 14, 3, g, que “toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias […] De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.”

O segundo foi a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), celebrada em São José da Costa Rica em 22 de novembro de 1969, e que entrou em vigor no Brasil em 25 de setembro de 1992, conforme o Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. De acordo com a Convenção em comento, toda pessoa acusada de um delito tem direito à garantia de “[…] não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada;” (art. 8, 2, g).

É importante recordar, em consonância com o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário n. 466.343/SP, que o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos possuem status de norma supralegal, porquanto foram aprovados pelo procedimento ordinário previsto no art. 47 da Constituição, encontrando-se abaixo do ordenamento constitucional e acima do ordenamento legal, paralisando este no tocante às disposições que lhe sejam contrárias.

Consoante lição doutrinária de Queijo (2012, p. 92-93), o nemo tenetur se detegere está inserido na categoria dos princípios-garantia, que, segundo Canotilho, tem como objetivo “instruir directa e imediatamente uma garantia dos cidadãos. É-lhes atribuída uma densidade de autêntica norma jurídica e uma força determinante, positiva e negativa”, de modo que, por ser princípio constitucional, possui eficácia imediata.

Para o Supremo Tribunal Federal, a vedação a não autoincriminação se trata de direito público subjetivo do indivíduo de estatura constitucional e de aplicabilidade imediata, pelo que é plenamente oponível ao Estado e constitui uma das mais expressivas consequências derivadas da cláusula do devido processo legal (BOTTINO, 2009).

3. A NATUREZA JURÍDICA DO INTERROGATÓRIO

Para compreender a controvérsia existente em relação à natureza jurídica do interrogatório no processo penal é necessário analisar dois períodos distintos, o anterior e o posterior ao advento da Constituição de 1988.

Conforme já mencionado neste artigo, o princípio nemo tenetur se detegere não era reconhecido no ordenamento processual penal brasileiro antes da Constituição de 1988, daí porque eventual exercício do direito ao silêncio pelo acusado na ocasião do interrogatório poderia lhe implicar prejuízo jurídico, já que, na antiga redação do art. 186 do Código de Processo Penal, o silêncio do imputado poderia ser interpretado em desfavor à sua própria defesa.

Diante disso, preponderava anteriormente à promulgação da atual Constituição o entendimento de que o interrogatório era meio de prova[3], sobretudo porque o Código de Processo Penal o regulamentou no Título VII, que trata da prova. Cuidava-se, portanto, de uma classificação topográfica acerca da natureza jurídica do interrogatório.

Era meio de prova porque o acusado seria interrogado diretamente pelo magistrado, a fim de que este buscasse a “verdade real”, de modo que eram dispensados os questionamentos pelo órgão acusador e pela defesa. Da mesma forma, ainda que exercesse o direito de silenciar, tal conduta implicaria prejuízos à defesa do réu.

Observa-se, portanto, que o modo como ocorria interrogatório, no período anterior à atual Constituição, e a sua classificação jurídica, eram traços marcantes que caracterizavam o sistema processual penal brasileiro como inquisitorial. Havia um juiz que procedia, exclusivamente sem participação de acusação e defesa técnica, à oitiva do acusado, pelo que este, ao não ter a oportunidade de exercer pessoalmente e deliberadamente o seu direito à autodefesa, era encarado como mero objeto do processo e não como sujeito de direitos. O acusado era o detentor de um saber que seria extraído pelo juiz inquisidor.

Contudo, este panorama foi severamente modificado com o advento da Constituição de 1988.

Com o advento da atual Constituição ocorreu o fenômeno da constitucionalização do processo penal, que implicou na previsão expressa de diversos direitos e garantias aos acusados, todos eles decorrentes da cláusula do devido processo legal.

Dentre os diversos direitos assegurados pela Lei Maior, está a previsão do princípio nemo tenetur se detegere no art. 5º, LXIII, na vertente do direito ao silêncio, até então rechaçado por nosso ordenamento jurídico.

Tal previsão assegurou o direito ao acusado de silenciar no interrogatório, tornando não recepcionada qualquer disposição legal no sentido de que a negativa de resposta autoincriminatória poderia implicar prejuízo jurídico à defesa.

Portanto, em face do teor do inciso LXIII do art. 5º da Constituição de 1988, o interrogatório deixou de ser meio de prova para se tornar ato de defesa[4].

Se o acusado pode deixar de responder às perguntas que lhe forem dirigidas pelo juiz, o ato deixou de ser destinado à satisfação da cognição do magistrado e se transformou em uma oportunidade para que o acusado exercesse sua autodefesa, expondo a sua versão dos fatos. O acusado até pode, ao se autodefender, fornecer elementos de convicção que possam ser considerados pelo juiz na formação do seu convencimento, contudo isto deixou de ser o objetivo do interrogatório (BADARÓ, 2020).

Considerar o interrogatório como ato de defesa, de acordo com Gustavo Badaró, decorre da própria lógica do sistema acusatório, em que o acusado é um sujeito de direitos e a ele é assegurada a ampla defesa, podendo ser exercitada na modalidade autodefesa perante a autoridade que irá julgá-lo (BADARÓ, 2020).

Visando a corroborar este entendimento, no sentido de que o interrogatório é ato de defesa, o Código de Processo Penal sofreu substanciais alterações com o escopo de adequar o ato à disciplina constitucional.

Nesse sentido, por meio da Lei n. 10.792/2003, alterou-se o teor do art. 185, a fim de garantir a obrigatoriedade da defesa técnica na ocasião do interrogatório, assim como para modificar a redação do art. 186, eliminando a previsão de que o silêncio do acusado poderia ser interpretado em seu prejuízo. Da mesma forma, o art. 188 recebeu nova redação, permitindo à acusação e à defesa a realização de perguntas ao acusado, demarcando o contraditório na realização do ato. Ainda, a determinação do art. 191, de que as perguntas não respondidas deveriam ser consignadas em ata, foi revogada.

Já as Leis n. 11.689/2008 e n. 11.719/2008 estabeleceram que tanto no procedimento comum como no do júri o acusado a primeira pessoa a ser ouvida na instrução, mas a última, permitindo-lhe que rebatesse todos os fatos alegados em audiência pela vítima e testemunhas em privilégio à ampla defesa, de modo a demonstrar, mais uma vez, que o interrogatório deixou de ser meio de prova e se tornou meio de defesa.

Ademais, consoante consta na ementa do HC 111.567 AgR/AM, julgado em 5 de agosto de 2014, pela Segunda Turma, e em cuja relatoria atuou o Ministro Celso de Mello, o interrogatório, por força da possibilidade de exercício do direito ao silêncio, qualifica-se como ato de defesa, pelo que o acusado não pode sofrer qualquer restrição jurídica pelo uso desta prerrogativa[5]. No mesmo norte, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 444/DF, em cuja relatoria atuou o Ministro Gilmar Mendes, os Ministros Celso de Mello e Alexandre de Moraes lavravam votos enfatizando que o interrogatório é meio de defesa do acusado, daí porque se percebe que para a Suprema Corte não parece haver conflito acerca da natureza jurídica, sobretudo após a consagração do direito ao silêncio pela Constituição de 1988.

4. O SILÊNCIO SELETIVO

Estabelecido que o direito ao silêncio, uma das vertentes do princípio nemo tenetur se detegere, trata-se de direito público subjetivo do indivíduo de estatura constitucional e de aplicabilidade imediata, sendo plenamente oponível ao Estado em virtude de ser uma das mais expressivas consequências derivadas da cláusula do devido processo legal, e que o interrogatório no processo penal é meio de defesa, questiona-se: caso o acusado manifeste à autoridade judicial, na ocasião do interrogatório, que pretende responder apenas aos questionamentos formulados pelo seu defensor, é viável que o juiz encerre o ato, sob o argumento de que o acusado não pode escolher quais perguntas irá ou não responder?

A resposta é negativa.

A referida conduta viola o disposto no art. 5º, LIV, LV e LXIII, da Constituição Federal, vulnera o disposto nos artigos 14, 3, g do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e 8, 2, g da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), implica mácula ao art. 186, caput e parágrafo único, do Código de Processo Penal e é contrária aos precedentes do Supremo Tribunal Federal acima destacados.

Há infringência, portanto, a normas de caráter constitucional, convencional e legal e à jurisprudência da Suprema Corte.

O direito ao silêncio, vertente do princípio nemo tenetur se detegere, é expressão da cláusula do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF). E esta somente é observada quando há respeito à ampla defesa e ao contraditório.

A ampla defesa consiste no instrumento exclusivo do acusado para refutar a acusação estatal, valendo-se dos mecanismos legais de maneira extensa e copiosa, buscando, acima de tudo, preservar o estado de inocência do réu (NUCCI, 2015).

É repartida em autodefesa e defesa técnica.

A autodefesa, renunciável, é constituída pelo direito de presença, pelo direito de postular pessoalmente e pelo direito de audiência. O primeiro significa que ao acusado assiste a prerrogativa de estar presente nos atos processuais assistido pela defesa técnica. O segundo manifesta-se no seu poder de impetrar habeas corpus, efetuar pleitos na execução penal e solicitar a progressão de regime (DEZEM, 2018). Já o terceiro corresponde ao direito do acusado de apresentar pessoalmente à autoridade judicial, na ocasião do interrogatório, a sua versão dos fatos.

O momento de maior relevo, portanto, para o exercício da autodefesa é o interrogatório. Apenas com o reconhecimento do direito ao silêncio é que se valorizou, no ordenamento nacional, a autodeterminação e a liberdade moral do acusado, para decidir se colabora ou não na persecução penal, especificamente no momento do interrogatório. O direito ao silêncio é expressão da autodefesa, assim como pode representar uma estratégia defensiva de não autoincriminação (QUEIJO, 2012).

O contraditório, por outro lado, é o direito a contrapor os argumentos contrários ao próprio interesse e é aplicável a quaisquer das partes do processo (NUCCI, 2015). – distinguindo-se da ampla defesa que é exclusiva do acusado.

No caso da ação penal, o interrogatório é oportunidade de suma importância para o acusado, uma vez que é neste ato que ele irá contraditar os fatos narrados pelo órgão acusador na ocasião da denúncia ou da queixa-crime, bem como irá contrapor todos os fatos narrados pela vítima, se houver, e pelas testemunhas durante a instrução do processo.

Portanto, negar ao acusado a oportunidade de expor a sua versão dos fatos pelo simples motivo dele ter se recusado a responder às perguntas da autoridade judicial e do órgão acusador viola o exercício da autodefesa do acusado – e consequentemente implica mácula à ampla defesa. Trata-se de conduta que desrespeita a autodeterminação do réu e sua liberdade moral para optar pelo melhor modo de expor a sua versão dos fatos em juízo, implicando ingerência indevida do magistrado no direito de autodefesa.

Igualmente, há violação ao contraditório, pelo simples fato de que apenas a acusação conseguiu expor a sua versão dos fatos a contento, no momento que ofertou denúncia ou queixa-crime, de modo que o acusado não teve a oportunidade de expor a sua versão dos fatos da forma que melhor lhe aprouvera. E, pior, teve interpretado contra si o exercício do direito ao silêncio, circunstância que redunda em enorme prejuízo jurídico ao sujeito passivo da persecução penal e flagrante desrespeito ao nemo tenetur se detegere.

A conduta em tela também viola o princípio da presunção da inocência. No processo penal o encargo probatório acerca da culpabilidade compete ao órgão acusador, motivo pelo qual o acusado não tem o dever de colaborar com a acusação na formação da sua culpa. Dessa forma, assiste ao imputado o direito de escolher a melhor forma de se autodefender, pelo que é plenamente possível que ele, estrategicamente, não responda aos questionamentos da autoridade judicial e do órgão acusador, sobretudo porque a regra, no processo penal brasileiro, é que estes façam perguntas com o intento de incriminá-lo e não de absolvê-lo.

Quanto ao plano legal, o artigo 186, caput, do Código de Processo Penal estabelece que o acusado possui o direito de permanecer calado e não responder perguntas (sim, o substantivo perguntas está no plural) que lhe foram formuladas, o que torna evidente a prerrogativa da pessoa interrogada de selecionar as perguntas que irá responder e para quem irá responde-las, sem que isso implique prejuízo ao seu direito de defesa, consoante parágrafo único do dispositivo de lei em comento. Ademais, uma vez que o direito ao silêncio se trata de direito fundamental, eventual restrição do exercício desta prerrogativa somente poderá ser regulamentada por lei, razão por que não pode a autoridade judicial reduzir o alcance deste direito usando uma interpretação contrária ao cidadão – para quem foi atribuído esse direito fundamental de primeira geração.

Respaldando o entendimento defendido neste ensaio, é pertinente, mais uma vez, mencionar a lição de Queijo acerca da prerrogativa do acusado de selecionar as perguntas que irá ou não responder:

a posição mais consentânea com o nemo tenetur se detegere, como direito fundamental que é, objetivando a tutela do acusado contra risco de autoincriminação, é permitir ao acusado que exerça o direito ao silêncio, durante o interrogatório do mérito, livremente. Mesmo porque não se poderia exigir dele que fizesse opção pelo direito ao silêncio, ou não, antes de conhecer as perguntas que seriam formuladas, exceto se se tratasse de estratégia defensiva previamente traçada. Desse modo, poderá o acusado não responder a nenhuma pergunta, como poderá responder a algumas delas e silenciar com relação a outras que entenda expô-lo a risco de autoincriminação. Fica assim assegurada integralmente sua liberdade de autodeterminação no interrogatório (QUEIJO, 2012, p. 248-249).

Em reforço, Giacomolli (2016, p. 236) destaca que

[…] o direito ao silêncio atinge, portanto, especificamente, o direito de ficar calado, de não se pronunciar, de responder somente aos questionamentos que não produzam incriminação, bem como o de responder total ou parcialmente às perguntas formuladas. Trata-se da denominada autodefesa negativa […] O suspeito, acusado, réu, imputado, na esfera criminal, após ser devidamente informados da acusação, elege a melhor estratégia defensiva, a qual poderá ser a de não declarar, a de não comparecer, a de não se submeter a procedimentos, metodologias de colheita de prova que possam afastar o seu estado de inocência.

E os questionamentos não respondidos, acrescente-se, de forma alguma poderão ser consignados em ata. A propósito, esta era a antiga redação do artigo 191 do Código de Processo Penal e que foi revogada pela Lei n. 10.792/2003, que conferiu nova redação ao dispositivo. Caso se permitisse a anotação em ata das perguntas não respondidas, haveria, certamente, violação ao nemo tenetur se detegere, na medida em que constariam nos autos quais questionamentos o acusado entendeu como autoincriminatórios, reservando-se ao direito ao silêncio, o que poderia influenciar o julgador para eventual condenação. É dizer, o exercício do direito de não responder perguntas poderia ser utilizado contra o acusado, pelo que de nada adiantaria as previsões constitucionais, convencionais e legais acerca da não autoincriminação.

Por fim, cabe ressaltar que a continuidade do interrogatório, após a negativa do acusado em responder às formulações da autoridade judicial, não configura o crime previsto no art. 15, parágrafo único, I, da Lei n. 13.869/2019 (Lei do abuso de autoridade). Isso porque este tipo penal foi concebido com o intuito de proibir que as autoridades públicas constranjam a pessoa interrogada a responder a questionamentos, quando ela já afirmou o desejo de exercer o direito ao silêncio. Não diz respeito, portanto, à situação em que a pessoa interrogada deseja selecionar a quem irá ou não responder, na medida em que, primeiro, não ocorreria qualquer tipo de constrangimento, nessa segunda hipótese, por parte da autoridade que prosseguisse o interrogatório dando a palavra ao defensor, bem como porque há a explícita vontade da pessoa interrogada em exercer a sua autodefesa, recusando-se, contudo, a responder as perguntas da autoridade judicial.

A par dessas premissas, é que se verifica o desacerto da conduta do juiz que encerra o ato processual após a alegação do acusado de que apenas responderá às perguntas do seu defensor.

5. CONSEQUÊNCIAS PROCESSUAIS DA PROIBIÇÃO DO SILÊNCIO SELETIVO

É cediço que o Supremo Tribunal Federal possui precedentes no sentido de que, em se tratando de matéria de nulidade no âmbito do processo penal, é necessária a demonstração do prejuízo concreto gerado à parte que o alega, porquanto não se decreta nulidade processual por presunção.

Neste sentido:

EMENTA: PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. NULIDADE. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. PRECEDENTES. 1. A decisão impugnada está alinhada com a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “o princípio do pas de nullité sans grief exige, em regra, a demonstração de prejuízo concreto à parte que suscita o vício, podendo ser ela tanto a nulidade absoluta quanto a relativa, pois não se decreta nulidade processual por mera presunção” (HC 132.149-AgR, Rel. Min. Luiz Fux). Precedentes. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (HC 173789 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 06/03/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-081 DIVULG 01-04-2020 PUBLIC 02-04-2020).

Ainda, pela outra Turma da Corte: Agravo regimental em recursos extraordinários com agravos. 2. Penal e Processo Penal. 3. Homicídio duplamente qualificado (artigo 121, § 2º, incisos I e III, do Código Penal). Tribunal do Júri. 4. Alegada nulidade do julgamento pela quebra da incomunicabilidade dos jurados. 5. Matéria exaustivamente enfrentada pela Corte estadual e pelo STJ, que afastaram a apontada nulidade, pois, na eventual comunicação entre os jurados, não houve exteriorização de opinião acerca da causa, provas ou do mérito da imputação. 6. Pas de nullité sans grief. Necessidade de demonstração de prejuízo concreto pela parte que suscita o vício, podendo ser ela tanto a nulidade absoluta quanto a relativa, pois não se decreta nulidade processual por mera presunção. 7. Para dissentir dos fundamentos das decisões recorridas, seria necessário o exame minucioso do acervo fático-probatório constante dos autos. Óbice da Súmula 279/STF. Precedentes. 8. Agravo regimental a que se nega provimento. (ARE 1031099 AgR, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 29/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-153 DIVULG 31-07-2018 PUBLIC 01-08-2018)

Sucede que na situação em que o magistrado encerra o interrogatório após o acusado alegar que responderá apenas aos questionamentos formulados pelo seu defensor o prejuízo é evidente.

Há, nesta hipótese, negativa da autoridade judicial em oportunizar ao acusado a exposição da sua versão dos fatos, pelo que ocorre cerceamento do direito à autodefesa, sem que a pessoa interrogada tenha renunciado a ela. Tal renúncia, a propósito, é personalíssima, pelo que apenas poderia ser realizada pelo sujeito passivo da persecução penal.

Portanto, porque não observado o devido processo legal – e todos os princípios e regras acima citados decorrentes desta cláusula – o encerramento do ato processual sem que o acusado possa expor a sua narrativa enseja o reconhecimento de nulidade absoluta, nos termos do artigo 563, III, “e”, do Código de Processo Penal, sendo de rigor o seu refazimento.

Eventualmente, caso o acusado sinta-se coagido com o anúncio do encerramento do ato pelo magistrado e resolva responder aos seus questionamentos, entendemos que também há nulidade do interrogatório, bem como devem ser declaradas ilícitas todas as provas que derivem das alegações do acusado nesta ocasião, com fundamento no § 1º do art. 157 do CPP, sem prejuízo da apuração de suposta prática de crime pela autoridade judicial (art. 15, parágrafo único, I, da Lei n. 13.869/2019).

6. CONCLUSÃO

O Código de Processo Penal em vigência no Brasil (Decreto-Lei n. 3.689 de 3 de outubro de 1941) remonta ao ano de 1941, época em que se vivia neste país o chamado “Estado Novo” ou “Era Vargas”, que perdurou entre 10 de novembro de 1937 até 31 de janeiro de 1946, período político de nítida feição autoritária.

Por se tratar de uma codificação ideologicamente condizente com o período em que foi concebida, a Lei Processual Penal brasileira foi inspirada por uma óptica inquisitiva, por meio da qual é possível se verificar diversas disposições que permitem ao julgador que se invista no papel do acusador – algo redundante se pensarmos, conforme mencionado, da adoção do sistema processual inquisitório pelo Diploma em comento.

Ocorre que desde a sua entrada em vigor, em 1º de janeiro de 1942 (art. 810 do CPP), a República Federativa do Brasil veio a ter duas outras novas Constituições, em 1946 e 1967, até chegarmos à Constituição atual, promulgada em 5 de outubro de 1988, sem que alterações substanciais fossem realizadas no CPP, a fim de compatibilizá-lo àquela.

Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o processo penal brasileiro adquiriu uma nova roupagem, advindo daí a necessidade dos atores processuais penais de realizarem uma filtragem constitucional e convencional (regras estas que são tão esquecidas por nós, estudiosos do Direito) nas vetustas normas processuais penais.

E foi por meio desta filtragem constitucional e convencional que se procurou, neste breve ensaio, expor o porquê é equivocado subtrair do acusado o direito à autodefesa, na ocasião do interrogatório, após a opção de responder apenas aos questionamentos formulados pela defesa, em decorrência dos seguintes fatores:

  1. O princípio nemo tenetur se detegere, na vertente direito ao silêncio, possui respaldo constitucional (art. 5º, LXIII, da CF), convencional (artigos 14, 3, g do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e 8, 2, g da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), na vertente de não autoincriminação e legal (art. 186, caput e parágrafo único, do CPP), pelo que o seu exercício não pode implicar prejuízo jurídico ao acusado;
  2. O interrogatório no processo penal é meio de defesa, de modo que o exercício do direito ao silêncio é inerente à autodeterminação e à liberdade moral do acusado para decidir se colabora ou não na persecução penal, não podendo as autoridades públicas se ingerirem indevidamente no uso desta prerrogativa a fim de manipular a estratégia defensiva;
  3. Por se tratar de direito fundamental de primeira geração, oponível pelo cidadão contra o Estado, a redução da abrangência do direito ao silêncio somente pode ser realizada por meio de lei, pelo que é permitido ao acusado, na ocasião do interrogatório, optar por responder uma, nenhuma, ou algumas perguntas, bem como responder a quem irá responder, de modo que esta conduta não viola a lei, tampouco o exercício do contraditório pelo órgão acusador;
  4. O encerramento do ato processual sem que o acusado, querendo responder somente às perguntas do seu defensor, possa expor a sua narrativa enseja o reconhecimento de nulidade absoluta, nos termos do artigo 563, III, “e”, do Código de Processo Penal, sendo de rigor o seu refazimento, bem como devem ser declaradas ilícitas todas as provas que derivem das alegações do acusado nesta ocasião, caso ele se sinta coagido e resolva responder aos questionamentos da autoridade judicial, com fundamento no § 1º do art. 157 do CPP, sem prejuízo da apuração de suposta prática de crime (art. 15, parágrafo único, I, da Lei n. 13.869/2019).

REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 8. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

BOTTINO, Thiago. A doutrina brasileira do direito ao silêncio: o STF e a conformação do sistema processual penal constitucional. In: Processo penal e democracia: estudos em homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. Geraldo Prado e Diogo Malan (Coordenadores).

DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 4. ed. São Paulo: Mastersaf, 2018.

GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2016.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Millennium, 2009. v.2.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

ROSA, Alexandre de Morais; ROCHA, Jorge Bheron; PITARI, Mariella. Artigo Conjur. 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-fev-09/limite-penal-fale-agora-ou-cale-sempre-questao-silencio-seletivo#:~:text=O%20sil%C3%AAncio% 20seletivo%2C%20express%C3%A3o%20adotada,seu%20exerc%C3%ADcio%20estrat%C3%A9gico%20de%20calar. Acesso em: 31 jul. 2020.

YOUTUBE. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YVnnuXpcEwk. Acesso em: 6 jul. 2020.

APÊNDICE – REFERÊNCIAS DE NOTA DE RODAPÉ

3. Nesse sentido entendia Marques (2009, p. 318) “o interrogatório do acusado é, atualmente, meio probatório, pois que, entre as provas, o arrolou o Código de Processo Penal”.

4. Há quem entenda, a exemplo de Nucci (2020, p. 470) que a natureza jurídica do interrogatório é meio de defesa e meio de prova, na medida em que, caso o acusado decida abrir mão do seu direito ao silêncio e responder às perguntas, ele poderá fornecer elementos probatórios a serem considerados pelo juiz. Dessa posição discordamos, porquanto a ocasião consiste em exercício da autodefesa, na qual o acusado possui a oportunidade de dar sua versão dos fatos, o que caracteriza o ato como um meio genuíno de defesa.

5, “HABEAS CORPUS” – RÉU MILITAR – DEVER DO ESTADO DE ASSEGURAR AO RÉU MILITAR TRANSPORTE PARA COMPARECER À AUDIÊNCIA DE INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS, AINDA QUE O JUÍZO PROCESSANTE TENHA SEDE EM LOCAL DIVERSO DAQUELE EM QUE SITUADA A ORGANIZAÇÃO MILITAR A QUE O ACUSADO ESTEJA VINCULADO (DECRETO Nº 4.307/2002, ART. 28, N. I) – PEDIDO DEFERIDO – INTERROGATÓRIO JUDICIAL – NATUREZA JURÍDICA – MEIO DE DEFESA DO ACUSADO – POSSIBILIDADE DE QUALQUER DOS LITISCONSORTES PENAIS PASSIVOS ACOMPANHAR O INTERROGATÓRIO DOS DEMAIS CORRÉUS, NOTADAMENTE SE AS DEFESAS DE TAIS ACUSADOS MOSTRAREM-SE COLIDENTES – PRERROGATIVA JURÍDICA CUJA LEGITIMAÇÃO DECORRE DO POSTULADO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA – DIREITO DE PRESENÇA E DE COMPARECIMENTO DO RÉU AOS ATOS DE PERSECUÇÃO PENAL EM JUÍZO – NECESSIDADE DE RESPEITO, PELO PODER PÚBLICO, ÀS PRERROGATIVAS JURÍDICAS QUE COMPÕEM O PRÓPRIO ESTATUTO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE DEFESA – A GARANTIA CONSTITUCIONAL DO “DUE PROCESS OF LAW” COMO EXPRESSIVA LIMITAÇÃO À ATIVIDADE PERSECUTÓRIA DO ESTADO (INVESTIGAÇÃO PENAL E PROCESSO PENAL) – O CONTEÚDO MATERIAL DA CLÁUSULA DE GARANTIA DO “DUE PROCESS” – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – MAGISTÉRIO DA DOUTRINA – CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. A essencialidade do postulado do devido processo legal, que se qualifica como requisito legitimador da própria “persecutio criminis”. – O exame da cláusula referente ao “due process of law” permite nela identificar alguns elementos essenciais à sua configuração como expressiva garantia de ordem constitucional, destacando-se, entre eles, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: (a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis “ex post facto”; (f) direito à igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a autoincriminação); (k) direito à prova; e (l) direito de presença e de “participação ativa” nos atos de interrogatório judicial dos demais litisconsortes penais passivos, quando existentes. – O direito do réu à observância, pelo Estado, da garantia pertinente ao “due process of law”, além de traduzir expressão concreta do direito de defesa, também encontra suporte legitimador em convenções internacionais que proclamam a essencialidade dessa franquia processual, que compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal. O INTERROGATÓRIO JUDICIAL COMO MEIO DE DEFESA DO RÉU. – Em sede de persecução penal, o interrogatório judicial – notadamente após o advento da Lei nº 10.792/2003, aplicável ao processo penal militar (CPPM, art. 3º, “a”) – qualifica-se como ato de defesa do réu, que, além de não ser obrigado a responder a qualquer indagação feita pelo magistrado processante, também não pode sofrer qualquer restrição em sua esfera jurídica em virtude do exercício, sempre legítimo, dessa especial prerrogativa. Doutrina. Precedentes. possibilidade jurídicO-CONSTITUCIONAL de um dos litisconsortes penais passivos, invocando a garantia do “due process of law”, ver assegurado o seu direito de formular reperguntas aos corréus no respectivo interrogatório judicial. – Assiste a cada um dos litisconsortes penais passivos o direito – fundado em cláusulas constitucionais (CF, art. 5º, incisos LIV e LV) – de formular reperguntas aos demais corréus, que, no entanto, não estão obrigados a respondê-las, em face da prerrogativa contra a autoincriminação, de que também são titulares. O desrespeito a essa franquia individual do réu, resultante da arbitrária recusa em lhe permitir a formulação de reperguntas, qualifica-se como causa geradora de nulidade processual absoluta, por implicar grave transgressão ao estatuto constitucional do direito de defesa. Doutrina. Precedentes do STF. O DIREITO DE COMPARECIMENTO E DE PRESENÇA DO RÉU NOS ATOS INERENTES À “PERSECUTIO CRIMINIS IN JUDICIO” COMO EXPRESSÃO CONCRETIZADORA DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DO “DUE PROCESS OF LAW”. – O acusado tem o direito de comparecer, de presenciar e de assistir, sob pena de nulidade absoluta, aos atos processuais, notadamente àqueles que se produzem na fase de instrução do processo penal, que se realiza, sempre, sob a égide do contraditório. São irrelevantes, para esse efeito, as alegações do Poder Público concernentes à dificuldade ou inconveniência de proceder ao custeio de deslocamento do réu militar, no interesse da Justiça, para fora da sede de sua Organização Militar, eis que razões de mera conveniência administrativa não têm – nem podem ter – precedência sobre as inafastáveis exigências de cumprimento e de respeito ao que determina a Constituição. Doutrina. Jurisprudência. – O direito de audiência, de um lado, e o direito de presença do réu (civil ou militar), de outro, esteja ele preso ou não, traduzem prerrogativas jurídicas essenciais que derivam da garantia constitucional do “due process of law” e que asseguram, por isso mesmo, ao acusado o direito de comparecer aos atos processuais a serem realizados perante o juízo processante, ainda que situado este em local diverso daquele da sede da Organização Militar a que o réu esteja vinculado. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos/ONU (Artigo 14, n. 3, “d”); Convenção Americana de Direitos Humanos/OEA (Artigo 8º, § 2º, “d” e “f”); e Decreto nº 4.307/2002 (art. 28, inciso I). – Essa prerrogativa processual reveste-se de caráter fundamental, pois compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal, seja perante a Justiça Comum, seja perante a Justiça Militar. Precedentes.

[1] Mestrando em Direito Processual Penal (PUC/SP), Especialista em Direito Processual Civil pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC), bacharel em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).

[2] Orientador. Doutorado em Direito. Mestrado em Direito. Graduação em Direito.

Enviado: Agosto, 2020.

Aprovado: Agosto, 2020.

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Leonardo Delfino

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