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A fenomenologia da percepção sobre a corporeidade em Merleau-Ponty

RC: 146473
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/fenomenologia-da-percepcao

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

RÖNNAU, Gabriel Rodrigues [1]

RÖNNAU, Gabriel Rodrigues. A fenomenologia da percepção sobre a corporeidade em Merleau-Ponty. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 07, Vol. 01, pp. 147-157. Julho de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/fenomenologia-da-percepcao, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/fenomenologia-da-percepcao

RESUMO

O intuito do presente artigo é apresentar uma introdução e uma análise contextual da obra de Maurice Merleau-Ponty, através do conceito central de corpo e de ser encarnado – de suas consequências em relação à manifestação fenomenológica sobre a concepção da unidade sintética do Ser-no-mundo e a compreensão da percepção como núcleo do entendimento existencial: como ponto de contato da interioridade e de sua manifestação no mundo. A abordagem visa em contextualizar a metodologia da pura fenomenologia como ciência de rigor a partir da tese que aborda o corpo como centro da percepção fenomênica, de onde a problemática é relativa à configuração perceptiva da teoria estrutural e gestáltica – serve como parte de uma hermenêutica existencial através da dimensão da linguagem como expressão humana corporificada.

Palavras-chave: Fenomenologia, Corpo, Percepção, Linguagem, Gestalt.

1. INTRODUÇÃO

Maurice Merleau-Ponty, ao lado de Edmund Husserl, certamente é um dos maiores expoentes da tradição fenomenológica de filosofia; seu trabalho constitui-se como uma continuação – e ao mesmo tempo como uma ruptura – com a disciplina fenomenológica elaborada por Husserl: a ruptura está na apreensão metodológica dos fenômenos a partir da concepção de corpo como centro da percepção do mundo e como expressão da subjetividade e da consciência circunstancial – como um novo parâmetro das ciências físicas da lógica existencial sobre o próprio corpo no modo de expressão da consciência. A fenomenologia é a ciência dos fenômenos: todos os problemas filosóficos, nesse sentido, são problemas de essências efetivas – em suas existências espaço-temporais. A fenomenologia merleau-pontiana pensa a ciência através do desvelamento e da exteriorização do fenômeno no mundo: as facticidades do homem e do mundo são postas como dois polos que exemplificam os problemas estruturais de percepção como um pressuposto anterior ao pensamento que fundamenta o empreendimento científico. A proposta do presente artigo é apresentar e introduzir a filosofia do autor através do conceito central de corpo como centro ativo de uma percepção contínua, que se relaciona como um diálogo intersubjetivo em um mundo de presenças encarnadas – de como a linguagem e gestos desses corpos fundamentam a apreensão estrutural da consciência como expressão da interioridade. A metodologia do presente artigo é de cunho qualitativo, tendo em vista a bibliografia do autor e artigos relacionados com essa proposta.

2. O CAMPO FENOMENAL

A filosofia fenomenológica define-se pelo seu fundamento primeiro de uma descrição do mundo intencional – de onde a compreensão busca apreender os movimentos que dão-se como que por detrás da matéria, como movimentos ideais que dão vida ao mundo como ser-aí de expressão da consciência encarnada. Essa primeira ordem que Husserl dava à fenomenologia iniciante de ser uma psicologia descritiva, ou de retornar às coisas mesmas, é antes de tudo a desaprovação da ciência abstrativa, pois que a pessoa, existencialmente considerada, não é um entrecruzamento de múltiplas causalidades que determinam o próprio “psiquismo”, já que não se pode pensar a si-mesmo como simples objeto das ciências. Tudo o que se sabe do mundo se sabe a partir de uma visão ou de uma experiência de mundo sem a qual os símbolos da ciência não dizem nada de significativo. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e a pretensão de pensar o rigor metodológico é também apreciar exatamente seu sentido; volta-se à compreensão puramente imanente da corporeidade como Ser-no-mundo. A ciência não tem o mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma tentativa de sua determinação explicativa – o eu sou é de natureza absoluta e anterior às abstrações racionais, e sua vitalidade é o próprio princípio do qual emana a validade das ciências objetivas, porém que, isoladas, nada seriam de fato senão fabricações. A experiência não provém de um mundo a priori isolado, ou seja, de um ambiente físico ou social abstrativo e puramente universal. Retornar às coisas mesmas é retornar ao mundo anterior ao conhecimento e do qual o mesmo se dirige, em relação ao qual toda determinação científica é apenas abstração (MERLEAU-PONTY, 2018, pp.1-6).

A reflexão tomada em-si torna obscuro o pensamento que se afirma como evidente. É comum pensar ser evidente o que seja o sentir, o ver, o ouvir; porém a natureza das percepções sempre será um problema, já que se é convidado a retornar à experiência em seu caráter originário para observar o caráter propriamente subjetivo e idiossincrático dessas percepções. A noção originária da sensação não é definida por um caráter reflexivo, porém como um produto tardio de um pensamento voltado aos objetos, e, por isso, tornado mais obscuro. O que afirma a teoria da gestalt é que se pode apenas compreender as partes pela apreensão anterior do todo, e o mesmo se repete na compreensão das percepções como partes de um todo maior que se efetua na corporeidade efetiva – o que escapa de um tipo de reducionismo científico em suas análises, para, através da fenomenologia, abrir um novo tipo de inteligibilidade das percepções em sua forma corpórea e encarnada (Id., 2018, pp.23-33). O problema fenomenológico é compreender as relações singulares que se tecem entre as partes de uma paisagem, ou entre uma paisagem que compõe o ego enquanto sujeito para-si, pela qual um objeto pode ser percebido. O sentir corpóreo, portanto, se faz presente na fenomenologia como comunicação vital da subjetividade com sua circunstância, e é nesse ínterim que a intencionalidade se afirma como pressuposto do conhecimento (Id., 2018, p.84).

O corpo enquanto fenômeno imanente que se expressa na consciência para-si é capaz da alteridade e do contato com o outro, o qual retorna para a subjetividade como um objetivo. Merleau-Ponty afirma que é apenas possível a compreensão da intencionalidade do outro através da capacidade de tornar a intencionalidade personalizada pelo próprio corpo. Assim encontra-se em seu pensamento um lugar especial para o corpo, pois que lhe é atribuído uma potência expressiva imanente (FURLAN, BOCCHI, 2003, p.449). Por essa razão, a tarefa da fenomenologia é revelar esse mundo vivido antes de ser significação, mundo em que se é posto e se vive na coexistência do outro. Um mundo que é solo de todos os encontros, em que se descortina a história em seus momentos construtivos. Sendo assim, a sua fenomenologia é centralizada pelo conceito de intencionalidade: a percepção e a intencionalidade unem-se para formar uma integralidade existencial do homem em sua estrutura (FRANCO; SANTOS; CAMINHA, 2020, p.9).

É constatado pela primeira vez aquilo que é verdadeiro de todas as coisas percebidas: que seu ser e sua espacialidade não constituem duas coisas distintas. A percepção do objeto exige a percepção do espaço como extensão corporal. O intelectualismo acaba reduzindo o espaço à coisa mesma, porém a experiência revela o caráter indissociável entre a coisa e o espaço que ocupa, pois que ser corpo é estar posto no mundo, e possuir um corpo é estar inserido no espaço (MERLEAU-PONTY, 2018, pp.205-208).

O pensamento não possui a característica de ser interior, pois que não existe fora do mundo e fora das palavras. Na verdade, o pretenso silêncio interior é coberto por palavras: a fala mesma é um gesto e contém seu sentido – é isso o que torna possível a comunicação. Para que se possa compreender a fala do outro, é preciso que sua sintaxe já seja conhecida previamente, mas isso não significa que as falam agem suscitando representações. Não são com representações que se forma a comunicação, mas sim com a percepção de um sujeito falante em seu estilo de fala e seu estilo de ser, com o mundo que visa para-si. A intenção que põe em movimento o significativo em outro é o vazio que procura preencher-se; não se trata de um pensamento, mas uma transformação que ocorre no ser existencial. A visão sobre o homem continuará a ser artificial enquanto não for remontado a expressão à sua origem; enquanto não for reencontrado, sob o ruído da fala, o silêncio primordial: enquanto não for descrito o gesto que rompe esse silêncio. A fala é um gesto, e sua significação um mundo (Id. 2018, pp. 241-249).

Na perspectiva da autopoiésis, o sistema não se forma de acordo com um progresso linear, como se o início e fim fossem diferentes em uma mesma compreensão, mas sim o sistema é um círculo, de onde o início e fim se relacionam em um mesmo ponto. O próprio sistema pode modificar a si-mesmo – não predomina o determinismo, o que significa que o próprio sistema tem as condições de manifestar-se de forma que se estabeleça uma dinâmica com o ambiente de forma estrutural e total. Considerar o corpo em movimento como um sistema autopoiético é reconhecê-lo como fenômeno. As percepções, portanto, são abertas para diversos horizontes, até mesmo contraditórios entre si-mesmos, de modo que, quando revelam uma face, a outra se torna invisível e oculta. Nesse sentido, a percepção mesma é o que garante a relação entre o dado e o seu correspondente significado. A percepção, na fenomenologia do corpo, se torna a chave interpretativa, a forma de tornar mais claro o fenômeno do conhecimento como reflexividade no mundo-da-vida. A cognição depende da experiência que se vincula ao contexto corporal e de sua história como biografia e como continuação de uma comunidade como corpo social, o que considera a cognição como parte de uma interdependência entre o organismo e o ambiente, dentro de sua circularidade. A cognição se efetua no corpo, e para compreender o sentido dessa enação se faz necessário compreender o seu aspecto recursivo, que é a autonomia de um sistema vivo (NÓBREGA, 2008, p. 145).

Para Merleau-Ponty a configuração da totalidade fenomênica é onde o corpo vivido encontra as estruturas padronizadas do mundo, e assim forma-se o significado. De fato, a estrutura para a experiência é criada nessa interação vivida. Nessa interação, estruturas gestálticas perceptivas e significativas são formadas. Essas estruturas são experimentadas como um primeiro plano articulado contra um fundo ou horizonte de apoio menos focado. As estruturas de fundo são necessárias e ajudam a trazer o primeiro plano em foco, mas elas mesmas permanecem implícitas. Eles são as linhas de forças invisíveis que ajudam no emergir do significado; são nesses quadros que a gestalt invisível alinha o percebido, que permite que ele seja o que é (LOW, 2000, p71).

Diremos então que há um olhar do dentro, um terceiro olho que vê os quadros e mesmo as imagens mentais, como se falou de um terceiro ouvido que capta as mensagens de fora através do rumor que suscitam em nós? Para quê? Toda a questão é compreender que nossos olhos já são muito mais que receptores para as luzes, as cores e as linhas: computadores do mundo que têm o dom do visível, como se diz que o homem inspirado tem o dom das línguas. Claro que esse dom se conquista pelo exercício, e não é em alguns meses, não é tampouco na solidão que um pintor entra em posse de sua visão. A questão não é essa: precoce ou tardia, espontânea ou formada no museu, sua visão em todo caso só aprende vendo, só aprende por si mesma. O olho vê o mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele próprio, e, na paleta, a cor que o quadro espera; e vê, uma vez feito, o quadro que responde a todas essas faltas, e vê os quadros dos outros, as respostas outras a outras faltas. […] Não importa a civilização em que surja, e as crenças, os motivos, os pensamentos, as cerimônias que a envolvam, e ainda que pareça votada a outra coisa, de Lascaux até hoje, pura ou impura, figurativa ou não, a pintura jamais celebra outro enigma senão o da visibilidade (MERLEAU-PONTY, 2004, p.19s).

3. A INTERPRETAÇÃO ESTRUTURAL DA PERCEPÇÃO

A tradição cartesiana habitua a reflexão filosófica ao isolamento do sujeito em-si através do abandono do objeto, isso porque a atitude reflexiva purifica simultaneamente a noção comum do corpo e da alma, considerando o corpo como ausência de interioridade, e a alma como a interioridade considerada em-si mesma, sem distância. O Ego permanece, assim, transparente a si-mesmo como pura interioridade, como sujeito que constitui a si-mesmo no momento em que pensa a si-mesmo; separando, portanto, sujeito e objeto em-si. A existência, quando considerada em seu papel filosófico, possui dois sentidos: existe-se como coisa, ou existe-se como consciência; porém é da própria experiência do corpo que se estabelece e se revela uma ambiguidade essencial em sua existência. A existência e a experiência de um corpo revela um drama onde todas as funções corporais se entrelaçam entre papéis de sujeito e objeto, o que revela, portanto, o caráter do corpo como uma fusão e uma transcendência de seu papel meramente objetivo, e a consciência como interioridade passa a ser papel integral do corpo existente, isso é, não é possível possuir uma ideia clara do que seja a corporeidade, não se pode decompor o corpo em sua objetividade em-si, é preciso resgatá-lo em sua unidade implícita.

Quer se trate do corpo de outro ou do corpo próprio, não se possui outro meio de conhecer o corpo humano senão pela sua vivência e pela sua experiência, ou seja, se trata de vivenciar o drama próprio e de confundir-se com ele. Portanto, o ser humano pode se afirmar como corpo exatamente na medida em que possui um saber adquirido, e, nesse sentido, se é um sujeito natural corpóreo, como um esboço prévio do sujeito em sua totalidade. Assim, a experiência corpórea opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o sujeito do objeto, separando o pensamento do corpo com o corpo em sua atividade natural. Em Descartes esse singular saber que se possui sobre o corpo próprio ocorre apenas em função do conhecimento por ideias, porque anterior ao ser humano como de fato ele é; encontra-se, então, Deus enquanto autor da situação efetiva. Apoiado nessa garantia transcendente, Descartes pode aceitar a condição irracional do ser humano: não cabe à razão sustentar a realidade factual, apenas em pensar no mundo enquanto consequência lógica-dedutiva. Mas, se a união com o corpo é substancial, como se poderia agir pelo pensamento puro na descoberta e no acesso a esse Espírito absoluto? Antes de ser posta a questão, é necessário reconhecer o fato da existência corpórea, pois que o corpo não é apenas um objeto entre outros, que resiste à reflexão e permanece, por assim dizer, colocado diante do sujeito puro (MERLEAU-PONTY, 2018, p.268s).

É ainda possível questionar o realismo filosófico em que os seres que circundam o ego ainda não se entregam em sua interioridade: a consciência não consegue penetrar no seu entorno e se esvai ao ignorar o que transcende efetivamente o seu círculo de compreensão. A tentativa de solucionar tal situação pelo realismo escapa da compreensão da tradição cartesiana e escapa da verdade definitiva de que a experiência de coisas transcendentes só é possível porque está na projeção mental. Se é afirmado que algo transcende o ego, isso é porque não são possuídas as coisas: porque são transcendes exatamente na perspectiva de que são ignorados completamente e que são afirmados cegamente em sua “existência crua”. É preciso definir o cogito por sua qualidade de preceder-se e de lançar-se a si-mesmo ao encontro familiar em todas as partes por sua autonomia. A ilusão é extirpada do cogito por sua condição de sustentar a si-mesmo em atividade autogeradora, pois todo pensamento de algo é ao mesmo tempo consciência-de-si, e é na raiz de toda experiência que se encontra um ser que se reconhece a si-mesmo imediatamente, como que em contato imediato com sua geração, como o espírito em puro ato, em puro exercício. Desde logo, é concebido que o ser primeiro da cogitationes seja causa sui, não sendo provocado por nada a não ser por si-mesmo em sua pura atividade de espírito (Id., 2018, pp.493-497). Se, por outro lado, se quer dar uma definição sem preconceitos do significado filosófico da psicologia gestáltica, se deve dizer que, ao revelar a estrutura ou a forma como elementos irredutíveis do ser, ela colocou novamente em questão a alternativa para a existência como consciência (MERLEAU-PONTY, 1991, p.85s).

O corpo é fonte da intencionalidade que se oferece no sentido em seu Ser-no-mundo. Para Merleau-Ponty, isso só pode ser entendido na medida em que a noção de corpo transcende a dicotomia entre sujeito e objeto. Através da análise da fala e do significado, essa dicotomia deve ser transcendida em sua compreensão. O problema central é como o corpo é capaz de falar e ser expressão; as elaborações do empirismo e do intelectualismo são inadequadas para resolver tal problema (MARSHALL, 2008, p. 117). Distingue-se tradicionalmente o instinto entre reações inferiores e superiores que não dependem desses estímulos materiais, mas antes no sentido do horizonte da situação, uma prospecção na ordem do para-si na exclusão do em-si. O comportamento, enquanto estrutura, não se situa em nenhuma dessas duas ordens. Não se desenrola como uma série de acontecimentos físicos. O comportamento se separa da ordem do em-si e se torna a projeção fora do organismo de uma possibilidade que lhe é interior. O mundo, enquanto comporta seres vivos, deixa de ser uma matéria cheia de partes justapostas e ganha uma concavidade intencional. O comportamento é feito de relações: ele é pensado como alteridade que abarca o mundo concreto na síntese entre o espírito singular e a circunstância particular – o comportamento não é uma coisa, mas também não é uma ideia. É justamente o que pretende-se afirmar como forma na tradição de filosofia: encontra-se, pois, com a noção de forma o meio de evitar as antíteses clássicas na analítica do comportamento (MERLEAU-PONTY, 2006, pp.196-200).

A ciência não trata, pois, os organismos como os modos acabados de um Welt[2] único, como as partes abstratas de um todo que evidentemente os conteria: lida com uma série de ambientes que se configuram dentro do mundo como Umwelt,[3] em que um estímulo intervém segundo o seu significado singular de acordo com o sentido imanente à consciência para-si. A experiência de um organismo não é o registro e a fixação de certos movimentos realmente terminados em-si – mas constrói aptidões: o poder geral de responder a situações de um certo tipo por reações variadas que têm o sentido em comum com a relação ao ambiente. As reações não são uma série de acontecimentos, mas trazem em-si uma inteligibilidade imanente. Além disso, situação e reação associam-se internamente em razão de sua participação comum numa estrutura em que se exprime o modo de atividade peculiar do organismo. Assim, não se pode alinhá-los de acordo com a lei de causa e efeito, mas formam um mesmo processo circular de coerência.

A teoria das formas tem consciência das consequências que um pensamento puramente estrutural determina e procura ampliar numa filosofia que substituiria a filosofia das substâncias. Porém nunca se expande esse trabalho de análise filosófica – porque a forma só pode ser plenamente entendida, e todas as implicações dessa noção evidenciadas, numa filosofia que se liberte dos postulados realistas, que são os de toda psicologia natural. Com efeito, à medida que uma filosofia gestáltica mantém o seu caráter em todo o universo das formas, são entretanto características dominantes que fazem referência à vida do espírito, que devem participar de um modo de conjunto e sintético na natureza da forma, o que representa diferentes graus de integração e constitui uma hierarquia, em que a individualidade se realiza progressivamente de acordo com a tomada de posse de sua própria verdade como autêntica liberdade para-si na dinâmica entre os limites do corpo e o infinito da potência do espírito e de suas ideias (MERLEAU-PONTY, 2006, pp.201-207).

Na fenomenologia se afirma uma ordem humana, mais do que de uma ordem material ou espiritual apenas: não se trata de duas ordens exteriores uma à outra, mas de uma relação de onde o material se interpenetra no psíquico. A oposição é fundamental, mas não substancial; é circular, não linear. A unidade que visa a imanência da consciência está em harmonia com a sensibilidade e percepção fenomenológica (Id., 2006, pp.280-282). O visível pode assim se preencher e se ocupar só porque o ego, o vidente, também é visível; o que faz a espessura do mundo é aquele que a apreende, e que sente-se emergir dela, por nela viver: as coisas do mundo que estão presentes não existem mais em-si, omitidos dos segredos da carne e de sua solidez; não são objetos puros que o espírito sobrevoa, mas é experimentado pelo ego em seu interior enquanto está dentre eles como extensão de uma mesma intencionalidade universal. Fato e essência não podem mais ser distinguidos, pois que ambos são um e mesmo ser:

A película superficial do visível é apenas para minha visão e para meu corpo. Mas a profundidade sob essa superfície contém meu corpo e, por conseguinte, contém minha visão. Meu corpo como coisa visível está contido no grande espetáculo. Mas meu corpo vidente subtende esse corpo visível e todos os visíveis com ele. Há recíproca inserção e entrelaçamento de um no outro. Ou melhor, se renunciarmos, como é preciso ainda uma vez, ao pensamento por planos e perspectivas, há dois círculos, ou dois turbilhões, ou duas esferas concêntricas quando vivo ingenuamente e, desde que me interrogue, levemente descentrados um em relação ao outro… (MERLEAU-PONTY, 2014, p.137.).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A fenomenologia, como nova metodologia que pretende reinserir na filosofia a apreensão do rigor metodológico e o retorno às coisas mesmas, é a tentativa de compreensão do que fundamenta o pensamento através da anterioridade do mundo. Desse modo, a percepção e a intencionalidade unem-se para formar uma integralidade existencial do homem na formação do sentido, na compreensão do corpo próprio. Surge a necessidade de voltar para a interioridade para organizar um modo próprio de existir a partir da consciência humana. A análise de ser do corpo demonstra o vínculo entre a expressão e o exprimido como significado eterno entre o material e o imaterial, o éter como coroação dos seres e como topo ontológico cujo movimento é de manifestação na carne e na matéria vivida como experiência integral. Por essa razão, a tarefa da fenomenologia é revelar esse mundo vivido antes de ser significação, o mundo como pré-doação.

REFERENCIAS

FURLAN, Reinaldo; BOCCHI, Josiane Cristina. O corpo como expressão e linguagem em Merleau-Ponty. Estudos de Psicologia, v. 8, n. 3, pp. 445-450, 2003. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-294X2003000300011.

FRANCO, Marcel Alves; SANTOS, Luiz Anselmo Menezes; CAMINHA, Iraquitan de Oliveira. Subjetividade, corpo e intercorporeidade a partir da fenomenologia de Merleau-Ponty. Holos, v. 7, p. 1-13, 2020. DOI: https://doi.org/10.15628/holos.2020.9620.

LOW, Douglas Beck. Merleau-Ponty’s last vision: a proposal for the completion of the visible and the invisible. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 2000.

MARSHALL, George J. A guide to Merleau-Ponty’s Phenomenology of perception. Milwaukee, Wisconsin: Marquette University Press, 2008.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.

___. A estrutura do comportamento. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

___. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2014.

___. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

___. Sense and nonsense. Evanston: Northwestern University Press, 1991.

NÓBREGA, Terezinha Petrucia da. Corpo, percepção e conhecimento em Merleau-Ponty. Estudos de Psicologia, v. 13, n. 2, pp. 141-148, 2008. Disponível em: <https://ria.ufrn.br/jspui/handle/123456789/1164>. Acesso em: 22 jun. 2023.

APÊNDICE – NOTA DE RODAPÉ

2. “Mundo”.

3. “Ambiente”.

[1] Graduando em Filosofia pela Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. ORCID: 0009-0008-5406-4321. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/7014038165342859.

Enviado: 13 de março, 2023.

Aprovado: 26 de abril, 2023.

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Gabriel Rodrigues Rönnau

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