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Liberdades Constitucionais e Prisão Disciplinar Militar: Comentários à Lei 13.967/2019

RC: 47041
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

GOLDACKER, Keila Maria Mafioletti [1]

GOLDACKER, Keila Maria Mafioletti. Liberdades Constitucionais e Prisão Disciplinar Militar: Comentários à Lei 13.967/2019. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 03, Vol. 06, pp. 159-180. Março de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/liberdades-constitucionais

RESUMO

A República Federativa do Brasil, constituída como um Estado Democrático de Direito, assegura, por meio de sua Lei Maior, um vasto rol de direitos aos brasileiros e estrangeiros residentes. Um deles é o de liberdade de locomoção, previsto no inciso XV do artigo 5°, tendo como garantia para sua efetividade o habeas corpus, contido no inciso LXVIII do mesmo diploma legal. O trabalho apresentado consiste em uma abordagem essencial dos direitos e liberdades constitucionais, distinguindo-os das garantias, focando-se no direito constitucional à liberdade de locomoção assim como no mecanismo necessário para assegurá-la, em seu campo de aplicação e nos procedimentos. Posteriormente, busca-se explanar sobre a organização básica das instituições militares, as quais se estruturam nos princípios milenares da hierarquia e disciplina e recorrem a estes para restringir a aplicação da referida garantia constitucional. Explica-se, brevemente, sobre o procedimento para a apuração da falta disciplinar bem como sobre a sua eventual correção por meio da aplicação da punição considerada correspondente pela autoridade competente. Abranger-se-ão, também, os aspectos teóricos e práticos do habeas corpus, sua eventual possibilidade de aplicação na seara militar bem como sua (im)possibilidade de aplicação após a entrada em vigor da Lei n° 13.967, de 26 de dezembro de 2019, a qual vedou a aplicação de medida restritiva ou privativa de liberdade no processo administrativo disciplinar militar. Por fim, foca-se no entendimento jurisprudencial e doutrinário recente e atual sobre o tema assim como sobre a alteração legislativa oriunda do Projeto de Lei n° 148/2015, proveniente da Câmara dos Deputados, o qual inovou a ordem jurídica brasileira ao quebrar paradigmas e contemplar policiais militares e bombeiros militares como amplos titulares dos direitos e garantias constitucionais.

Palavras-chave: Prisão disciplinar militar, liberdade de locomoção, Habeas Corpus, Lei n° 13.967/2019.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa apresentar uma abordagem concisa referente à possibilidade de impetração de habeas corpus nos casos de punições disciplinares militares, sejam eles antes ou depois da entrada em vigor da Lei n° 13.967, de 26 de dezembro de 2019. Busca-se, dessa forma, refletir sobre o exame de casos concretos sobre o tema, sobretudo os que assistem à materialização de precedentes na seara do Direito Constitucional e do Direito Militar. À vista disso, o trabalho está amparado em uma pesquisa exploratório-bibliográfica, baseando-se no exame detalhado da legislação, doutrina e jurisprudência atuais, as quais puderam acrescentar sapiência e auxiliar na busca pelo propósito desejado. Tratando-se da estrutura, divide-se em quatro indispensáveis capítulos. No primeiro abordar-se-ão os direitos e garantias fundamentais, suas características históricas, dando enfoque ao direito constitucional à liberdade de locomoção.

Seguidamente, será tratado o instituto jurídico do habeas corpus, sua origem, cabimento, além da previsão constitucional e infraconstitucional. Enfoca-se na sua natureza jurídica, pressupostos e competência para julgamento. O terceiro capítulo versa sobre a atividade policial militar, suas peculiaridades, regimentos e mais especificamente sobre meios destinados à preservação da disciplina e hierarquia em âmbito interno, concretizados em forma de sanções disciplinares, as quais podem (ou podiam), inclusive, restringir a liberdade de locomoção do militar. Derradeiramente, como abordagem principal do trabalho aqui apresentado, propõe-se a argumentação acerca do cabimento ou não do habeas corpus nas prisões disciplinares de natureza militar, antes ou depois da entrada em vigor da lei n° 13.967/19, refletindo, portanto, sobre o que mudou com a nova previsão jurídica e sobre os efeitos que a lei trará às punições já cumpridas ou em andamento.

2. DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A Constituição Federal de 1988 cataloga, em seu Título II, os Direitos e as Garantias Fundamentais em consideráveis conjuntos, dividindo-os em Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, Direitos Sociais, de Nacionalidade e os Direitos Políticos. Tratando-se do primeiro grupo (o qual será aprofundado no presente trabalho), registra-se que a jurisprudência e a doutrina majoritárias manifestam-se no sentido de que os Direitos e Garantias Individuais e Coletivos não se restringem ao disposto no artigo 5º da Lei Maior, estando dispersos por todo o ordenamento jurídico, inclusive internacional. Um dos métodos utilizados para a classificação dos Direitos Fundamentais é a geração, onde ele se encontra, também chamada de “dimensão” pela doutrina contemporânea (BONAVIDES, 1997). Atualmente, utiliza-se este último termo por se acreditar que o surgimento de uma nova “dimensão” não leva ao abandono de outra adotada anteriormente.

As dimensões dos Direitos Fundamentais tornaram-se manifestas a partir da Revolução Francesa, cujo lema de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” deu início à primeira dimensão dos direitos fundamentais. Passa-se de um Estado considerado, até então, autoritário para um Estado de Direito, cuja prioridade é a proteção das liberdades individuais. Surge, neste período, o foco do presente trabalho: o Habeas Corpus Act (1679), considerado um grande marco na história das liberdades individuais. Ademais, outros institutos neste período contribuíram para a consolidação dos direitos fundamentais de primeira geração, como a Bill of Rights (1688) e as Declarações Francesa (1789) e Americana (1776). A partir do século XIX, a Revolução Industrial Europeia conduziu ao surgimento dos direitos fundamentais de segunda dimensão.

Nesse período, sucederam-se diversos protestos de cunho trabalhista e assistencial, os quais despontaram em grandes movimentos em Paris e na Inglaterra. Ainda nesse período ocorreu a Primeira Guerra Mundial. A segunda dimensão é marcada pelos direitos sociais, econômicos, culturais e coletivos. As Constituições dessa época (a exemplo da Constituição Brasileira, de 1934 e a do México, de 1917) passam a exigir do Estado assistência material à população, pois abordavam direitos de titularidade coletiva, pertencentes a todos os indivíduos, sem distinção. Profundas alterações em âmbito internacional dão início aos direitos fundamentais de terceira dimensão, abrangendo todo o crescimento científico e tecnológico, o qual causou profundas modificações nos cenários sociais e econômicos. A preocupação mundial com a preservação do meio ambiente bem como o direito assegurado ao consumidor estão inseridos nesta nova esfera.

Deve-se reiterar, ainda, que os direitos individuais de terceira dimensão também estão intimamente relacionados aos direitos de solidariedade e fraternidade, e, assim, são inerentes à proteção do gênero humano em si e à universalidade. Alguns autores, como Bobbio (1992) defendem uma quarta dimensão de direitos, pertencente ao campo da engenharia genética. Para o doutrinador italiano, “…já se apresentam novas exigências, que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica” (BOBBIO, 1992, p. 51). Por fim, Bonavides (1997) defende o direito à paz como direito autossuficiente, a ser classificado como de quinta dimensão. Em sua concepção, “a paz é axioma da democracia participativa, ou ainda, supremo direito da humanidade”. (BONAVIDES, 1997, p. 593).

2.1 DIFERENÇA ENTRE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Conforme já mencionado, o presente trabalho versa sobre a aplicação dos Direitos e Garantias Fundamentais a situações específicas de cerceamento de direitos, mais precisamente do instrumento destinado a garantir o direito de liberdade de locomoção do indivíduo frente à sanção disciplinar de cunho militar. Abordar-se-á por partes. A Constituição Federal, em seu artigo 5º, explana sobre os direitos e garantias fundamentais. Embora grande parte da população acredite que se trata de sinônimos, é errado afirmar que os direitos se equivalem às garantias. Direitos (individuais ou coletivos) são as vantagens ou bens discriminados no texto constitucional. Trata-se de normas de conteúdo declaratório que exprimem a existência de um determinado direito.

Já as Garantias são normas assecuratórias, isto é, legítimos instrumentos por meio dos quais é assegurado o exercício do direito declarado, ou, ainda, a sua reparação, caso ele seja violado. Pode-se notar essa clara diferença a partir de diversos incisos do artigo 5° da Constituição Federal, como, por exemplo, o inciso VI, que prevê a “inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença (direito), sendo assegurando o livre exercício dos cultos religiosos (garantia)”. Por fim, o parágrafo 1º do supramencionado artigo estabelece que a aplicação das normas definidoras dos direitos e garantias será imediata assim como o rol do artigo 5º é meramente exemplificativo, visto que tais direitos estão esparsos por todo o ordenamento jurídico, inclusive em tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte.

2.2 DO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO

A liberdade de locomoção está disciplinada no inciso XV do artigo 5º da Constituição Federal, o qual assevera que “é livre a locomoção em território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. Ainda, salvo algumas exceções abordadas a seguir que permaneciam até a entrada em vigor da Lei n° 13.967/19, “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente” (inciso LXI do mesmo dispositivo constitucional). Há que se fazer algumas ressalvas para este direito, o qual poderá limitado quando na vigência do Estado de Defesa. Nesse caso, cria-se a possibilidade de prisão por crime cometido contra o Estado, na forma do artigo 136, parágrafo 3º, inciso I, da Constituição Federal. Ainda, o direito à liberdade de locomoção poderá ser restrito na vigência do Estado de Sítio, quando, nesta situação, tornar-se possível obrigar determinada pessoa a permanecer em lugares específicos (artigo 137, I, do mesmo dispositivo legal).

3. ASPECTOS HISTÓRICOS E JURÍDICOS DO HABEAS CORPUS

O habeas corpus, garantia destinada a assegurar o direito à liberdade de locomoção, possui origem no latim e “em seu sentido literal, significa ‘tome o corpo’ ou ‘exiba o corpo’, ou ainda ‘apresente o corpo, a pessoa’, o que quer dizer: apresente a pessoa presa ao juiz, a fim de que seja procedido o seu julgamento” (MIRABETE, 2002, p. 709).  O supracitado autor entende que o instituto jurídico do habeas corpus é entendido como uma ordem de libertação, a qual objetiva tutelar a liberdade física do indivíduo, abrangendo a de ir, vir e a de ficar (2002, p. 709). Tourinho Filho (2004, p. 826) explica que “o instituto se originou na Magna Carta da Inglaterra, disposta no capítulo XXIX, datada de 19 de junho de 1215, outorgada pelo Rei João Sem Terra, motivado por pressão do clero, condes e barões”. Porém, foi somente em 1967 que sua utilização foi amplificada a partir do Habeas Corpus Act, chegando ao Brasil em 1832 e se inserindo no contexto jurídico nacional.

3.1 DA NATUREZA JURÍDICA, COMPETÊNCIA E PRESSUPOSTOS

O habeas corpus, considerado ordem de libertação, é defendido pela doutrina contemporânea como uma ação constitucional de caráter processual. Além de estar em um capítulo da Lei Maior destinado aos direitos e garantias fundamentais, tal instituto é visto como uma espécie de recurso no Direito Processual Penal. É pacífico o entendimento de que se trata de uma ação independente, a qual não se vincula a nenhum processo em andamento, possuindo preferência de julgamento sobre qualquer outro instrumento, visando tutelar a liberdade de locomoção, bem jurídico de proteção especial pelo ordenamento pátrio. Ainda, por possuir natureza jurídica de caráter penal e procedimento especial, tal remédio constitucional é isento de custas. Dispõe o artigo 654, parágrafo 2º, do Código de Processo Penal, que “os juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício o habeas corpus, quando, no curso do processo, verificarem que alguém sofreu ou está na iminência de sofrer coação ilegal”.

Ainda, quando a ordem seja concedida de ofício, tal decisão estará sujeita ao reexame necessário, conforme o inciso I do artigo 574 desta mesma lei. Compete, originariamente, ao Supremo Tribunal Federal, apreciar e julgar as ações de habeas corpus quando tiver cerceada sua liberdade de locomoção o Presidente da República e seu Vice; membros do Congresso Nacional; Ministros de Estado; Procurador-Geral da República; Comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica; além dos membros dos Tribunais Superiores, Tribunal de Contas da União e chefes de missão diplomática em caráter permanente (artigo 102, I, “d”, da Constituição Federal). Terá competência, por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça, quando o remédio constitucional visar a proteção da liberdade de locomoção de Governador de Estado; Desembargador; membro do Tribunal de Contas do Estado e do Distrito Federal; membro do Tribunal Regional Federal e Tribunal Regional Eleitoral; membro do Conselho ou Tribunal de Contas do Município; ou, ainda, do Ministério Público da União (Artigo 105, I, “c”, da Constituição Federal).

Ao Tribunal Regional Federal compete o julgamento do habeas corpus impetrado contra ato de autoridade judiciária federal. A Carta Magna, em seu artigo 108, inciso VII, assegura a competência em matéria criminal ou “quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição”. No âmbito militar, será impetrado junto ao Tribunal quando a coação for proveniente de ato oriundo de qualquer autoridade militar estadual ou se referir a processo de competência desta justiça, salvo exceções existentes até 26 de dezembro de 2019, as quais serão abordadas a seguir. Nessa seara, qualquer pessoa (e inclusive o membro do Ministério Público) pode interpor ação diretamente em segunda instância.  No que concerne aos pressupostos do habeas corpus, Nucci (2013) defende que a liberdade de locomoção nada mais é do que um direito indispensável a todo indivíduo. Nesse diapasão:

A liberdade de locomoção é um direito que só pode ser cerceado no caso de prisão em flagrante ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, não se permitindo averiguações ou qualquer outra espécie de procedimento que não esteja previsto em lei. No Estado de Direito, a liberdade é a regra e a prisão é uma medida de exceção (2013, p. 978).

Registra-se que a legislação não estabelece assimetria entre autoridade coatora pública ou particular, sendo possível, dessa forma, impetrar o habeas corpus contra qualquer um que vier a constranger a liberdade de locomoção de outrem. Outro pressuposto é a impossibilidade de se realizar produção de provas, pois o seu rito pressupõe que estas já estejam pré-constituídas, haja vista a possibilidade de concessão de liminar em favor do impetrante. Por conseguinte, tais pressupostos (tanto de aplicação, como de admissão) podem ser encontrados na Constituição Federal, Código de Processo Penal e, também, na legislação militar brasileira, esta a ser abordada no próximo capítulo.

4. DA ATIVIDADE POLICIAL MILITAR

Reitera-se que o artigo 144 da Carta Magna dispõe que a segurança pública, no âmbito dos Estados, está incumbida a entidades como as polícias civis, militares e aos corpos de bombeiros militares, sendo estes organizados e subsidiados pelo governo estadual, com exceção do Distrito Federal, o qual é organizado e mantido pela União (artigo 21, XVI). O servidor público militar, dada a sua peculiaridade, em hipótese alguma deve ser assimilado aos demais. É submetido a regime jurídico especial, com estrutura que destoa daquela comum ao funcionalismo público, além de estar inserido em estrutura baseada nos princípios milenares da hierarquia e disciplina.

Sua peculiaridade não se restringe, apenas, ao manuseio frequente de material bélico, mas sim ao exercício de atividade de alto risco, (risco de morte, inclusive), a qual pode lhe custar à vida, seja em treinamento, em situação de serviço diário ou, até mesmo, em caso de guerra. A Lei n° 6.880, de 9 de dezembro de 1980 (Estatuto dos Militares), dispõe, em seu artigo 3º, que “Os membros das Forças Armadas, em razão de sua destinação constitucional, formam uma categoria especial de servidores da Pátria e são denominados militares”. Os militares estaduais, por sua vez, antes mesmo da promulgação da Constituição Federal de 1988 já eram regidos pelo Decreto-Lei n° 667, de 2 de julho de 1969, o qual assevera:

Art. 3° – Instituídas para a manutenção da ordem pública e segurança interna nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, compete às Polícias Militares, no âmbito de suas respectivas jurisdições:

a) executar com exclusividade, ressalvadas as missões peculiares das Forças Armadas, o policiamento ostensivo, fardado, planejado pela autoridade competente, a fim de assegurar o cumprimento da lei, a manutenção da ordem pública e o exercício dos poderes constituídos.

b) atuar de maneira preventiva, como força de dissuasão, em locais ou áreas específicas, onde se presuma ser possível a perturbação da ordem;

c) atuar de maneira repressiva, em caso de perturbação da ordem, precedendo o eventual emprego das Forças Armadas;

d) atender à convocação, inclusive mobilização, do Governo Federal em caso de guerra externa ou para prevenir ou reprimir grave perturbação da ordem ou ameaça de sua irrupção, subordinando-se à Força Terrestre para emprego em suas atribuições específicas de polícia militar e como participante da Defesa Interna e da Defesa Territorial;

e) além dos casos previstos na letra anterior, a Polícia Militar poderá ser convocada, em seu conjunto, a fim de assegurar à Corporação o nível necessário de adestramento e disciplina ou ainda para garantir o cumprimento das disposições deste Decreto-lei, na forma que dispuser o regulamento específico.

Com a promulgação da Carta Magna, o Constituinte preocupou-se em separar um capítulo específico dedicado às Forças Armadas, no qual se distinguem seus membros dos demais integrantes da Administração Pública. Ainda, a Lei Maior estabelece, em seu artigo 142, que “as Forças Armadas são constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica”, caracterizando-as como instituições regulares e permanentes em âmbito nacional, chefiadas pelo Presidente da República. Ainda, segundo o mesmo artigo, tais instituições são destinadas à defesa da Pátria, da lei e da ordem assim como à garantia dos poderes constitucionais. Nesse contexto, o parágrafo 6º do artigo 144 dispõe que os militares dos Estados constituem forças auxiliares e a reserva do Exército, estando subordinados aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal.

(…) isso significa que em caso de estado de emergência ou estado de sítio, ou em decorrência de uma guerra, os integrantes destas corporações poderão ser requisitados pelo exército para exercerem funções diversas da área de segurança pública (ROSA, 2001).

Dessa forma, conclui-se que os militares também são servidores públicos que, por sua vez, subdividem-se em duas categorias: os militares federais e os militares dos Estados, Territórios e do Distrito Federal.

4.1 DA ESTRUTURA ORGANIZACIONAL E REGIME JURÍDICO MILITAR

Conforme já mencionado, os militares submetem-se a um regime estruturado nos princípios da hierarquia e da disciplina. Faz-se necessário diferenciar ambas, utilizando o artigo 14 do Estatuto dos Militares (Lei n° 6.880, de 09 de dezembro de 1980):

Art. 14. A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico.

§ 1º A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antiguidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à sequência de autoridade.

§ 2º Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo.

Assim, disciplina e hierarquia configuram-se como instrumentos imprescindíveis à manutenção das instituições militares, sujeitando, então, os seus agentes a responsabilidades e prezando sempre pela manutenção dos poderes disciplinar e hierárquico na Administração Pública. O Estatuto dos Militares, ao defini-los como integrantes de uma “categoria especial”, outorga-lhes, em seu artigo 50 e seguintes, os direitos e as prerrogativas e, também, lhes impõe deveres e obrigações (constantes no artigo 31 e seguintes), os quais estão previstos, ainda, no texto constitucional e na legislação esparsa. Uma dessas peculiaridades é a (im)possibilidade de impetração do habeas corpus quando houver a aplicação das punições disciplinares em sede militar.

Nesse contexto, torna-se válido e relevante ressaltar que o artigo 142, em seu parágrafo 2º, da Constituição Federal, entende que “não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares”. Assim sendo, deve-se destacar que a doutrina e, também, a jurisprudência, têm defendido que tal vedação refere-se, apenas, ao mérito das punições, não abrangendo aspectos de legalidade extrínsecos ao ato. Tal assunto será aprofundado adiante. Por fim, a Constituição Federal classifica os servidores militares (da União os dos Estados) como públicos latu sensu, distinguindo-os, entretanto, dos servidores civis (inclusive em artigos diferentes do texto constitucional), dada sua condição peculiar já explanada no presente trabalho.

4.2 DA LEGISLAÇÃO CASTRENSE

O Estatuto dos Militares, anterior à Ordem Constitucional de 1988, foi recepcionado pela Lei Maior naquilo que era compatível entre ambos. Alterado por três vezes (sendo a última pelo Decreto n° 4.346/02), permanece regulamentando as obrigações, direitos e deveres dos integrantes das Forças Armadas, consoante com o seu artigo primeiro. As Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares estaduais e do Distrito Federal, por sua vez, são regidos por estatutos próprios, os quais não destoam daquele que rege as Forças Armadas, entretanto, adaptam-se às suas peculiaridades locais. As Leis n° 1.943, de 23 de junho de 1954 (Código da Polícia Militar do Paraná) e 16.575, de 28 de setembro de 2010, disciplinam sobre a organização e funcionamento da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Paraná.

Classifica este como uma unidade militar integrante daquela, sendo, contudo, administrativamente autônoma na execução de suas missões institucionais. Tanto as Forças Armadas como as corporações dos Estados e do Distrito Federal organizam-se em postos e graduações, ordenação em níveis diferenciados da autoridade dentro da hierarquia militar, os quais permitem a manutenção do poder hierárquico e disciplinar, inerentes à Administração Pública. Além da legislação já mencionada, faz-se necessário citar o Regulamento Disciplinar do Exército – RDE (Decreto-Lei n° 4.346, de 28 de agosto de 2002).

Sobre ele é preciso esclarecer que, de forma conjunta com o Código Penal Militar (Decreto-Lei n° 1001, de 21 de outubro de 1969), tem como escopo principal regulamentar as transgressões e crimes inerentes à atividade militar, seja em tempo de guerra ou de paz. Por fim, cada unidade da federação pode instituir seu próprio regulamento disciplinar. No Paraná, o Decreto Estadual n° 7.339/2010 estabelece que o “Anexo I” do Regulamento Disciplinar do Exército, que dispõe sobre a relação de transgressões disciplinares, deve ser aplicado no âmbito da corporação.

4.3 DA CORREÇÃO DISCIPLINAR

O Regulamento Disciplinar do Exército, em seu artigo primeiro, eleva como objetivo “especificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas a punições disciplinares, comportamento, recurso e recompensas”. A transgressão disciplinar, conceituada no artigo 14 do supracitado dispositivo legal, define-se como “toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, (…) que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe”. Consoante, Assis (2013, p. 120) frisa que “é um ilícito de natureza exclusivamente administrativa, no qual se ferem os princípios-base da organização das Forças Armadas: a hierarquia e a disciplina”. O autor, ex-oficial da Polícia Militar do Paraná e atualmente Promotor da Justiça Militar, diferencia crime militar e transgressão disciplinar:

Logo, a diferença que existe entre o crime militar e a transgressão disciplinar é apenas a intensidade. A punição da transgressão disciplinar tem caráter preventivo, ou seja, pune-se a transgressão da disciplina para prevenir crime militar. A relação que existe entre crime militar e a transgressão disciplinar é a mesma que existe entre crime comum e contravenção penal (ASSIS, 2013, p. 120).

Nota-se, portanto, que a inteligível distinção entre transgressão disciplinar e crime militar é a proporção do fato considerado típico, pautando-se pelos princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade. Ademais, a apuração da transgressão ocorrerá de acordo com o regulamento interno pertencente a cada unidade. O crime, por sua vez, será apurado de acordo com o contido no Código Penal Militar e no Código de Processo Penal Militar.  O artigo 23 do Regulamento Disciplinar do Exército – RDE – dispõe que a punição disciplinar objetiva a preservação dos princípio basilar da disciplina, devendo levar em consideração o viés educativo trazido ao punido e aos demais militares estaduais. Meirelles (1995) ensina que para que haja legalidade na apuração da transgressão disciplinar é imprescindível que haja observância à competência da autoridade responsável para tal.

Tal competência não diz respeito, portanto, apenas ao seu grau hierárquico, mas sim pelo cargo ocupado por ela. No âmbito militar, compete ao comandante da unidade supervisionar a apuração e aplicar a punição correspondente ao infrator. Destarte, não haverá quaisquer violações aos princípios da legalidade e hierarquia caso um Coronel[2] aplique inicialmente a punição disciplinar e, ainda, o recurso correspondente quando julgado a posteriori por um Major³, estando este no comando da unidade militar. Assim sendo, torna-se válido destacar, em relação às sanções disciplinares, que estas cindem-se em dois grupos: as meramente punitivas e as demissórias.

Leciona Martins (1996) que as sanções meramente punitivas possuem a função de reeducar o militar infrator, entretanto, sem a finalidade de exclusão da corporação. As demissórias, por sua vez, afastam o militar, em grau definitivo, da função por ele ocupada, motivadas pelo cometimento de uma transgressão específica ou de acordo com alguns critérios avaliados. O que determinará a dosimetria da punição será, conforme o artigo 16 do RDE, a soma dos critérios avaliados pela autoridade competente, como a pessoa do transgressor, a natureza dos fatos, as causas que a determinaram e as consequências que dela possam advir.

4.4 DA (NÃO) RESTRIÇÃO DE LIBERDADE: ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI N° 13.967/19

As sanções chamadas meramente punitivas dividem-se em restritivas e não-restritivas de liberdade. As não-restritivas não causam o encarceramento do indivíduo, em nada limitando sua liberdade de locomoção, garantida constitucionalmente. Entretanto, na seara administrativa militar, acarreta efeitos negativos, como a alteração do seu “comportamento” ou perda de “pontos” considerados para a sua promoção funcional. Abordando-se brevemente as duas sanções não-restritivas de liberdade mais conhecidas (advertência e repreensão), utiliza-se o conceito contido no Regulamento Disciplinar do Exército. Advertência, de acordo com o artigo 25, consiste na punição mais branda, correspondendo em admoestação verbal, a qual será feita diretamente ao infrator. A repreensão, por sua vez e de acordo com o artigo 27 do mesmo diploma legal, é um ato de censura feito energicamente ao transgressor, de forma escrita e inserida na ficha funcional pessoal, de controle interno da corporação.

As penas consideradas restritivas de liberdade do militar acarretam o cerceamento legal do seu direito de ir e vir, previsto no artigo 5º, inciso XV, da Constituição Federal. Antes de se explanar sobre a mudança legislativa, abordar-se-ão as penas vigentes até 26 de dezembro de 2019. As penas restritivas de liberdade do militar subdividiam-se da mais branda para a mais grave, em detenção e prisão. Chaves (2002, p. 38) disciplina que “a detenção se trata de uma espécie de cerceamento da liberdade do militar que fora sentenciado”. Este deverá permanecer nas dependências da unidade, não sendo necessário colocá-lo em cela específica, podendo, inclusive, ser escalado em atividades de cunho interno.

Contudo, não poderá ser incluído na escala de serviço. A prisão, segundo Cretella Júnior (1996, p. 553) “é o apoderamento da pessoa física do homem, privando-o de sua liberdade, impossibilitando-o de se locomover.” Ainda no entendimento do autor, importa ofensa à sua liberdade física e individual, abrangendo não só o aspecto corporal, mas também o intelectual. Tal punição manterá o servidor militar em local específico por um prazo determinado e nada se confunde com a prisão de natureza penal ou processual penal. Nesse diapasão, o artigo 29 do RDE é prudente ao impor critérios específicos para o cumprimento da prisão disciplinar militar:

Art. 29.  Prisão disciplinar consiste na obrigação de o punido disciplinarmente permanecer em local próprio e designado para tal.

§ 1º Os militares de círculos hierárquicos diferentes não poderão ficar presos na mesma dependência.

§ 2º O comandante designará o local de prisão de oficiais, no aquartelamento, e dos militares, nos estacionamentos e marchas.

§ 3º Os presos que já estiverem passíveis de serem licenciados ou excluídos a bem da disciplina, os que estiverem à disposição da justiça e os condenados pela Justiça Militar deverão ficar em prisão separada dos demais presos disciplinares.

§ 4º Em casos especiais, a critério da autoridade que aplicar a punição disciplinar, o oficial ou aspirante-a-oficial pode ter sua residência como local de cumprimento da punição, quando a prisão disciplinar não for superior a quarenta e oito horas.

§ 5º Quando a OM não dispuser de instalações apropriadas, cabe à autoridade que aplicar a punição solicitar ao escalão superior local para servir de prisão.

Ainda no contexto da prisão, faz-se necessário lembrar que devem ser respeitados os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana do militar assim como ressalvados os direitos constitucionais garantidos ao seu defensor[3]. A Lei n° 13.967, de 26 de dezembro de 2019, sancionada sem vetos pelo então Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, trouxe consigo a ruptura de paradigmas até então mantidos pelo regime militar, alterando o artigo 18 do Decreto-Lei n° 667, de 02 de julho de 1969. O referido dispositivo legal veda todo e qualquer tipo de medida privativa ou restritiva de liberdade aplicada em processo disciplinar a policiais e bombeiros militares dos Estados, Distrito Federal e Territórios. De acordo com a nova lei, em até doze meses, os Estados e o Distrito Federal deverão regulamentar e implantar códigos de ética e disciplina próprios:

Art. 2º O art. 18 do Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 18. As polícias militares e os corpos de bombeiros militares serão regidos por Código de Ética e Disciplina, aprovado por lei estadual ou federal para o Distrito Federal, específica, que tem por finalidade definir, especificar e classificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas a sanções disciplinares, conceitos, recursos, recompensas, bem como regulamentar o processo administrativo disciplinar e o funcionamento do Conselho de Ética e Disciplina Militares, observados, dentre outros, os seguintes princípios:

I – Dignidade da pessoa humana;

II – Legalidade;

III – Presunção de inocência;

IV – Devido processo legal;

V – Contraditório e ampla defesa;

VI – Razoabilidade e proporcionalidade;

VII – Vedação de medida privativa e restritiva de liberdade.

Art. 3º Os Estados e o Distrito Federal têm o prazo de doze meses para regulamentar e implementar esta Lei.

Dessa forma, as polícias militares e os corpos de bombeiros militares, até então regidos subsidiariamente pelo Regimento Disciplinar do Exército – RDE, deverão instituir regulamentos próprios, os quais, em hipótese alguma, poderão adotar como penalidade administrativa medidas que privem ou restrinjam a liberdade do militar. Ante o exposto, pergunta-se: e se, descumprindo a legislação federal, o militar for considerado culpado pela autoridade competente e a ele for aplicada medida restritiva de liberdade? Como proceder? A resposta será abordada no próximo capítulo.

5. DO HABEAS CORPUS NAS PRISÕES DISCIPLINARES MILITARES

Conforme já explanado, o habeas corpus foi consolidado como mecanismo destinado a garantir o direito constitucional à liberdade de locomoção do indivíduo, seja ele civil ou militar. Nesse contexto, ensina Gomes Filho (1991, p. 10) que “a liberdade é o estado no qual se supõe estar livre de qualquer limitação ou coação, sempre que agir de maneira lícita, de acordo com os princípios éticos e legais dentro da sociedade”. Por outro lado, os princípios da hierarquia e disciplina militar remetem aos primórdios da civilização, sendo pilares das Forças Armadas e Auxiliares. Fundamentava, dessa forma, a justificativa de boa parte da doutrina que defendia o não cabimento do remédio constitucional no caso das punições disciplinares militares. Ademais, o artigo 466 do Código de Processo Penal Militar reforçava a ideia de incabimento do remédio constitucional nesse contexto:

Art. 466. Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

Parágrafo único. Excetuam-se, todavia, os casos em que a ameaça ou a coação resultar:

a) de punição aplicada de acordo com os Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas;

b) de punição aplicada aos oficiais e praças das Polícias e dos Corpos de Bombeiros, Militares, de acordo com os respectivos Regulamentos Disciplinares.

Várias são as correntes a respeito do assunto, pois, mesmo com a edição da Lei n° 13.967/19, militares ainda podem vir a ser presos disciplinarmente, de forma ilegal. Martins (2002, p. 46) assevera sobre a sutil diferença entre as Forças Armadas e as Auxiliares:

Restrição ao habeas corpus, encontramo-la tão somente no Capítulo II do Título V da Constituição Federal, mais precisamente no núcleo disciplinador das Forças Armadas. Destarte, impõe-se por imperativo ao elemento sistemático e pela incidência das regras de hermenêutica que só não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares praticadas por integrantes das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica). No artigo 142, o legislador estipulou a estes a limitação, donde se conclui que plena é a possibilidade de outorga para os integrantes das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares nas transgressões disciplinares por eles cometidas.

Paralelamente, Cretella Júnior (1995) é defensor de uma segunda corrente, a qual defende que o habeas corpus não pode ser aplicado, de maneira alguma, a qualquer tipo de punição militar, seja em âmbito federal ou dos Estados e Distrito Federal. Para ele, tais punições são necessárias para que se mantenham os princípios hierárquico e disciplinar:

O habeas corpus é direito concedido a todo aquele que sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em suas liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, regra jurídica constitucional que sofre exceção em relação às punições disciplinares militares (…). Excetuam-se, pois, da proteção pelo habeas corpus todos os casos em que o constrangimento ou a ameaça de constrangimento à liberdade e locomoção resultar de punição disciplinar (CRETELLA JÚNIOR, 1995, p. 3046).

No mesmo entendimento, Silva (2000, p. 751) ensina que “a disciplina é, assim, um corolário de toda organização hierárquica. Essa relação fundamenta a aplicação de penalidades que ficam imunes ao habeas corpus, nos termos do artigo 142, parágrafo 2º, da Constituição”. O raciocínio dos supracitados autores, embora pautado em princípios inerentes ao militarismo, é visto como equivocado por uma terceira corrente da doutrina, que defende o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário (artigo 5°, XXXV, da Constituição Federal). Dessa forma, se a segunda corrente fosse a majoritária, entender-se-ia que as autoridades da esfera militar, se assim o desejassem, teriam total controle sobre a liberdade de locomoção dos seus subordinados, independentemente de respeito às garantias fundamentais. Por fim, a terceira corrente, tida como majoritária e adotada pela jurisprudência atual, defende que não caberá habeas corpus tão somente em relação às questões do mérito em si da punição. Adeptos desta corrente defendem a vedação da referida garantia constitucional somente em casos de regular punição, ou seja, quando foram observados todos os requisitos legais inerentes ao procedimento administrativo disciplinar. Nesse diapasão, Assis apud Miranda (1991, p. 480) frisa que:

A transgressão disciplinar refere-se necessariamente a: a) hierarquia, através da qual flui o dever de obediência e de conformidade com instituições, regulamentos internos e recebimentos de ordem; b) poder disciplinar, que supõe a atribuição de direito de punir, disciplinarmente, cujo caráter subjetivo o localiza em fotos, ou somente em alguns dos superiores hierárquicos; c) ato ligado à função; d) pena, susceptível de ser aplicada disciplinarmente, portanto, sem ser pela justiça como justiça.

Sob essa perspectiva, Assis apud Miranda (1991, p. 481) alude que:

É possível, porém, que falte algum dos pressupostos. Se, nas relações entre o punido e o que puniu, não há hierarquia, ainda que se trate de hierarquia acidental prevista por alguma regra jurídica, porque essa é o pressuposto necessário. Basta que se prove não existir tal hierarquia, nem mesmo acidental, para que seja caso de se invocar o texto constitucional e o habeas corpus será autorizado.

Entende-se, dessa forma, que a ausência de qualquer um dos requisitos inerentes à legalidade da punição disciplinar autoriza a impetração junto ao Poder Judiciário do remédio constitucional, pautado no princípio da inafastabilidade de jurisdição. O habeas corpus será cabível, também, nos casos de aplicação de medida restritiva de liberdade quando não há previsão legal, como é o caso da prisão disciplinar aplicada após a entrada em vigor da Lei n° 13.967/2019. Segue este entendimento o Supremo Tribunal Federal, nas seguintes decisões:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. INFRAÇÃO DISCIPLINAR. PUNIÇÃO IMPOSTA A MEMBRO DAS FORÇAS ARMADAS. CONSTRIÇÃO DA LIBERDADE. HABEAS CORPUS CONTRA O ATO. JULGAMENTO PELA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO. IMPOSSIBILIDADE. INCOMPETÊNCIA. MATÉRIA AFETA À JURISDIÇÃO DA JUSTIÇA FEDERAL COMUM. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 109, VII, e 124, § 2º.

I – À Justiça Militar da União compete, apenas, processar e julgar os crimes militares definidos em lei, não se incluindo em sua jurisdição as ações contra punições relativas a infrações (art. 124, § 2º, da CF).

II – A legalidade da imposição de punição constritiva da liberdade, em procedimento administrativo castrense, pode ser discutida por meio de habeas corpus. Precedentes.

(RHC 88.543, rel. min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJ de 27.04.2007)

HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. NÃO CABIMENTO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. REAPRECIAÇÃO DE PROVA. DOSIMETRIA. IMPOSSIBILIDADE.

      1. O Habeas Corpus, instrumento de tutela primacial de liberdade de locomoção contra ato ilegal ou abusivo, tem como escopo precípuo a liberdade de ir e vir.
      2. Deveras, a cognominada doutrina brasileira do Habeas Corpus ampliou-lhe o espectro de cabimento, mercê de tê-lo mantido como instrumental à liberdade de locomoção.
      3. A inadmissibilidade do writ justifica-se toda vez que a sua utilização revela banalização da garantia constitucional ou substituição do recuso cabível, com inegável supressão de instância.
      4. Consectariamente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é assente no sentido de que não cabe Habeas Corpus: a) Nas hipóteses sujeitas à pena de multa (Súmula 693 do STF); b) Nas punições em que extinta a punibilidade (Súmula 695 do STF); c) Nas hipóteses disciplinares militares (art. 142 § 2 da CRFB), salvo para apreciação dos pressupostos da legalidade de sua inflição; (…)”

(HC 108.268, rel. min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJ de 05.10.2011).

Mantendo o mesmo parâmetro, seguem acórdãos recentes, como o do Tribunal Regional Federal (Terceira Região) e do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, respectivamente:

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. MILITAR. PRISÃO. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. – Hipótese dos autos que é de recurso em sentido estrito interposto contra decisão que, em autos de “habeas corpus” impetrado contra ato que aplicou punição consistente em prisão a servidor militar, denegou a ordem. Servidor militar que foi notificado acerca da instauração do procedimento administrativo disciplinar e foi oportunizada a apresentação de defesa, tendo sido dada ciência da decisão aplicando a punição e da decisão que apreciou pedido de reconsideração. Caso em que não se patenteia a alegada violação aos princípios da ampla defesa e do devido processo legal – Via do “habeas corpus” que em matéria de punição disciplinar militar deve cingir-se a questões atinentes à legalidade da medida, descabendo o exame do mérito do ato impugnado. Inteligência do artigo 142, § 2º, da Constituição Federal. Precedentes do STF e do STJ – Recurso desprovido.

TRF-3 – RSE: 1869220184036007/MS. Relator: Des. Peixoto Júnior, Segunda Turma. Data de Julgamento: 24/09/2019.

PROCESSO PENAL MILITAR. APELAÇÃO CRIMINAL. INSURGÊNCIA DO APENADO. DENEGAÇÃO DE HABEAS CORPUS. PRISÃO DISCIPLINAR MILITAR. PEDIDO PARA ANULAÇÃO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR E, ASSIM, A ABSOLVIÇÃO, COM EXCLUSÃO DE TODOS OS REGISTROS EM FICHA FUNCIONAL. IMPOSSIBILIDADE. CONTROLE JUDICIAL LIMITADO AO EXAME DA OBSERVÂNCIA DOS PRESSUPOSTOS DE LEGALIDADE DA DECISÃO DA AUTORIDADE DISCIPLINAR MILITAR. Amparados os fundamentos da decisão na observância do devido processo legal, do princípio do contraditório e da ampla defesa, bem como da publicidade, dentro das peculiaridades do processo administrativo disciplinar militar, a manutenção da sentença é medida que se impõe. RECURSO QUE SE NEGA PROVIMENTO.

TJ-SC – APR: 207416120148240023/SC. Relator: Des. Ariovaldo Rogério Ribeiro da Silva. Primeira Câmara Criminal. Data de Julgamento: 06/12/2018.

Ante todo o explanado, conclui-se que, mesmo após a Lei n° 13.697/19, há entendimento favorável relativo à aplicação do habeas corpus nas transgressões disciplinares, desde que seu objeto seja referente aos requisitos de legalidade da punição. Agora, mais do que nunca, o mesmo deverá ser utilizado quando houver aplicação de medida restritiva ou privativa de liberdade ao militar estadual. O primeiro habeas corpus concedido pelo judiciário paranaense após a entrada em vigor da nova lei foi em favor de um policial militar lotado no município de Pato Branco, sudoeste do Estado.

Na liminar contida nos autos n° 0000020-33.2020.8.16.0013, o magistrado da Vara da Auditoria da Justiça Militar de Curitiba asseverou que é possível a análise de imposição de punição restritiva de liberdade em habeas corpus, limitando-se, contudo, aos requisitos de legalidade da medida. Ademais, segundo o magistrado, “com a publicação da Lei n° 13.967/2019, a possibilidade de prisão por infração militar foi extinta do ordenamento jurídico pátrio. Assim, tornaram-se ilegais as prisões de militares em decorrência de decisões administrativas”.

Deve-se reiterar, também, neste tópico, que os estados e, também, o Distrito Federal, após vigor da nova Lei, possuem um prazo de doze meses para regulamentar e implementar o novo dispositivo (conforme previsto em seu artigo 3°). Nesse sentido, reitera-se, ainda, que a condição de eficácia não impede, portanto, a colocação em liberdade dos que, por medida privativa de liberdade já extinta, tenham sua liberdade de locomoção restringida. No que diz respeito à competência para julgamento e conforme explanado no início do presente trabalho, deve-se compreender que esta será da Justiça Militar quando se tratar de crime militar (artigo 124 da Constituição).

No caso de transgressão disciplinar, compete à Justiça Federal (artigo 109, VII, da Constituição) julgar o habeas corpus quando se tratar de militar federal ou à Justiça Estadual (residualmente) quando se tratar de militar estadual. Por fim, reitera-se que, em relação às punições disciplinares, não haverá mudança no seu processamento ou julgamento (definição, classificação e execução). O que foi vedado é a aplicação da restrição de liberdade em si aos considerados culpados da prática de transgressão disciplinar, contudo, os efeitos secundários (condenação, registro, alteração de comportamento e demais atos administrativos pertinentes) permanecem íntegros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fundamentando-se no que foi explanado no presente trabalho e baseando-se na Constituição Federal e demais fontes relacionadas ao pertinente tema, chega-se às consequentes conclusões: a autoridade judiciária somente expedirá ordem de habeas corpus face à ilegalidade aparente e à violação das normas atinentes ao processo administrativo, como cerceamento da ampla defesa e do contraditório. Do contrário, serão respeitados os princípios milenares da hierarquia e disciplina. Tratando-se do cerceamento de liberdade após a entrada em vigor da Lei n° 13.967/19, o remédio constitucional poderá ser indubitavelmente impetrado, visto a nova ordem jurídica proibir a aplicação de medidas que limitem ou restrinjam a liberdade de locomoção do militar. Nesse caso, trata-se de violação à norma, caracterizando, portanto, flagrante ilegalidade.

Por fim, deve-se esclarecer que, na perspectiva atual, é sabido que a jurisprudência e, também, a doutrina majoritária, possuem como escopo a defesa de que a intervenção do Poder Judiciário somente deve se dar quando estiver presente ofensa aos requisitos de legalidade do ato administrativo em si. Destarte, o órgão não pode negar a prestação jurisdicional ao paciente do habeas corpus (ante o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição), devendo, contudo, justificar os motivos pelos quais será denegada a ordem. Assim, o militar que tiver sua liberdade de locomoção ameaçada ou restringida indevidamente pode, como qualquer outra pessoa, recorrer ao órgão competente para assegurar a garantia deste direito constitucional.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. Código de Processo Penal Militar. Decreto-Lei n° 1.002, de 21 de outubro de 1969. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1002.htm. Acesso em: 03 fev. 2020.

BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 15 fev. 2020.

BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. Decreto-Lei n° 667, de 02 de julho de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del0667.htm. Acesso em: 10 fev. 2020.

BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. Regulamento Disciplinar do exército – Decreto-Lei n° 4.346, de 26 de agosto de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4346.htm. Acesso em: 16 fev. 2020.

BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. Estatuto dos Militares – Lei n° 6.880, de 09 de dezembro de 1980. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6880.htm. Acesso em: 05 fev. 2020.

BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. Lei n° 13.967/2019, de 26 de dezembro de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13967.htm. Acesso em: 01 fev. 2020.

BOBBIO, N. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. 7ª. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1997.

CHAVES, E. C. Habeas Corpus na Transgressão Disciplinar Militar. São Paulo: RCN, 2002.

CRETELLA JÚNIOR, J. Processo Penal para os Exames da OAB.  Rio de Janeiro: Forense, 1996.

ESTADO DO PARANÁ. ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO.  Código da Polícia Militar do Paraná – Lei n° 1.943, de 23 de junho de 1954. Disponível em: https://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/exibirAto.do?action=iniciarProcesso&codAto=14555&codItemAto=385376. Acesso em 16 fev. 2020.

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TOURINHO FILHO, F. da. C. Processo Penal. 25ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

APÊNDICE – REFERÊNCIAS DE NOTA DE RODAPÉ

2. Na Polícia Militar do Paraná, o grau de hierarquia adotado é essencialmente o mesmo do Exército, limitando-se, entretanto, ao posto máximo de Coronel. Conclui-se, portanto, que o posto ocupado por um Major é hierarquicamente inferior ao posto ocupado por um Coronel.

3. Assim dispõe a Lei n° 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia): Art. 7º São direitos do advogado: (…) III – comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis.

[1] Pós-graduada em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER), pós-graduanda em Direito Militar pela Faculdade UNINA, graduada em Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Pato Branco (UNIDEP).

Enviado: Fevereiro, 2020.

Aprovado: Março de 2020.

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