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Possibilidades normativas das diretivas antecipadas de vontade no ordenamento jurídico brasileiro

RC: 77623
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/diretivas-antecipadas

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

PREISNER, Marina Menck [1]

PREISNER, Marina Menck. Possibilidades normativas das diretivas antecipadas de vontade no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 03, Vol. 02, pp. 80-120. Março de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/diretivas-antecipadas, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/diretivas-antecipadas

RESUMO

As Diretivas Antecipadas de Vontade se configuram na declaração que o sujeito, enquanto capaz de discernir sobre os atos de sua vida, faz ao escolher os procedimentos médicos a que será submetido em casos de perda do discernimento e da capacidade cognitiva. Não é um documento pacificado na legislação, na doutrina, tampouco na jurisprudência brasileira. No entanto, entende-se que seja de extrema valia para aqueles que consideram importante decidir sobre a morte. Contemporaneamente, as Diretivas Antecipadas de Vontade têm a função de oferecer ao paciente o poder de recusar tratamentos e, também de escolher – dentre aqueles possíveis – os que lhes convém, invocando e exercendo o princípio constitucional de autonomia privada, da dignidade da pessoa humana e de normas infraconstitucionais. É manifestação escrita, feita por pessoa capaz, de maneira livre e consciente. Considerada na singular convicção que o defende, como negócio jurídico unilateral, gratuito, personalíssimo e revogável. Contudo, a falta de informação sobre o documento acarreta em seu desuso, escassez bibliográfica, dogmática e jurisprudencial. Desta feita, em caso de necessidade, é preponderante que profissionais de saúde tenham conhecimento da existência da declaração, bem como, a cumpram, observando a licitude das determinações, a vontade do paciente e o princípio da beneficência. Ressalta-se que as diretivas fogem do conceito de eutanásia, assim como, evitam a distanásia. Seu propósito é o de garantir ao portador do documento a morte digna. Nesse contexto, aborda-se, por meio de análises bibliográficas, a possibilidade da efetivação da escritura ante dos direitos naturais e do ordenamento jurídico que constitui a sociedade democrática brasileira.

Palavras-chave: Defesa, morte, autonomia de vontade, ortotanásia.

1. INTRODUÇÃO

Todo ser humano possui o direito de escolha, porém somos compelidos a preservar a vida, uma vez que, na conjectura desse escrito, considera-se viver sob o regime da legislação brasileira, que aduz em sua Constituição que a vida é indisponível.

Para a filosofia, a morte é uma surpresa que envolve o ser humano desde que a vida é concebida; para o Direito, representa o fim da personalidade, o fim do processo biológico, seja ele, o que se denomina por “mors omnia solvit”.

Por sua vez, o nascimento não representa vitória sobre a morte, mas simplesmente a continuidade do ciclo da vida e não há certeza que se chegará ao tempo da velhice. Nascer, crescer e morrer é o ciclo natural de toda espécie. Ter a consciência sobre morte é um instituto exclusivamente humano, e, embora esteja presente no cotidiano, a possibilidade do falecimento diante de um corpo saudável parece sempre distante, como se pertencesse a um futuro pouco provável, no entanto, aparenta-se ser mais sensato aprender a conviver com a certeza de que morreremos.

Este trabalho tem o intuito de coletar, organizar e analisar argumentos que possibilitem a aplicação das Diretivas Antecipadas de Vontade em todas as suas espécies, essencialmente a potencialidade do comprovativo para aqueles que desejam decidir sobre sua vida e morte, em especial, àqueles que se preocupam com a morte digna.

Além de divulgar a importância de um documento que é válido em muitos países europeus como Portugal, Espanha e Holanda, traz-se fundamentos principiológicos formais para a aplicação e validação das manifestações declaradas no Brasil.

Caracteriza-se metodologicamente como uma pesquisa bibliográfica, com fulcro constitutivo na literatura jurídica e na literatura especializada voltada especificamente para a área de biodireito.

Salutar é a análise da autonomia privada presente na legislação brasileira, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana, em seus aspectos espaciais e temporais de aplicabilidade, apossando-se também, de outros institutos que podem ser confundidos com as declarações de vontade, como a eutanásia, o suicídio assistido e a distanásia. Nesse interim, preza-se defender a ortotanásia e a dignidade do indivíduo bem como suas escolhas diante cessação da vida, expondo as Diretivas Antecipadas de Vontade, tais quais são empregadas no Brasil, argumentando sobre a licitude e sobre o conteúdo; invocando a titularidade do documento e, sobretudo, tratando da eficácia dos ânimos e desejos do indivíduo que preza pelo seu arbítrio “in limine mortis”.

2. NOÇÕES GERAIS SOBRE A AUTONOMIA PRIVADA E SOBRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Aquilo que é dotado de vida é indivíduo. É arraigado numa singularidade específica, e, não pode deixar de existir, pois aquilo que é único não é passível de divisão.

O ser humano, além de ser indivíduo, é pessoa, portadora de identidade e personalidade, que coexiste com o mundo a sua volta. Possui capacidade de modificar, fazer, refazer, transformar o espaço, e, cabe ao Estado protegê-lo.

De acordo com J. J. Gomes Canotilho (2003), o Estado, como forma de sociedade organizada politicamente traz um ordenamento jurídico que regula a convivência entre seus habitantes formados pelo coletivo humano, ligado por laços históricos, com características culturais comuns. É composto por elementos essenciais, sejam eles: o poder soberano, o povo, o território e suas finalidades e ainda, a Constituição, que se traduz no conjunto de normas que organizam os elementos constitutivos.

De maneira democrática, o constitucionalismo tem por fundamento e objetivo a garantia de um dos grandes consensos éticos estabelecidos – a Dignidade da Pessoa Humana – o que, apesar da vagueza de sua expressão, tem, de acordo com o autor, funcionado como um espelho, pois, cada um projeta nesse princípio sua necessidade, valor e convicção.

No papel interpretativo que possui, o princípio informa o sentido e o alcance dos direitos constitucionais e deve estar afastado de doutrinas abrangentes, sejam elas religiosas ou ideológicas.

Conforme Barroso (2015), a dignidade da pessoa humana deve estar voltada para a laicidade, para a neutralidade política e para a universalidade, ou seja, deve ser compartilhada por todos.

Para levar a bom termo esse propósito, deve-se aceitar uma noção de dignidade humana aberta, plástica e plural. Em uma concepção minimalista, dignidade da pessoa humana identifica o valor intrínseco de todos os seres humanos, assim como a autonomia de cada indivíduo, limitada por algumas restrições impostas a ela em nome de valores sociais ou interesses estatais (valor comunitário). Por tanto, os três elementos que integram o conteúdo mínimo da dignidade, na sistematização aqui proposta são: valor intrínseco da pessoa humana, autonomia individual e valor comunitário. (BARROSO, 2015, p. 286)

A dignidade como autonomia envolve a capacidade de se autodeterminar. Para esse fim, autonomia é no plano filosófico o elemento ético da dignidade, diretamente ligado à razão e ao exercício de vontade individual em conformidade com o ordenamento moral aceito. Significa o poder de valorar a moral e as possibilidades de escolhas existentes sem imposições externas.

No plano jurídico, a autonomia envolve uma dimensão privada e outra pública e possui como pressuposto necessário a satisfação do mínimo existencial.

A autonomia privada é oriunda dos direitos individuais, das liberdades públicas, das escolhas existenciais, da liberdade de consciência, de expressão, entre outras. Por outro lado, a pública, está na origem dos direitos políticos, daqueles de participação da vida pública, identificando aspectos nucleares do direito de cada um de participar politicamente e de influenciar o processo de tomada de decisões, não apenas no ponto de vista eleitoral, mas também por meio de debates públicos e organizações sociais.

Barroso (2015), como muitos outros constitucionalistas, trata do mínimo existencial, conceituando-o como algo que é superior as autonomias, pressuposto para que os seres existam e possam realmente ser livres, iguais e capazes de exercer plenamente sua cidadania. Desta feita, o sujeito precisa ter satisfeitas as necessidades que julga indispensáveis à sua existência física e psíquica, corresponde à essência de todos os direitos fundamentais sociais e, seu conteúdo equivale às condições para o exercício dos direitos individuais e políticos. Assim,

[…] a dignidade está subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais, em cujo âmbito merece destaque o conceito de mínimo existencial. Para ser livre, igual e capaz de exercer sua cidadania, todo indivíduo precisa ter satisfeitas as necessidades indispensáveis à sua existência física e psíquica. Vale dizer: tem direito a determinadas prestações e utilidades elementares. O direito ao mínimo existencial não é, como regra, referido expressamente em documentos constitucionais ou internacionais, mas sua estatura constitucional tem sido amplamente reconhecida. E nem poderia ser diferente. O mínimo existencial constitui o núcleo essencial dos direitos fundamentais em geral e seu conteúdo corresponde às pré-condições para o exercício dos direitos individuais e políticos, da autonomia privada e da pública. […] (BARROSO, 2010, n.p)

Para Luciana Dadalto (2015), em conformidade com Ingo Wolfgang Sarlet (2015), a autonomia individual desfruta de grande importância e está associada a responsabilidades e deveres, mas, não é ilimitada.

Como valor coletivo, destina-se a promover-se com respeito à faculdade dos demais que formam a ordem coletiva, protegendo o direito de terceiros e, por essa razão, o ordenamento jurídico brasileiro protege a vida. Promove, além disso, a proteção do indivíduo contra si próprio, contra atos autorreferentes e, protege os valores sociais, impondo coercitivamente um conjunto de dogmas que correspondem à moral social compartilhada, como a proibição do incesto e da pedofilia, por exemplo, mas, também aqui, existem temas divisivos e questões controvertidas, como a eutanásia.

De acordo com Maria de Fátima Freire de Sá (2015), na filosofia kantiana o indivíduo não tem sua existência determinada pelo conteúdo moral exterior a ele, mas sim pela sua autodeterminação, ou seja, pelo seu próprio agir moral, ou, “imperativo categórico”. Por sua vez, o sujeito é verdadeiramente autônomo no momento em que age a partir de determinações internas, livre de inclinações e vícios de vontade.

Para Kant, o conceito de dignidade fundamenta-se no tratamento que os seres racionais aplicam em igualdade, estabelecendo o espaço e os limites que atuam.

Desse modo, afirma Sá:

De acordo com Kant, todos os seres racionais estão submetidos à lei “que manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outro simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si”, sendo que, em razão do exercício de iguais liberdades buscado pela filosofia transcendental kantiana, “o dever não pertence ao chefe dos reinos fins, mas sim a cada membro e a todos em igual medida”. (SÁ; MOUREIRA, 2015, p. 7)

O filósofo, segundo consta, afirma que o ser humano pode ser determinado por sua razão e também ser dotado de liberdade. Embora, seja contrário à possibilidade de qualquer indivíduo dispor sobre sua própria vida, afirmando que o homem é submetido a obrigações consigo mesmo, pois, seu primeiro dever é para si, em sua natureza. No entanto, admite-se que, no contexto atual da sociedade pluralista, autodeterminada democrática, o desejo de morrer é algo que implica em questões diferentes dos tempos de outrora.

Entende-se que:

A concepção Kantiana acerca da dignidade tem como pressuposto a autonomia ética do ser humano, que engloba a liberdade de que dispõe a pessoa humana de optar de acordo com a razão e de agir conforme o seu entendimento e opção. […] A partir dessas premissas, a doutrina intentou viabilizar o substrato conceitual do princípio-fundamento em tela, novamente a partir da concepção kantiana. Baseou-se nos postulados filosóficos do autor alemão para determinar que o conceito de dignidade, como um valor intrínseco à pessoa humana, deve afastar e mitigar tudo aquilo que puder reduzir a pessoa à condição de um objeto direcionado a um fim. (FACHIN, 2016, p. 6)

Nesse diapasão historiográfico do princípio da autonomia, modernamente, Hupffer (2016), dispõe que, o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas afirma que, a moralidade é um processo de argumentação da sociedade livre e autônoma. Observando o conteúdo da autora, entende-se que o pensador busca reconstruir o dito por Kant e o nexo entre a soberania popular e os direitos humanos, introduzindo um meio termo entre a moral e a vontade.

Para o autor, o direito não pode estar subordinado à moral, como uma hierarquia de normas, o que há é uma complementação, jamais uma subordinação. A partir da diferenciação entre moral e direito, Habermas introduz seu modo de interpretar o conceito de autonomia, apoiado no princípio do discurso, ou seja, a autonomia está na liberdade comunicativa, pressuposta no agir que se orienta pelo entendimento mútuo. Para que uma norma seja universal é necessário o consenso, isto é, para que possamos nos sentir destinatário de direitos, é necessário o entendimento enquanto autores de direito. Habermas não se limitou a apenas criticar o princípio da autonomia na ética kantiana. Antes, pelo contrário, ele faz uma reflexão sobre o imperativo categórico de Kant, mas em vez de impor a todos os outros uma máxima que eu quero que seja uma lei universal como faz Kant. (HUPFFER, 2016, p. 2)

Observa-se que a dialogicidade é o pano de fundo de sua teoria, pois, para o filósofo, não existe uma relatividade na moral, os valores de uma sociedade são construídos entre pessoas livres que dialogam e argumentam, sendo, a moralidade, fruto de um processo argumentativo entre seres autônomos.

Dadalto (2015), dispondo-se a favor da filosofia habermasiana, afirma que a autonomia tem por fundamento a liberdade do indivíduo, estabelecida na vontade e na opinião dos cidadãos livres e iguais, muito embora, possa também ser entendida sob a égide econômica e social.

A autora, esclarece que a nomenclatura “autonomia de vontade” foi substituída por “autonomia privada”. Esta é hoje, a designação mais aceita perante a contemporaneidade existente no Estado Democrático de Direito e, de forma alguma pode ser analisada em separado do princípio da dignidade da pessoa humana, pois esse fundamento faz referência às exigências básicas dos indivíduos, incluindo suas necessidades materiais e espirituais. Logo, os impulsos norteadores das normas que preceituam a autonomia e a dignidade são complementares um ao outro, “a autonomia privada deve ser entendida sob uma perspectiva dialógica, conformada pela dignidade da pessoa humana e, portanto, dirigida a aspectos públicos e privados, patrimoniais e existenciais” (DADALTO, 2015, p. 13).

Dessa forma, toma-se que a coexistência de direitos individuais e sociais, públicos e privados permite que o sujeito opte e regule sobre o que lhe é de direito e ainda, proteja seu “animus”, dando a entender que a autonomia privada legitima a ação do indivíduo que decide sobre si, sobre aquilo que, posto ao seu julgamento lhe é benéfico.

Significa dizer que a autonomia privada não é o poder do indivíduo de fazer tudo o que lhe der vontade, não se traduz em uma ampla liberdade, muito antes pelo contrário, significa que a autonomia privada garante ao indivíduo o direito de ter seu próprio conceito de “vida boa” e de agir buscando tal objetivo […]. (DADALTO, 2015, p. 17)

Para o testamento vital, espécie documental do gênero das diretivas, o princípio da autonomia privada – que está intimamente ligado ao reconhecimento da dignidade da pessoa humana – é basilar, já que o ato formal da declaração prévia é uma situação jurídica patrimonial e existencial.

Embora seja na relação jurídica patrimonial que a autonomia tenha maior evidência, nas relações existenciais ela possui fundamentos diversificados, que derivam de funções socialmente úteis de posturas reveladoras do exercício de liberdade.

2.1 O DIREITO À VIDA DIGNA E SUAS CARACTERÍSTICAS

Para Sarlet (2015), o princípio da dignidade da pessoa humana tem sido compreendido como uma espécie de direito a ter direitos. O 5° artigo da Constituição Federal Brasileira atribui aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a titularidade dos direitos fundamentais e, o Supremo Tribunal Federal tem decidido em várias ocasiões em favor da causa do mínimo existencial, atribuindo desse modo, valor ainda maior à dignidade, dando-nos mais um motivo para validação das DAV no Brasil.

A noção de dignidade repousa na liberdade e na autonomia pessoal. O mesmo autor, expõe que a capacidade que o ser humano possui de formatar sua existência e de ser, portanto, ser sujeito de seus direitos é que lhe dá dignidade. Daí, também advém, para Barroso (2015), o conceito de dignidade da pessoa humana, que lhe amplia a liberdade autônoma.

Quanto a tentativa de construção de uma concepção jurídica da dignidade, toma-se a liberdade e os direitos que dela advém, como parâmetros que não podem resultar em dominação de uma pessoa pela outra, deste modo, ajustam-se Sarlet e Barroso, quando expõem que é correto que a dignidade acaba, mesmo sendo fundada na autonomia, operando como um limite ao exercício das liberdades fundamentais de outrem.

Nesse contexto, cabe sublinhar que mesmo que uma renúncia à dignidade dos direitos seja, em princípio, vedada pela ordem jurídica, não há como deixar de se reconhecer a possibilidade de uma série de situações concretas onde se verifica pelo menos uma autolimitação de determinados direitos (ou, pelo menos, dimensões dos direitos) inerentes à personalidade, bastando aqui recordar o exemplo das transplantações de órgãos, da participação como “cobaia” em protocolos de pesquisa clínicas, dentre as inúmeras hipóteses que poderiam ser colacionadas. (SARLET, 2015, p. 127)

Para Luiz Edson Fachin, importa observar as exigências da pessoa concretamente considerada, no sentido de que haja uma avaliação da sua capacidade e sua vulnerabilidade no exercício da autonomia de vontade e no âmbito do consentimento informado.

No Brasil, somente em 1988, com a promulgação da atual constituição é que se erigiu “um sistema constitucional consentâneo com a pauta valorativa afeta a proteção ao ser humano em suas mais vastas dimensões, em tom nitidamente principiológico, a partir do reconhecimento de sua dignidade intrínseca” ···· (sic.). Sistema esse, já assegurado pela Lei Fundamental Alemã, desde 23 de maio de 1949; pela Constituição Portuguesa, desde 02 de abril de 1976 e pela Constituição Espanhola, desde 29 de dezembro de 1978. (FACHIN, 2016, p. 7)

No Brasil, a Carta Magna aduz no artigo primeiro os fundamentos que norteiam as políticas do país, cujos objetivos maiores (os fundamentais) são, diante de um panorama generalizado, a garantia do desenvolvimento nacional de forma justa e igualitária à toda população, concretizando a democracia econômica, política e social (SILVA, 2013).

Como fundamentos, de acordo com José Afonso da Silva (2013), podemos entender um tripé, formado pela Soberania, pela Cidadania e, pelo que mais vem ao caso, a Dignidade da Pessoa Humana.

Num mesmo sentido, Maria de Fátima Freire de Sá e Diogo Luna Moureira (2015), reforçam que dentre os fundamentos da República, alicerce do Estado Democrático de Direito encontram-se presentes a cidadania (II, art. 1º da CF) e a dignidade da pessoa humana (III, art. 1º da CF), e, no Título II, o capítulo Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, estabelece-se no caput do artigo 5º, que:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade privada (BRASIL, 1988, n.p.).

Neste prisma e abordando questões históricas importantes, ressalta-se que, na década de 1980, alguns senadores tiveram o intuito de ampliar o sentido de “existência” presente na Constituição vigente para “existência digna”.

O Anteprojeto da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, também conhecida como Comissão Afonso Arinos fez, em 1987, uma tentativa de inclusão de Constituição em 1988, com um artigo que resguardava além do direito de viver e existir:

Art. 13 – São direitos e liberdades individuais e invioláveis:

I – A vida, a existência digna e a integridade física e mental.

a) Adquire-se a condição de sujeito de direitos pelo nascimento com vida;

b) a alimentação, a saúde, o trabalho e sua remuneração, a moradia, o saneamento básico, a seguridade social, o transporte coletivo e a educação consubstanciam o mínimo necessário ao pleno exercício do direito à existência digna, e garanti-los é o primeiro dever do Estado; (BRASIL, 1987, p 4)

No entanto, de acordo com Silva (2013), o Anteprojeto não teve prosseguimento nas mãos do então Presidente da República José Sarney, pois:

Esse conceito de existência digna consubstancia aspectos de natureza material e moral; servia para fundamentar o desligamento de equipamentos médico hospitalares, nos casos em que o paciente estivesse vivendo artificialmente (mecanicamente), a prática da eutanásia, mas trazia algum risco como, autorizar a eliminação de alguém portador de deficiência de tal monta que se tivesse a concluir que não teria uma existência humana digna. Por esses riscos, talvez tenha sido melhor não acolher o conceito. (SILVA, 2013 p. 200-201)

Observe-se que em seu discurso, J. A. Silva (2013), trata da eliminação de um indivíduo por outra pessoa, exercício condenado pelo Estado, assim como condena a eliminação do sujeito por ele mesmo. Aponta o Estado como protetor do indivíduo de si mesmo.

Prova em vigência, do Estado como protetor, pode ser encontrada no Códex Penal, no artigo 121, que traz como crime o homicídio e artigo 122, onde é aduzido com clareza a pena para aquele que auxilia ou induz ao suicídio.

De modo algum se pode olvidar que valores como liberdade, igualdade e dignidade foram erigidos à categoria de princípios constitucionais. Nessa esteira, ressalta-se o pensamento centralizado na natureza dos princípios.

Corolário ao conjunto dos deveres e regras de natureza ética, estabelecem-se como normas jurídicas e não valores e, para defrontar-lhes, exige-se determinada postura do operador do direito, pois devem ser entendidos como preferências compartilhadas intersubjetivamente, podendo ser válidos ou inválidos.

Desta forma, assegura-se a todos a vida humana – fonte primária de todos os outros bens jurídicos, integrando elementos materiais e imateriais, valorizando a condição do ser possuidor de necessidades físicas, psíquicas e espirituais e, a relação que tem consigo mesmo. Garantindo a sobrevivência, afiançando o direito à existência, a integridade física e a integridade moral (SILVA, 2013).

Concernente ao reconhecimento de uma estreita conexão entre os princípios e as consequências a serem extraídas da vinculação da dignidade da pessoa humana e do direito à vida, existe uma ampla problematização. Destaca-se o juízo de Sarlet (2015), quando faz referência à decisão do Tribunal Constitucional da Espanha, que tornou reconhecida a intimidade entre o princípio citado, bem como daquele direito. Segundo consta, ambos são um ponto de arranque – primário lógico e antológico – para a existência e especificação dos demais direitos.

Em termos gerais, essa proximidade corresponde à posição europeia adotada em expressivas doutrinas e jurisprudências do velho mundo, destacando-se a posição adotada há muito tempo pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, onde, de certo modo, chega-se a partir de uma espécie de fungibilidade entre a dignidade e a vida, no sentido de que onde há vida, há dignidade, e a violação de um, por via de consequência, implica a violação de outro.

As Diretivas se valem principalmente do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Como já apontado, aludido no artigo 1º, inciso III, da Lei Fundamental tem como natureza a mensuração qualitativa de “vida”, tornando-se complexo por envolver diretamente as necessidades do homem e a bases da essência humana.

O grande constitucionalista, José Afonso da Silva, expõe da seguinte forma:

[…] o conceito de dignidade da pessoa humana obriga uma densificação valorativa que tenha em conta seu amplo sentido normativo – constitucional e não uma ideia qualquer apriorística do homem, não podendo reduzir-se ao sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais […] (PÉRES, 1986, apud SILVA, 2013, p. 107)

Nessa posição, o contexto constitucional não diz respeito apenas às questões biológicas e orgânicas da vida do ser humano, mas às condições emocionais, sociais e políticas. Relações dotadas de complexidade que perfazem o campo pertinente à filosofia e à existência.

Ainda sob a tutela do entendimento do doutrinador, entende-se por valor da vida:

[…] sua riqueza significativa é de difícil compreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais que um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida e passa a ser morte. (SILVA, 2013, p. 199)

Sarlet (2015), ainda afirma que, a dignidade da pessoa humana não poderá ser tratada de maneira fixista quando colocada diante de uma postura de pluralismo e diversidade que se manifesta na sociedade contemporânea, razão pela qual o conceito possui constante desenvolvimento. Que o princípio não deve estar exposto à fungibilidade ou a opção: “dignidade ou vida”, mas sim a conformidade de “dignidade e vida”, pois, mesmo existindo o vínculo entre ambos, a dignidade não se confunde com o direito de personalidade e a ele não pode ser reduzida.

2.2 A DIGNIDADE, A AUTONOMIA E AS DIFERENTES POSSIBILIDADES DE ESCOLHA

A morte não é simplesmente uma fatalidade. A partir do momento da consciência da vida, entende-se que a morte acontecerá, entretanto, não é incomum pensar em postergar o inexorável ou, pelo contrário, adiantar o inevitável.

Prospera nesse sentido, Edgard Morin:

O homem está como todos os seres biológicos, submetido à morte; por isso, no domínio da morte, é semelhante a todos os outros seres vivos; mas o homem é o único ser vivo que acredita existir uma vida após a morte, que pratica ritos fúnebres, que tem uma mitologia da morte porque acredita que a morte existe, quer um renascimento, quer a sobrevivência de um fantasma, que a ressurreição, etc. A realidade humana é, pois, por um lado, uma realidade biológica e, por outro lado, uma realidade auto biológica, quer dizer, uma realidade mitológica. (MORIN, 2016, p. 17).

A partir do momento que se escolhe a vida como valor, passa-se a respeitá-la, por óbvio, com as nuances atribuídas a cada sociedade. O caráter que é atribuído ao viver envolve aspectos materiais, afetivos, intelectuais e chega a alcançar significações econômicas.

A medicina tem avançado no intuito do prolongamento da vida, entretanto, esse prolongamento pode não trazer os benefícios esperados. Adiar a morte pode não ser a vontade do indivíduo, fundamentalmente daqueles que não estão confortáveis com o quadro clínico que se encontram.

Passou-se a compreender que a simples ideia de respirar não pode ser sinônimo de qualidade de existência, tampouco pode ser a garantia da sobrevida.

O fato é que – concomitantemente ao progresso científico e tecnológico da medicina – ela se tornou, nos dias atuais, fria, distante, impessoal, menos humana, enfim. Exatamente à imagem e semelhança dos modernos hospitais e dos profissionais que neles atuam, cada dia mais preparados tecnicamente para lidar estritamente com os aspectos biológicos da vida e cada dia mais despreparados para a relação médico-paciente, para o contato humano, para o relacionamento interpessoal integral e, mais ainda, para o estar simplesmente com o paciente à morte, confortando-o nos seus momentos finais, amparando-o, ouvindo-o, aceitando-o; amando-o, enfim, como seu semelhante.(HORTA, 2013, p. 52)

Pessoas em estado de terminalidade da vida muitas vezes perdem a capacidade cognitiva considerada normal. No interregno entre vida e morte, alude-se à necessidade de manifestar as vontades quanto aos cuidados e procedimentos que serão observados no momento de infortúnio. Advém então, a necessidade documental e a discussão referente a legalidade de fazer suceder antes do tempo de incerteza.

Situações como a de estado de terminalidade fazem com que direitos fundamentais de vida e liberdade sejam conflitantes. As questões sobre a manutenção da dignidade perante o fim existência colocam em discussão o direito de opção pelo que for, à luz do indivíduo, menos degradante.

Desta feita, faz-se necessário um maior detalhamento dos institutos atribuídos ao encerramento do ciclo vital para que se possa optar conscientemente pelo cuidado antecipado, ou apenas, pelo capricho do destino.

2.2.1 EUTANÁSIA, ORTOTANÁSIA, DISTANÁSIA E SUICÍDIO ASSISTIDO

O termo eutanásia foi criado pelo filósofo inglês Francis Bacon, no século XVII, sua etimologia é grega e se traduz em “boa morte”, “morte apropriada” ou “morte piedosa”. Conforme Maria de Fátima Freire de Sá (2015), a eutanásia é a conduta de alguém que, sabendo do sofrimento do paciente, causa a morte daquele de maneira antecipada, não por dolo, mas sim por compaixão e piedade, evitando que a dor do sujeito em estado terminal se estenda desnecessariamente.

O direito de matar e de morrer, ainda consoante os autores, teve em todas as épocas defensores extremados, todavia, com a racionalização e humanização do direito moderno, tal efetivação tomou caráter criminoso.

Sabe-se que entre os povos primitivos sacrificavam-se doentes, velhos e débeis e se fazia publicamente numa espécie de ritual cruel e desumano. Na Índia antiga, os incuráveis de doenças eram atirados no Ganges, depois de terem a boca e as narinas vedadas com a lama sagrada. Os espartanos no monte Taijeto, lançavam os recém-nascidos deformados e até os anciãos, sob a alegação de que não mais serviam para guerrear. Na Idade Média, dava-se aos guerreiros feridos um punhal afiadíssimo, denominado misericórdia, que lhes servia para evitar o sofrimento prolongado da morte e para não caírem nas mãos do inimigo. O polegar para baixo dos Césares era uma permissão à eutanásia, facultando aos gladiadores uma maneira de fugirem da morte agônica e da desonra. (SÁ; MOUREIRA, 201, p. 85)

A nomenclatura do ato da morte piedosa é hoje utilizada como a ação médica que abrevia a vida da pessoa em grave sofrimento, decorrente de doenças, sem perspectiva de melhora. Dizendo propriamente, é a propositura do óbito, através da ação ou omissão do médico.

A eutanásia não é legalizada no Brasil e, aquele que consumar o ato, será tido como homicida. Sua conduta terá a classificação de privilegiada, havendo diminuição de pena, conforme o parágrafo primeiro do artigo 121 do Código Penal Brasileiro (1940). Ausentes os requisitos da eutanásia, a conduta será classificada como homicídio simples ou ainda qualificado. Se o paciente solicitar assistência para morrer, a conduta de quem pratica o ato será classificada como auxílio ao suicídio, fundamentado no mesmo código:

Art. 122 – Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:

Pena – reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.

Parágrafo único – A pena é duplicada:

Aumento de pena

I – se o crime é praticado por motivo egoístico;

II – se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência. (BRASIL, 1940, n.p.)

Maria Helena Diniz (2001, p.304, apud GAGLIANO, 2006, p. 153), afirma que a eutanásia ativa pode ser designada também como benemortásia ou sanicídio, que se resume no emprego de recursos químicos ou mecânicos que culminam na supressão da vida do enfermo incurável. Em contrapartida, a eutanásia passiva pode ser denominada de ortotanásia ou paraeutanásia, que consiste na atuação omissiva do médico que deixa de empregar recursos clínicos disponíveis, objetivando apressar o falecimento do paciente incurável.

Diferente da eutanásia, Sá e Moureira (2015), afirmam que a ortotanásia ocorre quando o indivíduo se encontra em processo natural e irresistível de morte.

O responsável técnico pela saúde do paciente não estende, tampouco encurta sua vida, passando apenas a aceitar o conteúdo que traz todas as implicações no plano que se adequa ao da morte.

A ortotanásia, aqui configurada pelas condutas médicas restritivas, é o objetivo médico quando já não se pode buscar a cura: visa prover o conforto ao paciente, sem interferir no momento da morte, sem encurtar o tempo natural de vida nem adiá-lo indevida e artificialmente, possibilitando que a morte chegue na hora certa, quando o organismo efetivamente alcançou um grau de deterioração incontornável. (VILLAS-BÔAS, 2016, p. 64)

Desse modo, a ortotanásia não é tida como crime, uma vez que o médico não é a causa da morte do indivíduo quando evita sofrimentos desnecessários. De acordo com a autora, o médico pode ainda fazer uso de substâncias que amenizem e diminuam a dor.

O Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução nº 1.805/06, dispõe que é permitido ao médico limitar o suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe a dignidade e aplicando os cuidados necessários para aliviar o sofrimento, de acordo com a vontade do paciente. Assim, tem-se que:

Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.

§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.

Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.

Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2006, n.p.)

Apenas em 2004 foi iniciada a discussão sobre ortotanásia no CFM. Melina Chagas Barroso (2014), expressa que a resolução que dispõe sobre o termo aos procedimentos médicos é ato administrativo coerente à Constituição.

Contudo, o Ministério Público Federal propôs Ação Civil Pública, na 14ª do Vara Federal do Distrito Federal, processo nº 2007.34.00.014809-3, visando a determinação de nulidade da norma 1.805/06, qual restou improcedente, Juiz Federal Roberto Luis Luchi Demo, prolata o seguinte, em sentença:

E, repise-se, não se trata de conferir ao médico, daqui pra frente, uma decisão sobre a vida ou a morte do paciente, porque ao médico (ou a equipe médica, tanto melhor) apenas caberá identificar a ocorrência de um estado de degeneração tal que indique, em verdade, o início do processo de morte do paciente. Trata-se, pois, de uma avaliação científica, balizada por critérios técnicos amplamente aceitos, que é conduta ínsita à atividade médica, sendo completo despautério imaginar-se que daí venha a decorrer um verdadeiro “tribunal de vida ou morte”, como parece pretender a inicial.

[…] Nessa ordem de considerações, pelas quais não entrevejo ilegitimidade alguma na Resolução CFM n. 1.805/2006, é de se rejeitar assim o pedido principal de se reconhecer sua nulidade, bem como o pedido alternativo de sua alteração. Do exposto, revogo a antecipação de tutela anteriormente concedida e JULGO IMPROCEDENTE O PEDIDO. […]

Importante observar que o novo Código de Ética Médica, Resolução 1.931/2009, do CFM, em vigor desde 2010, veta aos médicos no Capítulo IV, denominado Direitos Humanos, dos artigos 22 ao 28, desrespeitar os interesses do paciente e de sua família e, mais especificamente, no artigo 41, Parágrafo único:

Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009, n.p.)

Oposta a Ortotanásia é a Distanásia, a qual também é abrangida pelo artigo anteriormente descrito e caracterizada pelo prolongamento exagerado da morte. Significa a tentativa do máximo prolongamento de vida possível, utilizando todos os meios médicos disponíveis. Causa sofrimento ao paciente de maneira artificial. Método desnecessário já que a morte é inevitável.

Conforme Villas-Bôas (2016, p. 67), a distanásia:

é, por sua vez, a morte lenta e sofrida, prolongada, distanciada pelos recursos médicos, à revelia do conforto e da vontade do indivíduo que morre. Decorre de um abuso na utilização desses recursos, mesmo quando flagrantemente infrutíferos para o paciente, de maneira desproporcional, impingindo-lhe maior sofrimento ao lentificar, sem reverter, o processo de morrer já em curso.

No suicídio assistido, para Sá (2015), a morte não depende diretamente de terceiro. Ela é consequência de uma ação do próprio paciente, que, pode ter sido orientado, auxiliado ou apenas observado por terceiro. É morte voluntária, assim como na eutanásia. Para Leonard Martin (1998), existe uma frequente ambiguidade em relação a natureza da eutanásia e do suicídio assistido.

Na acepção do termo, para o autor, se um marido matar a esposa que está morrendo de câncer, por não suportar mais ouvi-la gritar de dor, é caracterizado o homicídio; se a morte for causada por um médico, considera-se então, a eutanásia e, caso o ato tenha natureza médica e tenha participação da vítima, deverá ser considerado suicídio assistido.

Tanto uma situação quanto as outras são polemicas, embora sejam praticadas desde os povos pré-históricos, podendo ser defendidos pelo sentimento mútuo, pela solidariedade humana e pela compaixão.

3. A POSSIBILIDADE NORMATIVA DE CONSTRUÇÃO E EFETIVAÇÃO DA PESSOALIDADE

Perante a hipótese da sã consciência do paciente terminal, suas vontades devem ser respeitadas, no entanto, o questionamento ronda quando aquele não possui discernimento e capacidade e, nesses casos, quase sempre, o responsável legal opta pela possibilidade de vida do enfermo, mesmo que isso possa significar tratamentos dolorosos.

Uma das funções do médico é recorrer aos melhores procedimentos e cuidados com os pacientes para dirimir a dor e o sofrimento. Tais cuidados são recomendados pelo Código de Ética Médica, conforme artigo 32, § 2º,

salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou aos seus familiares, o médico não abandonará o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável e continuará a assisti-lo ainda que para cuidados paliativos (CFM, 2009, n. p.).

Tais cuidados são resguardos não somente nesse documento, como em diversas resoluções do conselho da classe e, impingidos durante a formação médica ante a relação consumerista existente entre o paciente e a instituição hospitalar.

Daí advém o princípio da beneficência: a obrigação ética de maximizar o benefício e minimizar o prejuízo, de acordo com a convicção profissional, mitigando o dano deliberado. Este princípio é universalmente, consagrado através do aforismo hipocrático “primum non nocere”, primeiro não prejudicar.

A efetivação normativa da pessoalidade e da dignidade da pessoa pressupõe a compreensão de como o Direito deve lidar com esse processo. Entre paciente e hospital, a responsabilidade do tratamento se estende ao médico, já que o objetivo dessa relação, consoante Dadalto (2015), é proteger o consumidor e seus familiares, logo, o médico, como agente mais próximo do paciente, deve informá-lo acerca dos procedimentos a que será submetido.

No tocante ao Código de Defesa do Consumidor, é assegurado ao paciente seu direito a autonomia, contudo, seu desejo deve ser examinado pelo profissional e pela equipe que o acompanha, da mesma maneira que lhe respaldado o direito no Código Civil.

3.1 MORTE E EFEITOS JURÍDICOS

É certo que a morte virá. É inevitável a todos os seres vivos e mesmo para os não vivos, quando, numa metáfora simplista, a natureza tratará de os transformar. Mais assustador, é que não se sabe como, ou a que tempo acontecerá.

No campo filosófico, Dworkin, de acordo com Sá (2015), propõe ao tema uma visão fundamentada tanto na lei, quanto na moral, onde o direito à dignidade ou ao tratamento digno não nascem da capacidade do indivíduo de compreender um tratamento incorruptível como tal e não morre com o desaparecimento dessa compreensão.

O filósofo traz, que o direito de uma pessoa a ser tratada com dignidade é o direito a que os outros se conscientizem de seus interesses intrínsecos críticos, ou seja, de que o paciente terminal é dotado de uma razão moral que lhe é a tal ponto importante que representa como sua vida vai ou não continuar.

3.1.1 O ENTENDIMENTO CULTURAL SOBRE A MORTE

A palavra religião tem duas etimologias possíveis: pode significar ligação com o que se considera com absoluto e essencial, ou pode ser considerada como ritos e práticas em que uma relação se forma. Para Pessini (1999), existe ainda outra etimologia: “religere”, que significa ‘reler’. Reler um acontecimento com o objetivo de extrair dele o máximo de informações. Descobrir sua significação.

Consoante o autor, não é possível analisar o Direito e a Bioética sem averiguar as diferenças culturais entre os indivíduos. Diante disso, examina-se modestamente os aspectos culturais de algumas grandes religiões mundiais.

De acordo com o autor, os Judeus se fundamentam nas interpretações das Escrituras e também em outros princípios morais. A tradição judia enfrenta diretamente a morte. Vê o último período da doença e o morrer como o tempo que o paciente deve ser encorajado, assistido e consolado. De acordo com Sá (2015), o doente terminal judeu deve, antes do falecimento, por sua vida em ordem. Para isso, o sistema legal judeu cria uma estrutura para informar ao paciente que se encontra próximo a morte a gravidade de sua situação, ao mesmo tempo que leva esperança para um bom final.

Os preceitos e ensinamentos éticos budistas são princípios racionais. Acreditam que a salvação e a iluminação são conquistadas pela meditação. É ela que remove impurezas e ilusões.

O budismo não vê a morte como fim da vida, mas como uma transição. Acreditam no Karma e no renascimento. Portanto, por não enxergar a morte como fim da vida, a leitura que os budistas fazem do suicídio é que essa ação não se afigura como uma forma de escapismo.

Textos budistas mais recentes incluem casos de suicídio que o próprio Buda tenha entendido e perdoado. Porém, o perdão se deu pelo fato de que os indivíduos à morte se encontravam com as mentes livres de egoísmo e de desejo, portanto, iluminados. (PESSINI, 1999, p.86)

Logo, para o budismo o suicídio não é punível, assim como não pune quem apresenta atitude omissiva ou comissiva ante o paciente terminal. A atitude é ainda mais aceitável, quando a morte é iminente e se o motivo for a compaixão.

Para o Islamismo, o principal documento que trata sobre o valor da vida e também sobre eutanásia é a Declaração Islâmica dos Direitos Humanos, que tem como fonte o Corão e a Suna. O Código assim preceitua:

A vida humana é sagrada (…) e não deve ser tirada voluntariamente, exceto nas indicações específicas de jurisprudência islâmica, as quais estão fora do domínio da profissão médica. O médico não tirará a vida, mesmo quando movido pela compaixão. O médico, na defesa da vida, é aconselhado a perceber os limites, e não os transgredir. Se é cientificamente certo que a vida não pode ser restaurada, então é uma futilidade manter o paciente em estado vegetativo utilizando-se de medidas heróicas de animação ou preservá-lo por congelamento ou outros métodos artificiais. O médico tem como objetivo manter o processo da vida e não o processo do morrer (FREIRE DE SÁ, 2015, p. 7).

Portanto, chega-se à conclusão que o islamismo condena o suicídio e a eutanásia ativa. Contudo, traz certa simpatia às relações de ortotanásia.

Por concluir a questão antropocêntrica, toma-se o cristianismo, que indicado por Maria de Fátima Freire de Sá, apresenta pontos relevantes a serem citados:

1) Atribui posição de destaque ao ser humano, muito embora a Bíblia tenha afirmado que pessoas foram feitas de pó, e a ele retornarão. É que o homem foi feito senhor da criação; 2) o homem foi criado a imagem de Deus, donde a conclusão que se possui um lugar todo especial na criação; 3) o ser humano é um ser social, eis que não foi criado para viver com Deus, tão-somente, mas para existir em comunhão com os outros; 4) o ser humano tem livre arbítrio, ou seja, possui o dom de distinguir entre o certo e o errado. Contudo, agindo contrariamente à vontade de Deus, cai em pecado. (FREIRE DE SÁ; MOUREIRA, 2015, p. 121)

Para a autora, a Declaração sobre a Eutanásia, da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, datada de 1980, é um importante documento que conceitua o ato como uma ação ou omissão que por sua natureza ou intenções provoca a morte a fim de eliminar a dor e, condena-a, por ser uma violação da Lei Divina.

Outro documento cristão de mesmo sentido, é a Carta Encíclica “Evangelium Vitae”, de autoria do Papa João Paulo II, escrita em 1995. O escrito traz a eutanásia como uma “cultura da morte”, caracterizada por uma mentalidade eficientista, que faz parecer demasiado gravoso o ato de morrer, portanto, repudia-a, tal qual repudia a distanásia e o aborto. No entanto, somente o faz quando seu intuito principal é o homicídio e o suicídio.

Retrata e fundamenta os atos de compaixão nas atitudes altruístas do apóstolo Paulo:

Bem diverso, ao contrário, é o caminho do amor e da verdadeira compaixão, que nos é imposto pela nossa comum humanidade e que a fé em Cristo Redentor, morto e ressuscitado, ilumina com novas razões. A súplica que brota do coração do homem no confronto supremo com o sofrimento e a morte, especialmente quando é tentado a fechar-se no desespero e como que a aniquilar-se nele, é sobretudo uma petição de companhia, solidariedade e apoio na prova. É um pedido de ajuda para continuar a esperar, quando falham todas as esperanças humanas. Como nos recordou o Concílio Vaticano II, « é em face da morte que o enigma da condição humana mais se adensa » para o homem; e, todavia, « a intuição do próprio coração fá-lo acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína total e o desaparecimento definitivo da sua pessoa. O germe de eternidade que nele existe, irredutível à pura matéria, insurge-se contra a morte (VATICANO, 1995, n. p.).

A tradição moral católica faz a mesma distinção dos bioeticistas modernos entre matar e deixar morrer. “Matar” significa ação ou omissão que visa causar a morte; “morrer” é considerado da natureza daquilo que é vivo; a natureza seguindo seu curso.

Pela insigne autora citada, ainda é trazido importante ressalva, que, com o propósito de agir naturalmente, em 2005, o então Papa João Paulo II se recusou a sofrer mais procedimentos médicos que lhe estenderiam inutilmente a vida, por período ínfimo e, diante de sua lucidez, “afirmou aos seus assessores que preferia permanecer e terminar seus dias em seus aposentos […], ao invés de ir para o hospital e ser submetido a novos tratamentos médicos” (SÁ; MOUREIRA, 2015, p. 123).

3.1.2 DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO

É comum e de ampla divulgação que pessoas acometidas por graves doenças podem ser impedidas de realizar o julgamento e ter sua capacidade civil reduzida, que por conta de enfermidades ficam à mercê de doenças e constrangimentos.

Quando paciente é capacitado, o sujeito não é obrigado a submeter-se a tratamento ou à cirurgia que podem custar-lhe a vida e a escolha lhe é defesa pelo Código Civil Brasileiro:

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.

Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.

Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.

Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.

Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. (BRASIL, 2002, n. p.)

O artigo 15 do mesmo Código, preceitua que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica pois, caberá avaliar se os procedimentos são suportáveis ou não. Veta a obrigatoriedade da intervenção médica acerca da discricionariedade. Deste modo, em casos que o paciente possui lucidez para exprimir sua vontade, tem-se como um dos direitos a recusa ou aceitação ao tratamento, quando não, a responsabilidade recai sobre o representante legal. Tal norma, no que diz respeito ao direito da personalidade, tem por objetivo preservar a integridade do corpo humano, tutelando a vida que poderá ser exposta a risco em virtude de um tratamento ou cirurgia desnecessária.

Em comentário ao artigo 15 do Código Civil, dizem Álvaro Villaça Azevedo e Gustavo Rene Nicolau:

Todavia, o maior problema não foi enfrentado pelo artigo e correspondente justamente às pessoas que – por convicções pessoais e religiosas – não queiram se submeter a determinadas espécies de tratamento médico, ainda que tais tratamentos não as coloquem em risco. (…) Impingir-lhe a um tratamento forçado equivaleria a uma violência que – apesar de salvar sua vida – não lhe daria um futuro feliz e digno por conta da violação de sua intimidade e consciência. Como sempre o Direito Civil deve se submeter às normativas e preceitos constitucionais, assegurando a dignidade do paciente. (AZEVEDO; NICOLAU, 2007, p. 60).

De acordo com M. E. Villas-Bôas (2013), a Lei do estado de São Paulo, nº 10.241/99, tem como objetivo evitar a desumanização que acontece nos institutos médico brasileiros, não abrindo mão do tratamento digno, com total observância dos direitos dos pacientes, valorizando e respeitando as integridades físicas, emocionais e intelectuais, assegurando os procedimentos aos quais poderão ser submetidos. Tais garantias são estendidas aos acompanhantes dos pacientes terminais.

Desse modo, no estado paulista, o médico possui, além do Código de Ética Profissional para respaldar seus procedimentos, fundamento que lhe garante o direito de recusa ao tratamento convencional ou ao prolongamento desnecessário da vida do doente. Segundo Dadalto (2013, n. p):

No Estado de São Paulo há a Lei n. 10.241/99, popularmente conhecida como “Lei Mário Covas”, por ter sido promulgada pelo então governador Mário Covas, que dispõe sobre os direitos dos usuários de serviços e das ações de saúde. O inciso XXIII do artigo 2º desta lei assegura aos usuários do serviço de saúde do Estado de São Paulo o direito a recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida, direito este também assegurado pelas Leis n. 16.279, do Estado de Minas Gerais 12, e n. 14.254 do Estado do Paraná.

Quanto à Lei Paranaense, observa-se o respeito à vontade do doente terminal, trazido in verbis:

Art. 2º. São direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado do Paraná:

XXIX – recusar tratamento doloroso ou extraordinário para tentar prolongar a vida;

XXX – a ter uma morte digna e serena, podendo ele próprio (desde que lúcido) ou a família ou o responsável, optar pelo local de morte (PARANÁ, 2003, n.p.).

Maria Helena Diniz (2003), aduz que, o exemplo do artigo supra assegura ao paciente liberdade mínima, pois, à pessoa natural pertence autonomia sobre seu corpo. Ao indivíduo se estabelece a faculdade de não aceitar a medicina tradicional, preferindo assegurar-se na fé ou na medicina alternativa, por exemplo.

Há que se falar sobre o artigo 951 do Código Civil Brasileiro (2002), quanto a negligência médica, vez que, em casos de urgência, como ocorre nos acidentes em que não há tempo de perquirir a vontade individual, o profissional da medicina deverá atuar de imediato, caso contrário, incorrerá as penas indenizatórias do referido artigo.

Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho. (BRASIL, 2002, n. p.)

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, propõe que o Direito à vida deve ser assegurado a todo e qualquer ser humano, no entanto, deve ser assegurada a qualidade de vida: “A concepção de um direito a vida (e não – repita-se! – sobre a vida) implica o reconhecimento estatal da legitimidade do combate individual e coletivo todas as ameaças à sadia qualidade de vida.” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2006, p. 150-164).

Para a aplicação da diretiva diante do testamento vital, no sentido de que sua premissa de validade é fundamentada pelo princípio da autonomia e da dignidade, no bojo do caráter existencial faz valer o contido no artigo 1.857, § 2º, do Código Civil:

Art. 1.857. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.

§ 1o A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento.

§ 2o São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado. (BRASIL, 2002, n. p.)

Por este artigo, certifica-se que deve ser levado em consideração o desejo do paciente antecipadamente manifestado, visando orientar o modo como deseja ser tratado em caso de incompetência futura, desde que, compatíveis com as legislações em vigor. “Serão essas as mais confiáveis balizas, aptas a propiciarem uma morte digna, dentro da escala de valores abraçada pela pessoa enferma;” (VILLAS-BÔAS , 2013, p. 70).

Quanto a questão registral, atribui-se que, deve-se observar um registro nacional das diretivas observando os modelos de Portugal e Espanha, pois, de acordo com Dadalto (2013), possibilitará maior efetividade no cumprimento da vontade do paciente algo que já regulamentado e aplicado há anos – na Espanha, desde 2007, em Portugal, desde 2012.

É certo que é matéria de alta complexidade na seara do Direito, da Ética e da Medicina, no entanto, sociedade e Estado devem procurar a consonância das vontades da coletividade.

Juridicamente, não existe previsão na recusa da participação de procedimentos médicos, evidentemente, opiniões divergentes defendem a compulsoriedade da questão.

À luz da Constituição, preserva-se o respeito ao princípio da autonomia, deste modo, de acordo com Dadalto (2015), o testamento vital é instrumento garantidor deste dispositivo legal.

3.1.3 MORTE E ORTOTANÁSIA NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

No mundo, muitos dos ordenamentos jurídicos protegem o direito à vida, pois a vontade de viver, em pelo menos um momento da existência é inerente a todo ser humano; como consequência, o ato de extirpar a vida de outrem nos mesmos ordenamentos, é tratado como um crime, a exemplo da pena de morte trazida por José Afonso da Silva (2013).

Para Barroso (2015), a história do homicídio confunde-se com a do direito penal. Com efeito, todas as civilizações, em todos os tempos tutelaram como primeiro bem jurídico a vida. Nesse espaço, em defesa da vida, a dignidade em sua ampla extensão, preenche o conteúdo desse direito natural.

O conceito de crime é artificial e independe de fatores naturais. De acordo com Guilherme de Souza Nucci (2013), à sociedade cabe o título de criadora inaugural dos crimes, e somente ela, como um todo, pode classificar condutas ilícitas como mais ou menos gravosas, assim como, definir o que pode ou não ser proibido, de acordo com a moral exercida em sua época. Para o autor, a moral de maneira ajustada, pode ser interpretada também como valor, que, por sua vez se configura como algo importante ou de elevada qualidade. Ora o valor é moral, concentrando-se em interesses particulares, ora ele é social como aqueles que envolvem interesses de ordem geral ou coletiva.

Ainda aduz, que o Código Penal vigente traz a eutanásia e a ortotanásia, apresentadas no artigo 121, § 1º, e, no mesmo sentido, conduz Villas-Bôas:

No Brasil, o Código Penal vigente pune, em seu artigo 121, parágrafo 1º ainda que com pena menor, o homicídio impelido por relevante valor moral identificado, segundo a exposição de motivos do próprio Código, com a eutanásia, quando esse valor é a compaixão pelo sofrimento do enfermo. Não esclarece, porém, os limites do entendimento do que seja esse matar alguém, o que cabe à doutrina e à jurisprudência especificar. (VILLAS-BÔAS , 2013, p. 72)

Objetivamente, procurando validar a recusa na utilização de alguns procedimentos médicos descritos nas Diretivas Antecipadas de Vontade no âmbito criminal, observa-se a opinião de Mirabete (2006), assim como outros insignes autores, que tratam da eutanásia e da ortotanásia observando os §§ 1º e 4º, do artigo 121 do Código Penal, já que nada mais traz sobre isso a norma produzida em 1940.

O doutrinador insiste no condão de que, o homicídio é entendido como um crime material que se consuma com a morte da vítima, não havendo um sinal que se possa considerar definitivo da ocorrência da morte. Fica claro que o homicídio não é o propósito deste trabalho, mas, utilizando-se dos conceitos manifestos perante o artigo aludido do Códex Penal, resgata-se o caso de diminuição de pena para melhor interpretar a juridicidade penal brasileira contemporânea nos casos de homicídio impelido por relevante valor social e moral.

Conforme consta, o penalista conceitua como morte clínica a paralisação da função cardíaca e respiratória; como morte cerebral, o registro em linha reta obtido pelo exame de eletroencefalograma por ausência de impulsos elétricos cerebrais e, como morte biológica, a deterioração celular.

Ocorrendo apenas a morte cerebral, com a perda da consciência, é possível a vida vegetativa e, se caso o paciente estiver sujeito a aparelhos ventiladores, num coma ultrapassado, a suspensão desses poderá determinar a morte.

Logo, a inatividade cerebral e respiratória não configura permissão para que o sangue continue a circular por processo artificial. Desse modo, a morte acontecerá após a cessação do funcionamento cerebral, circulatório e respiratório, considerando a desintegração irreversível da personalidade.

[…] surgiu o conceito de morte cerebral e, ante um corpo aparentemente vivo, mas definitivamente impossibilitado de estabelecer contato inteligente com o meio exterior, firmar-se-á um prognóstico de absoluta impossibilidade de retorno à vida […]. (MIRABETE, 2006, p. 32).

O § 1°, do art. 121, do CP, não é um delito autônomo, mas um caso de diminuição de pena em virtude das circunstâncias especiais que se ajuntam ao fato típico fundamental. Ao que interessa, as duas primeiras figuras contempladas são motivos determinantes do crime: na primeira, os motivos dizem respeito aos interesses ou fins da vida coletiva, revelando diminuta periculosidade; a segunda, reflete valores individuais, particulares do agente, entre eles, o sentimento de piedade e compaixão.

Assim, o autor do homicídio praticado com o intuito de livrar um doente, irremediavelmente perdido, dos sofrimentos que o atormentam (eutanásia) goza de privilégio da atenuação da pena. O Código Penal Brasileiro não reconhece a impunibilidade do homicídio eutanástico, haja ou não o consentimento do ofendido, mas em consideração ao motivo, de relevante valor moral, permite a minorção da pena. É punível a eutanásia propriamente dita (ação ou omissão do sujeito ativo com finalidade de evitar a dor) e mesmo a ortotanásia (emprego de remédios paliativos, acompanhamento médico em procedimento de cura etc.), mas discute-se a possibilidade de não se falar em homicídio quando se interrompe uma vida mantida artificialmente por meio de aparelhos. (MIRABETE, 2006, p. 34)

Importante destacar que o autor distingue o conceito de ortotanásia daquele que é dado pelo Conselho Federal de Medicina na Resolução nº 1.805/2006, quando conceitua o ato como o emprego de remédios que suavizam a partida e não, simplesmente pela suspensão de procedimentos que prolongam a vida do doente em fase terminal.

No projeto do Novo Código Penal (PLS 236/2012), é aduzido no artigo 122 a Eutanásia e, mais inovador, a exclusão da pena para o agente que se omitir em estender a vida de maneira artificial do paciente em estado irreversível, desde que atestado por médicos. Assim, observa-se ipsis litteris no referido projeto:

Eutanásia

Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave:

Pena – prisão, de doía a quatro anos.

§ 1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição com a vítima.

Exclusão de ilicitude

§ 2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.

O Relatório Final dos Juristas sobre o anteprojeto, elaborado em 2012, traz que o atual Código Penal se refere de maneira superficial à eutanásia ao reduzir a pena para o homicídio praticado por relevante valor moral e que a “boa morte” é uma das figuras mais lembradas quando se trata de homicídio privilegiado, por isso, segundo os juristas, o novo Código Penal trataria sobre a eutanásia em artigo próprio, como ato típico, com sanção mais branda que aquela reservada ao homicídio e, com perdão judicial em face de intimidade e parentesco. Ainda diferenciaria a eutanásia da ortotanásia, afirmando que é prática médica aceita pelo Conselho Federal de Medicina através da Resolução nº 1.805/2006, e que não implica em atos executórios de matar alguém, “mas no reconhecimento de que a morte, a velha senhora, já iniciou curso irrevogável”, em outras palavras, a aplicação da ortotanásia:

Refrear artificialmente o falecimento, nestes casos, é retirar da pessoa o direito de escolher o local e o modo como pretende se despedir da vida e dos seus. Não há espaço para o Direito Penal, nesta situação. Impede-o a dignidade da pessoa humana, aqui num sentido despido da vulgarização que se dá a este essencial conceito. Morrer dignamente é uma escolha constitucionalmente válida. A proposta da Comissão é torná-la também legalmente válida. (BRASIL, 2012, n. p.)

Dessa forma, torna-se claro que a futura aceitação da ortotanásia pelas normas penais brasileiras, sendo, sua aplicação, apenas uma questão de tempo e que a Declaração elaborada e registrada em cartório só virá a reforçar a exclusão de ilicitude.

Nesse contexto, mais relevante do que a alteração da lei penal – alvo de projetos desde 1984, porém com notáveis falhas em seu teor e que somente representaria o esclarecimento da licitude dessas condutas  –  faz-se  mister  a  uniformização interpretativa de que a conduta do médico que restringe a terapêutica fútil não fere o Direito, pois atua em seu regular exercício profissional de agir em favor do paciente  (para  se  mencionar  causa  de justificação consignada no Direito positivo), levando-se em conta que o tratamento suspenso já não fazia efeito contra a doença de base nem servia ao conforto do enfermo. A morte que acaso daí decorra não terá sido antecipada nem provocada pelo médico se sua decisão ocorreu dentro dos trâmites profissionais e amparada por avaliações especializadas. Nesse caso, a morte veio a seu tempo, já que a medicina apenas poderia, artificial, dolorosa e precariamente, protelá-la. (VILLAS-BÔAS , 2013, p. 77)

Maria Elisa Villas-Bôas (2013), expressa também que, a abstenção ou retirada de tratamentos médicos fúteis avaliadas por equipe médica e de acordo com a opinião do interessado não ofende qualquer das leis penais em vigor, as quais são exceção dentro do universo permitido de condutas.

4. O PAPEL DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE

A declaração prévia de vontade é a manifestação de modo claro e determinante da vontade de quem a revela, e, como tal, é protegida pelo Estado Democrático de Direito.

De acordo com Dadalto (2015), as ciências jurídicas defrontam-se cotidianamente com os direitos reservados aos pacientes em fim de vida, e as Diretivas Antecipadas de Vontade são gênero, do qual é espécie o Testamento Vital. Segundo a autora, é o documento pelo qual uma pessoa capaz pode deixar registrado a quais tratamentos quer ou não ser submetida, caso esteja em vias da morte.

Não se trata apenas das últimas horas antes da morte, mas da prática, do manejo, do cuidado que se terá com o indivíduo quando ele não puder mais optar ou expressar suas opções, e isso, pode perdurar por razoável tempo. Para exemplificação, pode ser relatado o número de banhos a serem dados por dia; as horas expostas ao sol; a maneira como o médico deve tratar o indivíduo declarante; a privacidade; se deseja ou não reanimação em caso de parada respiratória e outros procedimentos.

A Revista Veja, de setembro de 2012, traz exemplos de Diretivas Antecipadas de Vontade, produzidas inclusive por agentes da medicina. Para melhor elucidar o conteúdo das DAV, faz-se a reprodução de um deles:

Eu, Ana Cláudia Arantes, diante de uma situação de doença grave em progressão e fora da possibilidade de reversão, apresento minhas diretrizes antecipadas de cuidados à vida. Se chegar a padecer de alguma enfermidade manifestadamente incurável, que me cause sofrimento ou me torne incapaz para uma vida racional e autônoma, faço constar com base no princípio da dignidade da pessoa humana e da autonomia de vontade, que aceito a terminalidade da vida e repudio qualquer intervenção extraordinária, inútil ou fútil. Ou seja, qualquer ação médica pela qual os benefícios sejam nulos ou demasiadamente pequenos e não superem os seus potenciais malefícios. As diretrizes incluem os seguintes cuidados: admito ir para UTI somente se tiver alguma chance de sair em menos de uma semana; não aceito que me alimentem à força. Se não puder demonstrar vontade de comer, recuso qualquer procedimento de suporte à alimentação; não quero ser reanimada no caso de parada respiratória ou cardíaca. […]

Quero um beijo de boa-noite e de bom-dia. Sei que meu corpo pode estar frágil e muito diferente de mim, mas, acreditem, estarei nele; quero tomar banho todos os dias, com água quente. Quero privacidade. Que as portas do quarto e janelas estejam fechadas; ninguém deverá sentir pena de mim. Ao contrário, ao me verem, as pessoas hão de dizer: ‘Que sorte morrer assim’. (LOPES; CUMINALE, 2012, p. 99)

Como visto, as diretrizes tratam de questões técnicas, mas também de situações comezinhas da vida, pois é claro que, quando se exige um “beijo de boa-noite” em uma declaração de vontade não é avistada a interrupção da vida, portanto, exclui-se o caso de eutanásia e suicídio assistido, tratados com maior aprofundamento posteriormente.

Ressalta-se que, Dadalto (2015), corroborada por Maria de Fátima Freire de Sá e Diogo Luna Moreira (2015), destacam como espécies de Diretrizes Antecipadas de Vontade o Testamento Vital e o Mandato Duradouro, sendo que: o testamento vital é a manifestação de vontade com relação a cuidados e tratamentos que a pessoa deseja ou não se submeter quando estiver fora de possibilidades terapêuticas e, o mandato duradouro, em linhas gerais, é a nomeação de terceiro para que decida em nome do declarante, quando este estiver impossibilitado de manifestar sua vontade.

Ora, durante toda a vida o ser humano faz escolhas que o leva a determinados caminhos, de acordo com a premissa, logicamente, em caso de possibilidade de previsão de morte certa, que também escolha a seu modo.

Fala-se de ortotanásia. Pode a princípio, parecer um atentado de crueldade contra a própria vida, mas frisa-se, de acordo com a Resolução nº 1.995 de 2012, do Conselho Federal de Medicina, o Testamento Vital como prática em casos extremos de fim de vida, ou seja, a doença terminal, o estado vegetativo persistente e doenças crônicas, especialmente, demência avançada.

Reconhecer que nessas situações a autonomia do paciente deve ser preservada é condição “sine qua non” para garantir a autonomia privada do indivíduo, pois só assim será possível garantir o protagonismo de suas relações.

4.1 AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE

A morte digna e o respeito à vontade dos indivíduos se refletem nas Diretivas Antecipadas de Vontade. É aqui, de suma importância retomar a ideia já apresentada de que as Diretivas são espécie, da qual são gêneros o Testamento Vital e o Mandato Duradouro. Cabe ressaltar que as distinções entre os institutos foram realizadas, como consta em Dadalto (20115), pela “Patient Self-Determination Act”, determinação norte americana, da qual outros países do mundo seguem exemplo. Cabe ainda constar que existem outros institutos declarativos, que, no entanto, são incipientes.

4.1.1 TESTAMENTO VITAL

O Testamento Vital, em conformidade com a insigne autora citada, é adstrito às situações de fim de vida e possui alcance mais amplo que que o Mandato Duradouro, o que não impede que os dois institutos coexistam.

É um documento de manifestação de vontades pelo qual uma pessoa capaz manifesta seus desejos sobre a suspensão de tratamentos, a ser utilizado quando o outorgante estiver em estado terminal ou com uma doença crônica incurável, impossibilitado de manifestar sua vontade de maneira livre e consciente.

Como objeto e conteúdo, Sá (2003) concorda com Dadalto (2015) quando afirmam que as instruções prévias objetivam garantir ao paciente que seus desejos sejam atendidos e que se perfaz num documento que dá respaldo legal às ações do médico diante de decisões que possam ser conflitivas. Contido por aspectos relativos aos tratamentos médicos; a utilização ou não de máquinas para continuidade da vida, entre outros; que nomeia um procurador; que declara ou não a vontade de doar os órgãos.

O testamento produz efeito “erga omnes”, vinculado a médicos, pacientes, familiares e eventuais curadores. Para que possua validade, em sua composição, o sujeito deve estar plenamente capaz – inclusive deve possuir declaração médica que ateste sua sanidade – o documento deve ser mantido aberto ao conhecimento de pessoas mais próximas. Possui a importante característica de mutabilidade; como já descrito, é negócio jurídico solene e deve ser registrado em cartório competente.

4.1.2 MANDATO DURADOURO

A espécie de diretiva “Mandato Duradouro” é definida por Dadalto (2015), como um documento no qual o paciente nomeia um ou mais procuradores que deverão ser consultados pelos médicos em caso de incapacidade, definitiva ou temporária do paciente. Os procuradores decidirão com base no conhecimento dos anseios, pois, como há de se perceber, são decisões sub-rogadas.

Esse modelo de mandato enquadra-se no modelo de julgamento substituto, no qual, segundo consta, faz-se necessária certa intimidade com o mandatário. O procurador deve saber a fundo a vontade do outorgante e jamais decidir com base em seus próprios anseios.

Para L. Dadalto (2015), a coexistência do mandato duradouro e do testamento vital em um único documento é salutar. Contudo, como o mandato não se restringe a situações de terminalidade de vida,

Aceitar um modelo de melhores interesses, propriamente falando, equivale a reconhecer que, em casos-limite, há de se decidir quais são os interesses de bem-estar no momento e não buscar o que hipoteticamente seria o melhor na época da lavratura da declaração.

4.2 A VALIDADE DAS DECLARAÇÕES ANTECIPADAS DE FIM DE VIDA NO DIREITO BRASILEIRO

O direito à morte digna é questão de inúmeras discussões de ordem jurídica, moral, ética, religiosa, política e em inúmeras demais esferas em todos os continentes.

Nenhuma espécie de diretiva antecipada de vontade está regularizada no direito brasileiro, mas, como já visto, diversas são as normas que as propõe, sem, no entanto, referenciá-las diretamente.

Os mais evidentes documentos brasileiros são, com certeza as regulamentações trazidas pelas Resoluções nº 1.805/2006 e nº 1.992/2012 do Conselho Federal de Medicina.  Quanto a primeira, segundo consta em seu preâmbulo, é permitido ao médico limitar ou suspender, na fase terminal de enfermidades graves, tratamentos que prolonguem a vida do doente, contudo, devem ser mantidos os cuidados ditos paliativos. Em suma, trata-se da prática da ortotanásia.

É certo que a eutanásia ativa encontra óbice na legislação penal, embora possa ser hermeneuticamente sustentada. Todavia, a eutanásia ativa indireta (princípio do duplo efeito) e a eutanásia passiva ou ortotanásia são praticadas na rotina médica e interpretadas como exercício regular da Medicina, desde que respeitada a vontade do paciente. […]. (SÁ; MOUREIRA, 2015, p. 184)

Sendo assim, debate-se a efetivação normativa de personalidades que se constituem e se reconstituem em uma sociedade democrática, podendo ser a morte apresentada como projeto da personalidade.

Na esfera penal, caso o indivíduo nada tenha declarado a respeito, o médico deverá empregar os meios que estiver ao alcance, respeitando a norma 1.805/06 do CFM e o a Resolução 1.995/2012, que dispõe sobre a Diretiva Antecipada, permite que os médicos cumpram a vontade dos pacientes nos casos em que o prolongamento da vida seja ineficaz.

Dispõe da forma seguinte:

Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.  § 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico. § 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica. § 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. § 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente. […] (CFM, 2012, n.p.)

Luciana Daldalto (2015), dispõe que, em nota esclarecedora, o CFM afirmou que essa resolução respeita a vontade do paciente conforme o conceito de ortotanásia, distanciando-se da eutanásia, proibida no Brasil.

No que tange aos aspectos jurídicos da resolução 1.995/2012, cabe deixar claro que não regulariza as DAV no país, vez que não possui força de lei, no entanto, essa formalidade se faz imperiosa vez que garante a vontade do declarante, garantindo a segurança jurídica ao interessado.

A natureza ou qualidade do consentimento exigido pela lei, guarido por ordem jurídica de valor absoluto, seja ela, a vida humana, não pode ser apequenada ou negligenciada. Dessa forma, faz-se insuficiente o consentimento irrefletido, açodado, não fundamentado, não arrimado em informações completas, claras, objetivas e que espelhem o mais atualizado estado da arte médica.

Portanto, não pode ser considerado o consentimento manifestado pelo doente que já estiver acometido pela doença e que não tenha plena consciência para manifestar sua vontade, como, por exemplo, pacientes com patologias psíquicas ou acometidos por delírios decorrentes da dor ou, influenciados por medicamentos.

Por mais que determinada pessoa possa manifestar sua vontade, não é validada tal declaração enquanto não forem dotados de plena capacidade para a prática dos atos da vida civil.

No tocante à interdição, não existirá o cabimento, vez que, por se tratar de direito personalíssimo e inviolável, a vontade não poderá ser suprida por terceiros, mesmo que investidos de poderes de representação.

Não são admitidas a validade da manifestação de vontade verbal ou tácita do paciente. Porquanto, deve ser expressa, direta e não duvidosa. Porém, é possível admitir a comprovação da vontade por testemunhas, desde que haja provas de que a pessoa não desejava prolongar a sua vida por meios artificiais ou se submeter a procedimentos que lhe causassem sofrimento. Neste caso, a vontade deve ser manifestada por decisão judicial, que, ao analisar as provas necessárias, venha a suprir a vontade do paciente, sendo recomendável este procedimento, inclusive, para isentar o médico de qualquer responsabilidade pelo ato praticado.

Dadalto (2013), por fim, torna saliente que, a inexistência de norma jurídica específica acerca do testamento vital no Brasil não impede a validade das diretivas uma vez que as normas infraconstitucionais dão o suporte necessário para a defesa do comprovativo que já é aceito em jurisprudências.

Inclusive, já houve manifestação judicial neste sentido, no julgamento liminar da Ação Civil Pública n. 0001039-86.2013.4.01.3500 proposta pelo Ministério Público Federal de Goiás contra a resolução CFM 1995/2012: “Igualmente, em exame inicial, entendo que a Resolução é constitucional e se coaduna com o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que assegura  ao  paciente  em  estado  terminal  o  recebimento  de cuidados  paliativos,  sem  o  submeter,  contra  sua  vontade,  a  tratamentos  que prolonguem o seu sofrimento e não mais tragam qualquer benefício (DADALTO, 2013, n.p.)

Não só essa, como outras ações voltadas para a legalização da vontade foram aceitas nos tribunais brasileiros, de qualquer forma, existindo a manifestação válida de vontade, esta deve ser respeitada, em prestígio à liberdade de consciência do indivíduo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verifica-se ser indissociável a relação entre a dignidade e os direitos fundamentais. Desta feita, mesmo que as ordens normativas não tragam expressas as referências sobre a determinação da dignidade da pessoa humana, não se deve concluir que não se fazem presentes, reconhecidos e assegurados os direitos fundamentais que lhe são inerentes.

Os avanços da medicina e os novos tipos de tratamentos prolongam e melhoram a qualidade de vida e, muitas vezes, criam expectativas para a cura de doenças hoje consideradas terminais. Entretanto, as soluções apresentadas para essas doenças podem ser acenadas como maneiras artificiais de prolongar a vida e serem entendidas como uma afronta à dignidade do indivíduo, quando acabam apenas prolongando o processo de morte, sem perspectiva de melhora ou cura.

Na condição e valor e princípio normativo fundamental, a dignidade da pessoa humana pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais, pois, sem que reconheçam o quê para uma pessoa é inerente, negam-lhe a própria dignidade, remetendo à controvérsia em torno binômio dignidade-direito.

Em situações em que os direitos entram em conflito, devem ser valorados, analisados e interpretados de acordo com o contexto social, político, religioso, econômico, cultural e qualquer outro aspecto que o paciente possa estar envolvido. Deve-se apreciar todas as condições, para que se delimite a tênue fronteira entre a cura da doença e a dignidade.

Conflitos de interpretação jurídica serão, num futuro próximo, inevitáveis. No entanto, no mundo contemporâneo, nas sociedades plurais e complexas que vivemos, observam-se inúmeros temas moralmente controvertidos. Desacordos morais e colisões entre normas constitucionais e direitos fundamentais são facilmente demonstrados quando se tratam das declarações prévias de vontade, mas, fundadas na liberdade, na dignidade e na autonomia, a solução para o antagonismo certamente será construída através de argumentos ponderados, valorando cada elemento no bojo de cada caso concreto, exigindo a sensibilidade e o conhecimento do interprete julgador.

À sociedade cabe ponderar os valores norteadores e limites quanto aos casos, ou seja, individualmente, no fim de que se adequarem à realidade de maneira eficiente. No entanto, não cabe a coletividade negar a vontade impar daquele que se submete à lei, dirimindo sua capacidade de autodeterminação. Frisa-se que a sociedade brasileira está fundada sobre parâmetros e leis que norteiam o Estado Democrático de Direito e que existe a liberdade relativa trazida pela legislação.

A utilização das diretivas antecipadas de vontade como uma série de documentos e manifestações possui resultados positivos em diversos países do mundo.

Observa-se que, esta manifestação não possui neste país uma divulgação adequada ao seu vasto préstimo, por esse motivo, pela amplitude de possibilidades de sua utilização, mais discussões e explicações específicas sobre esses instrumentos deveriam ser propostas.

Isto posto, além de legislação competente que adeque as Diretivas de vontade, ressalta-se a necessidade de um vínculo de comunicação entre a área da saúde e o âmbito jurídico, para que a atuação dos profissionais esteja em consonância com a vontade individual e com a legalidade.

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[1] Bacharel em Direito, advogada, formada pela Univale – Faculdades Integradas do Vale do Ivaí. Unidade de Ivaiporã, Paraná. Licenciada em Geografia pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista e Docência no Ensino Superior, pela UniCesumar.

Enviado: Janeiro, 2021.

Aprovado: Março, 2021.

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Marina Menck Preisner

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