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A aplicação do princípio da insignificância pela autoridade policial

RC: 51603
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

FREITAS, Marcelino de [1], MORAES, Leonardo Tavares de [2], SANTOS, Rosimaire Cassia dos [3]

FREITAS, Marcelino de. MORAES, Leonardo Tavares de. SANTOS, Rosimaire Cassia dos. A aplicação do princípio da insignificância pela autoridade policial. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 06, Vol. 03, pp. 36-54. Junho de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/autoridade-policial

RESUMO

A proposta visa refletir sobre como o princípio da insignificância tem sido aplicado pelas autoridades relacionadas. Hoje em dia, o Judiciário, e, também, outros órgãos estatais, responsáveis pela atividade jurisdicional brasileira, nas mais diversas esferas, encontram-se sobrecarregados em virtude da numerosa demanda de processos/procedimentos em tramitação, resultando em uma expressiva morosidade nos andamentos processuais. Assim sendo, vislumbra-se que o princípio da insignificância é uma criação doutrinária, vastamente recepcionada pelo Poder Judiciário, sendo passível de aplicação em determinados casos previstos no ordenamento jurídico pátrio. Profissionais do campo policial, ao tomarem conhecimento de algum delito em que seja insignificante, valendo-se da discricionariedade, devidamente amparada pela lei, deverá proceder à aplicação e optar pela melhor decisão cabível ao caso. Contudo, cabe auferir se há a necessidade de apreço por parte do Poder Judiciário no que versa sobre o delito insignificante ou mesmo se deveria encerrar-se na fase que antecede ao Inquérito Policial. O artigo apresentará dois posicionamentos: o amparo no princípio da insignificância pelas autoridades policiais e a tendência oposta à tal aplicação.

Palavras-chave: Autoridade policial, princípio da insignificância, Poder Judiciário.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho almeja buscar elementos para inferir acerca do amparo da autoridade policial no princípios da insignificância, e, para tanto, a pesquisa versará sobre o referido de forma mais detalhada sobre o prisma histórico, penal e constitucional, abordando, também, o conceito e a relação com outros princípios. O trabalho inicia-se com reflexões atinentes ao campo do direito penal mínimo, discutindo, então, sobre o princípio da fragmentariedade e subsidiariedade. Esses princípios fazem com que o Estado, antes mesmo de lançar mão do direito penal, recorra a outros meios para proteger um bem juridicamente relevante. E, também, dizem que para resolução dos conflitos é necessário tentar aplicar outros mecanismos diversos do direito penal.

À posteriori, o estudo proporá uma discussão histórica acerca do princípio aqui abordado, elencando, para tanto, aspectos relacionados à origem e seu desenvolvimento. Passando, também, pelo seu conceito, explicando seu significado e aplicação. Posteriormente, tem-se a aplicação do princípio da insignificância com outros princípios jurídicos, dentre eles, o princípio da legalidade, da intervenção mínima, da fragmentariedade, dentre outros. Destaca-se, ademais, que todos eles se relacionam com o princípio da insignificância de forma relevante para sua aplicabilidade. Sequencialmente, apresenta-se a aplicação do princípio da insignificância perante a jurisprudência brasileira, toda a evolução, desde o seu reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal, até ser aplicado pelas instâncias primárias.

Por fim, abarca-se o objeto do trabalho: a aplicação do princípio da insignificância pela autoridade policial, e, assim, aborda-se acerca da competência do delegado policial, a partir de uma abordagem constitucional, elencando, para tanto, a sua atuação na perspectiva constitucional e as leis infraconstitucionais. A possibilidade desse profissional quando ao acionamento do princípios da insignificância na fase administrativa, amparado pelo poder discricionário que lhe é peculiar também será trazida à baila.

2. O CAMPO DO DIREITO PENAL MÍNIMO

Como já demonstrado, o direito penal, em um Estado Democrático de Direito, deve ser o último recurso a ser acionado pelo Estado no que tange à proteção de bens jurídicos, e, assim, é preciso que a intervenção seja mínima, apoiando-se, para tanto, no Direito Penal. E é em razão disso que se diz direito penal mínimo e princípio da mínima intervenção (PASCHOAL, 2015). O direito penal mínimo é informado por alguns princípios basilares, cuja observação ajuda em uma não utilização exagerada desse recurso ao direito penal (PASCHOAL, 2015). Tem-se o princípio da subsidiariedade, e, a partir dele, alude-se que antes de recorrer ao direito penal, o Estado deverá lançar mão de outros meios para proteger um bem juridicamente relevante. Verifica-se, então, que se protege um bem relevante da sociedade.

É necessário verificar em que medida os outros ramos do direito, como civil e administrativo, ou, até mesmo, outros mecanismos, como mediação, seriam aplicáveis à resolução do conflito e, consequentemente, à proteção do bem. E por tentar aplicar outros mecanismos diversos do direito penal para a resolução dos conflitos, é que se pode falar em subsidiariedade (PASCHOAL, 2015). Ainda com o objetivo de garantir a mínima intervenção, além de respeitar o princípio da subsidiariedade, o legislador deverá levar em consideração o princípio da fragmentariedade, que significa que, mesmo sendo um bem, mediante o qual o direito penal deva atuar, nem todas as ações referentes a esse bem, quer dizer, nem todas as lesões que por ventura esse bem possa sofrer, serão merecedoras da proteção do direito penal  (PASCHOAL, 2015).

Destarte, conforme alude Paschoal (2015), cabe auferir, nesta reflexão, que a vida de um ser é um bem extremamente precioso para a sociedade, estando o direito penal muito bem aplicado na sua proteção. Entretanto, a tentativa de suicídio não enseja a proteção do direito penal. Nesse mesmo sentido, quando a gravidez decorre de um estupro, ou, então, leva risco de morte à gestante, admite-se o aborto. Em razão disso, percebe-se que mesmo quando existe um bem jurídico, cuja proteção do direito penal é aceitável, essa proteção é relativa, ou seja, fragmentada. Considerando o contexto apresentado, cabe destacar que o princípio da lesividade ou ofensividade se aproxima no que tange o conceito de intervenção mínima, e, portanto, deve ser explanado.

Trata-se de um princípio que complementa os dois tratados anteriormente: o da subsidiariedade e o da fragmentariedade, na medida em que, mesmo que seja um bem merecedor de proteção do direito penal, ou mesmo que toda ação voltada a este bem seja incriminadora, a afetiva utilização desse ramo do direito fica condicionada à existência de lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente protegido (PASCHOAL, 2015). Nesse contexto apresentado, observa-se as ponderações de Paschoal:

Cabe consignar que tal princípio deverá ser observado pelo legislador no momento da elaboração da norma penal, e pelo magistrado, quando de sua aplicação. O princípio da insignificância, que não admite a punição de ação que teoricamente se subsume ao tipo penal, é reflexo direto do princípio da lesividade (PASCHOAL, 2015, p. 12).

No princípio da lesividade, os delitos de perigo abstrato, ou seja, aqueles em que um bem jurídico não é ferido e nem está sob o risco de o ser, devem ser considerados incompatíveis com o Estado Democrático de Direito (PASCHOAL, 2015). Ainda segundo Paschoal (2015), a utilização desses princípios, juntamente com aqueles que estão mais diretamente ligados a punição (proporcionalidade, individualização, humanidade), permitem que a intervenção penal seja democrática, por mais contraditório que se possa parecer.

3. APONTAMENTOS SOBRE A ORIGEM E EVOLUÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Em relação aos aspectos voltados à gênese do princípio da insignificância, é válido destacar que os doutrinadores, de forma majoritária, aludem que a sua origem está ligada ao Direito Romano, e, conforme a perspectiva romano, parte-se da hipótese de que não é papel do magistrado ater-se aos delitos bagatelares, pois só deve ocupar das lesões significantes, isto é, com prática que, de alguma forma, comprometem a paz e a ordem da sociedade.O Princípio da Insignificância foi reintroduzido na doutrina penal no ano de 1964, por meio de Claus Roxin, na Alemanha, sob a máxima latina “mínima non curat praetor”. Nesse esteio, observa-se o entendimento de Fernando Capez:

O Princípio da Insignificância é originário do Direito Romano, e de cunho civilista, tal princípio funda-se no conhecido brocardo de minimis non curatpraetor. Em 1964 acabou sendo introduzido no sistema penal por ClausRoxin, tendo em vista sua utilidade na realização dos objetivos sociais traçados pela moderna política criminal (CAPEZ, 2009, p.11).

Conforme Capez (2009), considerando o princípio da insignificância, compreende-se a lesão como insignificantes, e, desse modo, não é preciso que o Direito Penal intervenha, o que dispensa, automaticamente, a incidência de reprimendas. Para Capez (2009), o princípio exclui, então, a característica material do delito, ou seja, o referido princípio atua como um mensurador da tipicidade material, e, assim, a ação do Direito Penal é permitida somente quando identificadas condutos que prejudicam, em termos materiais, o bem jurídico. Lopes (1997), alude que esse princípio se refere apenas aos eixos civil ou privado, ou seja, não é algo específico ao Direito Penal. Reitera, também:

É um princípio sistêmico decorrente da própria natureza fragmentária do Direito Penal. Para dar coesão ao sistema penal é que se o fez. Sendo, pois, princípio específico do Direito Penal, não consigo relacioná-lo com a (paradoxalmente) máxima minimis non curatpraetor, que serve como referência, mas não como via de reconhecimento do princípio (LOPES, 1997, p. 23).

Em que pese o entendimento consignado por esse doutrinador (LOPES, 1997), compreende-se que, de forma majoritária, a doutrina aponta que o referido princípio deriva da ideia de  “minimis non curatpraetor”, que significa “o pretor não cuida de coisas pequenas”. Sousa (2019) alude que o princípio da insignificância advém de ideias europeus do século passado, sobretudo do período pós-guerra. Surgiu em razão das crises sociais derivadas do contexto guerril recém encerrado. Prevalecia-se uma taxa expressiva de desemprego a havia a ausência de mantimentos, o que acarretou pequenos furtos que se tornaram frequentes. Essa prática ficou conhecida como “criminalidade da bagatela”.

A partir de estudos de autores iluministas e jus naturalistas, o princípio da insignificância foi agregado às constituições americana e inglesa. Alguns doutrinadores afirmam que na França tal princípio foi incorporado à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, localizado no Art. 5º da referida declaração, que menciona que a lei não proíbe, senão as ações nocivas à sociedade. Logo, vê-se, claramente, que o princípio da insignificância está intimamente ligado ao princípio da legalidade, em razão de aspectos históricos. O mesmo vale para a sua evolução. Dessa forma, conforme Sousa (2019),  somente teve maior relevância no universo jurídico a partir do século passado.

3.1 ANÁLISE CONCEITUAL

O princípio da insignificância na esfera do Direito Penal brasileiro, traz, em seu bojo, quatro requisitos intrínsecos para fins de aplicação, quais sejam: o grau mínimo de ofensa da conduta; a falta da periculosidade social; redução do grau de reprova comportamental e a inexpressividade da lesão provocada, segundo o Supremo Tribunal Federal (2020). O conceito do princípio da insignificância parte da premissa de que a conduta do agente atinge de forma tão pequena o bem juridicamente tutelado, que não seria louvável a aplicação do direito penal para alicerçar uma punição ao autor da ação.  Em razão disso, avaliando de forma jurídica o enunciado, verifica-se que não haveria crime nessa conduta perpetrada pelo referido autor.

Segundo Santos (2016) a doutrina majoritária entende que o teor jurídico da insignificância, no âmbito penal, desconsidera a característica material do fato, não sendo, portanto, a conduta, delegada ao Direito Penal. Para Greco apud Santos (2016), o legislador pode estabelecer os tipos penais incriminadores, quando for além os empecilhos estabelecidos pelo princípio da intervenção mínima, da lesividade e da adequação social. Conforme entendimento do autor sob a ótica minimalista, em uma boa visão do direito penal, somente os bens jurídicos de maior relevância, ou seja, aqueles que sofrem os ataques mais lesivos e significantes é que devem ser alcançados pela proteção do direito penal.

Dessa forma, depois de o bem jurídico entrar na seara de proteção do tipo penal, fica a cargo daqueles que interpretam o direito penal avaliar a infração penal criada e organizá-la de acordo com o pensamento minimalista, desconsiderando-se, portanto, a tipologia das condutas que são menos lesivas ou insignificantes em relação ao bem jurídico protegido (SANTOS, 2016). O princípio da insignificância visa, portanto, a restrição do tipo penal, classificando-o de forma qualitativa e quantitativa, de acordo com o grau de lesividade da conduta, excluindo da aplicação penal os dados que apesar de serem insignificantes, atingem bens tutelados (FLORENZANO, 2017).

O instituto atua no sentido de impedir que o direito penal se ocupe de condutas irrelevantes, tendo por objetivo que a justiça não fique cheia de processos e permitindo que fatos pequenos e insignificantes não causem dano à imagem de seus autores. Tal princípio acaba por revalorizar o direito constitucional, contribuindo para que apenas atos com grande relevância criminal possam ser apenados e, consequentemente, acabam por reduzir o grau de impunidade de tais condutas. Assim, consoante com Florenzano (2017), pode-se perceber que esse princípio não está muito bem conceituado nas doutrinas e códigos atuais.

Isso se deve à falta de previsão legal, o que causa o seu não reconhecimento, já que a sua não determinação acaba por causar instabilidade à segurança jurídica. O reconhecimento desse princípio fica sob a ótica do aplicador do direito, que observará os critérios que determinarão se a conduta é, de fato, insignificante, e, dessa forma, os doutrinadores adotam conceitos subjetivos e empíricos para operar o Direito.

3.2 O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM INTERAÇÃO COM OUTROS

O direito penal tem o propósito de assegurar bens jurídicos fundamentais, tais como a vida, a integridade física e mental, a honra, a liberdade, o patrimônio, dentre outros. A punição é um direito do Estado e esse, por sua vez, aplica tal fato quando uma ação ou omissão é compreendida como típica ao domínio penal, e, de maneira secundária, há a punição, visto que o próprio Estado também pune quem lesa o bem jurídico ao qual protege (FLORENZANO, 2017). A punição estabelecida pelo Estado tem o objetivo não só de punir o delinquente, mas também alerta e aponta os criminosos para que esses não tenham a chance de atuarem como tal. Logo, o objetivo da punição tem muito mais cunho social do que individual, já que não visa exclusivamente à punição do criminoso.

Nessa visão, o delinquente deverá responder pelo seu ato criminoso na medida que o pratica, sendo reprovável a atitude do legislador que atribui uma penalidade que excede o necessário em relação à um determinado fato. O direito constitucional brasileiro valoriza a liberdade, tratando isso como direito indisponível e traz, em seu escopo, também, uma valorização ao princípio da legalidade, dos delitos e das penas, e, assim, alude que o crime é inexistente sem que haja uma lei certa e anterior. A relação do princípio da insignificância com o princípio da legalidade é muito complicada, já que existem alguns doutrinadores que reiteram que a insignificância não pode ser aplicada, alegando que o referido princípio não está delimitado no aparato jurídico correspondente (FLORENZANO, 2017).

Salienta-se que nem todos os princípios estão explicitados nas normas jurídicas, porém, não há hierarquia entre eles, independentes de serem explícitos ou não.

Assim, a “norma provém do princípio, mas não torna o princípio conteúdo de si mesmo” (FLORENZANO, 2017, p. 123). Apesar de haver aparentemente um conflito entre ambos os princípios (insignificância e legalidade), a desarmonia entre eles afasta o que está mais distante e aplica-se o que está mais bem colocado ao fato em si, avaliando o sistema como um todo (FLORENZANO, 2017). Nesse esteio, complementa Lopes (1997):

Uma das relações mais importantes que trava o princípio da insignificância, sem qualquer sombra de dúvidas, é o princípio da legalidade. São três os aspectos mais importantes dessa correlação. Os traços conjuntivos entre princípio da insignificância e a ideia de tipicidade que deriva do princípio da legalidade; os traços relativos à insignificância e o nullumcrimene seus reflexos; e o elemento crítico que da a insignificância uma extralegalidade sistêmica (LOPES apud FLORENZANO, 2017, p. 123).

O princípio da insignificância interliga-se, também, à ideia de intervenção mínima e ao conceito de subsidiariedade. Assim, pode-se dizer que o direito penal é a “última ratio”, atuando somente em último caso, quando os outros ramos do direito não atuarem. Percebe-se, então, que o direito penal atua de forma subsidiária, criminalizando apenas aquelas condutas que não puderem ser alcançadas pelos outros ramos do direito. Em complementação ao princípio da intervenção mínima e ao princípio da insignificância, tem-se o princípio da fragmentariedade, descrevendo que apenas as condutas típicas que causem lesão aos bens juridicamente tutelados é que devem ser apenadas.

O princípio da fragmentariedade compreende, então, os conceitos de intervenção mínima e reserva legal, e, nesse sentido, o âmbito penal efetiva-se somente em uma parcela dos bens jurídicos, isto é, àqueles mais importantes, atuando, assim, nos casos mais graves de lesões. Destarte, aufere-se que o ramo penal garante a proteção de apenas uma face dos bens jurídicos, e, por isso é chamado de “fragmentário”, no âmbito do direito penal (FLORENZANO, 2017). No contexto apresentado, discorre Greco (2007) que o uso do direito penal de forma irrestrita pode vir a se tornar ineficaz:

Não se educa a sociedade por intermédio do direito penal. O raciocínio do direito penal máximo nos conduz, obrigatoriamente a sua falta de credibilidade. Quanto mais as infrações penais, menores são as possibilidades de serem efetivamente punidas as condutas infratoras, tornando ainda mais seletiva e maior a cifra negra (GRECO apud FLORENZANO, 2017, p. 124).

A tipicidade existe quando há conduta social. Isso é o que preconiza o princípio da adequação social. Entende-se, então, que se não há adequação social na conduta, exclui-se a tipicidade. Esse princípio serve de modelo para criar ou revogar os fatos típicos, além de estabelecer uma interpretação dos tipos penais que já existem (FLORENZANO, 2017). Franco (1995), por sua vez, frisa que o princípio da proporcionalidade está intimamente ligado ao princípio da insignificância:

O princípio da proporcionalidade exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena). Toda vez que, nessa relação, houver um desequilíbrio acentuado, estabelece-se, em consequência, inaceitável desproporção. O princípio da proporcionalidade rechaça, portanto, o estabelecimento de cominações legais (proporcionalidade em abstrato) e a imposição de penas (proporcionalidade em concreto) que careçam de relação valorativa com o fato cometido considerado em seu significado global. Tem, em consequência, um duplo destinatário:o poder legislativo (que tem de estabelecer penas proporcionais, em abstrato, à gravidade do delito) e o juiz (as penas que os juízes impõem ao autor do delito têm de ser proporcionadas à sua concreta gravidade (FRANCO apud FLORENZANO, 2017, p.125).

É importante destacar, também, a existência do princípio da proibição do excesso, que é basicamente uma proporcionalidade na aplicação da pena, a qual não poderá superar o nível de responsabilidade em relação ao ato praticado. Dever-se-á, então, mensurar a pena a partir da culpabilidade da conduta, que se torna a medida da pena (FLORENZANO, 2017). Já o princípio da lesividade estabelece que para que haja a tipificação de uma conduta, é importante que se tenha um perigo concreto, real e efetivo de dano a um bem jurídico protegido pelo Direito.

A intervenção do Estado ocorrerá no que se refere à repressão penal, quando existir um dano efetivo ao bem jurídico protegido. Logo, o Estado não deve tipificar ações que não lesionaram e nem colocaram em perigo concreto um bem jurídico protegido. Portanto, na ausência de um dano ou perigo concreto à um bem jurídico tutelado, não há que se falar em tipo penal (FLORENZANO, 2017). Bitencourt  (2006), em seu estudo, elucida que o princípio da humanidade será aplicado levando-se em conta a racionalidade e a proporcionalidade:

Esse princípio sustenta que o poder punitivo estatal não pode a plicar sanções que atinjam a dignidade da pessoa humana ou que lesionem a constituição físico-psíquica dos condenados.A proscrição de penas cruéis e infamantes, a proibição de tortura e maus-tratos nos interrogatórios policiais e a obrigação imposta ao Estado de dotar sua infraestrutura carcerária de meios e recursos que impeçam a degradação e a dessocialização dos condenados são corolários do princípio de humanidade (BITENCOURT apud FLORENZANO, 2017,p. 126).

Já sobre o princípio da equidade tem-se a seguinte elucidação de Lopes (2000):

O princípio da insignificância se ajusta à equidade e correta interpretação do Direito. Por aquela, acolhe-se um sentimento de justiça, inspirado nos valores vigentes em uma sociedade, liberando-se o agente, cuja ação, por sua inexpressividade, não chega a atentar contra os valores tutelados pelo Direito Penal. Por esta, se exige uma hermenêutica mais condizente do direito, que não pode se ater a critérios inflexíveis de exegese, sob pena de se desvirtuar o sentido da própria norma e conduzir a graves injustiças (LOPES apud FLORENZANO, 2017, p. 127).

Nesse mesmo contexto, afirma Florenzano que: “tais princípios participam da mesma interação, através da complementação e do ajuste mútuo para a conceituação material do tipo de injusto” (FLORENZANO, 2017, p. 128). Ademais, esclarece Toledo (1994) que: “segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai aonde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas” (TOLEDO apud FLORENZANO, 2017, p. 128). O princípio da insignificância, compreendido pela doutrina como um aspecto excludente no que tange a característica material,  faz parte de um pressuposto referente à política, reforçando-se, portanto, a fragmentariedade e a intervenção mínima.

3.3 A INSIGNIFICÂNCIA DE ACORDO COM A DOUTRINA BRASILEIRA

Em relação à visão jurisprudencial acerca do princípio da insignificância, preleciona Gomes (2013):

Na jurisprudência da nossa corte Suprema reconheceu-se em primeiro lugar o princípio da insignificância levando em conta exclusivamente o critério do desvalor do resultado, em 06/01/1988, num caso de lesão corporal culposa provocado por acidente de trânsito (GOMES apud SOUSA, 2019, p. 25).

Por outro lado, aufere-se o seguinte:

ACIDENTE DE TRÂNSITO. LESÃO CORPORAL. INEXPRESSIVIDADE DA LESÃO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME NÃO CONFIGURADO. SE A LESÃO CORPORAL (PEQUENA EQUIMOSE) DECORRENTE DE ACIDENTE DE TRÂNSITO E DE ABSOLUTA INSIGNIFICÂNCIA, COMO RESULTA DOS ELEMENTOS DOS AUTOS – E OUTRA PROVA NÃO SERIA POSSÍVEL FAZER-SE TEMPOS DEPOIS – HÁ DE IMPEDIR-SE QUE SE INSTAURE AÇÃO PENAL QUE A NADA CHEGARIA, INUTILMENTE SOBRECARREGANDO-SE AS VARAS CRIMINAIS, GERALMENTE TÃO ONERADAS (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RHC 66869/PR. Relator: ministro Aldir Passarinho. Diário Judiciário- DJ, 28 abr.1989).

Em análise da ementa, constata-se que o Supremo Tribunal Federal admitiu, de forma unânime, a existência do princípio da insignificância, e, nesse sentido, arquivou a ação penal, com fundamento de que não houve o crime, já que a lesão corporal (pequena equimose), que decorreu do acidente de trânsito, foi absolutamente insignificante, não merecendo apreciação do poder judiciário (SOUSA, 2019). Em decorrência desse histórico julgamento, os tribunais passaram a reconhecer o princípio da insignificância, com sua aplicação atacando a tipicidade material do delito, tornando-o indiferente penal e, por consequência, a não consecução de crime (SOUSA, 2019). Conforme preleciona Sousa (2019), o doutrinador Luís Flávio Gomes (2013) apresenta importantes julgados acerca da temática em comento:

A linha jurisprudencial mais correta (a última) reconhece o princípio da insignificância levando em conta (unicamente) o desvalor do resultado ou o desvalor da ação, é dizer, é suficiente (para atipicidade) que o nível da lesão (ao bem jurídico) ou do perigo concreto verificado seja ínfimo ou ainda que a conduta do agente não tenha tido relevância “penal” (séria) para a produção do resultado. Cuidando, ao contrário, de ataque intolerável ou de conduta relevante o fato é típico (e, portanto, punível) (GOMES apud SOUSA, 2019, p. 26).

A outra corrente de pensamento, por outro lado, estabelece o critério do desvalor do resultado, o desvalor da ação e o desvalor da culpabilidade (que devem ser cumulativos para fins de ação da insignificância).

Há uma outra corrente jurisprudencial (cada vez mais recorrente) que, para o reconhecimento da infração bagatelar, acentua, ademais, a imprescindibilidade de outras exigências: o fato é penalmente irrelevante quando são insignificantes (cumulativamente) não só o desvalor do resultado, senão o desvalor da ação bem como o desvalor da culpabilidade do agente (isto é: quando todas as circunstâncias judiciais – culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos do crime, conseqüências, circunstâncias etc – sejam favoráveis) (GOMES apud SOUSA, 2019, p. 26).

Sendo assim, consoante com Sousa (2019), verifica-se divergências em relação aos critérios voltados à ação do princípio da insignificância, porém, reitera-se que a corrente tradicional é justa, já que analisa os critérios objetivos. Em contrapartida, a outra corrente analisa os critérios objetivos e subjetivos, o que acontece na aplicação do princípio da irrelevância do fato penal, uma vez que para que possa ser acionado, o princípio da insignificância entende que o delito seja de pequeno grau de lesividade em relação ao bem jurídico tutelado.

4. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA ACIONADO POR AUTORIDADES POLICIAIS: CRITÉRIOS E COMPETÊNCIAS DO DELEGADO DE POLÍTICA

No Brasil, a polícia judiciária é exercida pela Polícia Federal e Polícia Civil, sendo que as atribuições estão previstas na Constituição Federal de 1988 e na Constituição Estadual.  Conforme o entendimento de Nucci (2010), cabe aos órgãos constituídos em âmbito federal e civil, a condução das investigações pertinentes, servindo como subsídio para uma futura ação penal:

Cabe aos órgãos constituídos das policias federal e civil conduzir as investigações necessárias, colhendo provas pré-constituídas e formar o inquérito, que servirá de base de sustentação a uma futura ação penal. O nome polícia judiciária tem sentido na medida em que não se cuida de uma atividade policial ostensiva (típica da Polícia Militar para a garantia da segurança nas ruas), mas investigatória, cuja função se volta a colher provas para o órgão acusatório e, na essência, para que o Judiciário avalie no futuro (NUCCI, 2010, p. 145).

A fundamentação legal está prevista, em tese, no texto do Art. 144, §1º e §4º da Constituição Federal de 1988:

Art. 144º da CRFB/88 – A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I – polícia federal;

II – polícia rodoviária federal;

III – polícia ferroviária federal;

IV – polícias civis;

V – policiais militares e corpos de bombeiros militares.

§ 1º– A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiaria da União.

[…] §4º– Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares (BRASIL, 1988).

Já a competência do delegado de polícia encontra-se prevista no Código de Processo Penal, por intermédio do Art. 4º: “Art. 4º- A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria” (BRASIL, 1941). Pode-se dizer, então, que a Polícia Federal e a Polícia Civil são responsáveis pelo procedimento administrativo, ou seja, o inquérito policial. A função primeira de um inquérito policial é apurar infração penal (crime ou contravenção) e apresentar indícios de autoria e materialidade. As coletas de provas objetivas serão de responsabilidade da perícia técnica, colhidas a partir dos peritos, médicos legistas e outros profissionais que poderão exercer essa função.

Poderão desempenhar a função de perito as pessoas que tenham formação superior, preferencialmente com conhecimento técnico na área, desde que nomeados peritos “Ad Hoc”, para o fim de realizar o ato, obedecidos o que prescreve a legislação. Já as provas subjetivas serão colhidas pelo escrivão de polícia por meio de ordens da autoridade policial, que, por sua vez, tomarão forma a partir de diligências (como oitivas de todos os envolvidos no fato). Depois de cumpridas as diligências para se buscar a verdade material dos fatos, o perito elaborará o laudo e encaminhará à autoridade policial, a quem compete a elaboração de um minucioso relatório, além de remeter o inquérito concluso para o Poder Judiciário (SOUSA, 2019).

O inquérito policial é um procedimento preparatório para a ação penal, de caráter administrativo, conduzido pela polícia judiciária e voltado à colheita preliminar de provas, para se apurar a existência de uma infração de cunho penal, e, ainda, para se determinar o autor. O delegado de polícia é autoridade responsável por presidir o inquérito policial e poderá requerer, sempre que necessário, ao Poder Judiciário, quaisquer diligências que se fizerem necessárias para elucidação dos fatos, tais como mandados de buscas e apreensão, interceptação telefônica, dentre outras. Vale ressaltar que as polícias judiciárias são órgãos independentes, não sendo subordinados a qualquer órgão, seja ele o Poder Judiciário ou até mesmo o Ministério Público.

Entretanto, o Ministério Público exerce o controle da atividade Policial, o que não se pode confundir com intromissão nas forças policiais. Como diz o professor Guilherme Nucci: “a presidência do inquérito policial cabe à autoridade policial, embora as diligências realizadas possam ser acompanhadas pelo representante do Ministério Público, que detém o controle externo da polícia” (NUCCI, 2010, p. 146). Portanto, conforme o entendimento de Sousa (2019), o delegado de polícia atua de forma autônoma e independente, e, assim, seu papel diz respeito, também, à instauração do inquérito, seja ele por Auto de Prisão em Flagrante (APFD) ou por Portaria. Poderá, ainda, conduzir as diligências preliminares e o termo circunstanciado de ocorrência (TCO) nos crimes cuja pena não exceda a dois anos.

A autoridade policial, no ato de lavratura de um procedimento, exerce poder discricionário, sendo responsável pela observação do caso em tela, de acordo com ordenamento jurídico. Para isso, buscando a celeridade nos procedimentos, aplicam-se os princípios orientadores do direito.

4.1 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NA ESFERA POLICIAL

O Princípio da Insignificância não se encontra previsto em lei, uma vez que se trata de uma criação doutrinária que classifica a sua natureza jurídica como sendo uma excludente da tipicidade, sendo aceita pelo Poder Judiciário. Antes de adentrar a discussão principal, demonstra-se em que consiste a excludente de tipicidade, bem como demonstra-se a posição dos tribunais quanto aos crimes e as situações em que a aplicação deste princípio é pertinente. Conforme posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de análise de um habeas corpus:

Vale ressaltar, que há informação nos autos de que o valor subtraído representava todo o valor encontrado no caixa, sendo fruto do trabalho do lesado que, passada a meia-noite, ainda mantinha o trailer aberto para garantir uma sobrevivência honesta”. Portando, de acordo com a conclusão objetiva do caso concreto, entendo que não houve inexpressividade da lesão jurídica provocada (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 96813/RJ. Relator: ministra Ellen Gracie. Diário Judiciário Eletrônico- DJe, 23 abr.2009).

Portanto, é de extrema importância levar em consideração a condição financeira da vítima, a forma em que se deram os fatos, o resultado do ato e as características próprias do agente. Trata-se de requisitos essenciais à aplicação do princípio, não existindo, assim, para os crimes cometidos contra o patrimônio, um teto máximo que estabeleça algum limite para viabilizar a aplicação da bagatela. Destarte, o Supremo Tribunal Federal, em um de seus julgados, por mais que seja irrisório o valor do bem jurídico atingido, adotou um entendimento contrário à ação da bagatela em razão da subtração de um “Disco de Ouro” pertencente a um músico brasileiro, justificando que o valor sentimental do bem para a vítima era extremamente importante, independente do aspecto econômico da coisa, devido à impossibilidade da substituição da res furtiva. Nesse esteio, posiciona-se Cleber Masson (2019) sobre alguns dos requisitos necessários à incidência do princípio:

É importante destacar que, no âmbito de crimes contra o patrimônio, não há um valor máximo (teto) a limitar a incidência do princípio da insignificância. Sua análise há de ser efetuada levando-se em conta o contexto em que se deu a prática da conduta, especialmente a importância do objeto material, a condição econômica da vítima, as circunstâncias do fato e o resultado produzido, bem como as características pessoais do agente (MASSON, 2019, p. 84).

Entretanto, a doutrina aponta que para que a insignificância seja aplica não há necessidade de que o delito perpetrado seja exclusivamente em face de natureza patrimonial, abrindo o possível leque para a aplicação em delitos das demais naturezas, mas algumas situações obviamente não adaptam-se à aplicação da insignificância, tais como: tráfico ilícito de entorpecentes, homicídio, dentre outras. Todavia, cabe auferir que mesmo que alguns delitos, teoricamente, sejam tidos como irrelevantes, não se pode aplicar à insignificância, como nas seguintes situações: crimes contra o patrimônio em que se tenha grave ameaça ou violência à pessoa, com a motivação de que houve a ofensa a mais de um bem jurídico tutelado, ou seja, ao patrimônio e à integridade física de um sujeito e crimes previstos na Lei de Drogas também são considerados como inadmissíveis de aplicação do princípio da insignificância, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

Seria injusta, então, considerando o contexto apresentado, a aplicação da bagatela para quem esteja com pequenas quantidades de entorpecentes para consumo próprio. Nesse sentido, destaca-se que não se pode deixar aplicar certa penalidade para quem esteja portando pequenas quantidades de drogas, mas não pode-se desconsiderar que a posse de substâncias entorpecentes para consumo próprio fomenta o comércio ilícito de entorpecentes e ajuda a desencadear demais delitos, além de se considerar a hediondez da prática do comércio de entorpecentes.

No entanto, a forma correta de agir será diante de uma análise profunda e com a devida cautela diante o caso concreto para averiguar se a situação comportará e será viável à aplicação do referido princípio, não podendo ser menosprezado o princípio da intervenção mínima estatal que tem como propósito apoiar a aplicação do Direito Penal apenas em caráter subsidiário, ou seja, apenas em último caso, quando for realmente necessário e desde que haja falhas perante às demais esferas de controle existentes. Nesse esteio, tem-se o posicionamento de Rogério Sanches Cunha:

O Direito Penal só deve ser aplicado quando estritamente necessário, de modo que a sua intervenção fica condicionada ao fracasso das demais esferas de controle (caráter subsidiário), observando somente os casos de relevante lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente tutelado (caráter fragmentário) (CUNHA, 2019, p. 77).

As possibilidades que fomentam a aplicação do princípio da insignificância no ramo do processo penal, porém, em contrapartida, discute-se a aplicação deste pela autoridade policial. Atualmente, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, compete exclusivamente ao Poder Judiciário reconhecer e aplicar o princípio da insignificância. Posicionando-se contrário a competência da autoridade policial para aplicá-lo ao caso concreto. Segundo posicionamento do referido tribunal, caso a autoridade policial se depare com a apresentação de um indivíduo preso por furto de um sabonete, por exemplo, deverá determinar a lavratura do auto de prisão em flagrante delito, submetendo o procedimento à apreciação do Poder Judiciário.

Em contrapartida, retirar da autoridade policial o poder de decisão quanto ao nível da gravidade da prática, impondo-se, portanto, o dever de determinar a lavratura do auto de prisão em flagrante delito, ou, ainda, de peça inaugural do inquérito policial, que se manifesta durante a fase inquisitória, com o intuito de investigar a presença ou ausência do crime de bagatela, de forma a não causar grave lesão ao bem jurídico tutelado, ampliará ainda mais a morosidade das decisões a serem proferidas pelo Poder Judiciário. Importante ressaltar que nem todas as comarcas possuem vara especializada criminal, cabendo, geralmente, à um único magistrado analisar todos os procedimentos em tramitação, sejam eles de natureza cível ou criminal.

Contempla-se, ainda, a remessa de demandas criminais irrelevantes, que, de alguma forma, poderiam ser facilmente solucionadas durante a fase de inquérito policial, e, assim, a doutrina alude que o acionamento do princípio da insignificância pela autoridade policial em casos que comportem a sua incidência, causam uma sobrecarga ainda maior, perante, principalmente, à uma persecução penal em juízo de uma infração irrisória. Nesse sentido, torna-se válido apontar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça em sede de análise de um habeas corpus que é totalmente contrário ao acionamento do princípio da insignificância por parte de qualquer autoridade policial:

A Turma concedeu parcialmente a ordem de habeas corpus ao paciente condenado pelos delitos de furto e de resistência, reconhecendo a aplicabilidade do princípio da insignificância somente em relação à conduta enquadrada no art. 155, caput, do CP (subtração de dois sacos de cimento de 50 kg, avaliados em R$ 45). Asseverou-se, no entanto, ser impossível acolher o argumento de que a referida declaração de atipicidade teria o condão de descaracterizar a legalidade da ordem de prisão em flagrante, ato a cuja execução o apenado se opôs de forma violenta. Segundo o Min. Relator, no momento em que toma conhecimento de um delito, surge para a autoridade policial o dever legal de agir e efetuar o ato prisional. O juízo acerca da incidência do princípio da insignificância é realizado apenas em momento posterior pelo Poder Judiciário, de acordo com as circunstâncias atinentes ao caso concreto. Logo, configurada a conduta típica descrita no art. 329 do CP, não há de se falar em consequente absolvição nesse ponto, mormente pelo fato de que ambos os delitos imputados ao paciente são autônomos e tutelam bens jurídicos diversos (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC.154.949/MG. Relator: ministro Felix Fischer. Diário Judiciário Eletrônico- DJe, 03 ago. 2010).

Em caráter complementar ao exposto, preleciona Masson:

Com o devido respeito, ousamos discordar desta linha de pensamento, por uma simples razão: o princípio da insignificância afasta a tipicidade do fato. Logo, se o fato é atípico para a autoridade judiciária, também apresenta igual natureza para a autoridade policial (MASSON, 2014, p.98).

O Ministro Gilmar Mendes, durante o julgamento de habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal, posicionou-se da seguinte maneira: “não é razoável que o direito penal e todo o aparelho do Estado-Polícia e do Estado-Juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância típica a um furto de pequena monta” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2011). Assim sendo, à longa data, o acionamento de tal princípio tem sido alvo de reflexões nos tribunais brasileiros, que, por sua vez, posicionam-se distintamente, a exemplo de uma decisão proferida pelo extinto Tribunal de Alçada:

A determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia não se constitui em um ato automático, a ser por ele praticado diante da simples notícia do ilícito penal pelo condutor. Em face do sistema processual vigente, o Delegado de Polícia tem o poder de decidir da oportunidade ou não de lavrar o flagrante (TACRIM, HC 215.540-1 – 4a C. – rei. Juiz Passos de Freitas, in RT 679/351).

Outrossim, não seria conveniente impor a prisão em flagrante delito pela conduta de subtrair uma simples caneta de alguém que seja proprietário de uma fábrica de canetas, por exemplo. Visto que, por mais que o agente em tese tenha infringido um delito previsto na legislação, há que se frisar que o grau de proporcionalidade e lesividade da prática delituosa não acarreta severos danos à vítima, pois a subtração de uma simples caneta se torna irrelevante à lesão causada ao bem jurídico protegido, ou seja, o exorbitante patrimônio da vítima. Nesse aspecto, enfatiza Masson:

Não se pode conceber, exemplificativamente, a obrigatoriedade da prisão em flagrante no tocante à conduta de subtrair um único pãozinho, avaliado em poucos centavos, do balcão de uma padaria, sob pena de banalização do Direito Penal e do esquecimento de outros relevantes princípios, tais como o da intervenção mínima, da subsidiariedade, da proporcionalidade e da lesividade (MASSON,2014,p. 98).

Destarte, seria ignorância a aplicação do princípio em benefício do agente que, por exemplo, comete o delito de furto de toda a quantia arrecadada durante uma árdua noite de trabalho por uma vendedora de cachorros-quentes, que seria revertida, exclusivamente, para arcar com a própria manutenção e da sua família, atendendo suas necessidades básicas, tais como: alimentação, higiene e outras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve como objetivo, a partir das reflexões aqui elencadas, demonstrar que, apesar de não existir previsão legal explícita em nossa legislação, o princípio da insignificância, como sendo uma criação doutrinária, vem sendo amplamente recepcionado e frequentemente aplicado pelo Poder Judiciário em determinadas demandas. Recentemente, o STF definiu alguns dos requisitos objetivos que deverão ser preenchidos pelo contemplado, para que faça jus às benesses do referido princípio e, assim, evite uma possível persecução penal desnecessária em seu desfavor. Outrossim, após a aplicação do princípio, que é tido como excludente de tipicidade, afastar-se-á totalmente a ilicitude da conduta e tornará o fato atípico.

O princípio da insignificância é acionado em razão de determinadas demandas que não causam grave lesão ao bem jurídico tutelado da vítima, não sendo dignos de apreciação por parte do Poder Judiciário, uma vez que há discrepância entre a conduta do agente e o resultado final e, também, por não ser passível de reprimenda pelo fato do não ensejo à persecução penal devido à atipicidade, tornando, assim, a demanda irrelevante. Ademais, amparado pelo princípio da dignidade da pessoa humana aos casos irrelevantes, é que se resguardará a ação do princípio da insignificância, visto que evitaria incongruências em razão da instauração de um inquérito policial ou pelo dever de imposição do cárcere pela autoridade policial ao tomar conhecimento da prática de meros delitos bagatelares em face de prisão em flagrante delito.

Destarte, o Poder Judiciário, juntamente com o Ministério Público, o qual exerce o controle da atividade externa policial, podem ser contrários ao uso do referido princípio e, ademais, podem requisitar que a autoridade policial que instaure o inquérito policial para analisar a situação. Ressalta-se, ainda, que a autoridade policial, como exímio operador do direito, diante da formação de seu livre convencimento, amparado pela legislação, é quem deverá decidir inicialmente sobre a ação da insignificância no caso em questão, uma vez que é o primeiro a deparar-se com a situação e com seu livre convencimento que, diante da notitia criminis, tem a possibilidade de decisão sobre a ratificação ou não ratificação da prisão em flagrante delito. Nesse aspecto, destaca-se que há um resguardo também na prática do princípio da celeridade, pois evitaria a remessa de simples demandas para apreciação judicial, causando morosidade no sistema judiciário.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, 05 de outubro de 1988.

BRASIL. Decreto-lei nº 3.689 de 03 de outubro de 1941. Institui o Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Brasília, 3 de outubro de 1941.

BRASIL. Decreto-lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940.Código Penal. Diário Oficial da União, Brasília, 07 de dezembro de 1940.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RHC 66869/PR. Relator: ministro Aldir Passarinho. Diário Judiciário- DJ, 28 abr.1989.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 96813/RJ. Relator: ministra Ellen Gracie. Diário Judiciário Eletrônico- DJe, 23 abr.2009.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC.154.949/MG. Relator: ministro Felix Fischer. Diário Judiciário Eletrônico- DJe, 03 ago. 2010.

BRASIL. TACRIM, HC 215.540-1 – 4a. C. – rei. Juiz Passos de Freitas, in RT 679/351.

BRENTANO, G. de. M. A aplicação do princípio da insignificância pelo delegado de polícia. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-fev-28/gustavo-brentano-uso-principio-insignificancia-delegado. Acesso em: 08 mai. 2020.

CAPEZ, F. Curso de Direito Penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2009.

CUNHA, R. S. Manual de Direito Penal: parte geral (Arts. 1º ao 120). 7ª ed. Salvador: jusPODIVM, 2019.

FLORENZANO, F. W. G. Princípio da insignificância no direito penal brasileiro. 2017. Disponível em: www.emerj.tjrj.jus.br/revistadireito emovimento_online/edicoes/volume16_numero1/volume16_numero1_110.pdf. Acesso em: 10 abr. 2020.

LOPES, M. A. R. Princípio da Insignificância no Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

MASSON, C. Direito Penal: parte geral (Arts. 1º ao 120) esquematizado. 8ª ed. São Paulo: Método, 2014.

MASSON, C. Direito Penal: parte geral (Arts. 1º a 120). 13ª ed. São Paulo: Método, 2019.

NUCCI, G. de. S. Manual de Direito Penal. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

PASCHOAL, J. C. Direito Penal: parte geral. 2ª ed. Barueri: Manole, 2015.

SANTOS, A. C. dos. Princípio da insignificância no direito penal: conceito natureza jurídica, origem e relações com outros princípios. 2016. Disponível em: www.jus.com.br/artigos/50370/principio-da-insignificancia-no-direito-penal-conceito-natureza-juridica-origem-e-relacoes-com-outros-principios. Acesso em: 03 abr. 2020.

SANTOS, A. C. dos. A aplicação do princípio da insignificância pela autoridade policial. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50372/a-aplicacao-do-principio-da-insignificancia-pela-autoridade-policial. Acesso em: 07 abr. 2020.

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Princípio da insignificância é aplicado a furto de objetos de pouco valor. 2011. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=173584. Acesso em: 06 mai. 2020.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Glossário Jurídico- Princípio da Insignificância. 2020. Disponível em:  http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=P&id=491. Acesso em: 06 mai. 2020.

[1] Bacharel no curso de graduação em Direito, do Centro Universitário UNA- Campus Bom Despacho/MG.

[2] Bacharel no curso de graduação em Direito, do Centro Universitário UNA- Campus Bom Despacho/MG.

[3] Especialização em Lato Sensu Especialização Em Direito Processual Ci. Aperfeiçoamento em Mulher e Diversidade. Aperfeiçoamento em Empreendedorismo e Gestão para Resultados. Aperfeiçoamento em Gestão de Projetos Sociais. Aperfeiçoamento em Elaboração de PPA. Aperfeiçoamento em Treinamento dos Sistemas PCnet e REDS. Aperfeiçoamento em Promotor de Polícia Comunitária. Aperfeiçoamento em Mulher, vítima de violência doméstica. Aperfeiçoamento em Ciclo de Estudos de Operações Especiais II. Aperfeiçoamento em Ciclo de Estudos de Operações Especiais. Aperfeiçoamento em Aperfeiçoamento de Delegado de Polícia. Aperfeiçoamento em Formação Policial Delegado de Polícia. Graduação em Bacharel Em Direito.

Enviado: Junho, 2020.

Aprovado: Junho, 2020.

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Marcelino de Freitas

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