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Três aspectos fundamentais do positivismo jurídico em Norberto Bobbio

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

DOURADO, Flávio Augusto Vilhena [1]

DOURADO, Flávio Augusto Vilhena. Três aspectos fundamentais do positivismo jurídico em Norberto Bobbio. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 04, Vol. 09, pp. 16-30. Abril de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso:  https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/positivismo-juridico

RESUMO

O positivismo jurídico, contraparte do jusnaturalismo, destaca-se como um dos movimentos mais significativos da ciência jurídica. Norberto Bobbio, filósofo italiano e célebre adepto da corrente, em sua obra, destrincha-a em três faces (como Teoria do Direito, como método de estudo do Direito e como ideologia do Direito). Embora seja de amplo conhecimento na seara jusfilosófica que tal trindade de conceitos é de grande importância para a compreensão das normas jurídicas, é imprescindível trazer à tona o seguinte questionamento, em torno do qual este estudo se norteia: como os aspectos fundamentais do positivismo jurídico interagem entre si e contribuem para a construção analítica, prática e ideológica do Direito? Tem-se como objetivo, portanto, desvendar a forma de comunicabilidade existente entre os elementos supracitados, encontrando possíveis vínculos de dependência, alicerçando-se em uma revisão bibliográfica, através de pesquisa exploratória, sobretudo da obra do professor Norberto Bobbio. Em conclusão, utilizando-se do próprio pensamento bobbiano como lupa, percebe-se que cada um dos três aspectos colabora para regimentar a focalização do juspositivismo, levando a adoção de um à assunção de outro. Como teoria, vincula o fenômeno jurídico à formação de um poder soberano que possa exercer coação, qual seja, o Estado. Como método de estudo, trata de distinguir o direito como fato e o direito como valor, levando o jurista a ocupar-se tão somente do direito real/científico, ignorando questões axiológicas. Como ideologia, representa o Direito como valor positivo.

Palavras-chave: Positivismo jurídico, Aspectos, Teoria do Direito, Método do Direito, Ideologia do Direito.

1. INTRODUÇÃO

Encarado o positivismo jurídico como ideologia, a crítica assenta-se em um juízo de valor; como teoria, em um juízo de verdade ou falsidade; e, como método, em um juízo de conveniência. O positivismo jurídico é uma corrente que orientou durante um século a cultura jurídica, fazendo nascer uma geração habituada a considerá-lo como a “filosofia dos juristas”. Bobbio – doutrinador italiano que integra essa geração, realizou uma profunda investigação do movimento juspositivista com o fito de, sob suas palavras, “estabelecer aquilo que dele deve ser conservado e o que deve ser abandonado, ou como se diz habitualmente quanto às doutrinas, verificar o que está vivo e o que está morto” (BOBBIO, 1995, p. 133). Bobbio (1995), além de avaliar as críticas a que o positivismo jurídico foi submetido, se propõe a distinguir alguns aspectos que permeiam fundamentalmente a doutrina, em vez de considerar o movimento como um inalterável monólito. Nesse diapasão, assume-se que o positivismo jurídico pode ser avaliado sob três aspectos, quais sejam: como método para o estudo do Direito; como teoria do Direito; e como ideologia do Direito. Porém, como os aspectos fundamentais do positivismo jurídico inter-relacionam-se e colaboram para a estruturação analítica, prática e ideológica do Direito?

Dessa maneira, muito além de entender o significado de cada uma das formas assumidas pelo positivismo, objetiva-se desvendar a forma de comunicabilidade existente entre os elementos supracitados, encontrando possíveis vínculos de dependência. Conclusão à qual chegar-se-á mediante revisão bibliográfica, através de pesquisa exploratória.

2. O POSITIVISMO JURÍDICO COMO MÉTODO DE ESTUDO DO DIREITO

É de saber geral que o ‘direito’ não possui significado uno, podendo ser enquadrado à diferentes acepções, como fato social, faculdade, norma e ciência. Sob o viés positivista, em específico, o direito seria tão somente aquele imposto pelo Estado através de suas autoridades competentes, recusando-se quaisquer influências exógenas sobre a interpretação das normas, com finalidade de viabilizar o convívio em sociedade. Trata-se de uma recusa ao metafísico, uma negação ao Direito Natural, mantendo a primazia daquilo que fora legislado. “O direito positivo é direito, o direito natural não é direito” (BOBBIO, 1995).

Apesar do ambiente hermético que se formou ao redor do positivismo jurídico, é importante dizer que, para Norberto Bobbio (1995), tomado por propósitos inteiramente didáticos, este se dividiria ainda em três classificações: positivismo jurídico enquanto método, teoria e ideologia. Ocupar-se-á, a partir de agora, do método, que tem por escopo transformar o estudo do direito em ciência.

Ora, se o positivismo visa privar-se de tudo aquilo que é devido ao naturalismo, nada mais lógico do que adotar para si certas características das ciências exatas, que descrevem fenômenos sem se ater a valorações. Indubitável que o jusfilósofo Hans Kelsen seja um dos responsáveis pela introdução do método científico a esta seara ao criar a Teoria Pura do Direito, mas as colocações de Bobbio são tão importantes quanto, ao enunciar que:

O positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas caraterísticas das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais. Ora, a característica fundamental da ciência consiste em sua avaloridade, isto é, na distinção entre juízos de fato e juízo de valor e na rigorosa exclusão destes últimos do campo científico: a ciência consiste somente em juízos de fato (BOBBIO, 2006, p. 135).

Depreende-se, portanto, que para a consolidação do direito como ciência, o maior anseio do positivista, é imprescindível ao hermeneuta a exclusão das apreciações normativas mediante valoração. O motivo por trás dessa discriminação é bastante simples: o juízo de fato configura mera compreensão do real, devendo ser exclusivamente informativo. Doutra maneira, o juízo de valor possui aspecto ativo, representando um ímpeto de agir frente a realidade. Ou seja, em um, tem-se o indivíduo apreciador da realidade em posição de neutralidade, atendo-se a descrevê-la; em outro, tal indivíduo exterioriza a sua concepção acerca da realidade com a intenção de influenciar outrem, o que é anticientífico. Não se deve, a bel prazer, incutir na realidade conceitos alheios a sua natureza, advindos de ideações.

Querendo exemplificar a distinção entre ambos os juízos com uma alegoria, a afirmativa “a grama é verde” é, por claro, um juízo de fato, sendo fundamentado na realidade sem qualquer intromissão valorativa. Agora, “a grama verde é bela” está contaminada com a introdução de um valor formado no intelecto de quem a diz.

O método de estudo do direito deve repudiar a concepção teleológica, espécie de determinismo de origem divinatória, a fim de manter íntegra a sua objetividade, tal qual as ciências sociais, que compartilham dos mesmos predicados das ciências exatas, ao passo de que o sociólogo ou linguista avaliam seu objeto de estudo sem opinar, limitando-se a descrevê-lo. Nas palavras de Bobbio (1995) o positivista jurídico assume uma atitude científica frente ao direito, já que ele estuda o direito tal qual é, não tal qual deveria ser. Em célere explicação, o que interessa é o direito real, não o direito ideal. Consequentemente, o conceito de justiça torna-se malquisto pelo positivista, porquanto o entendimento do que é justo interfere na análise do direito real, atribuindo-lhe aparência de injusto ou inválido.

Para Marsílio de Pádua o justo não é per si o direito e sequer é requisito essencial para existência deste. A norma não passa a inexistir só por ser, em teoria, injusta. Embora, para o pensador, para que a lei seja considerada perfeita, deverá ser justa:

É por isso que a dimensão exata de tudo o que é justo e útil para a cidade não se constitui em leis, a menos que tenha sido estabelecido um preceito coercivo, impondo a sua observância ou que tenha sido promulgada mediante um preceito. Todavia, a dimensão exata do que é justo e útil é uma exigência para que uma lei possa ser considerada perfeita (MARSILIO, DP I, X, 5 apud STREFLING, 2010, p. 226-227). 

Ocorre que a sobreposição de valor e validade está ligada ao direito ideal. Para os jusnaturalistas, para que uma norma se consolide como válida, ela precisa ser valorosa (justa). Enquanto para determinados juspositivistas, a exemplo de Hobbes, a validade depende apenas de sua existência em um ordenamento jurídico. Em análise ao radicalismo hobbesiano, pensamento de positivismo estrito, vê-se que a validez da norma decorre de sua expedição pelo soberano, o que a tornaria automaticamente justa, pois, conforme o inglês, a lei, em sentido próprio, é a palavra daquele que tem direito de mando sobre outros (HOBBES, 1988).

Esse aspecto, inclusive, foi o que levou o positivismo tradicional a perecer após os acontecimentos históricos que marcaram a Segunda Guerra Mundial, uma vez que as atrocidades cometidas pelo Terceiro Reich encontravam guarida no ordenamento jurídico alemão, levando os estudiosos da época a questionarem se, mesmo positivados, certos direitos são admissíveis. Ocorre que o modelo formalista, por sua neutralidade intrínseca, tenderia a excluir a moralidade do campo normativo (DIMOULIS, 2006).

Zagrebelsky (2008) milita na contramão, defendendo que as imputações das atrocidades do Nazismo ao positivismo e ao subjetivismo jurídico se baseiam em frágeis premissas. Bobbio, inclusive, considera extremista a concepção de que, por ser válida, a norma é automaticamente justa. Considerar justo o que o soberano diz ser justo não se coaduna ao Estado moderno. Em verdade, o juspositivista típico distingue muito bem os conceitos de validade e valor:

A distinção entre juízo de validade e juízo de valor é tão somente um caso particular (referente ao direito) da distinção entre juízo de fato e juízo de valor. (A proposição: “este direito é válido” tende, com efeito, somente a dar uma informação que pode servir aos cidadãos, aos juízes etc; a proposição: “este direito é justo ou injusto” tende, ao contrário, a influir sobre o comportamento dos cidadãos – fazendo com que obedeçam ou, respectivamente, desobedeçam ao direito.) (BOBBIO, 2006, p. 138).

Portanto, o positivismo jurídico como método é estritamente descritivo, objetivo e alheio a valores externos, fazendo a manutenção do direito como ciência, em equivalência às exatas e sociais.

3. POSITIVISMO JURÍDICO COMO TEORIA DO DIREITO

Deixando o plano metodológico, passamos a analisar a dimensão teórica do positivismo jurídico. Esta compreende cinco concepções fundamentais acerca do fenômeno jurídico. A primeira concepção tange a definição do Direito em função do elemento da coação, de onde deriva a teoria da coatividade do Direito. No que tange às fontes do Direito, surge a teoria da legislação como fonte preeminente do Direito. A terceira concepção diz respeito à teoria da norma jurídica, sendo esta compreendida como uma ordem, emergindo daí a teoria imperativista da norma jurídica. O quarto ponto da dimensão teórica do positivismo jurídico ocupa-se do método da ciência jurídica, sendo, aqui, sustentada a teoria da interpretação mecanicista do Direito. Na quinta perspectiva aparece a teoria do ordenamento jurídico, que considera a estrutura do conjunto de normas jurídicas, e não de uma norma isoladamente tomada (do todo, e não da menor parte).

De acordo com Bobbio (2010), às teorias coativa, legislativa e imperativa do Direito constituem os pilares da teoria juspositivista, enquanto as teorias da coerência e da completitude do ordenamento jurídico e da interpretação lógica ou mecanicista do Direito logram uma importância secundária. E arremata:

[…] podemos assim falar de uma teoria juspositivista em sentido estrito e de uma teoria juspositivista em sentido amplo, em conformidade com as quais se reúnem integralmente todas as seis concepções, se não se reúnem apenas as primeiras três (BOBBIO, 2010, p. 237).

Desta forma, analisar-se-á, abaixo, as ditas teorias separadamente. Cada uma dessas teorias que, em conjunto, encerram a dimensão teórica do positivismo jurídico.

3.1 TEORIA DA COATIVIDADE DO DIREITO

Conforme a teoria clássica da coatividade, a coerção é o meio através do qual as normas jurídicas se validam; o Direito se consolida, basicamente, como um conglomerado de normas que se fazem valer coativamente. Esta teoria assumiu uma significação distinta a partir da doutrina do jurisconsulto alemão Rudolf von Ihering (2006).

Inicialmente, Ihering (2006) adota um pensamento clássico quando conceitua o Direito como o conjunto de normas coativas vigentes num Estado. Não obstante, quando se diz que o Direito é a disciplina da Zwangsgewalt (poder coativo), do qual o Estado é o detentor, ele parece considerar a coação não mais como um meio para fazer valer a norma jurídica, mas como objeto mesmo de tal norma. Ao menos, é o que se depreende das ilações de Bobbio acerca do pensamento de Ihering:

A coação se exerce por meio da Gewalt, termo que em alemão indica o poder que se manifesta na força (…) O Estado é definido por Jhering como a organização definitiva do uso do poder para as finalidades humanas, isto é, como a organização social detentora do poder coativo (Zwangsgewalt) regulado e disciplinado. Tal disciplina da Zwangsgewalt é precisamente o direito (BOBBIO, 2006, p. 154).

Resvala, portanto, na moderna teoria da coatividade. A melhor expressão da moderna teoria está em Alf Ross, jurista e filósofo dinamarquês, quando diz que a associação entre as normas jurídicas e a força consiste em que tais normas dizem respeito à aplicação da força, e não que são protegidas por meio da força; um sistema jurídico nacional é, pois, “um sistema de normas que se referem ao desempenho da força física” (ROSS apud BOBBIO, 1995).

Norberto Bobbio sintetiza da seguinte maneira a moderna formulação da teoria juspositivista da coação: o Direito é um conjunto de normas que têm por objeto a regulamentação do exercício da força numa sociedade; surge no instante em que cessa o exercício indiscriminado da força individual próprio do estado de natureza (“bellum omnium contra omnes”) e são estabelecidos quatro limites: “quem”, “quando”, “como”, “quanto” (BOBBIO, 2005).

O Direito estabelece quem deve usar a força: forma-se o monopólio estatal e o exercício da força será lícito ou ilícito, segundo provenha ou não do Estado. Ao estabelecer quando o Estado pode usar a força impede seja esta exercida arbitrariamente, sendo o seu exercício juridicamente permitido apenas quando são cometidos atos ilícitos.

O Direito estabelece, também, através de normas processuais, como a força deve ser exercida: como consectário lógico, são atribuídas, aos cidadãos, certas garantias contra usos arbitrários do poder por parte do Estado. Por fim, o Direito regula a quantidade da força ao estabelecer quais atos de coerção podem ser exercidos.

3.2 TEORIA DA LEGISLAÇÃO COMO FONTE PREEMINENTE DO DIREITO

Com esta teoria, o Positivismo Jurídico considera o Direito sub specie legis e exclui do cenário das fontes jurídicas o consuetudo contra legem, admitindo somente o costume secundum legem e, eventualmente, o praeter legem. Com o movimento juspositivista, o juiz perde a posição de fonte principal de produção do Direito, sendo proscrita a sentença contra legem. A lei é a própria fonte do direito, pelo que, conforme princípios do positivismo jurídico, acolhidos pelos ordenamentos dos Estados modernos, o magistrado jamais poderá ab-rogar lei com decisão sua. Ao prolatar o juízo de equidade (quando o magistrado decide com base no sentimento de justiça), ainda assim o juiz se configura como fonte subordinada do Direito, porque só poderá emitir mencionado juízo quando a lei o autorizar (BOBBIO, 1995).

3.3 TEORIA IMPERATIVISTA DA NORMA JURÍDICA

O primeiro juspositivista a teorizar a concepção de norma jurídica como comando foi Austin. Na Europa Continental, destacou-se o trabalho intelectual de August Thon, a quem Bobbio muito faz referência em Teoria da Norma Jurídica. A despeito de ser defendida pelo Positivismo Jurídico, esta posição não surgiu com o movimento, apresentando uma longa tradição cultural precedente, especialmente nas doutrinas de: Cícero, Modestino, Santo Tomás de Aquino, Thomasius, Thomas Hobbes e Francisco Suárez. Conforme preconiza Thon:

Por meio do direito, o ordenamento jurídico… tende a dar a todos aqueles que estão sujeitos a suas prescrições um impulso em direção a um determinado comportamento, consista este comportamento em uma ação ou em uma omissão. Este impulso é exercitado por meio de preceitos de conteúdo ora positivo ora negativo (THON, 1878, p. 12 apud BOBBIO, 2003, p. 103).

Ainda conforme Thon (1878) apud Bobbio (2003), todo o direito de uma sociedade não passa de um complexo de imperativos, os quais estão uns aos outros tão estreitamente ligados, que a desobediência de um constitui frequentemente o pressuposto do que é por outro comandado.

A teoria afirma, em assim sendo, que a norma jurídica não é um conselho, mas um comando, pois encontra neste, e não naquele, suas características essenciais, quais sejam: o sujeito ativo deve estar investido de uma autoridade, e não de uma mera respeitabilidade; o sujeito passivo se encontra em posição, não de faculdade, mas de obrigação; é obedecido pelo valor formal (pelo simples fato de ser uma manifestação da vontade do superior), e não pelo valor substancial (a respeitabilidade de seu conteúdo); vigora no interesse de quem procede, e não daquele a quem é dirigido; se seu cumprimento causa consequências negativas, é responsável por estas aquele que impôs a prescrição, de maneira que quem o recebe é obrigado, mas se isenta da responsabilidade; por fim, sua consequência desagradável (a sanção) não é natural, senão institucionalizada: organizada, desejada e efetivada pelo sujeito ativo (BOBBIO, 2003).

3.4 TEORIA DA INTERPRETAÇÃO LÓGICA OU MECANICISTA DO DIREITO

Sustenta que, em toda a atuação científica do jurista (interpretação, integração, construção, criação do sistema), deverá primar-se pelo elemento declarativo do Direito, em detrimento do criativo. Segundo Bobbio, “o juspositivismo considera o jurista uma espécie de ‘robô’ ou de ‘calculadora eletrônica’” (BOBBIO, 1995, p.133).

Frente a teoria mecanicista, arguiu-se que a corrente positivista sustentava uma ideação estática da hermenêutica, por privar-se a pensar apenas na reestruturação pontual da vontade subjetiva do legislador que pôs as normas (voluntas legislatoris), sem ao menos se atentar a adaptá-las às condições e exigências históricas e sociais variadas. Diz-se que, quem verdadeiramente o faz, a contrario sensu, é a interpretação evolutiva, bandeira levantada pelo movimento antipositivista.

3.5 TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO DE BOBBIO

De acordo com a teoria do ordenamento jurídico:

São três as características (unidade, coerência e completitude) que fazem com que o Direito, em seu conjunto, seja um ordenamento e, portanto, uma nova entidade, distinta das normas singulares que o constituem (BOBBIO, 2006, p. 198).

O ordenamento jurídico constitui uma unidade, não porque as suas normas possam ser deduzidas logicamente uma da outra (como queriam os jusnaturalistas), mas porque elas todas são postas pela mesmíssima força soberana, sendo possível sua recondução à mesma fonte original, firmada pelo poder legítimo de criar o Direito. E o que legitima esse poder a pôr as normas é a norma fundamental, que se encontra na gênese do ordenamento jurídico para fechar o sistema e assegurar sua unidade formal. Nomeada pelo jurista e filósofo austríaco Hans Kelsen de Grundnorm, teria a função de conferir poder criador de Direito ao ato do primeiro legislador e todos os outros atos baseados no primeiro ato (KELSEN, 1986).

Cuida-se de uma norma-base que não pode ser positivamente verificada, uma vez que não é posta por outro poder superior qualquer, mas suposta ou pressuposta pelo jurista para que possa assimilar o ordenamento jurídico em seu cerne. Discorrendo sobre a Grundnorm, Norberto Bobbio, confessa aceitar a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico apresentada por Kelsen, ao afirmar que:

Aceitamos aqui a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen. […]. Seu núcleo é que as normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano. Há normas superiores e inferiores. Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é a norma fundamental (BOBBIO, 1994, p. 49).

Dado o poder constituinte como poder último, devemos pressupor, portanto, uma norma que atribua ao poder constituinte a faculdade de gerar normas jurídicas: essa norma é a Grundnorm. A norma fundamental, enquanto, por um lado, atribui aos órgãos constitucionais poder de fixar normas válidas, impõe a todos aqueles aos quais se referem as normas constitucionais o encargo de obedecê-las. É uma norma que se apresenta, de forma simultânea, como atributiva e imperativa, a depender da perspectiva adotada. Pode ser elaborada da seguinte forma: “O poder constituinte está autorizado a estabelecer normas obrigatórias para toda a coletividade”, ou: “A coletividade é obrigada a obedecer às normas estabelecidas pelo poder constituinte” (BOBBIO, 2000).

A característica da coerência impede que, em um mesmo ordenamento jurídico, possam existir paralelamente duas normas antinômicas (contraditórias ou contrárias), em razão de estar subentendido no próprio regimento o princípio segundo o qual uma das normas, ou ambas, são inválidas. Nos sábios dizeres do professor italiano:

A incoerência do sistema é a situação em que existem duas normas, uma incompatível com a outra, ou seja, há uma norma e há outra norma, esta incompatível com aquela; e a incompletitude, não há uma norma nem outra norma incompatível com esta (BOBBIO, 2006, p. 203).

Logo, a completitude significa que, das normas – explícita ou tacitamente englobadas pelo ordenamento jurídico –, o juiz poderá sempre extrair uma “regula decidendi” para solucionar qualquer caso que lhe seja apresentado, demonstrando o Positivismo Jurídico sua capacidade de eliminar as lacunas no Direito.

4. POSITIVISMO JURÍDICO COMO IDEOLOGIA DO DIREITO

Finalmente, chega-se ao tema do presente tópico como o último ponto trazido por Bobbio para definição do positivismo jurídico: o positivismo jurídico enquanto ideologia do direito. Importante, por óbvio, não confundir teoria com ideologia. Distinção de tamanha importância, que o próprio jusfilósofo italiano tomou nota sobre:

[…] a teoria é a expressão da atitude puramente cognoscitiva que o homem assume perante uma certa realidade e é, portanto, constituída por um conjunto de juízos de fato, que têm a única finalidade de informar os outros acerca de tal realidade. A ideologia, em vez disso, é a expressão do comportamento avaliativo que o homem assume face a uma realidade, consistido num conjunto de juízos de valores relativos à tal realidade, juízos estes fundamentados no sistema de valores acolhido por aquele que o formula, e que tem o escopo em influírem sobre tal realidade (BOBBIO, 2006, p. 223)

Diferentemente da teoria, a ideologia não poderá ser posta à prova de falsidade, uma vez que não se compromete a ser verdadeira em momento algum. Não obstante ilógico fazer esse juízo, é possível analisar a ideologia a partir da avaliação que ela gera perante o status quo:

[…] A propósito de uma teoria, dizemos ser verdadeira ou falsa (segundo seus enunciados correspondem ou não à realidade). Não faz sentido, ao contrário, apregoar a verdade ou falsidade de uma ideologia, dado que isto não descreve a realidade, mas sobre ela influiria. Diremos, em vez disso, que uma ideologia é do tipo conservador ou do tipo progressista, segundo avalie positivamente a realidade atual e se proponha a influir sobre ela, para conservá-la, ou que a avalie negativamente, destarte se propondo a influir sobre ela, para mudá-la (BOBBIO, 2006, p. 223).

O positivismo jurídico como ideologia representa aspecto que norteia a expressão da conduta avaliativa que o indivíduo assume mediante uma determinada situação. Tem-se que a ideologia juspositivista é traduzida na obrigação absoluta de acatar a lei enquanto tal. A explicação desse pensamento é observada no surgimento do Estado moderno, cujo direito estatal legislativo foi visto com o único ordenamento normativo existente. Isto porque a decadência do feudalismo ocasionou a baixa nas relações de dominância do senhor feudal para com o seu servo e abriu espaço para relações mercantis adotadas pela burguesia. Nesse contexto, acompanhando o dinamismo da sociedade, tornou-se necessário a implementação de legislações, principalmente relacionadas ao novo mundo de compra e venda e circulação de riquezas (BOBBIO, 2006).

Betham, um dos precursores do positivismo inglês e idealizador do Direito Comum, questionou veemente tal direito, de modo que tentou adequá-lo às suas ideias; caracterizando um comportamento avaliativo e ideológico trazido por Bobbio. De acordo com ele, o Estado seria a manifestação mor do Espírito no seu devir histórico e, por conseguinte, o fim último ao qual as pessoas estão subordinadas (BETHAM, 2006 apud BOBBIO, 2006).

Bobbio ressalta que o dever absoluto de acatar a lei molda os hábitos humanos, fazendo nascer a ética. O pensador apresenta quatro justificativas para a ideia de obediência absoluta às leis. A primeira delas é denominada concepção cética, ou realista da justiça, segundo a qual a justiça representa o querer do mais forte. Portanto, aquilo que emana do Estado poderia ser considerado justo. Jean-Jacques Rousseau, em sua obra Contrato Social, criticava esta linha de pensamento ao dizer que:

Não podemos afirmar o dever absoluto ou de consciência de obedecer à lei: se esta é apenas a expressão da vontade do mais forte, eu a obedeço só porque não posso fazer diferentemente (isto é, não por convicção, mas por constrição) e apenas enquanto não possa fazer diferentemente (a saber, enquanto quem comanda seja efetivamente o mais forte) (ROUSSEAU apud BOBBIO, 2006, p. 227-228).

A segunda justificativa, seria a concepção convencionalista da justiça, de acordo com a qual a justiça é objeto de acordo entre os homens, que decidem, em comunhão, o que é justo. Em sequência, tem-se a concepção a sagrada autoridade, que estabelece que o poder de mando resta fundado em uma investidura sagrada. Por fim, há a concepção do Estado ético, produto da laicização da concepção sagrada, sob a qual o Estado apresenta-se como agente catalisador da eticidade. Aqui a ética, portanto, pressupõe a submissão dos súditos ao mando do Estado (BOBBIO, 2006).

Atribui-se certo radicalismo à concepção supra, que imbui o Estado de caráter praticamente divinatório e fonte primária da ética. Por isso, Bobbio cita também o positivismo ético em sua forma mais moderada. Esse, diferentemente, afirma que o direito possui um valor (ao passo que se valora determinado fato, o plano da cognoscitividade é ultrapassado e o campo ideológico é alcançado), vital para o estabelecimento da ordem. A lei, por conseguinte, é a mais perfeita forma do direito, única capaz de estabelecer plena ordem, pelo motivo de estar constituída de fatores não pertencentes às outras fontes do direito, quais sejam:

1. a) Generalidade da Lei: a lei é geral no sentido de que disciplina o comportamento não de uma única pessoa, mas de uma classe de pessoas. Deste modo, a lei realiza um outro aspecto ou concepção da justiça: a igualdade formal, que consiste em tratar igual as pessoas que pertence à mesma categoria. b) Abstração da Lei: a lei é abstrata no sentido de que comanda não uma ação singular, mas uma categoria de ações. De tal modo ela realiza uma exigência de fundamental importância para que a ordem possa ser conservada: a certeza jurídica, que consiste na possibilidade de cada pessoa poder, no âmbito de um sistema normativo, prever as consequências do próprio comportamento (BOBBIO, 2006, p. 231-232).

Resumindo, o positivismo jurídico enquanto ideologia traduz o absoluto dever de obediência às leis, seja pela crença de que o Estado tem a missão superior de fazer o bem, seja pela crença de que as leis são o suprassumo no quesito estabelecer a ordem.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depreende-se, de todo o apanhado de conhecimentos expostos até aqui, que o positivismo jurídico, buscando se afastar das ilações do jusnaturalismo quanto à realidade e ao direito, consubstancia-se em três diferentes categorias, quais sejam: método, teoria e ideologia. Em uma célere análise dos preceitos de Norberto Bobbio, resta claro que a finalidade do positivismo jurídico enquanto método é preservar a cientificidade do direito. Através de uma abordagem avalorativa, resguardado o juízo de fato e excluindo o juízo de valor, compreende-se e explica-se os fenômenos sem influir opinião sobre outrem.

Em tese, esta visão objetiva propiciaria uma mais coerente interpretação de normas pelo estudioso do direito. A metodologia é o cerne de qualquer ciência, a matriz, o princípio basilar. Porém, após definido tal panorama, é necessário analisar as demais dimensões do juspositivismo, como a teórica que, por sua vez, possui como pilares as teorias coativa, legislativa e imperativa do Direito; e em plano secundário, as teorias da coerência, da completitude e da interpretação lógica ou mecanista do Direito. Aquelas primeiras, mais marcantes, definem o sentido de teoria do positivismo jurídico, ao arregimentarem que o direito é uma força de coação, de qualidade imperativa e que parte unicamente das leis.

Concretizado o ordenamento jurídico positivado e todas as teorias que o regimentam, surge o positivismo jurídico como ideologia, definido por Bobbio como o dever absoluto de obedecer à lei. Quando o Estado, o único capaz de legislar e produzir direito, institui normas, que moldam o comportamento humano e fazem nascer a ética, o desejo de seguir os preceitos legais.

Em resposta ao questionamento central do estudo, a comunicabilidade entre os três aspectos fundamentais estabelecidos na obra de Bobbio repousa justamente no fato de que cada um deles revela uma face do positivismo jurídico, sendo necessária sua unificação para construção e produção do Direito positivo tal como é. A mero quesito de exemplificação, veja-se como as teorias coativa e imperativa, ao retratarem o direito como força capaz de obrigar o homem, conversam muito bem com a ideologia cética. E como o positivismo enquanto metodologia, hermético e voltado ao real, muito bem serve ao jurista imaginado na teoria mecanicista, de precisão robótica. Por isso, um aspecto pressupõe o outro. Para além, fica clara a genialidade de Bobbio em traduzir a complexidade do positivismo em apenas três elementos.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995.

_________. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006.

_________. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

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[1] Pós-graduado em Perfis Criminais e Comportamentais pela Faculdade IBRA de Brasília (FABRAS) e em Direito da Família pela Faculdade IBRA de Tecnologia (FITEC). Graduado no curso de Bacharelado em Direito pela Universidade Federal de Roraima. ORCID: 0000-0003-0322-6198.

Enviado: Abril, 2022.

Aprovado: Abril, 2022.

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