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Intolerância religiosa no Brasil como afronta aos direitos fundamentais: A questão das religiões de matriz africana

RC: 34877
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CONTEÚDO

ARTIGO DE REVISÃO

SANTOS, André Rodrigues [1], SILVA, Sara Edwirgens Barros [2], SANTOS, Josélia Fernandes dos [3]

SANTOS, André Rodrigues. SILVA, Sara Edwirgens Barros. SANTOS, Josélia Fernandes dos. Intolerância religiosa no Brasil como afronta aos direitos fundamentais: A questão das religiões de matriz africana. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 04, Ed. 07, Vol. 13, pp. 114-127. Julho de 2019. ISSN: 2448-0959

RESUMO

Este trabalho de pesquisa analisa a intolerância religiosa no Brasil em relação às religiões de matriz africana em face do texto constitucional que garante a laicidade estatal, bem como a liberdade de culto e de crença aos indivíduos. Embora o território brasileiro tenha sido proclamado como laico, observa-se que isso não é suficiente para resguardar socialmente o mesmo respeito aos adeptos das religiões de matriz africana que é garantido aos seguidores do cristianismo. A metodologia empregada é a pesquisa qualitativa tendo como base a revisão bibliográfica a partir dos textos de lei, doutrinas e pesquisas acadêmicas que versaram sobre o tema em questão, bem como de dados oriundos da plataforma governamental do Ministério dos Direitos Humanos.

Palavras-chave: Religiões de matriz africana, discriminação, laicidade estatal.

INTRODUÇÃO

Este trabalho de pesquisa analisa a intolerância religiosa no Brasil como afronta aos direitos fundamentais resguardados pela Constituição Federal de 1988, com foco específico nas religiões de matriz africana, mais precisamente, o candomblé e a umbanda.

A investigação foi norteada pelo questionamento (problema de pesquisa) de por que no Brasil tais religiões são vítimas de intolerância no contexto atual mesmo com a prerrogativa da liberdade religiosa concedida pela nossa Carta Maior, bem como por legislações infraconstitucionais.

Para tanto, buscou-se responder ao problema de pesquisa por meio de alguns objetivos, quais sejam: discutir sobre a suficiência da laicidade estatal para a proteção ao culto das religiões mencionadas; apresentar o contexto principiológico da proteção da liberdade religiosa com base na CF/88, bem como normas de direitos internacionais incorporadas à legislação brasileira; e discutir sobre o conceito de laicidade estatal e suas implicações na esfera social.

A hipótese de pesquisa levantada inicialmente era a de que a laicidade estatal e a liberdade religiosa não são suficientes para que os indivíduos adeptos do candomblé e da umbanda, em especial, usufruam de tranquilidade na prática de seus cultos e demais manifestações de fé, contudo, essa hipótese não considerava os motivos que geram essa discrepância entre o que diz o texto constitucional e a realidade vivida pelos adeptos.

A escolha desse tema foi motivada pelo fato de atualmente se perceber um olhar mais atento do poder público voltado às minorias, seja no contexto educacional, político e/ou jurídico. De tal forma, analisar se a garantia constitucional de laicidade é suficiente para dar aos indivíduos adeptos das religiões de matriz africana o amparo e o respeito necessários para a prática de seus cultos, se torna relevante pelo fato de a intolerância no que tange à esfera religiosa ser bastante discutida e combatida ultimamente.

A metodologia aplicada foi a pesquisa qualitativa por meio da revisão bibliográfica de livros e trabalhos acadêmicos (dissertações e teses), bem como a análise dos artigos da CF/88 e demais legislações infraconstitucionais concernentes à liberdade religiosa.

Para além dos tópicos de “Introdução” e “Considerações finais”, este trabalho está organizado em três seções de discussão. Na primeira, reflete-se sobre os conceitos de tolerância e intolerância religiosa e sobre as modalidades pelas quais a tolerância é percebida na sociedade. Na segunda, explana-se sobre os direitos fundamentais e, mais especificamente, apresenta-se a evolução histórica dos direitos fundamentais inerentes à liberdade religiosa com base nas constituições que estiveram em vigor no país.

Por fim, na terceira seção, discorre-se sobre o caso das religiões de matriz africana apresentando de modo sucinto as definições de umbanda e candomblé, sobre algumas formas de intolerância sofrida pelos adeptos dessas manifestações e suas repercussões nos cenário jurídico da legislação atual.

1. CONCEITO DE INTOLERÂNCIA

A intolerância é um assunto constantemente debatido nos dias de hoje tendo em vista os recorrentes episódios envolvendo diferenças de orientação sexual, questões étnicas, políticas, ideológicas, sociais, religiosas, dentre outras manifestações de pensamentos coletivos ou individuais.

Antes de definir a palavra intolerância é necessário entender o conceito de tolerância. Nesse sentido, o dicionário online Michaelis define, dentre demais acepções, o verbete tolerância como “1) qualidade ou condição de tolerante; cachimônia, paciência; 2) Ato ou efeito de tolerar, de admitir ou de aquiescer (…) 3) Capacidade de suportar dor ou dificuldades.” Logo, a palavra tolerância neste trabalho estará atrelada a ideia de aceitar a religião do outro.

De outro lado, o verbete intolerância no mesmo dicionário está conceituado como “1) Qualidade de intolerante; 2) Falta de tolerância; rigidez e 3) Intransigência contra pessoas que têm opiniões, atitudes, ideologia, crenças religiosas etc. diferentes da maioria.” Dessa forma, tal palavra neste trabalho estará vinculada às manifestações de falta de aceitação da religião de outro e, principalmente, suas consequências no cotidiano social.

Gonçalves (2016) atenta para as diversas modalidades de tolerância que se manifestam como permissão, coexistência, respeito e estima. Dentre essas, vale frisar que o autor apresenta a coexistência como o reconhecimento que grupos distintos e equivalentes em poder fazem de que a tolerância é o melhor caminho para o equilíbrio social e o respeito como a observância feita por partes diversas de que mesmo havendo discordância de pensamento e de valores, o mais importante é o respeito mútuo entre elas. (Grifo nosso)

Diante dos efeitos nocivos que a insurreição contra as manifestações religiosas tem causado na sociedade contemporânea, viver a tolerância nas modalidades de coexistência e respeito contribuiria bastante para a garantia da igualdade entre todos, resguardada pela Constituição Federal.

Ao discorrer sobre as razões da tolerância, Bobbio (2004) afirma que esta se manifesta tanto em sentido positivo, quanto em negativo. No positivo se contrapõe à intolerância como eliminação do que é diferente; diferença que diz respeito à religião, política ou raça. No que tange ao sentido negativo, a tolerância se contrapõe à rigidez nos princípios, à exclusão daquilo que é causador de dano ao indivíduo e à coletividade. Para o autor, tanto as sociedades despóticas sofreram com a ausência da tolerância positiva e as sociedades democráticas/permissivas sofrem com o excesso de tolerância negativa, que se reflete na passividade de não interferir, se indignar ou se escandalizar com a realidade que incomoda.

Tecidas as primeiras considerações pertinentes ao esclarecimento dos termos tolerância e intolerância neste trabalho, discorrer-se-á sobre os direitos humanos fundamentais e a liberdade religiosa.

2. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

O art. 5º da Constituição Federal arrola os chamados Direitos e Garantias Fundamentais. “Os direitos são bens e vantagens prescritos na norma constitucional, enquanto as garantias são instrumentos através dos quais se assegura o exercício dos aludidos direitos (preventivamente), ou prontamente os repara, caso violados.” (LENZA, 2014, p.1059).

Na visão de Moraes (2013), esses direitos defendem o ser humano da arbitrariedade do poder estatal e estabelecem as menores condições de vida e desenvolvimento da personalidade humana. Além do mais, são dotados das características de imprescritibilidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade, universalidade, efetividade, interdependência e complementaridade.

Dentre tais características, destaca-se a irrenunciabilidade que em algumas discussões atuais torna-se objeto de polêmica, como é o caso da renúncia ao direito de viver diante dos casos que envolvem, por exemplo, a eutanásia. Outra característica que merece destaque é a da universalidade que, em outras palavras, concerne ao fato de tais direitos e garantias abrangerem todos os indivíduos, o que não permite que sejam excluídos de tal proteção por fatores de gênero, raça, etc.

Moraes (2013) também cita cinco classificações de Direitos e Garantias Fundamentais com base na tutela resguardada pela Constituição Federal. Primeiramente notam-se os direitos individuais e coletivos, que se referem àqueles intrinsecamente vinculados ao conceito de pessoa humana e personalidade; em segundo plano estão os direitos sociais cujo objetivo é resguardar a igualdade social, bem como a liberdade positiva, pilares do Estado Democrático de Direito.

Na terceira classificação são mencionados os direitos de nacionalidade que tutelam o vínculo jurídico e político do indivíduo com o Estado. A quarta categoria é formada pelos direitos políticos que regulam a soberania popular e a quinta congrega aqueles relacionados à existência, organização e participação dos partidos políticos como elemento importante na manutenção do Estado Democrático.

Outra classificação comumente encontrada na doutrina mais moderna é a de considerar os direitos fundamentais com base em gerações, ou seja, na cronologia histórica em que foram reconhecidos constitucionalmente. Nessa perspectiva, Bulos (2015) considera que o uso dessa nomenclatura (e não famílias ou dimensões) é o mais adequado, posto que delimitam bem os períodos em que foram surgindo as liberdades públicas.

Na primeira geração são considerados aqueles direitos surgidos no fim do sec. XVII e que tutelam a individualidade (como o direito à vida e à liberdade). Na segunda, são congregados os direitos sociais, como o direito à saúde e ao seguro social, resultados de uma prestação positiva do Estado para com a sociedade. A terceira, ou novíssima, geração congrega os direitos difusos, a exemplo do meio ambiente equilibrado e da autodeterminação dos povos. Por fim, a quarta, a quinta e a sexta gerações, resultantes da evolução dos tempos e da modernidade atual, englobam as prerrogativas vinculadas ao progresso das biociências, aos alimentos transgênicos, à paz, à democracia, à informação em geral, etc (BULOS, 2015).

Tendo em vista esses aspectos, no que tange aos direitos fundamentais inerentes ao indivíduo, passa-se a discussão sobre as prerrogativas relacionada à liberdade de consciência, crença e culto, apresentada no art. 5º, VI a VIII da CF/88.

2.1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS INERENTES À LIBERDADE RELIGIOSA

Em primeira análise, vale mencionar que, em relação ao Direito Constitucional, a liberdade religiosa foi marcada por consideráveis modificações ao longo dos anos. Tal direito foi tratado de maneiras diversas nos textos constitucionais, Lenza (2014), apresenta essas evoluções, conforme a seguir:

A Constituição Política do Império do Brasil, outorgada em 1824 por D. Pedro I e vigente por 65 anos, instituía a religião Católica Apostólica Romana como a oficial do império e permitia os cultos às outras religiões desde que condicionados apenas ao espaço doméstico ou particular. Com o declínio da monarquia e programação da república em 1889, houve a promulgação da primeira Constituição da República Federativa do Brasil que, dentre outras inovações, separou as relações entre Igreja e Estado, retirou os efeitos civis do casamento religioso, passou os cemitérios (antes controlados pela Igreja) para a tutela das municipalidades e proibiu o ensino religioso nas escolas públicas.

Em 1934, sob o governo provisório de Getúlio Vargas, houve a promulgação de um novo texto constitucional que amenizou a posição excludente da religião disseminada pelo texto antecessor não só mantendo a ideia de laicidade estatal, como também admitindo novamente o casamento religioso com efeitos civis e facultando nas escolas públicas o ensino religioso. Os cultos religiosos foram permitidos, contanto que observassem a ordem pública e os bons costumes. Já a Constituição de 1937, outorgada pelo governo Vargas após o início da ditadura do Estado Novo, não trouxe inovações quanto à laicidade do Estado.

Com a expulsão de Vargas e eleição do General Gaspar Dutra à presidência da República, uma nova Assembleia Constituinte ocorreu e, em 1946, foi promulgada uma Constituição que declarava a laicidade do país, todavia, ao contrário da anterior, mantinha em seu preâmbulo a referência a Deus, postura essa reiterada pela CF/1967.

A Constituição Cidadã, promulgada em 1988, primeira do processo de redemocratização do Brasil, declara, no que tange à liberdade religiosa, no art. 5º, VI a VIII que

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; (BRASIL, 1988).

Em outras palavras, nota-se que através do texto constitucional em vigor é que a ideia de liberdade religiosa foi, de certa forma, amplamente consolidada, posto que ao Estado compete garantir que cada indivíduo tenha segurança para professar a religião que melhor lhe convier, sem encontrar embaraços para manifestar sua crença através dos cultos próprios de cada religião, conforme explicita o art. 19, Ido mesmo texto:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embarcar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; (BRASIL, 1988).

Há ainda outros textos infraconstitucionais nos quais está baseada a liberdade de crença religiosa, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos que em seu artigo 18 resguarda que

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular (ONU, 1948).

Ademais, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, inteiramente incorporado à legislação brasileira em 1992, também versa sobre a liberdade religiosa no artigo 18:

1. Toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.

2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha.

3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas à limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas (ONU, 1966).

Por fim, o Pacto de São José da Costa Rica, também introduzido na legislação brasileira em 1992, no que diz respeito à liberdade de crença e religião, estabelece no artigo 12 que:

1.      Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião.  Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.

2.      Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças.

3.      A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos ou liberdades das demais pessoas.

4.      Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções.

Nesse contexto, vale ressaltar que a laicidade não pode ser confundida com o laicismo por parte do Estado. Nas palavras de Gonçalves (2011, p. 52), “laicismo é a supressão da religião da realidade estatal, a ponto de a mesma não ser considerada sequer como elemento de fé, pertencente a todos os seres humanos, logo, presente na sociedade”, ou seja, tal conceito exprime uma ideia de desvalorização e falta de reconhecimento da religião como parte da existência social.

Em contrapartida, “a laicidade é, portanto, a separação entre a religião e o estado, sendo que a primeira em nada se confunde ou influencia o segundo.” (IDEM, p. 54). Dessa forma, considerar o Brasil como um Estado laico é diferente de considera-lo como ateu, ou intolerante com a diversidade religiosa existente, conforme afirma Gabriel (2018, p. 21-22),

Na qualidade de Estado laico, o Estado se compromete a não intervir em assuntos religiosos e a não assumir nenhuma religião como oficial, responsabiliza-se pela garantia do livre exercício da crença dos indivíduos, isolada ou coletivamente. Essa espécie de neutralidade do Estado no âmbito religioso não cria a identidade de um Estado ateu e muito menos intolerante com relação às diversas experiências religiosas, ao contrário, o Estado é laico para permitir que as inúmeras possibilidades de cultos e manifestações religiosas tenham liberdade para se concretizar, bem como para garantir a liberdade de não crença e de não culto aos ateus e agnósticos.

Como se pode perceber claramente nas legislações ora colacionadas e, principalmente, na atual Constituição, o indivíduo goza de liberdade para escolher, professar e praticar os cultos de uma religião que lhe convenha, auxilie no seu crescimento espiritual e lhe traga a sensação de pertencimento, como também, optar por não professar religião nenhuma, sem que isso lhe gere embaraço social.

É fato que no Brasil atual as religiões vítimas de intolerância são em sua maioria de matriz africana, que veremos na próxima seção.

3. AS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA: A UMBANDA E O CANDOMBLÉ

A matriz religiosa e cultural brasileira é marcada pela diversidade e pela resistência de grupos considerados representativos das camadas mais populares. Dentre as manifestações mais presentes no cenário religioso do país, destacam-se as religiões de matriz africana que, conforme Santos (2017) seus cultos foram representados como enfrentamento e resistência à intolerância dos modelos impostos. Nesse contexto, diante da multiplicidade de religiões pertencentes a essa matriz, destacam-se nesse trabalho as manifestações da Umbanda e do Candomblé.

Religião sincrética oriunda do Candomblé, Catolicismo e Kardecismo, a Umbanda surgiu no Rio de Janeiro, na década de 1920, sendo considerada uma manifestação religiosa por excelência, tendo em vista mistura cultural e o acesso que deu a outras camadas sociais, como a classe média, para além do reduto étnico no qual se iniciou. Em seus rituais utilizou elementos da cultura nacional, como o preto velho, espíritos indígenas e de escravos e os caboclos, congregou os valores de fé, esperança e caridade presentes no espiritismo, eliminou o caráter sigiloso do candomblé e, apropriou-se do calendário da liturgia católica para vincular os deuses à imagem dos santos. Nessa religião, os guias que estabelecem a comunicação com os vivos são representados como pessoas simples que tenham tido vida pregressa na terra, como é o caso das figuras do preto velho, do malandro, dos boiadeiros, dentre outros (SANTOS, 2017, grifo nosso).

O candomblé trata-se de tradição religiosa complexa composta por práticas específicas, símbolos e crenças. Seus terreiros são compostos de espaços que se reservam ao culto dos orixás, à preparação de comidas, festas, bem como ao repouso dos iniciados, sendo tais espaços em alguns casos misturados à própria residência dos que habitam nos terreiros. Um traço marcante que vale ressaltar nessa matriz é que a possessão por divindades só ocorre sobre os chamados eleitos de cada orixá e não sobre todos os crentes da religião (MOTA e TRAD, 2011).

Além das religiões supramencionadas, há também outras manifestações de matriz africana pelo Brasil, como é o caso do xangô em Pernambuco, do batuque no Rio Grande do Sul, da macumba no Rio de Janeiro e do tambor de mina em Maranhão e Pará. Para além das diferenças entre essas vertentes, há fatores que as aproximam como a cultura negra, a resistência e o enfrentamento de diversas manifestações de intolerância. Mesmo que atualmente as relações entre o Estado e as religiões de matriz africana sejam consideradas boas, suas crenças ainda são concebidas como inferiores às cristãs e seus adeptos frequentemente são alvos de desconfiança e discriminação pela sociedade.

3.1 A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA CONTRA A UMBANDA E O CANDOMBLÉ E SUAS RAZÕES

As práticas de intolerância podem ser claramente verificadas nos não raros ataques aos cultos e símbolos da herança africana no Brasil, por parte das denominações neopentecostais que justificam seus atos pela necessidade de expurgação dos demônios do mundo que, no ponto de vista dos discriminadores, encontram naquelas religiões, ambiente favorável para agir. Outro ponto que ilustra a intolerância nesse sentido é a existência de programas religiosos veiculados por algumas emissoras evangélicas de TV que confrontam abertamente tais manifestações religiosas.

Nesse sentido, Santos (2017, p.176), ao discorrer sobre a violência simbólica sofrida pelos adeptos do candomblé e da umbanda por parte das religiões cristãs, considera que

De qualquer forma, o resultado mais imediato da cruzada evangélica é fomentar o antagonismo de seus adeptos contra terreiros e centros espíritas. Os resultados do assédio podem ser notados todos os dias em diferentes pontos do País, por meio de relatos de tempos afros profanados ou queimados, sacerdotes e adeptos agredidos e diversas outras variações de injúrias.

Alguns casos de intolerância religiosa alçam até mesmo o poder judiciário e ganham notoriedade nacional como foi o chamado de “caso Mãe Gilda”, na década de 1990. A sacerdotisa foi fotografada ao lado de um despacho pela Revista Veja enquanto participava de um protesto a favor do impeachment do então presidente Fernando Collor de Melo, tendo sua foto usada pela Igreja Universal do Reino de Deus – IURD em publicações do Jornal Folha Universal datadas de 1999, com acusações de charlatanismo. Após tal fato, o terreiro da sacerdotisa foi invadido por fiéis da Igreja Deus é Amor com o fim de exorcizá-la, razões que a fizeram acionar o judiciário na garantia de seus direitos, pretensão essa que após seu falecimento foi continuada pelos seus herdeiros.

A grande repercussão do caso tendo em vista a busca pela tutela judicial ensejou na instituição do dia 21 de janeiro como o Dia Nacional de Combate a Intolerância Religiosa e no Plano Nacional de Combate a Intolerância Religiosa, pelo ex-presidente Lula, em 2007 (BORTOLETO, 2014).

Levantamentos realizados pelo Disque 100 do Governo Federal e divulgados no site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, atestam que são recorrentes as denúncias relativas à discriminação religiosa no país, tendo a plataforma contabilizado 556 denúncias em 2015; 759 em 2016; 537 em 2017 e 506 no ano de 2018. Dentre esses, percebe-se claramente que os maiores números de ocorrências são relacionados ao Espiritismo, à Umbanda e ao Candomblé, conforme detalhamento do próprio site.

Por certo, deve-se considerar também que as ocorrências de intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana nem sempre chegam ao conhecimento do poder público por meio de denúncias, pois muitas vezes são silenciadas no dia a dia das cidades.

No que tange às razões possíveis para a ocorrência da intolerância religiosa contra adeptos das religiões de matriz africana, Santos (2017) aduz que é devido a uma percepção fundamentalista do texto bíblico que tem como consequência a atribuição de rótulos, estigmatização e exclusão de grupos tidos como minoritários, como os homossexuais, as prostitutas e as comunidades religiosas africanas, grupos esses que, por coincidência, já sofrem outras formas de discriminação pela sociedade.

Sendo assim, torna-se claro que um dos fatores desencadeantes da intolerância religiosa se inter-relaciona intimamente com questões marcadas também pela raça e pela classe social que são objetos de discriminação diariamente na sociedade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Federal de 1988 representou um grande marco na conquista dos direitos e garantias fundamentais, destacando-se dentre esses, o direito à liberdade religiosa, que engloba a liberdade de consciência, crença e culto.

A laicidade estatal, consagrada desde o texto constitucional de 1889, é a garantia de que o Estado não instituirá uma religião oficial para a nação, tampouco promoverá o laicismo, ou seja, a hostilidade para com as manifestações religiosas.

Embora esteja garantida na Carta Magna a proteção aos locais de culto e à opção religiosa individual, percebe-se no dia ocorrências reiteradas de perseguição e discriminação em geral contra os adeptos das religiões de matriz africana, especialmente a umbanda e o candomblé – objeto de análise desse trabalho – conforme ficou evidenciado em dados obtidos por levantamentos publicados na plataforma do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Sendo assim, conclui-se que a laicidade estatal não tem sido suficiente para garantia da proteção aos adeptos das religiões supracitadas, em outras palavras, se faz necessária a atuação de órgãos do poder público no que concerne ao esclarecimento da população vulnerável a esse tipo de discriminação, bem como no acolhimento das denúncias acionamento do judiciário, quando necessário, para resolução de conflitos que envolvam o desrespeito a essa garantia constitucional.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, N. A Era dos direitos. 9. reimp. Rio de Janeiro: Campus, 2004. 212p.

BORTOLETO, M. “Não viemos para fazer aliança”: faces do conflito entre adeptos das religiões pentecostais e afro-brasileiras. 119 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Antropologia Social, USP, São Paulo, 2014.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 14 jun. 2019.

BULOS, U. L. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. 1703p.

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Convenção americana sobre os direitos humanos: assinada na Conferência especializada interamericana sobre direitos humanos, San José, Costa

Rica, em 22 de novembro de 1969. Disponível em: < http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm>. Acesso em 14 jun. 2019

GABRIEL, J. L. Liberdade religiosa e Estado laico brasileiro: uma abordagem à luz de Habermas e do Direito. Rio de Janeiro: Gramma Editora, 2018.

GONÇALVES, A. B. Direitos humanos e (in) tolerância religiosa: laicismo – proselitismo – fundamentalismo – terrorismo. 2011. 223 f. Tese (Doutorado em Filosofia do Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.

GONÇALVES, J. M. Entre táticas e estratégias: tolerância e intolerância religiosa no epistolário de Agostinho de Hipona (390-430). 2016. 193 f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História Social das

Relações Políticas, UFES, Vitória, 2016.

INTOLERÂNCIA. In: Michaelis On-line, 13 jun. 2019. Disponível em: < https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/intoler%C3%A2ncia/>. Acesso em: 13 jun. 2019

LENZA, P. Direito Constitucional esquematizado. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 1452p.

MORAES, A. Direitos Humanos Fundamentais: Teoria geral: comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil: Doutrina e Jurisprudência. 10. ed. São Paulo: Atlas S.A., 2013. 413p.

MOTA, C. S; TRAD, L. A. B. A Gente Vive pra Cuidar da População: estratégias de cuidado e sentidos para a saúde, doença e cura em terreiros de candomblé. Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, SP, v. 20, n. 2, 2011. Disponível em: < https://www.revistas.usp.br/sausoc/article/view/29794>. Acesso em: 05 mar. 2019.

NAÇÕES UNIDAS. Assembleia Geral. Declaração universal dos direitos humanos. [Rio de Janeiro]: UNIC, 2009. Publicado originalmente em 1948. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wpcontent/uploads/2018/10/DUDH.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2019.

______. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Publicado originalmente em 1966. Disponível em: <https://www.oas.org/dil/port/1966%20Pacto%20Internacional%20sobre%20Direitos%20Civis%20e%20Pol%C3%ADticos.pdf>. Acesso em 14 jun. 2019.

SANTOS, A. S. Jeová contra os orixás: os processos da violência simbólica e a influência da matriz cultural-religiosa brasileira na intolerância aos “indesejados” da sociedade. Revista Contemplação, n. 15, 2017. Disponível em: <http://fajopa.com/contemplacao/index.php/contemplacao/article/view/142>. Acesso em: 01 mar. 2019.

TOLERÂNCIA. In: Michaelis On-line, 10 jun. 2019. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=toler%C3%A2ncia>. Acesso em: 10 jun. 2019.

[1] Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade UNIDA; Especialista em Direito Público, Especialista em Docência do Ensino Superior, Professor e Coordenador do Curso de Direito da Univale – Advogado.

[2] Doutoranda pela Universidade Federal de Santa Catarina/ Universidade Vale do Rio Doce / Dinter – Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas para docentes e Técnicos Administrativos da UNIVALE, Mestre em Comunicação Social pela UMESP – Bacharel em Teologia pelo Instituto Metodista de Ensino superior, Graduada em Pedagogia pela IMES.

[3] Licenciada em Letras pela Universidade Vale do Rio Doce, Especialista em Gênero e Diversidade na Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Vale do Rio Doce.

Enviado: Junho, 2019.

Aprovado: Julho, 2019.

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André Rodrigues Santos

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