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Proselitismo Religioso Não é Crime

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CONTEÚDO

RATES, Talita Cutrim [1]

RATES, Talita Cutrim. Proselitismo Religioso Não é Crime. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Edição 04. Ano 02, Vol. 01. pp 103-120, Julho de 2017. ISSN:2448-0959

RESUMO

A História do Direito compreende as mais diversas formas das sociedades se organizarem para manter ou transformar seu status. Cada povo e cada organização social possui um sistema jurídico que representa a especialidade de um grau de evolução e complexidade. A religião por muitas civilizações representou o alicerce ao Direito. A Constituição brasileira assegura a liberdade religiosa, bem como considera valor essencial a dignidade da pessoa humana. Cada religião tem o direito de expressar sua crença dentro de limites, sendo aceitável em nossos Tribunais Superiores o proselitismo religioso. Contudo esta forma de manifestação de crença não pode servir como meio para suprimir ou oprimir pessoas de outras religiões, de forma a caracterizar crime.

Palavras-chave: Evolução, Religião, Liberdade Religiosa, Proselitismo Religioso, Racismo.

1. INTRODUÇÃO

A modificação da sociedade e a evolução do direito são inseparáveis, em qualquer momento histórico. A simples descrição de textos jurídicos e instituições judiciárias não é suficiente para que se possa aferir o real significado das manifestações do direito que surgem ao longo do tempo.

Todo o trabalho retrospectivo direcionado à recuperação de documentos, testemunhos, vestígios enfim, fontes históricas – só se justifica a partir de um olhar abrangente. Não há direito fora da sociedade. E não há sociedade fora da história.

A Constituição Federal de 1988 preocupou-se em assegurar a liberdade religiosa. Trata-se de um direito fundamental previsto em vários dispositivos e que deve ser observado em todo o ordenamento jurídico e garantido a todos os cidadãos.  Refere-se ao direito de sustentar, defender e propagar suas crenças religiosas, respeitando todas as outras religiões existentes, além do respeito àqueles que optarem por não professar qualquer religião.

A nossa Carta Magna também prevê o direito de qualquer cidadão manifestar livremente suas opiniões, e pensamentos, não podendo o Estado interferir na expressão das ideias, vedada a censura ou qualquer forma de retaliação. Presente nas democracias modernas onde está incluído o Brasil, verdadeiro estado democrático de direito.

Nenhum direito é absoluto, portanto, quando temos dois direitos fundamentais em confronto, devemos utilizar a técnica da ponderação de forma a harmonizar a relação existente no caso concreto para se chegar a uma solução justa, ainda que para isso um direito tenha que prevalecer em detrimento do outro.

A liberdade religiosa encontra limites na liberdade de expressão quando esta é realizada de forma desmedida ou descabida, provocando humilhação, restrição de direitos, dominação, opressão é um direito como todos os outros, que não é absoluto. O exercício das práticas de religiosidade deve acontecer, nessa esteira, de forma harmoniosa com todos os outros direitos e garantias fundamentais que também são assegurados pela CF/88.

A metodologia utilizada para a produção deste estudo valeu-se de uma pesquisa de caráter exploratório descritivo através de procedimentos técnicos baseados em vasta pesquisa bibliográficas e jurisprudencial.

Em relação à abordagem, foi utilizado o método indutivo, que analisa um número suficiente de situações particulares para se chegar a uma verdade geral.

Foram utilizadas pesquisas bibliográficas com uma vertente documental, através de vasta pesquisa em livros, legislações, internet, jurisprudências, etc….

2. PONTO DE DESTAQUE DOS SISTEMAS JURÍDICOS COMPREENDIDOS ENTRE O DIREITO PRIMITIVO E O DIREITO ROMANO: A RELIGIÃO

Um dado importante quando estudamos a “evolução” do direito, é a notória participação da religião na formação cultural e consequentemente do direito dessas sociedades, é o entendimento extraído de Cavalieri (2005), asseverando que os povos antigos não diferenciavam o direito da religião. Estes institutos praticamente se confundiam, pois o poder, a autoridade, o direito e a religião emanavam da mesma divindade, e quase sempre eram centralizados nas mãos da mesma pessoa.

A religião aparece como sendo a motivadora de muitos dos direitos existentes à época, a lei deveria estar em conformidade com a religião. Nos dizeres de De Coulanges (2008, p. 209):

“A decisão do povo não era suficiente para aprovar uma lei, pois acima deles ainda havia de passar pelos pontífices. Razão pela qual o povo antigo respeitava tanto as leis, para eles elas não eram humanas, mas sagradas, divinas, desobedecer-lhes era cometer sacrilégios.”

Para Wolkmer (2001), é possível notar a fundamentação do direito em revelações divinas e sagradas, no período anterior às legislações escritas e os códigos formais. O medo da vingança divina fez o direito ser respeitado religiosamente, e dessa forma as sanções legais estavam profundamente associadas às sanções rituais.

“(…) as Leis eram passadas de pais para filhos através das crenças, surge nesse contexto uma ideia de direito Natural, onde as leis não necessitavam ser escritas, e mesmo quando começou a ser escrita, a lei continuava ligada a um naturalismo religioso”. (DE COULANGES, 2008, p. 210)

Assim, desde o direito primitivo percebe-se que o direito era influenciado pela religião.

Para Cristiano da Paixão Araújo Pinto, três fatores históricos são relevantes na caracterização da transição das formas primitivas de sociedade para as primeiras civilizações, quais sejam, o surgimento das cidades; a invenção e o domínio da escrita; e, o advento do comércio e da moeda metálica.

Ademais, ao analisarmos a compreensão da História dos Hebreus, verificamos que esta está diretamente relacionada com o Sobrenatural, com Deus, este escolhia seus líderes, lugar de morada, determinava a vitória em guerras. Como podemos verificar no livro de Josué, no novo testamento da Bíblia Sagrada, que conta a estória de Josué que foi o sucessor de Moisés e o encarregado de introduzir o povo de Deus na terra prometida e para isso, teve que conquista-la por meio de uma dura batalha, onde foram vitoriosos por que essa era a vontade de Deus.

Como pode se observar, Deus interfere no cotidiano do povo:

Enquanto outras nações concentravam a vida política no home, os hebreus acreditavam que o homem devia agir segundo a vontade de Deus, por ser este a própria origem da lei, devendo considerar cada ato seu como entendimento e realização de anseios divinos, prova maior de que não é possível separar o sobrenatural das regras legais do comportamento humano. (SILVA, 2009, p. 30-31)

A religião é o que dá alicerce ao Direito e é o ponto de convergência de toda uma sociedade. O Código de Manu já estabelecia a diferença entre roubo e furto, em seu artigo 324, tratou do roubo como a ação de tirar uma coisa por violência, às vistas do proprietário, e na ausência de violência seria furto (Vieira, 2002).

Chegando a Grécia, destacam-se as principais cidades-estados gregas, Grécia e Atenas. Aqui também se verifica a religião como forma preponderante dentro da sociedade. Os Estrangeiros, escravos, e plebeus não eram considerados cidadãos e não eram amparados pela lei, pois não eram participantes da religião da cidade, Explica Barros (2014) que, em Atenas são excluídos as mulheres crianças, estrangeiros, metecos e escravos. Já os espartanos são provenientes das entranhas do espaço mítico-religioso e sua cultura se sustenta pelo temor.

Por fim, chegando ao Direito Romano, nota-se o maior desenvolvimento do Estado, onde há a Res Publicae e também a maior parte dos institutos na forma que conhecemos hoje. No entendimento de Coulanges (2008), “a necessidade de perpetuar o culto doméstico foi o princípio do direito de adoção dos antigos”.

Segundo Quirino (2014), o cristianismo inaugura um novo modo de viver do ser humano, para seus seguidores, viver humanamente é viver imitando Jesus, seguindo seus passos. Conforme está escrito na Bíblia, em Filipenses 2:5, “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus”.

3. LIBERDADE RELIGIOSA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A Constituição Federal do Brasil de 1988, nossa carta maior vigente, traz em seu preâmbulo a expressão “promulgamos sob a proteção de Deus”, conforme segue exposto:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Embora expressamente prevista a proteção de Deus, o Brasil é um país laico, não há nenhuma religião oficial a ser seguida em nosso país. A referência a proteção divina é uma questão que já foi objeto de muitas discussões no meio jurídico, porém, que já está pacificada através da jurisprudência dos Tribunais superiores.

O texto contido no preâmbulo consiste nos objetivos que possuía o constituinte ao produzir a constituição. Trata-se de uma carta de intenções do constituinte originário. O Preâmbulo não é parte obrigatória, embora esteja presente em todas as constituições brasileiras. Para o Supremo Tribunal Federal, o preâmbulo não é norma constitucional, não possui natureza jurídica, mas sim política. Portanto, não se trata de norma de repetição obrigatória nas constituições estaduais.

É o caso do estado do Acre, onde o Plenário do STF decidiu por unanimidade que a ausência da palavra “Deus” não fere a laicidade do Estado Brasileiro, posto que o preâmbulo não é norma de repetição obrigatória.

Na Ação direta de Inconstitucionalidade nº 2076 – 5 do Acre, o relator Ministro Carlos Veloso, sustentou o seguinte:

Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória.na Constituição estadual, não tendo força normativa.

O entendimento foi de que o preâmbulo constitucional não cria direitos e deveres tão pouco possui força normativa. O texto trazido no preâmbulo reflete apenas a posição ideológica do legislador constituinte, posto que não contém natureza de norma jurídica.

No referido julgado, ficou claro que o preâmbulo na Constituição do Acre por não invocar a proteção de Deus não fere a CF/88, pois esta, ao fazer referência a Deus, traz apenas um sentimento religioso que não substância base para estar presente obrigatoriamente nas constituições estaduais.

Portanto o preâmbulo por não criar direitos e deveres e não possuir força normativa é apenas uma posição ideológica do constituinte originário.

Para Oliveira (2011), “o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição da República Federativa do Brasil, adota a tese da “irrelevância jurídica”, segundo a qual o preâmbulo não se situa no domínio do direito […]”.

Por não estar no império do Direito, está situado, mas no âmbito da política, sendo, portanto destituído de valor normativo e de força cogente, portanto não pode ser invocado como parâmetro para o controle da constitucionalidade.

Parte da doutrina, que é majoritária, entende que o preâmbulo possui uma importância interpretativa, ou seja, auxilia na interpretação da Constituição. Outra parte da doutrina assevera que a redação do preâmbulo apresenta valores, sendo tida como um elemento formal de aplicabilidade.

A Constituição Federal de 1988 em diversos dispositivos contidos em sua parte permanente prevê hipóteses que inferem ser o Brasil um Estado laico, destituído de religião oficial.

A CF/88 prevê em seu art. 5º que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

Muitos doutrinadores divergem quanto o sentido de liberdade de consciência e a liberdade de crença.

A liberdade de consciência pode orientar-se tanto no sentido de não admitir crença alguma (o que ocorre com os ateus e os agnósticos, por exemplo), quanto também pode resultar na adesão a determinados valores morais e espirituais que não se confundem com nenhuma religião, tal como se verifica em alguns movimentos pacifistas que, apesar de defenderem a paz, não implicam qualquer fé religiosa.

[…]

A liberdade de crença, por sua vez, “envolve o direito de escolha da religião e de mudar de religião”. (JÚNIOR, 2008, p.650-651).

Já o art. 19 da Constituição Federal de 1988, em seu art. 19, inciso I, narra que é vedado ao Poder Público estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embarcar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

A partir dos mencionados dispositivos constitucionais podemos extrair oo entendimento de que o nosso país é um estado laico, ensinamento que é explicitado pela doutrina.

(…) o espírito laico, que caracteriza a modernidade, é um modo de pensar que confia o destino da esfera secular dos homens à razão crítica e ao debate, e não aos impulsos da fé e às asserções de verdades reveladas. Isto não significa desconsiderar o valor e a relevância de uma fé autêntica, mas atribui à livre consciência do indivíduo a adesão, ou não, a uma religião. O modo de pensar laico está na raiz do princípio da tolerância, base da liberdade de crença e da liberdade de opinião e de pensamento. (CELSO LAFER, 2009, p. 226)

Assim, um Estado laico é aquele que apresenta diversas crenças e cada uma delas possui suas regras específicas destonadas aos seus respectivos seguidores.

Há previsão da “escusa de consciência” no artigo 5º, VIII, da CF/88, asseverando que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

Também está previsto no artigo 210, §1º da Constituição Federal que o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

Outro dispositivo encontrado na Constituição Federal de 1988, trata da imunidade tributária que é um direito assegurado a todos os templos de qualquer culto, com previsão no Art. 150, VI, “b” devendo, portanto recair sobre qualquer entidade religiosa.

“[…] o Estado tolera todas as religiões que não ofendem a moral, nem os bons costumes, nem, tampouco, fazem perigar a segurança nacional. Há, no entanto, uma presunção no sentido de que a religião é legitima, presunção, esta, que só cederá passo diante de prova em contrário, a ser produzida pelo Poder Público.”. (CARRAZA, 1997, p. 399).

Logo, infere-se que a liberdade religiosa trata-se de um direito fundamental que está previsto em diversos dispositivos espalhados pelo texto constitucional, acima já explanados, e que, portanto o Estado deve assegurar a todo cidadão o direito de sustentar, defender e propagar suas crenças religiosas, respeitando cada um outras religiões escolhidas pelo outro, e respeito aqueles que optarem por não professar qualquer religião, o ateísmo.

Para José Afonso da Silva (1999, p. 252), a liberdade de religião engloba, três tipos de liberdades que estão intrinsecamente relacionadas entre si, quais sejam, liberdades de crença, liberdade de culto e liberdade de organização religiosa.

A liberdade de crença compreende a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, e também a liberdade de não aderir a religião alguma, bem como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo.

[…] a religião não é apenas sentimento sagrado puro. Não se realiza na simples contemplação do ente sagrado, não é simples adoração a Deus. Ao contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua característica básica se exterioriza na prática dos ritos, no culto, com suas cerimônias, manifestações, reuniões, fidelidades aos hábitos, às tradições, na forma indicada pela religião escolhida.

[…] “essa liberdade diz respeito à possibilidade de estabelecimento e organização das igrejas e suas relações com o Estado” (SILVA, 1999, p. 252-253)

A liberdade religiosa pode ser subdividida em liberdade de consciência, qual seja o direito que o indivíduo tem de possuir suas convicções pessoais, escolher seus padrões de valoração ética ou moral; em liberdade de crença, que nada mais é do que o direito de determinada pessoa adotar ou não certa religião e não ser prejudicada por essa escolha, bem como de praticar o proselitismo religioso, ou seja, empreender esforços para convencer outras pessoas a também se converterem à sua religião; e em liberdade de culto, que é o direito, individual ou coletivo, de praticar condutas externas de reverência próprias de sua religião.

Para Canotilho (2007, p. 609), liberdade religiosa é o direito que a pessoa tem não somente de escolher a religião que deve professar, ou não possuir religião, mas também, poder praticar o proselitismo religioso.

Assegurar o direito à liberdade religiosa não se refere apenas a liberdade de crença, contudo, implica ainda em assegurar a exteriorização de atos religiosos, como a divulgação dos atos específicos de sua crença.

Nesse enfoque resta consagrado como direito fundamental, portanto valor maior a ser respeitado pelo Estado e por todos a liberdade de religião.

A liberdade de expressão intrinsecamente ligada a manifestação da liberdade religiosa, necessariamente deve estar presente em um pais democrático. A ausência deste valor fundamental dá espaço a censura característica de Estados ditatoriais. Esse direito está consagrado na nossa Carta Magna de 1988, como podemos verificar:

Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

[…]

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença […]

A Constituição brasileira de 1988 deferiu grande valor a dignidade da pessoa humana. Em muitos artigos podemos encontrar referência feita a dignidade e ao repúdio ao racismo. Em seu art. 1º, III, a nossa Constituição enumerou os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, dispondo que:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V – o pluralismo político.

Verificamos que o Constituinte originário inseriu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, oferecendo a este princípio valor fundamental que serve de base para as demais normas constantes no ordenamento jurídico pátrio, devendo, portanto, qualquer indivíduo obedecer o princípio da dignidade da pessoa humana, vetor fundamental da CF/88.

O artigo 3º da Constituição Federal versa sobre os objetivos da República Federativa do Brasil, demonstrando tratar-se de programas de Estado, normas programáticas, que deverão ser seguidos. Entre os objetivos expressos no texto constitucional, está a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Quando o artigo 3º trata de quaisquer outras formas de discriminação, está incluindo toda e qualquer forma preconceituosa, inclusive a discriminação religiosa, asseverando a vedação ao preconceito em relação a pessoas que professam qualquer crença.

Versa ainda a CF/88 em seu artigo 5º, XLII, acerca dos princípios que regem a República Federativa do Brasil nas suas relações internacionais, fazendo referência ao repúdio ao racismo.

Sendo o Brasil um estado de bem estar social, não poderia a Constituição de 1988 deixar de prestar a maior deferência a dignidade da pessoa humana, como vimos nos seus diversos dispositivos. E em virtude disso, a dignidade da pessoa humana é um princípios que deve estar presente em todas as leis ou normas integrantes do nosso ordenamento jurídico que devem obediência a CF/88.

A Lei 7.716/89 foi criada em observância ao mandamento constitucional previsto no artigo 5º, XLII, buscando a repressão e a penalização do preconceito e da discriminação, considerando certas condutas como crime de racismo.

O artigo 1º da Lei dispõe expressamente que serão punidos os crimes de discriminação e preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional.

Os crimes previstos na Lei do Racismo são inafiançáveis e imprescritíveis, e além disso, após o devido processo legal ao sentenciado será aplicada uma pena de reclusão. Portanto ofensas a dignidade da pessoa humana quando direcionadas a uma coletividade ou grupo de pessoas pode caracterizar o delito de racismo.

A dignidade é um sentimento pessoal que cada pessoa traz referente a si mesma, o Código Penal Brasileiro também reprimiu condutas violadoras da dignidade da pessoa humana, ao prever o delito de injúria racial em seu artigo 140, parágrafo 3º, ao dispor que, restará configurada a injúria preconceituosa se a injúria consistir na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

Injúria qualificada pelo preconceito, não se confunde com o crime de racismo, posto que na injuria preconceituosa o dolo do agente é de injuriar pessoa determinada, enquanto que o dolo existente no racismo é o de discriminar grupo. Injúria preconceituosa é um crime prescritível, conforme consta no artigo 109 do CP, já racismo é um crime imprescritível, com previsão mandamental no artigo 5º, XLII, da Constituição Federal.

Além do mais injuria racial é crime afiançável, porém o racismo é insuscetível de fiança. Quanto a ação penal injuria racial é crime de ação penal pública condicionada a representação, enquanto o racismo é de ação penal pública incondicionada, cabendo ao Ministério Público a legitimidade para processar o ofensor.

Como vemos, tratou o legislador pátrio de atender ao mandamento previsto na CF/88 e criou condutas penalizadas visando a repressão de comportamentos discriminatórios, que atinjam o conceito pessoal que cada indivíduo guarda em relação a si próprio, posto que, todos desejam ter suas qualidades pessoais respeitadas pelas outras pessoas.

Apesar desse direito fundamental ser assegurado pela CF/88 e de não existir hierarquia entre as normas constitucionais originárias, é importante frisar que quando existe conflito entre dois valores fundamentais, faz-se necessário um sopesamento, partindo da análise de um caso concreto, onde ambos os direitos serão ponderados e um prevalecerá em detrimento do outro, a depender dos valores que estiverem em oposição.

Conforme o princípio da convivência das liberdades públicas, temos que não existe nenhum direito absoluto, sendo assim, diante de um caso concreto, quando um direito entra em confronto com outros direitos, deve ser utilizada a regra da ponderação e sopesar as situações em choque para se chegar a maneira mais plausível de alinhar os interesses, devendo muitas vezes um dos direitos ceder espaço para a manifestação de outro.

Sabemos que a liberdade religiosa é um direito como todos os outros, que não é absoluto. O exercício das práticas de religiosidade deve acontecer, nessa esteira, de forma harmoniosa com todos os outros direitos e garantias fundamentais que também são assegurados pela CF/88.

A liberdade de exercício de uma religião ou crença, não é diferente. Deve haver muito cuidado quanto ao exercício da liberdade de manifestar sua crença. Algumas considerações feitas com o objetivo de divulgar ou defender sua religião não pode dar margens a incitar outras pessoas à discriminação ou preconceito com pessoas de outras religiões.

Entre os valores protegidos pela Constituição Federal está o repúdio ao racismo, art. 4º, VIII e art. 5º, XLII.

A Lei nº 7716/89, que trata de condutas caracterizadoras dos crimes de racismo, dispõe em seu artigo 20, o seguinte, praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. A referida lei atribui a esta conduta a pena de reclusão de um a três anos e multa.

O parquet em um caso concreto considerou que não configura preconceito ou discriminação a conduta de um indivíduo tentar converter pessoas de outras religiões à sua própria crença, o chamado proselitismo religioso. Por se tratar apenas de uma tentativa de convencer através da fé pregada.  O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, no RHC 134682/BA, entendeu que:

O proselitismo religioso, em diversas oportunidades, é implementado à luz de um contraste entre as mais diversas religiões. O indivíduo que busca a conversão de outrem geralmente o faz sob argumentos de hierarquização entre religiões, almejando demonstrar a superioridade de suas próprias crenças, de modo que, corriqueiramente, as religiões pretendem assumir contornos de doutrinas de primeira ordem. Esse proselitismo, portanto, ainda que acarrete incômodas comparações religiosas, não materializa, por si só, o espaço normativo dedicado à incriminação de condutas preconceituosas. Essa ação constitui não apenas desdobramento da liberdade de expressão religiosa, mas figura como núcleo essencial desse direito, de modo que negar sua prática configuraria excessiva restrição às liberdades constitucionais. Assim, eventual animosidade decorrente de observações desigualadoras não configura, necessariamente, preconceito ou discriminação.

O Supremo Tribunal Federal andou bem ao entender que não houve preconceito ou discriminação no caso acima em destaque, pois entendeu a Suprema Corte que, diante de uma possível colisão entre as liberdades de expressão e religiosa deve ser posto em enfoque o repúdio ao racismo.

Este estudo segue o entendimento do STF ao entender o proselitismo religioso como uma prática aceitável e vista como normal, em virtude de estar intrínseco em cada religião, o objetivo de trazer outras pessoas a professar a sua mesma fé.

As religiões, em geral, tem entre suas finalidades de atrair outras pessoas, inclusive de outras denominações, ou religiões, trata-se de um caráter universalista. Portanto, proibir a prática de proselitismo pelos seus fiéis, é em suma impedir o exercício da liberdade religiosa.

O proselitismo religioso pode ser detectado, ainda, a partir da prática comparativa entre as variadas religiões. Ou seja, a pessoa que pretende converter outras, pode exercitar essa conduta quando o seu objetivo for demonstrar que a crença de sua predileção deve prevalecer em detrimento das outras.

Nesta feita, mesmo que essa manifestação possa causar animosidade por ser desagradável a comparação, a prática da persuasão religiosa, quando manifestada de forma razoável, obedecendo certos limites aceitáveis, não será considerado crime de racismo.

Foi preciso que a liberdade de fé ou de opinião, assegurada por uma correta aplicação da regra da tolerância, passasse a ser reconhecida como a melhor condição para fazer que, mediante a persuasão e não a imposição, triunfe a verdade em que se crê. (BOBBIO, 2000, p. 151).

Portanto, é o proselitismo, em síntese, uma manifestação da liberdade religiosa. Segundo Tavares, é natural no discurso religioso praticado pelas Igrejas, em especial pelas instituições daquelas religiões de pretensão universalista, pregar o rechaço às demais religiões. Esta postura com o intuito único de ajudar outras pessoas a alcançar a salvação espiritual, integra a essência da própria liberdade de religião.

Contudo, existem ocasiões onde podemos notar manifestações que extrapolam os níveis do que é plausivelmente aceitável, ultrapassando as fronteiras de exercício do direito à liberdade religiosa. Se esta manifestação persuasiva de ser através de qualquer forma de violência de forma ofensiva atingindo a dignidade da pessoa ultrapassará a esfera do permitido.

Situações como estas, merecem atenção, haja vista, que em certos casos podem ultrapassar os limites aceitáveis e caracterizar o ilícito penal de racismo.

[…] Da relação superior-inferior podem derivar tanto a concepção de que o superior tem o dever de ajudar o inferior a alcançar um nível mais alto de bem-estar e civilização, quanto à concepção de que o superior tem o direito de suprimir o inferior. […] (BOBBIO, 2000, p. 109).

O proselitismo pode ser visto como conduta atentatória da dignidade humana e, portanto constituir crime, quando a suposta superioridade pregada por determinada religião for praticada através de atos que tenham o condão de humilhar, dominar, de restringir direitos, ou ainda de oprimir, em detrimento dos considerados inferiores por aqueles. Trata-se de uma forma de manifestação por parte daqueles que se sentem com superioridade e por isso almejam a supressão das pessoas seguidoras de outras religiões. Assim explica Bobbio, 2000, p.109.

Somente quando a diversidade leva a este segundo modo de conceber a relação entre superior e inferior é que se pode falar corretamente de uma verdadeira discriminação, com todas as aberrações dela decorrentes. (BOBBIO, 2000, p. 109-110). 

Assim, é inevitável que seguidores de certa religião busque incentivar pessoas de outras religiões a buscar a salvação, evangelizando como ocorre em religiões cristãs, direcionando-as a seguir a mesma religião que elas, por considerarem que a religião que decidiram seguir é a melhor e mais acertada, desde que não haja o interesse em subjugar, humilhar, ofender a ponto de atingir a dignidade humana.

CONCLUSÃO

No direito primitivo, direito antigo e entre os gregos e romanos, as leis surgiram como parte da religião e eram fundamentadas e originadas dela. A princípio as normas do Direito eram dispostas dentre as regras religiosas.

Para os antigos a lei é um aspecto da religião, e dela dependia desde para sua formação, até para sua efetivação. Era a manifestação do Direito Natural, eterno, mas como a sociedade era toda desenvolvida a partir da religião, o Direito também o era. A Religião pode influenciar na formação das leis, e mesmo as leis positivas, antes de serem postas eram repetidas por gerações na forma de costumes. Destarte, é a religião o ponto em comum entre as sociedades com maior evidência.

No Brasil verificamos que a liberdade é inegavelmente muito defendida pela nossa Carta Magna, em diversos dispositivos. O nosso ordenamento jurídico protege o direito a liberdade de crença e até pode ser entendido como racismo caso seja uma coletividade ofendida por motivo de expressar sua religião.

Sabemos, contudo, que o exercício do direito de um indivíduo não pode se expandir a ponto de agredir o direito de outros. Nesse diapasão é necessário que haja limites para que a expressão de uma crença não ofenda outras religiões.

Muitos religiosos no intuito de divulgar e trazer para sua mesma fé outras pessoas, por vezes se utilizam de argumentos que revelam ser a sua fé prevalente em relação a do outro, o que pode se dar através de comparações entre diferentes religiões e pode gerar certa animosidade.

O STF tem entendimento no sentido de que quando a comparação entre religiões se dá através do proselitismo, ou seja, situação onde um indivíduo tenta converter pessoas de outras religiões à sua própria crença trata-se de uma manifestação da liberdade religiosa. O que é permitido, desde que não tenha o condão de humilhar, dominar, restringir direitos, oprimir, caso contrário poderá caracterizar o crime de racismo.

REFERÊNCIAS

ANGHER, Anne Joyce, Vade Mecum Acadêmico de Direito. RIDEEL. 21ª edição.2016.

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[1] Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão(UFMA); Bacharel em Segurança Pública pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA); Capitã da Polícia Militar do Maranhão (UFMA).

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