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O mal-estar, as pequenas diferenças e a agressividade

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CONTEÚDO

ARTIGO DE REVISÃO

GARRIT, Marcio [1]

GARRIT, Marcio. O mal-estar, as pequenas diferenças e a agressividade. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 02, Vol. 01, pp. 146-166. Fevereiro de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/mal-estar

RESUMO

O objetivo desse artigo é analisar o pensamento de Freud, tendo como base o texto de 1930 – mal-estar na civilização, a respeito dos fatores geradores da impossibilidade da felicidade e busca desenfreada dos sujeitos a ela. Como justificativa de tal impossibilidade, analisaremos alguns conceitos que balizem tal pensamento freudiano, como o mal-estar das pequenas diferenças, a agressividade, o papel do supereu e a sua relação pulsional. O presente artigo se dividirá em dois momentos, no primeiro momento abordaremos brevemente o desenvolvimento do pensamento de Freud sobre a busca da felicidade e seus impasses, descrito no texto mal-estar da civilização de 1930, e, no segundo momento envolveremos a relação do sujeito com a diferença e o papel das pulsões agressivas e o superego.

Palavras-chave: Agressividade; laço social; pequenas diferenças; mal-estar; supereu.

INTRODUÇÃO

O objetivo desse artigo é analisar os impasses provenientes do laço social enquanto gerador de bem estar e felicidade, para isso traçaremos um percurso que terá como base o texto de 1930 de Freud, onde o mesmo deixa evidenciado tais impasses.  Sendo assim, Freud, ao escrever o mal estar da civilização (1930) para explicar quais eram seus pontos de vista sobre a felicidade, liberdade e poder, além de elaborar uma crítica considerável sobre o amor e a alteridade. Considera a religiosidade como mecanismo de recuperação do Eu total da infância primitiva, o que vai chamar de sentimento oceânico e com isso deixa claro a impossibilidade de equilíbrio social, pois considera o mal-estar como algo inerente a civilização, fazendo uma ligação direta com a pulsão de morte. Nota-se que Freud utiliza-se do termo Kultur para designar a cultura. Em um primeiro momento, “kultur se apresentaria como tentativa de forjar aquilo que, a princípio, o homem, por sua condição humana, não tem: uma orientação natural.” (SILVA, 2012, p. 48) Desse modo, segundo Silva (2012) esse termo se conceituaria como uma forma de regulação que demonstra a falta inerente à constituição psíquica pela entrada na linguagem.

Freud caracteriza a constituição cultural como dividida em dois tempos, “o tempo da instalação da justiça como princípio de equivalência e o tempo de seu efeito de coerção.” (POLLI, 2004, p.43) Segundo Polli (2004), estes “dois tempos” se encontram bem definidos na formulação do “mito da horda primitiva”, onde Freud marca uma divisão entre o assassinato do pai da horda e uma organização de futuros ideais restritivos a serem seguidos, ou seja, restrições de satisfações. Entende-se dessa forma que Freud deixa caracterizado o nascimento da civilização pela restrição da satisfação do desejo humano. Com isso, qualquer tipo de método que objetive garantir a felicidade terá sucesso sempre parcial e relativo.  O mal estar encontra-se no psiquismo do sujeito como inerente a ele, restando aos laços sociais apenas a possibilidade de mediação dessa falta, ou a geração de mais mal estar. “Os laços sociais estabelecem a história, eles inscrevem ao longo do tempo as formas de enlace que os humanos constituem entre si, o que implica também nas diferentes formas de representar este ato primeiro.” (POLLI, 2004, p.43)

O MAL-ESTAR E SUAS FONTES

Pela teoria psicanalítica, são as restrições que, no mito totêmico, introduzem a organização social, a religião e a moralidade. Os tabus instituídos, antes de qualquer coisa, marcam o direito à vida humana e consequentemente os limites de cada um em relação aos demais. Segundo Freud (1930) A vida humana passa a ter um duplo fundamento, que são a necessidade do trabalho e o amor. O primeiro pelas necessidades sociais e o segundo pelo desejo humano.  Com isso, Eros e Ananke tornam-se os pais da cultura humana. Nessa relação entre o social e o desejo, o sujeito vem estruturando meios para conciliar seu mal-estar individual e do laço social. Em seu texto “O futuro de uma ilusão” (1927), Freud afirma que foram os perigos percebidos pelo sujeito na natureza que motivaram a criação da cultura. Ou seja, “a principal tarefa da cultura, sua autêntica razão de ser, é nos defender contra a natureza.” (FREUD, 1927, p.198) Esses perigos ocasionaram o nascimento do anseio, por parte dos homens, pelos deuses. De acordo com Freud (1927) eles foram criados com a tríplice tarefa de afastar os terrores da natureza, da crueldade dos destinos que acometem os sujeitos e proporcionar um ato compensatório pelos sofrimentos que a vida civilizada impõe.  Freud faz uma analogia da relação ambígua da criança com pai, e sua necessidade de amparo ao procurar a figura de Deus em uma religião. Para o criador da psicanálise, a criança, ao perceber que não recebera a proteção total de sua vida em relação a todos os perigos evidentes na sociedade, desloca para os deuses esse poder, antes, projetado na figura dos pais e criando uma defesa contra o desamparo.

A necessidade de proteção contra o desamparo em que o sujeito se vê ameaçado pela natureza, pelo próprio corpo e seus semelhantes, faz com que institua uma finalidade de vida: a felicidade. Assim sendo, a vida humana acaba por ficar refém desse tipo de objetivo que remete ao impossível, pois o que rege a vida é o princípio do prazer, e tal mecanismo não proporciona o êxito de tais metas. Além disso, a criação dos conceitos de pulsão de morte e compulsão à repetição mostra que tal princípio não se coloca como exclusivo protagonista do aparelho psíquico.

 […] o que revela a própria conduta dos homens acerca da finalidade e intenção de sua vida, o que pedem eles da vida e desejam nela alcançar? É difícil não acertar a resposta: eles buscam a felicidade, querem se tornar e permanecer felizes. Essa busca tem dois lados, uma meta positiva e uma negativa; quer a ausência de dor e desprazer e, por outro lado, a vivência de fortes prazeres. No sentido mais estrito da palavra, “felicidade” se refere apenas à segunda. Correspondendo a essa divisão das metas, a atividade dos homens se desdobra em duas direções, segundo procure realizar uma ou outra dessas metas predominantemente ou mesmo exclusivamente. (FREUD, 1930, p. 29-30)

Sendo o programa do princípio do prazer o gerenciador do aparelho psíquico, embora já desbancado de sua posição de hegemonia pela compulsão à repetição e pulsão de morte, o mesmo “está em desacordo com o mundo inteiro, tanto o macrocosmo como o microcosmo.” (FREUD, 1930, p. 30) Dessa forma, o princípio do prazer proporciona apenas um “morno bem estar, pois nosso aparelho psíquico costuma fruir apenas o contraste e muito pouco o estado.” (FREUD, 1930, p. 31) As possibilidades de felicidade ficam bem restritas. Verifica-se assim, segundo Silva (2012), que Freud institui uma teoria sobre um aparelho que é constituído em torno do problema da satisfação, por um ser não provido de instintos que o guiem, e que, justamente por isso precisa desenvolver formas que objetivem essa satisfação. “O problema é que essas formas serão sempre vividas como forjadas, colocando um hiato estrutural entre a excitação e a satisfação.” (SILVA, 2012, p. 50) Os principais momentos de satisfação se dão quando a criança é amamentada. Mesmo assim, a percepção dessa satisfação já se coloca como falha, pois ao mesmo tempo em que ela é representada, ela é perdida como natural.  Sendo assim, o que se inscreve não é a satisfação e sim o representante da mesma. O que se registra é um traço que viria a representar a satisfação. “A experiência de satisfação é tida como perdida, como deslocada num tempo sempre anterior […] não podendo haver neste aparelho satisfação e saber.” (SILVA, 2012, p. 50) Dessa forma, o aparelho psíquico sempre se dirige a objetos perdidos e supostamente detentores da completude. Vê-se que a busca de eliminação do sofrimento e a manutenção da vida constantemente feliz não é possível em sociedade, o Outro se tornará um objeto sempre transitório em relação aos tamponamentos dessa falta inalcançável. Segundo Freud (1930), o sofrimento humano é inevitável, e esse sofrer nos ataca por três lados: o envelhecer, os acidentes naturais e as relações com os outros seres humanos.

Segundo Mezan (2006) nos relacionamos com o Outro de quatro formas distintas: “ou é objeto da pulsão, ou um meio de obter esse objeto, ou um obstáculo que se interpõe entre este e o sujeito, ou, normalmente, um “modelo” para o sujeito.” (MEZAN, 2006, p. 351) A civilização acaba por ter a função de repressão ou sublimação das pulsões e é na neutralização das pulsões de morte “metamorfoseadas em agressividade, que consiste o essencial do fundamento da cultura.” (MEZAN, 2006, p. 385) Além disso, Freud (1930) cita o uso de drogas como um dos mecanismos de fuga da miséria humana na tentativa de encontro da felicidade, e alerta para o grande nível de desperdício de energia que poderia ser utilizado para algum outro benefício da vida humana e chama atenção para o viés econômico das pulsões que denomina de “selvagens não domadas pelo Eu”, ou seja, dos impulsos proibidos, afirmando que “a sensação de felicidade ao satisfazer uma pulsão selvagem, não domada pelo Eu, é incomparavelmente mais forte do que a obtida ao saciar uma pulsão domesticada.” (FREUD, 1930, p. 34)

Vê-se que apesar de toda dificuldade do mecanismo do princípio do prazer em relação à busca da felicidade, Freud cita um destino possível e menos doloroso das pulsões: a sublimação.  A mesma funciona positivamente ao conseguir “elevar suficientemente o ganho de prazer a partir das fontes de trabalho psíquico e intelectual. Então o destino não pode fazer muito contra o indivíduo.” (FREUD, 1930, p. 35) Essa satisfação é proveniente de produções artísticas ou de elaborações de pesquisas de cunho intelectual. Nota-se que apesar da sublimação ser um bom destino pulsional, Freud (1930) aponta algumas limitações da mesma, tal destino que permite a satisfação pulsional não é de aplicação geral, ao contrário, e não está disponível para todos.  Além disso, o sujeito capaz de sublimar não está assegurado contra o sofrimento, pois o corpo é a única fonte do sofrer.

O MAL-ESTAR NAS PEQUENAS DIFERENÇAS

Como já exposto, percebe-se que o trabalho de Freud, O mal-estar da civilização 1930, é extremamente importante para análises do social e traz em seu conteúdo alguns conceitos que acreditamos ser de grande importância o aprofundamento e compreensão. Um deles é o “narcisismo das pequenas diferenças”. Freud se utiliza desse termo para destacar a falta de tolerância e o que vem junto com esse tipo de afeto. Tal termo, apesar de pouco falado em toda sua obra, acabou se tornando um ponto de discussão entre os psicanalistas até hoje e ainda é muito utilizado para explicar os atos extremistas da pós-modernidade. Sendo assim, a partir de agora, acreditamos ser importante o aprofundamento de conceitos que são evidenciados no trabalho de Freud sobre o mal-estar; além deste já citado, abordaremos o supereu coletivo e a agressividade.

Entende-se que uma forma de iniciar a explicação das pequenas diferenças seria através do conceito de intolerância[2], e também, da compreensão de que a psicanálise é uma teoria da clínica a respeito do sujeito que nasce ao longo de grandes conflitos sociais.  Sendo assim, como a mesma pode nos ajudar a entender as manifestações hostis da civilização da sua época de desenvolvimento e como pensar “psicanaliticamente o ressurgimento histórico da intolerância nos dias atuais?” (FUKS, 2007, p.60) Para isso, cabe um melhor entendimento a respeito do termo “intolerância” e sua ligação com o conceito freudiano de narcisismo das pequenas diferenças.

Segundo Santi (2017) tolerar significa aceitar e seu negativo seria intolerar, o que ocorre na reação defensiva do Eu. Este expulsa o que parece ser ameaçador a ele e com isso percebe-se que um Eu forte é por si só intolerante. A psicanálise também aborda o Eu como “aquele que se faz flexível e busca por soluções de compromisso entre as forças de ação.” (SANTI, 2017, p. 159) A condição humana necessita nos tornar relacionais e a intolerância resiste a essa necessidade, com isso tende a violência e marginalização do sujeito ao outro. A estruturação subjetiva parte desde a origem. Segundo Freud (1914), o Eu tende inicialmente a reter tudo que lhe de prazer e segurança e, com isso, tende a evitar e expelir tudo que for o contrário disso.  “Numa formulação clássica de Freud, o Eu inicialmente se identifica com o bom e projeta o mau: Eu é bom, não-eu é mal.” (SANTI, 2017, p. 160) A partir disso, nas “pequenas diferenças” deslancham uma série de movimentos de segregação, ódio e violência, pois o narcisismo das pequenas diferenças está na base, para Fuks (2007), da constituição do “eu”, do “nós” e do “outro”. Se levado ao extremo, resultará em um comportamento intolerante.

Nota-se que a primeira vez que Freud cita o termo “narcisismo das pequenas diferenças” é em 1918, ao escrever o texto, O tabu da virgindade. Ao analisar os estudos de Crawley sobre os tabus, o criador da psicanálise faz a seguinte citação: ”[…] justamente as pequeninas diferenças, dentro da semelhança geral, motivam os sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles.” (FREUD, 1918, p. 292) Nesse momento, Freud está concordando com os estudos de Crawley sobre os tabus nas sociedades primitivas. “Seria tentador perseguir essa ideia e derivar desse “narcisismo das pequenas diferenças” a hostilidade que em todas as relações humanas combate vitoriosamente os sentimentos de solidariedade e sobrepuja o mandamento de amor ao próximo.” (FREUD, 1918, p. 292)

De acordo com Fuks (2007) Freud escolhe esse trabalho sobre o tabu da virgindade para demonstrar o conceito de “narcisismo das pequenas diferenças” usando a hostilidade à mulher no plano individual e coletivo como pano de fundo para tal. Sabe-se que o “narcisismo das pequenas diferenças” está na base da constituição do sujeito, pois marca uma fronteira que tem por finalidade proteger a unidade, porém, ao ser levado ao extremo resulta em “segregação, racismo, expressões máximas da intolerância ao outro e tolerância ao mesmo.” (FUKS, 2007, p. 61) Tal sentimento de estranheza se dissemina no interior das grandes massas e também no campo político.  Freud, de acordo com Fuks (2007), desde O tabu da virgindade em 1918 até O mal-estar da civilização em 1930, demonstra seu maior interesse, nos textos sócio-políticos, em descrever os fenômenos sociais cujo problema seria a intolerância à diferença. Tais análises são tão primorosas que desde então continuam a ser estudadas.

A intolerância tem tomado protagonismo no século XXI, de acordo com Santi (2017) os grupos identitários, ao reivindicarem seus direitos, acabam por afetar outros grupos que se sentem invadidos por essas reivindicações, e com isso inicia-se uma retroalimentação de ódio, muito comum atualmente. Sendo assim, acabamos por nos posicionar frente a um paradigma, do qual a única saída imediata seria a alienação de si. “Como ninguém está disposto a se aniquilar, grupos cada vez mais fechados se formam, evitando expor os conflitos, procurando se “purificar” e não se misturar.” (SANTI, 2017, p. 164) Vê-se que isso provoca a formação de grupos mais fechados e radicais em suas particularidades, o que representa a vitória da intolerância. Nota-se que é em 1930, em seu texto Mal-estar da civilização, que Freud vai fazer uma análise mais extensa sobre as pequenas diferenças.  No capítulo III, Freud (1930) aponta que o sofrimento da existência nos ameaça de diversas formas, e para suportá-la precisaríamos de paliativos como a ciência, a sublimação ou substâncias tóxicas.  Esse sofrimento tem como sua fonte o corpo, a natureza e o semelhante. Podemos observar sua emergência quando a vida nos coloca em três situações, o envelhecimento e adoecimento do corpo, os acidentes naturais e as agruras dos nossos relacionamentos com os outros homens.  Este último fator, para o criador da psicanálise, torna-se o pior de todos, pois a convivência mostra-se necessária, porém árdua. Tais sofrimentos poderiam ser aliviados pelo amor e pela busca da felicidade, mas segundo Freud, a felicidade é um conceito muito subjetivo e não há uma regra de ouro para alcançá-la, cabendo a cada um buscar a sua.  Mais adiante, no capítulo V, Freud discorre sobre a agressividade dos povos e faz uma definição do conceito do “narcisismo das pequenas diferenças”, que citaremos na íntegra.

Certa vez discuti o fenômeno de justamente comunidades vizinhas, e também próximas em outros aspectos, andarem às turras e zombarem uma da outra, como os espanhóis e os portugueses, os alemães do norte e os do sul, os ingleses e os escoceses, etc. Dei a isso o nome de “narcisismo das pequenas diferenças”, que não chega a contribuir muito para o seu esclarecimento.  Percebe-se nele uma cômoda e relativamente inócua satisfação da agressividade, através da qual é facilitada a coesão entre os membros da comunidade. (FREUD, 1930, p. 81)

Vê-se que as tais pequenas diferenças se colocam como mais um modus operandi da cultura que não cessa de impor sacrifícios ao homem, para Freud (1930). Tais sacrifícios não são apenas da esfera sexual, mas também da agressiva, e nesse aspecto, “o homem primitivo estava em situação melhor, pois não conhecia restrições ao instinto.” (FREUD, 1930, p. 82) Ante esse conflito, “o homem civilizado trocou um tanto de felicidade por um tanto de segurança.” (FREUD, 1930, p. 82) Ao posicionar o sujeito dessa forma, Freud afirma que as relações sociais poderiam ser classificadas como “misérias psicológicas”, pois os sujeitos se ligariam por identificações entre si e as individualidades da liderança poderiam não adquirir a importância devida nas formações das massas. Dessa forma, poderíamos afirmar que “esse fenômeno grupal de amor entre si e ódio aos outros, Freud denominou “narcisismo das pequenas diferenças””. (DRUBSCKY, 2008, p. 51)

Segundo Drubscky (2008) Freud cunhou esse termo das pequenas diferenças para demonstrar as razões pelas quais a intolerância ao outro se estabelece, além de evidenciar a força que as diferenças mínimas têm em relação às demais. Tal expressão tem inspiração na obra de Schopenhauer, mais precisamente na parábola dos porcos espinhos, que diz que estes em um dia de inverno tinham o desafio de ter que encontrar uma boa distância entre si de modo a que a troca de calor fosse suficiente para não morrerem de frio, nem espetados uns pelos outros. Tal parábola nos remete ao fato de não conseguirmos conviver com a possibilidade que o outro não seja um perfeito semelhante, o que “significa que o ódio não nasce da distância, e sim da proximidade. A repulsa do indivíduo […] assim como faz a massa, por um objeto externo, a quem será endereçado o ódio: o estrangeiro.” (DRUBSCKY, 2008, p. 52) Essa tendência real de exclusão de qualquer diferença também vai levar Freud a analisar, como mecanismos de dentro das massas, a identificação do ideal do eu.

O narcisismo das pequenas diferenças encaminha de forma bem clara para a exclusão do outro, o que vem a provocar o isolamento e com isso o surgimento de novos grupos de excluídos, que tendem a se colocarem perante a sociedade, permeados de mágoas, ódios e mais intolerância.

A experiência da exclusão é arrasadora e gera um sentimento de diminuição, não merecimento, desamor. Costuma se seguir a isto o isolamento ou o encontro com outras pessoas na mesma condição, e elas formam um novo grupo, o grupo dos excluídos. Um grupo formado assim por pessoas cheias de ressentimento por terem sofrido exclusão costuma ser ainda mais coeso. Sentindo-se potentes em grupo, eles costumam reproduzir a violência que sofreram e ser especialmente intolerantes. (DE SANTI, 2017, p.165)

Baseado nessa proposta de análise da experiência da exclusão, Santi (2017) propõe uma analogia entre a formação do fetiche e essa sistemática de exclusão. O objeto de fetiche é escolhido por sua proximidade com o encontro negativo da falta, ou seja, a cena do fetiche seria a última coisa vista antes da percepção da incompletude, e é justamente para evitar nosso encontro com essa incompletude que nos detemos na imagem anterior. O “sujeito do fetiche” é o sujeito da recusa intermitente da onipotência.  Dessa forma, ao colocarmos toda nossa atenção no “nós contra eles”, isso nos ajudaria a manter afastados de uma realidade muito difícil.  Assim, é mais fácil continuarmos a ser “seduzidos pelo fetiche”.

[…] em estado de guerra e na urgência em se garantir a própria sobrevivência, não é possível pensar, fazer autocrítica ou qualquer coisa do gênero. Talvez haja até uma conivência coletiva em se manter o estado de urgência. Todos ficam poupados do doloroso exercício de refletir sobre si e as próprias formas com que estamos implicados nas situações de crise. (DE SANTI, 2017, p.169)

O conceito de narcisismo das pequenas diferenças, exposto até o momento, nos deixa entender que a alteridade para psicanálise se colocaria de forma impossível, visto que há uma série de obstáculos em relação ao reconhecimento do outro. Isso nos remete à seguinte questão: “que narcisismo é esse que se enoda com as diferenças para se fazer valer enquanto tal? Ora, é justamente essa a questão central trazida pelo narcisismo das pequenas diferenças.” (REINO; ENDO, 2011, p. 18)

Faz-se importante destacar a análise que Reino e Endo (2011) fazem do conceito do “narcisismo das pequenas diferenças”. Para os autores, tal conceito não é exclusivo das massas, mesmo tento Freud privilegiado tal cenário em suas explanações. Isso se deu devido à força com que ele se manifesta, praticamente sem limites, a ponto de quase sumir a diferença entre os integrantes da massa, e retornando posteriormente de forma externa a eles.  O narcisismo das pequenas diferenças mostra-se como uma garantia da unidade do EU e da singularidade da massa.

Há uma diferença de olhares sobre as pequenas diferenças, em 1921 em relação a 1930. Em 1921, a massa é definida como um “conjunto de indivíduos que colocaram um único objeto no lugar de seu ideal do Eu […].” (REINO, ENDO, 2011, p. 24) Já em 1930, “a união dos indivíduos entre si passa a ser um bom pretexto para exercício da destrutividade.” (REINO; ENDO, 2011, p. 24) Neste momento, Freud se refere ao movimento pulsional nas massas, pois as mesmas também podem “colocar um único e mesmo objeto como destino da pulsão de morte. Unem-se e se identificam entre si, pois há outro a quem se pode hostilizar.” (REINO; ENDO, 2011, p. 24)

Vê-se que, além do conceito pulsional adicionado por Freud ao funcionamento das massas, é o narcisismo que é a todo o momento analisado como um fator conceitual que tenta articular a manutenção da unidade do eu ou da massa, porém agora relacionado à pulsão de morte, pois “afinal, ao que tudo indica essa unidade só se forma e se mantém quando há um outro a quem se destina essa mortífera pulsão.” (REINO; ENDO, 2011, p. 24) Segundo Castiel (2015) ao se retirar a libido dos objetos, o seu retorno ao ego o transforma em objeto único, amoroso.  A libido estando em oposição a Eros, coloca-se imediatamente a disposição da pulsão de morte, ou seja, essa destrutividade se relaciona ao narcisismo. “[…] o sujeito é destrutivo consigo próprio em função do desinvestimento dos objetos e a posição narcisista que esse desinvestimento acarreta.” (CASTIEL, 2015, p. 113) Essa posição nos dá compreensão do potencial de destrutividade em relação ao investimento e desinvestimento, sendo o segundo o aumento dos atos destrutivos “no qual os processos de desligamento triunfam sobre a geração de fontes de prazer ou sobre o desenvolvimento das potencialidades criativas.” (CASTIEL, 2015, p. 114)

MAL-ESTAR E SUPEREU COLETIVO

A civilização não é, portanto, “senão um verniz cultural” que pode rachar a qualquer instante. Eugène Enriquez[3]

Freud (1930) levanta uma questão muito cara ao conceito psicanalítico de supereu em relação à cultura, que nos convoca a uma reflexão mais detalhada sobre tal dicotomia do sujeito e o coletivo.  Ele não se furta de afirmar que o desenvolvimento do aparelho psíquico no sujeito tem grande similaridade a essas mesmas instâncias no social.  Sendo o supereu uma instância muito importante enquanto gestor do psiquismo humano e tendo o mesmo uma ligação tão direta com a cultura, acreditamos ser imprescindível um maior aprofundamento de tal conceito.

Segundo Freud (1930) o supereu é uma instância do aparelho psíquico desenvolvida exclusivamente pela psicanálise.  A essa instância são atribuídas algumas funções, como a consciência, a vigilância dos atos, as intenções do Eu de julgar e as atividades censórias.  O supereu também tem uma ligação com o sentimento de culpa, mesmo antes das ações do supereu, já havia uma ligação inicial de medo do infante às autoridades externas, ou seja, inicia-se no conflito entre a necessidade de amor e o impulso da satisfação pulsional que tende à agressividade em caso de não satisfação.  A esta dualidade, medo do externo versus interno (pulsional), gera o que Freud vai chamar de “arrependimento” (grifo do próprio autor) análogo a um sentimento de culpa.  Não podemos deixar de destacar que Freud atribui uma dureza ao supereu a ponto de nominá-lo de sádico, e com isso articulando sua atividade com o Eu masoquista, ou seja, esse Eu “emprega uma parte do instinto de destruição interna nele presente para formar uma ligação erótica com o Supereu.” (FREUD, 1930, p. 109)

No curso do trabalho psicanalítico aprendemos, para nossa surpresa, que talvez toda neurose esconda um quê de sentimento de culpa inconsciente, que por sua vez fortalece os sintomas ao usá-los como castigo. Agora é plausível formular a seguinte proposição: quando uma tendência instintual sucumbe à repressão, seus elementos libidinais se transformam em sintomas, seus componentes agressivos, em sentimento de culpa. Ainda que seja apenas aproximadamente correta, esta frase merece o nosso interesse. (FREUD, 1930, p. 113)

Para Freud (1930) os sujeitos como integrantes da civilização, não cessam de desenvolver constantes mudanças, e uma dessas mudanças é a de tentar encontrar uma forma de ser feliz individualmente e em convívio social, ou seja, os processos de evolução individual e cultural persistem em uma disputa, conflito que, segundo o criador da psicanálise, beira o irreconciliável. “Quase parece que a criação de uma grande comunidade humana teria êxito maior se não fosse preciso preocupar-se com a felicidade do indivíduo.” (FREUD, 1930, p. 115) Dessa forma, percebe-se que há um conflito entre Eros e pulsão de morte, na cultura, que para Freud, é similar ao conflito entre a distribuição da libido para o Eu e para os objetos externos, dificultando o equilíbrio de ambos. A analogia entre cultura e sujeito é levada a outro patamar de análise, quando Freud conclui que “é lícito afirmar que também a comunidade forma um Supereu, sob cuja influência procede a evolução cultural.” (FREUD, 1930, p. 116)

Percebe-se que o supereu cultural, de qualquer época específica da civilização, tem origem similar ao do sujeito individual, pois toma como base a personalidade que grandes líderes deixaram para aquela cultura. Jesus Cristo é o exemplo utilizado por Freud. Esse supereu cultural também possui severas exigências e ideais para seus membros e o não cumprimento desses ideais é punido com a sensação de angústia e arrependimento. As similaridades do funcionamento entre os ideais do supereu cultural e individual são tão fortes a ponto de que “não poucas manifestações e características do supereu podem ser mais facilmente notadas em seu comportamento na comunidade cultural do que no indivíduo.” (FREUD, 1930, p.117)

O Supereu da cultura desenvolveu seus ideais e elevou suas exigências. Entre as últimas, as que concernem às relações dos seres humanos entre si são designadas por “ética”. Em todos os tempos as pessoas deram enorme valor a essa ética, como se dela esperassem realizações de particular importância. De fato, a ética se dedica ao ponto facilmente reconhecido como o mais frágil de toda cultura. Ela há de ser vista, então, como tentativa terapêutica, como esforço de atingir, por um mandamento do Supereu, o que antes não se atingiu com outro labor cultural. Já sabemos que aqui se coloca o problema de como afastar o maior obstáculo à cultura, o pendor constitucional dos homens para a agressão mútua (FREUD, 1930, p. 117-118)

O supereu possui um grau tão elevado de severidade que parece não demonstrar preocupação com a felicidade do Eu. Tal severidade também não se exclui do modus operandi do supereu cultural, pois, assim como o primeiro, este não se preocupa com os limites do sujeito, pois “emite uma ordem e não se pergunta se é humanamente possível cumpri-la.” (FREUD, 1930, p. 118) A possibilidade de controle sobre o Id é limitada, e exigências em demasia ocasionarão sintomas neuróticos geradores de grande infelicidade. É importante salientar que todo esse movimento da cultura para resguardar-se só evidencia o perigo da agressividade humana que Freud vai chamar de “poderoso obstáculo” contra o desenvolvimento da mesma. A analogia entre o desenvolvimento e funcionamento do supereu individual e do supereu cultural (ou coletivo) mostra seu ápice com o questionamento de Freud sobre as influências culturais na neurose. “Se a evolução cultural tem tamanha similitude com a do […] possivelmente toda a humanidade – tornaram-se “neuróticas” por influência dos esforços culturais?” (FREUD, 1930, p. 120-121)

Segundo Rudge (1999), o supereu é uma instância que tem como função fazer a comparação do Eu com seu ideal. Ao perceber um distanciamento entre ambos, o supereu censura e pune o Eu, ou premia o mesmo com seu amor em caso contrário. O ideal do eu é algo que resta da antiga imagem dos pais e o investimento no mesmo é “sem dúvida necessário para que o supereu preserve seus laços com a consciência moral.” (RUDGE, 1999, p.3) Fica para o complexo de Édipo a função de constituição do supereu. A partir da castração, o complexo de Édipo é dissolvido e os vínculos objetais são superpostos por outras identificações e com isso a autoridade paterna é introjetada no supereu dando continuidade a perpetuação da proibição do incesto.  Uma dessexualização é necessária para que o complexo se dissolva e com isso o sujeito se integre à cultura. “O supereu assume então uma função positiva e aculturante, tratando-se de um supereu portador do ideal do eu.” (RUDGE, 1999, p.3)

Segundo Enriquez (2005) é necessário que as pulsões agressivas e de morte não se propaguem na cultura, elas precisam ser escoadas de outra forma em outros lugares para que a mesma não se finde, seja nas guerras ou no trabalho produtivo; sem paz não há como ter prosperidade. “Quando, então, uma civilização quer se perpetuar (não recair num mundo onde só as pulsões teriam o direito de reger), ela é forçada a recalcá-las, reprimi-las ou, ao menos, canalizá-las.” (ENRIQUEZ, 2005, p. 167) Dessa forma se mostra necessária a intervenção do estado através de suas leis restritivas. Sendo assim “o estado vai, então, tomar o lugar de um supereu coletivo, que reforça a angústia normal de todo ser humano diante da autoridade.” (ENRIQUEZ, 2005, p. 168) Segundo o autor, esse supereu coletivo, na maior parte do tempo, não se demonstrará severo e sim como uma instância estruturante.

A AGRESSIVIDADE, A CULPA E O MEDO

Que significa para Freud o termo cultura? Segundo Mezan (2006), Freud não se preocupa em diferenciar os termos cultura de civilização e os via em intimar relação. Sua função era “assegurar a produção dos meios de subsistência diante de uma natureza profundamente hostil.” (MEZAN, 2006, p. 371) Para satisfazer essas exigências, que esbarram na hostilidade das “forças naturais”, o indivíduo foi obrigado, pela desproporção entre seus meios físicos e a violência da natureza, a se associar a outros indivíduos, o que impõe determinadas limitações à satisfação de suas pulsões. (MEZAN, 2006, p. 371) Dessa forma há uma dicotomia, presente na civilização, entre o sistema de produção e o sistema de relações entre indivíduos.

Segundo Mezan (2006) para que haja o desenvolvimento da cultura, a energia da libido deve ser desviada em suas metas originais, caso contrário haverá possibilidade do fim da mesma. Apesar desse “diagnóstico”, o autor deixa claro que limitar a continuidade e a construção da cultura à sublimação e à repressão das pulsões seria generalizar toda a complexidade que a cultura tem. Recomenda-se uma análise não generalizada da mesma para que só então percebamos seus limites de forma mais clara.

Partindo-se do princípio estrutural da cultura, sabe-se que o totemismo, mito que teve a função de esclarecer as alianças fraternas, foi o gerador do complexo de Édipo e com ele surgem “conjuntamente a ordem política, o direito, a moral e a religião: essas quatro regiões da vida cultural são a princípio uma só e mesma coisa.” (MEZAN, 2006, p. 376) Ao expor essa teoria, Freud suprime a diferença entre social e individual e marca a solidez da mesma.  “A inserção do indivíduo na cultura irá processar, assim como uma repetição em cada caso, do evento inaugural.” (MEZAN, 2006, p. 376) Tal repetição se estende a vários atos da vida do sujeito em cultura.

Freud constitui duas bases para iniciar as explicações sobre as origens da cultura, de acordo com Mezan (2006); parte inicialmente de uma explicação biológica, fazendo uma analogia da passagem da posição quadrúpede para a bípede, e pontua as consequências de cunho psíquico de tal mudança; posteriormente, a teoria mítica e histórica proveniente de seu mito científico Totem e tabu (1913), tendo como foco as mudanças nas relações sociais e a entrada do sujeito na cultura, obviamente, com um preço alto a se pagar por esse sujeito. Pois, a civilização, para existir, deve sublimar ou reprimir seus impulsos sexuais e ou de morte e “podemos ver que, mais do que na repressão das primeiras, é na neutralização das segundas, metamorfoseadas em agressividade, que consiste o essencial do fundamento da cultura.” (MEZAN, 2006, p. 385)

A partir do Mal-estar da civilização de 1930, a destrutividade do homem é colocada em destaque. “Não é mais surpreendente, a esta altura, encontrar a agressividade como tendência constitucional do ser humano.” (MEZAN, 2006, p.388) Ainda de acordo com Mezan (2006) todo esse “mal-estar” apontado por Freud tem como maior derivação a repressão da agressividade e nem tanto a sexualidade, essas duas não se apresentam isoladas, porém é na primeira que as barreiras psíquicas terminam por se apresentar mais.

O sacrifício imposto ao homem, porém, é para Freud mais poderoso do que as possibilidades de satisfação pulsional oferecidas pela cultura, e isso não apenas devido às limitações crescentes impostas à sexualidade, analisadas anteriormente, mas também e, sobretudo por causa da coerção, muito violenta, das tendências agressivas. É por meio do superego e do sentimento de culpabilidade que se dá essa coerção; cabe agora, portanto, estudar mais de perto a vertente cultural desses elementos psíquicos. (MEZAN, 2006, p. 388-389)

Vê-se a importância de nos atermos a essa coerção da agressividade e com isso tentar entender o que pode acontecer com as pulsões nesse regime civilizatório coercitivo. Em relação à pulsão de morte, há menos alternativas, pois a sua exteriorização de forma agressiva fará com que uma parcela se alie à libido, a outra ficando em estado livre para defesa ou ataque, porém sua maior parte será reintrojetada. O “superego vai assumir essa função e exercer contra o ego a agressividade que este teria preferido exercer contra outros.” (MEZAN, 2006, p. 389) Sendo assim, ego e superego se relacionarão sob uma tensão gerando culpa. Nota-se que sentimentos como culpa, agressividade, medo e outros, tornar-se-ão o foco das atenções para Freud, em sua teoria da pulsão de morte e do supereu, e a esse percurso nos ateremos a partir de agora.

Freud, ao longo do capítulo VII do Mal-estar da civilização, se questiona sobre a luta que os sujeitos travam entre si a ponto de prejudicar o desenvolvimento do meio em que vivem.   Com isso surge para o autor a pergunta de possíveis meios que possam inibir esses excessos agressivos que ameaçam a cultura. Essa busca aos possíveis meios de contenção faz Freud partir de uma análise da própria evolução individual do sujeito. O mesmo acreditava que o sujeito adotava o mecanismo de introjeção da agressividade, que então irá descarregar tomando como objeto o próprio Eu do sujeito.  Dessa forma uma parte dessa agressividade é acolhida pelo Eu e se opõe à outra parte que é acolhida pelo Supereu e usada como consciência moral de fundo bastante agressivo para oprimir o Eu. “A tensão entre o rigoroso Supereu e o Eu a ele submetido chamamos consciência de culpa; ela se manifesta como necessidade de punição.” (FREUD, 1930, p. 92) Com isso, percebe-se que uma forma de controle da agressividade individual parte de uma instância que o sujeito carrega consigo.

Vê-se que não é apenas pela via da análise da agressividade que Freud aborda a instância de controle do sujeito em relação a si mesmo. Afetos como culpa e medo também fazem parte de seu arcabouço teórico. A culpa surge no indivíduo mediante dois tempos. Inicialmente diz respeito à realização efetiva de um ato proibido. Com o advento do supereu, basta ter pensado ou desejado tal ato, para que a culpa se estabeleça. A primeira fase tem ligação com a ética social e se origina no medo de perder o amor dos pais. O segundo é ligado diretamente ao supereu. O conflito é onipresente. O mal não é, “em absoluto, uma coisa nociva ou perigosa para o Eu, mas, pelo contrário, algo que ele deseja e que lhe dá prazer.” (FREUD, 1930, p. 93). Por que então, ao mesmo tempo em que algo é desejado intensamente, é recalcado? Medo e angústia seriam as respostas. Freud deixa claro que o medo aqui tratado é da perda do amor do Outro primordial. Essa possibilidade de perda gera o medo e faz com que o sujeito abandone a vontade de exercer o mal. Faz-se importante ressaltar que, uma vez internalizada a autoridade, o ato proibido não precisa ser efetuado, pois o mero desejo é identificado pelo supereu, pois “ante o supereu nada se pode esconder.” (FREUD, 1930, p. 95)

Segundo Mezan (2006) o objetivo de Freud era provar que o sentimento de culpa era indissociável da civilização, e que é o fator “produtor” de mal-estar.  Pois, a angústia de castração seria uma forma de revivescência, inconsciente, do parricídio. O sentimento de culpa tem origem no assassinato do pai da horda, que é repetido no psiquismo individual, e se fortalece a cada nova punição por parte do supereu.  Esse sentimento estará sempre presente expressando a ambivalência do conflito pulsional de cada sujeito, “mas também a luta eterna entre Eros e a pulsão de destruição.” (MEZAN, 2006, p. 391) Essa luta resulta do desenvolvimento da neurose na cultura, pois quando recalcados, os componentes da libido se transformam em sintoma, e os componentes agressivos do sintoma em sentimento de culpa.

Freud, em sua correspondência com Einstein, no texto intitulado Por que a guerra? de 1932, continua trabalhando conceitos importantes sobre a agressividade humana, as relações pulsionais dos sujeitos na cultura assim como o direito, poder e violência. Para Freud (1932) o conflito de interesse entre os sujeitos resolve-se pela violência devido aos conflitos de opinião, e o desenvolvimento da intelectualidade não foi suficiente para que isso cesse. A morte do oponente acabaria por satisfazer o que Freud vem a chamar de “inclinação pulsional”. A destrutividade só pode ser minorada com a união da maioria contrária ao exercício da violência, e com a inserção, como direito, à proteção dos indivíduos. Porém, Freud avisa que “as coisas se complicam pelo fato de que desde o princípio a comunidade abrange elementos de poder desigual.” (FREUD, 1932, p. 422) Esses direitos acabam por se tornar expressões de relações de poder totalmente desiguais, pois, “as leis são feitas por e para os que dominam, reservando poucos direitos para os dominados.” (FREUD, 1932, p. 422) Com isso as classes dominadas podem se rebelar e facilmente chegar a guerras civis.

Percebe-se que além das relações violentas e de poder, Freud (1932) volta a articular a sua teoria pulsional com a cultura, dividindo as pulsões entre em Eros e Thânatos, ou seja, as que conservam e as que matam. Para o criador da psicanálise, esses dois pólos não podem agir sozinhos e são importantes para a continuidade da vida humana. O problema se dá quando o sujeito, a partir da sua agressividade excessiva, toma como meta a conservação de sua vida destruindo a vida alheia.  Isso acontece por que uma parte da pulsão de morte permanece ativa internamente e, de acordo com Freud, “nós procuramos derivar toda uma série de fenômenos normais e patológicos dessa internalização do instinto de destruição.” (FREUD, 1392, p. 429) Mas afinal, “não há perspectiva de poder abolir as tendências agressivas do ser humano.” (FREUD, 1392, p. 429)

Nota-se que uma das partes mais curiosas do diálogo de Freud com Einstein, acreditamos, se dá no momento em que o criador da psicanálise nomina sua teoria pulsional como mitológica e, além disso, propõe uma solução linear para o controle de Thânatos. Segundo Freud (1930) a disposição para a guerra é decorrente das inclinações das pulsões de morte e o ideal seria lançar mão ao seu contrário, Eros.  Este último produz laços de natureza amorosa ou identificatória.

Freud (1932) considera de alto valor o desenvolvimento intelectual e a internalização da agressividade, a primeira tendo como fim o domínio da vida instintual e a segunda como limitadora de Thânatos. Sendo assim, poderíamos concluir que “a civilização se constrói, então, sobre as ruínas da liberdade individual.” (ENRIQUEZ, 1990, p. 12) Pois, para que haja cultura, tudo do que, no sujeito, constitui seus desejos e inclinações devem ser constantemente substituídos, seja da maneira que for levando à supressão de uma parte constituidora de sua natureza psíquica.

O exposto até aqui nos leva à consideração da força da pulsão de morte na civilização e suas consequências na cultura. Eugène Enriquez em seu livro Da horda ao estado – Psicanálise do vínculo social de 1990, ao analisar o papel da mesma no mal-estar da cultura, corrobora o exposto, usando a expressão: “o triunfo da pulsão de morte” (ENRIQUEZ, 1990, p. 117). Para o autor, o próprio controle das forças da natureza já é uma manifestação da pulsão de destruição. Nesse caso Thânatos se estabelece como força manipuladora dos meios de transformação e destruição na relação do sujeito com o meio em que vive. Dessa forma, quanto mais Ananke (necessidade) leva os homens a transformarem a natureza, mas deixa o campo livre para Thânatos. Importante destacar que Eros não é jamais eliminado, mas ficou a serviço da pulsão de morte. Vê-se que as civilizações aumentam a infelicidade do sujeito e não oferecem nada à altura para substituição, com isso caem em um paradoxo: quanto mais se afirmam mais tendem a desabar, pois “o momento de glória das civilizações é o início de suas decadências.” (ENRIQUEZ, 1990, p. 118) Isso deixa claro que a direção das civilizações tende sempre à ruína. “Uma esperança mínima subsiste, a de que seja possível analisar o funcionamento das civilizações e de fazê-las, assim, sair do círculo infernal da repetição.” (ENRIQUEZ, 1990, p. 118) Defender as civilizações e a felicidade do sujeito torna-se algo de intensa complexidade, porém estava na pauta de Freud tal defesa, mesmo pontuando a renúncia da satisfação pulsional e o triunfo de Thânatos, pois ele afirmava que a pulsão de morte não deve ser vista apenas como de destruição contra a qual a todos devemos lutar, pois Eros e Thanatos operam sempre amalgamados.

Eros pressupõe do desejo do outro, seu reconhecimento e reciprocidade e a civilização fascínio amoroso e identificação narcísica.  Dessa forma, vê-se que Eros está presente no início do vínculo libidinal, mas quando este último se dirige a “unidades cada vez maiores”, ele se rende, sem o saber, ao trabalho da pulsão de morte que se expressa pelo fascínio hipnótico dual do tipo sadomasoquista (chefe submisso), pelo mimetismo e a submissão ao mesmo ideal. (ENRIQUEZ, 1990, p. 119)

Para Enriquez (1990), Freud já tinha feito essa advertência em seu texto de 1921 Psicologia das massas e análise do eu ao afirmar que os grupos são formações homossexuais e não podem aceitar amor que considere as diferenças ou provoquem rupturas, além da fixação em seu ideal de ego.  Já em Mal-estar na cultura de 1930, Freud descreve de forma relevante o papel do superego que, enquanto ditador desse ideal acaba por se tornar o terreno onde prevalece a pulsão de morte.  Este tem um caráter rígido e até cruel, e com isso cria sentimento de culpa coletiva necessários para a manutenção da civilização.

Sendo assim, segundo Enriquez (1990) a pulsão de morte acaba por mostrar seu papel determinante e também necessário enquanto pertencente à essência da própria civilização, em suas manifestações de massificação, repetição, unidade e destruição.  Isso nos faz concluir que a civilização é “sempre produto de conflitos, paradoxos, contradições, fruto da invenção social, da negociação e da elucidação.” (ENRIQUEZ, 1990, p. 120)

CONCLUSÃO

Para concluir, de acordo com Ceccarelli (2009), mesmo que haja um constante crescimento de objetos de satisfação ou métodos de repressão, nada disso cessará os conflitos entre os sujeitos. Os métodos de evitação do sofrimento não são passiveis de serem transmitidos e com isso, cabe aos sujeitos um eterno recomeçar em suas vidas. A cultura cria e evidencia estratégias, enganosamente novas, para mascarar o mal-estar que é inerente a ela.

Ao situarmos a civilização enquanto ferramenta de tornar suportável a frustração da existência, automaticamente, atribuímos à cultura e aos que fazem parte dela a tarefa hercúlea de criação de métodos que fortaleçam a estrutura dos laços sociais a ponto de não permitir um grau de rompimento em que Thânatos encontre um cenário ideal para conclusão de seu trabalho. Percebemos que, ao longo da história da humanidade, as soluções para os conflitos e crises, sejam internacionais, nacionais ou regionais, terminam sempre por uma saída de satisfação narcísica, nos levando a concluir, de acordo com Ceccarelli (2009) que o laço social apenas mantém ilusões.

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[2] De acordo com Fuks (2007) este termo surge a partir do século XVI com o intuito de estabelecer parâmetros de tolerância a respeito da diversidade religiosa.  Com o iluminismo esse termo tem seu significado revisto devido ao radicalismo antirreligioso.

[3] ENRIQUEZ, Eugène. Psicanálise e ciências sociais. Ágora (Rio J.),  Rio de Janeiro,  v. 8, n. 2, p. 168, 2005.

[1] Psicanalista e Filósofo. Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC/RJ. Mestre em Psicanálise, cultura e sociedade – UVA/RJ.

Enviado: Setembro de 2020

Aprovado: Fevereiro de 2021

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Marcio Garrit Pereira

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