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A História De Uma Risada Em Zé Pequeno E Coringa

RC: 88147
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/letras/ze-pequeno

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SALES, Maria da Luz Lima [1], NORONHA, Silvio Leonardo Alves [2]

SALES, Maria da Luz Lima. NORONHA, Silvio Leonardo Alves. A História De Uma Risada Em Zé Pequeno E Coringa. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 06, Vol. 05, pp. 144-161. Junho de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/letras/ze-pequeno, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/letras/ze-pequeno

RESUMO

Este artigo versa acerca das personagens Zé Pequeno, do romance Cidade de Deus de Paulo Lins, e Coringa, protagonista do filme homônimo, que recorrem à risada como resposta aos conflitos vivenciados e nada engraçados. Elaboramos, pois, um questionamento para perscrutarmos sobre tais inquietações: o riso seria um mecanismo de escapismo desta sociedade hodierna, cuja principal base é a violência exacerbada, ou rir seria como sentir um prazer ocasionado pelo mal? Para tanto, recorremos a dois estudiosos do riso: Henri Bergson (1983), filósofo que elaborou uma sociologia do riso; e Georges Minois (2003), intelectual que, com sua historiografia do riso, analisou o tema desde as origens até a contemporaneidade, ambos ajudando-nos a entender por que, do que e de quem rimos. Ao constatarmos que literatura e cinema se mesclam neste trabalho, encontramos no riso o aspecto crítico e não somente mera expressão de alegria, mas também como possível revelação de insanidade diante de nossa sociedade pós-moderna.

Palavras-chave: Riso, violência, Zé Pequeno, Coringa.

1. INTRODUÇÃO

Cidade de Deus, romance etnográfico criado por Paulo Lins, publicado em 1997, retrata o cotidiano da favela carioca Cidade de Deus, desde sua origem na década de 60 até os anos 90 do século XX. Essa narrativa é o resultado de uma pesquisa antropológica desenvolvida pelo autor nessa comunidade, misturando realidade e ficcionalidade, mas inspirando-se naquela segundo o próprio escritor. O livro é dividido em três partes: a primeira conta a história de Cabeleira; a segunda, a história de Bené; e a terceira, a de Zé Pequeno, três das personagens principais da trama.

Lins iniciou na literatura, em 1986, com o livro de poemas Sobre o sol. Em 1997, sai a primeira edição de Cidade de Deus, sua obra mais famosa; em 2012 publica outro romance: Desde que o samba é samba, e no ano de 2014 edita Era uma vez… Eu!; em 2019, publica a novela Dois amores. Foi coautor dos roteiros Quase dois irmãos em 2004, premiado pela Associação Paulista de Crítica de Arte; Subúrbia, que virou minissérie televisiva em 2012, e Faroeste caboclo em 2013. Finalmente, escreve em 2011, Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica.

Seria possível fazer diversos trabalhos científicos da obra Cidade de Deus, devido à diversidade de temas abordados pelo narrador, desde a violência institucionalizada até a importância da leitura do crime. No entanto, a proposta deste artigo é centrar-se no riso da personagem Zé Pequeno e de como é possível delinear um diálogo com o protagonista Coringa, vilão nos quadrinhos do Batman, especificamente focando no filme Coringa (Joker), de 2019, com roteiro de Scott Silver e direção de Todd Phillips, interpretado magistralmente pelo ator Joaquin Phoenix. A obra cinematográfica enfoca o surgimento do vilão em uma narrativa diversa daquela dos HQ, mas condizente com os atuais modos de vida brutal do ser humano na pós-modernidade.

A proposta de concentrar na ação tão particular –– o rir –– das personagens Coringa e Zé Pequeno tem por intento traçar um link entre ambas, buscando compreender porque o riso, ou derrisão, se assim o preferirmos quando se trata da personagem Coringa, nesses dois protagonistas constitui um mecanismo de expressão marcante e marcado com cenas de violência. Como não poderia deixar de ser, a figura do joker ou clown evocou-nos os versos de Cruz e Sousa (1988), poeta simbolista que soube internalizar o sentimento de dor e riso em versos consagrados. Sendo assim, o maior questionamento deste texto é: o riso seria um mecanismo de escapismo desta sociedade hodierna, cuja principal base é a violência exacerbada e generalizada, ou rir seria como um prazer ocasionado pelo mal?

Para tentar responder a tais questões seria necessário, primeiramente, entender o que é o riso e o humor e como eles são motivados e desencadeados. Usam-se as pesquisas de Henri Bergson (1983), filósofo que se pesquisou sobre a temática ainda bem jovem e realizou uma sociologia do riso, constituindo-se como um dos primeiros estudiosos a definir por que rimos. Valemo-nos também do trabalho de Georges Minois (2003), o qual apresenta uma historiografia do riso, estudando-o desde as origens na Grécia até a contemporaneidade além de outros autores.

Após o entendimento desse ato social que denominamos riso e que marca a personalidade dessas duas personagens instigantes, buscamos remontar o riso sob um olhar crítico, evitando tachar os sujeitos analisados simplesmente como loucos, mas sim como possíveis representações de um estado de paroxismo da insanidade do ser humano frente às violências que o indivíduo pós-moderno sofre e precisa aguentar, por questão de sobrevivência em um mundo tão absurdo quanto desvairado.

2. COMO O RISO É CAUSADO? POR QUE RIMOS E DO QUE RIMOS?

Há vários níveis de riso: do sorriso à gargalhada e inúmeras intenções nesses gestos tão universais, já que se considera o homem como o único animal que ri. Mostramos os dentes –– porém, nem sempre mostrá-los é rir –– ou rimos dos outros, com os outros  e de nós mesmos, com um riso sardônico, ou mais uma careta do que um riso propriamente dito, de galhofa, de ironia, tímido, sensual e por aí andam os vários sentidos dos sorrisos na boca como expressão única, porque cada pessoa tem um modo de rir, fazendo parte de cada idiossincrasia, ou do que se sente internamente e que se tenciona esconder em algumas ocasiões específicas que obrigam o ser a reprimir sua risada.

Para focar nessa temática é preciso primeiro entender os discursos dos filósofos e estudiosos a respeito do tema e tentar encontrar alguma justificativa científica para a relação da risada das personagens Coringa e Zé Pequeno nas duas criações artísticas citadas: o romance e o cinema. A gargalhada apresentada por tais personagens não é bem vista tanto nas obras quanto pelo leitor e telespectador, já que é sempre oriunda de mortes (assassinatos), angústia, dor e sofrimento causados pelos protagonistas, ou infligidos a eles. Essa prática contrasta com a noção de que para se rir tem de ser por (ou de) algo feliz, que faça bem aos seres.

É nesse impasse que a comparação se dá, na mudança conceitual do riso ou adaptação do mesmo às condições da sociedade e ao contexto vivido. Será que o riso das personagens deve-se à mera loucura? Ou tratar-se-ia de uma forma –– brutal –– de responder à sociedade? O filósofo Henri Bergson (1983), em seu ensaio sobre o riso, vem debruçar-se sobre a temática no século XIX e estudar como, por que e do que rimos em nossa sociedade. A sua teoria diz que o riso é um gesto, um sinal social, faz parte de um grupo social e corresponde a uma demanda de participar dele. Em suas palavras:

Para compreender o riso, impõe-se colocá-lo no seu ambiente natural, que é a sociedade; impõe-se sobretudo determinar-lhe a função útil, que é uma função social. Digamo-lo desde já: essa será a idéia diretriz de todas as nossas reflexões. O riso deve corresponder a certas exigências da vida em comum. O riso deve ter uma significação social (BERGSON, 1983, p. 9).

Neste excerto, o filósofo apresenta o riso como algo propriamente usado em sociedade; logo, humano, possuindo uma finalidade social. Sendo assim, ninguém ri do nada ou sem motivo, aparente ou não. Mesmo que seja uma risada individual em meio a uma cena constrangedora, esse riso tem um significado para o ridente, ou pretende realizar alguma ação em quem o proporciona, vê e o ouve. O riso tem sua função útil e necessário, constituindo-se até, algumas vezes, em remédio. Leite afirma que o filósofo Aristóteles entendeu que o homem inventou o riso como mecanismo e necessidade por sofrer (LEITE, 2016, p. 150), como amenizador das dores humanas. A frase latina do criador de inúmeras peças cômicas Moliére, castigat ridendo mores: rindo se corrigem os costumes ou se revelam os vícios, mostra o poder do riso, isto é, com um papel benéfico de corrigir ou retificar, consertar os costumes.

Outro trabalho a respeito do riso foi o de Georges Minois (2003), pelo caráter historiográfico e as vastas referências que proporcionam uma visão panorâmica sobra tal questão. Nessa obra, o riso é apresentado desde as origens gregas com os deuses, sendo questionado e demonizado pela igreja na Idade Média (afinal, acredita-se que Jesus não ria), até virar um grande debate dos filósofos do século XIX, os quais darão várias perspectivas para o objeto riso. Já na era contemporânea, tudo vira motivo de risada, o século XX, século da violência (ARENDT, 1994), passa por duas grandes guerras e parece que a única maneira de superar a dor é zombando do próximo, através de risadas, escarnecendo absurdamente deste. A frase “rir para não chorar” acaba tornando-se mais forte durante essa centúria, virando quase um bordão e condizente tanto com Coringa (Joker) quanto com Zé Pequeno.

Comparamos as personagens das obras: o filme Coringa e o romance Cidade de Deus, que também se transformou em filme em 2002, produzido por O2 Filmes, Globo Filmes, Videofilmes e dirigido por Fernando Meirelles. Nessa empreitada, talvez possamos justificar o porquê de os dois sujeitos, produtos da ficção, possuírem a gargalhada como um dos fatores de maior destaque em suas personalidades, como um escape. Ambos reencarnam uma espécie de clown, o palhaço também referido pelo poeta Cruz e Sousa (1988, p. 39),  em um famoso soneto, no qual, apesar de ser também um “riso de tormenta” (conforme o terceiro verso) apresenta diferenças com as personagens referidas, porque cada ser responde diferentemente às mágoas e violências recebidas.

O riso sousiano é mais do que simplesmente um riso, porém uma gargalhada violenta e irônica, isto é, sem intenção de riso. O palhaço não deseja rir, pois sente uma dor atroz e, encharcado de seu próprio sangue e não com o dos outros, sorri sem ter um porquê aparente. Este riso provoca que o sangue jorre, mas um sangue interior, oculto, camuflado sob a máscara do clown, um palhaço infeliz, uma vez que não pode mostrar sua dor. O Coringa, ou Joker do filme de Todd Phillips, manifesta-se ainda mais fortemente do que o Zé Pequeno, embora os dois tenham desenvolvido uma personalidade perversa e sádica, mas que, no fundo, são demonstrações da mesma angústia.

O cineasta italiano Frederico Fellini, citado por Araldi, expressa bem o significado do clown, em sua graça e ao mesmo tempo desgraça. Para ele:

Il clown incarna i caratteri della creatura fantastica, che esprime l’aspetto irrazionale dell’uomo, la componente dell’istinto, quel tanto di ribelle e di contestatorio contro l’ordine superiore che è in ciascuno di noi. È una caricatura dell’uomo nei suoi aspetti di animale e di bambino, di sbeffeggiato e di sbeffeggiatore. Il clown é uno specchio in cui l’uomo si rivede in grottesca, deforme, buffa immagine […] (ARALDI, 2013, p. 139)[3].

Para o artista, o palhaço encarnaria as características da figura fantástica a expressar o aspecto irracional do ser humano, como seus (nossos) instintos (animalescos); no fundo, um rebelde, um gavroche como aludido por Sousa (1988), um contestador que há em muitos de nós. Um duplo de cada um de nós? É como uma caricatura mista do homem adulto e criança, zombando e zombado, ridicularizando e ridicularizado. O clown é uma espécie de espelho no qual o homem se vê, só que em uma imagem grotesca, deformada e burlesca.

Em nossa abordagem da figura do Joker, não nos podemos esquecer de que este traz consigo tal ideia ambivalente de, ao mesmo tempo fazer brotar o riso no outro e a dor em si mesmo, um acrobata, um ser cuja profissão é de truão, que vive para fazer malabarismos e momices para divertir os outros como um modo de sobrevivência. O palhaço faz rir mas, muitas vezes, o riso que estampa nos lábios é apenas aparente, pois trata-se de um trabalhador da comédia humana, um ator cômico que reproduz um papel. Deve, portanto, atuar, mesmo que esteja triste ou sem a mínima vontade de fazê-lo.

Tais considerações nos remetem, mais uma vez, às ideias de Cruz e Sousa, em “Acrobata da dor”, conforme os versos

[…]

E embora caias sobre o chão, fremente,

Afogado em teu sangue estuoso e quente,

Ri, coração, tristíssimo palhaço.

(SOUSA, 1988, p. 39)

Esses versos foram retirados do livro Broquéis, publicado em 1893, nos quais Cruz e Sousa identifica os sentimentos ambíguos de um coração palhaço (o eu lírico) que ri e sofre a um tempo só. Neles, o artista precisa continuar o espetáculo e representar seu ofício, gargalhando, mas num riso atormentado e absurdo “de uma ironia e de uma dor violenta” (SOUSA, 1988, p. 39), tal qual o Coringa na cena em que está em frente do espelho pintando-se para seu show, maquiando o rosto com um sorriso amplificado, assemelhando-se muito ambas as cenas. O poema exprime como poucos a dor de viver sob convulsões e convenções sociais adversas e desumanas como negro em uma sociedade racista.

O poeta prossegue, com os paradoxos e paroxismos: “Da gargalhada atroz, sanguinolenta”, encarnando um eu lírico que poderia ser a consciência deste: “Salta, gavroche, salta clown, varado / pelo estertor dessa agonia lenta…”, pois os pagantes “Pedem-te bis e um bis não se despreza!”. A consciência ordena-lhe profissionalmente: “Vamos! Retesa os músculos, retesa / Nessas macabras piruetas d’aço…” (SOUSA, 1988, p. 39). Ao assistir ao filme Coringa (Joker), vem-nos à mente o que o poeta negro expressou em versos, resultado do que viveu na pele: as perseguições, o preconceito de raça que sempre enfrentou em vida em uma terra de brancos.

A gargalhada à qual o poeta na pele do eu lírico refere-se, vai mais além do que simplesmente o riso, palavra que vem do latim risus, de ridere; e do grego rizein: que soa como um grunhido, o grunhir –– a voz de porcos ou javalis –– ou guinchar, mas que leva igualmente ao termo ricto: contração muscular da face, dos lábios ao dar uma aparência de riso, sem o ser, como a risada convulsa do soneto de Cruz e Sousa e o mesmo esgar de Coringa e, por que não dizer, de Zé Pequeno, personagens que cresceram e aprenderam na cartilha do ódio, da carência e do desprezo?

Quando se procura no Dicionário Filosófico de Abbagnano (2007, p. 153, 154) o verbete “riso”, ele não o conceitua e nos leva ao vocábulo “cômico”, pois um remete ao outro: o riso sendo consequência do cômico. Lê-se, então, a etimologia de cômico: do grego TE^OÍOV, Komikós, e do latim Comicus: “O que provoca o riso, ou a possibilidade de provocá-lo, através da resolução imprevista de uma tensão ou de um conflito”. Em seguida, o dicionário apresenta a definição que se sabe mais antiga acerca do caráter cômico, dada por Aristóteles,  na Poética, que o definiu como algo incorreto, errôneo e feio, justificando assim que a natureza do cômico consiste no “caráter imprevisto, porque irracional, da solução apresentada pelo C. para o conflito ou uma situação de tensão” (ABBAGNANO, 2007, p. 154). O gênero cômico ou satírico aproveita-se das circunstâncias absurdas e embaraçosas que vivem as personagens para daí fazer  explodir o riso dos receptores. Assustamo-nos do inesperado e, portanto, rimos dessa situação muitas vezes ridícula –– termo, aliás, que provém do latim ridiculus: aquilo que provoca o riso.

No riso encontra-se tanto o alegre (hilariante) quanto a tensão, pois rimos de ambas as situações, mesmo que seja para desanuviar uma inquietação, podendo ser uma solução ou um conflito. Abbagnano (2007, p. 154) ainda cita os filósofos Kant e Hegel para explicar o verbete: para Kant o riso seria “uma afeição que deriva de uma espera tensa que, de repente, se resolve em nada. É precisamente essa resolução, que por certo nada tem de jubiloso para o intelecto, que alegra indiretamente, por um instante e com muita vivacidade”. Nesse ponto de vista, vemos o riso como uma saída benéfica, embora fugaz. Hegel apresenta uma visão oposta à de Kant, ponderando o riso como “expressão da posse satisfeita da verdade, da segurança que se sente por estar acima das contradições e por não estar numa situação cruel ou infeliz” (ABBAGNANO, 2007, p. 154).

No romance de Paulo Lins e no filme Coringa, o riso se manifesta como válvula para escapar do contexto trágico em que ambas as personagens se encontram. Uma solução dramática e patética que os autores dos dois textos utilizam para denunciar situações de misérias humanas encontradas cada vez mais na pós-modernidade, onde não se encontra mais a compaixão (com + paixão). Tanto Zé Pequeno quanto Arthur Fleck lutam para sobreviver num ambiente hostil, que não aceita o Outro, o diferente –– Coringa é uma pessoa especial, desequilibrada, doente; e Zé Pequeno é pobre, negro e favelado. A tendência dos dois é admirar os ideais da atual sociedade de consumo, que privilegia o dinheiro e os endinheirados; crescem juntamente com tais ideias na cabeça que vão aumentando e se tornando imperantes à vida, como se fossem realmente imprescindíveis. Hoje esquece-se de que precisamos também de afeto: toque e contato humano (BOFF, 2017). Era o que faltava às duas personagens, que parecem ser retiradas da vida real: uma vida de cuidado, como nos recomenda o filósofo Leonardo Boff, mas que, em ambientes como os de suas vidas, era considerado impossível.

3. O RISO OCASIONADO POR UM AMBIENTE EXTREMAMENTE VIOLENTO

A violência no Brasil é antiga. Nossa história imprimiu episódios funestos, repletos de situações como a escravidão, a persistirem em nossa memória, como uma tatuagem e consequências são sentidas ainda hoje, a exemplo primeiro dos cortiços e favelas, com as péssimas condições de sobrevivência. Lugares periféricos das cidades grandes, que não têm como abrigar seus habitantes e os amontoam em rincões mais distantes dos centros. Em capitais como do Rio de Janeiro, com sua geografia desenhada com muitos morros, localidades sem saneamento básico, a população de baixa renda aí se concentra, mesmo correndo perigos com os tiroteios constantes ou os deslizes de terra no período das chuvas, que causam avalanches e mortes todos os anos.

Os estudos de Queiroz (2011) nos apontam que a abolição da escravidão em 1888, bem como a crise no setor agrário fizeram surgir a favela no Brasil, último país da América a libertar os escravos. Com a supressão da escravatura, os danos foram maiores, pois os descendentes de africanos que eram a maioria trabalhadores da lavoura sofriam com a discriminação ao serem comparados a objetos como a enxada ou a animais de carga. Costa e Azevedo (2016) mostram que a libertação dos escravos no Brasil foi um processo inacabado. Com baixíssimos ordenados, os ex-escravos não poderiam pagar um bom lugar para morar e eram obrigados a ir para lugares afastados como as periferias das cidades, muitas vezes ocupando-os ilegalmente. Aí originam-se os cortiços e as favelas, estas sendo o ambiente principal do romance de Lins, onde nasce e cresce Zé pequeno, protagonista de Cidade de Deus (1997), no qual retrata a vida em uma favela do Rio de Janeiro, as mudanças que esta sofre, nos anos 60 de século passado, transformando-se em um imenso conjunto habitacional com construções precárias de sobrevivência. Onde antes se cometiam pequenos delitos como furtos e assaltos, depois, com o estabelecimento do tráfico de drogas, generaliza-se o crime e a violência explode de forma desmedida nas guerras de traficantes por espaço e poder.

No “sonho dantesco” retratado por Castro Alves (s. d., p. 14, 15[4]) em Navio Negreiro (Tragedia no Mar), o capitão da nau, visto como um Satanás ridente, forma uma “orquestra irônica”, ao ordenar que os escravos seja mais açoitados, em fúria, sem dó. O quarto canto traz o seguinte fragmento:

[…]

E ri-se a orquestra irônica, estridente…

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais…

Se o velho arqueja, se no chão resvala,

Ouvem-se gritos… o chicote estala.

E voam mais e mais…

[…]

E ri-se a orquestra irônica, estridente…

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais…

Qual um sonho dantesco as sombras voam!…

Gritos, ais, maldiçoes, preces ressoam!

E ri-se Satanás!… […]

(ALVES, s. d., p. 14, 15)

O poema aponta um motivo diverso de riso em um retrato pungente de uma prática imoral, mais tarde ilegal, porém permitida em nome do lucro fácil, que, com a sensibilidade do poeta dos escravos, mostra os “homens nus” sob a “serpente”, metáfora para a chibata, fazendo-os “dançar” em volteios de dor ao experimentarem na pele as chicotadas. Esse riso irônico se configura aqui como escárnio, pois os escravos “nem são livres p’ra morrer”, atados que estão aos elos da corrente que os prende uns aos outros, subjugando-os nesse martírio.

No caso das personagens Zé pequeno e Coringa, há vários fatores que podem explicar as origens da risada. Parte-se da ótica social para desvendar onde esta nasce, com suas complexidades. Imersas em realidades exacerbadamente violentas, ambos sofreram abusos na infância e foram negligenciados na vida adulta. Logo, o sentimento de abandono é real na construção delas e a fuga para reguladores químicos, idem. Atente-se que esses pontos citados podem aparecer em qualquer realidade, ficcional ou não, e são capazes de causar efeitos similares aos dos protagonistas, todavia também podem ser mecanismos que não surtam efeitos no indivíduo para que ele vire um assassino. Seriam necessários outros elementos para determinar a psicopatia e psicose das personagens. Tais elementos são utilizados para justificar a tese de que o riso é causado como resposta social, mesmo nessas realidades.

A imersão em sociedades violentas como essas não é exclusividade dos ambientes ficcionais como romance e filme, mas reverbera construções históricas e utiliza do riso para lidar com rebeldia contra todas as dores causadas por milhares de anos de luta e opressão. Ao discorrer sobre o riso no século XX, a historiadora Verena Alberti (2002) explica-o sob o pensamento de alguns filósofos, a exemplo de Georges Bataille –– que considerava sua filosofia como a do riso ––, tal qual um ato de liberdade e rebeldia contra o ser sisudo e demasiado racional. A narrativa Cidade de Deus (1997) é contemplada também nesse mesmo século, a do filme Coringa não se tem marcações históricas explícitas, mas o cenário pode ser encarnado no final do século XX, o qual guarda todas as justificativas para a gargalhada incontrolável, conforme cita Minois:

O século XX morreu. Viva o século XX! O defunto, marcado pelo desencadear de todos os excessos possíveis, não será muito lamentado. Tudo já foi dito sobre este século e seus horrores. Mas esse século, que custou para morrer, encontrou no riso a força para zombar de seus males, que não foram apenas males de espírito: guerras mundiais, genocídios, crises econômicas […] Entretanto, de ponta a ponta uma longa gargalhada ressoou. O riso solto começou aos 14 anos e não cessou mais. Transformou-se num riso nervoso, incontrolável. O mundo riu de tudo, dos deuses, dos demônios e, sobretudo, de si mesmo (MINOIS, 2003, p. 391).

É durante o fim desse século que as duas criaturas da ficção desenvolvem-se e reproduzem suas dores por meio de risadas incontroláveis. O século XX produziu um modelo de reagir ao sofrimento alheio e construiu sujeitos com sorriso de orelha a orelha, mas com corações destroçados. A sociedade em que Zé Pequeno sobrevive é marcada por imensa desigualdade social. Enquanto os ricos do centro da cidade usufruem de boa alimentação, roupas e qualidade de vida, a população da favela carece de saúde, educação, saneamento básico e oportunidades de emprego. É nessa local que cresce o jovem Dadinho (Zé Pequeno), incentivado desde pequeno a cometer crimes para poder obter dinheiro, transformando-se depois num ser execrável –– termo do latim execrabilem, exsecrave, formado de sacer, sagrado, e ex, excluído (NEVES, 2012) –– um marginal, posto à margem da sociedade.

Na cidade fictícia de Gotham City, a realidade não é tão distante quanto a do Rio de Janeiro referida no romance de Paulo Lins. As desigualdades são relativamente similares, entretanto a população apresentada aparenta ter mais força para agir contra aqueles que a oprimem, principalmente após os incentivos criados por Coringa, como o assassinato dos três funcionários das empresas Wayne, crime que faz explodir uma revolta popular, com saques e destruição por toda a cidade e fazendo os revoltosos se mascararem de palhaços.

A história do arqui-inimigo de Batman ou simplesmente sua Nêmesis, espécie de vingador (FRANCO, 2018), cujo sorriso remete ao Joker, uma carta de baralho, vem dos quadrinhos, muito anterior aos filmes cinematográficos do homem-morcego. De acordo com Elias (2016, p. 52), nas HQ, antes de transformar-se em Coringa, Fleck, ex-funcionário de uma empresa de cartas de baralho, empobrecido e com a esposa grávida, sente-se um fracassado em seu projeto “de ser humorista de stand-up” –– um tipo de espetáculo cômico ––, e com sérios problemas financeiros, resolve assaltar a empresa na qual havia trabalhado. Mas a polícia chega com Batman ao local do crime e Coringa acaba por cair num tonel de produtos químicos, os quais transformam seu rosto, deformando-o: a partir daí, mostra um sorriso exagerado de palhaço para sempre (ELIAS, 2016).

Em Batman, o Cavaleiro das trevas (filme de 2008), o próprio pai do Coringa, um bêbado e drogado, por pura maldade, teria rasgado a boca do então menino com uma faca para expor nela um sorriso perene, segundo o próprio Fleck relata. E na obra cinematográfica Coringa, este personagem apresenta uma doença psicológica que o obriga a rir em situações que não são engraçadas, o que pode deixá-lo em maus lençóis, afinal, se a ocasião vivida envolve emoções como piedade e medo, a pessoa não deverá rir dela (VERRONE, 2009).

Na película Coringa e no romance de Paulo Lins, a violência sofrida pelas duas personagens chega a ser sutil. Logo, é comum que frases de populares tais como “eu sofri muito mais que ele e nem por isso virei um assassino” são comuns de serem ouvidas, pois a banalidade com a violência chega a ser habitual ao ponto de invisibilizar a dor do outro com premissas particulares e a tornar o horror algo normal ou naturalizado. Esses dois seres da ficção são construídos, ao decorrer do tempo, com ações diretas e indiretas do Estado. Portanto, não são indivíduos isolados em suas comunidades e nem anomalias sociais, mas produtos que seriam criados a qualquer momento em uma sociedade tão desigual e excludente.

Ao olhar o homem maduro hoje, não nos lembramos de que fomos crianças um dia. O adulto é o resultado do que viveu ontem o infante. É preciso atentar para o que temos de mundo habitável e de sociedade razoável a ofertar às crianças. Boff (2017) avalia o mal-estar da civilização atual, que traz como consequências o descuido, o descaso e o abandono dos mais fracos –– crianças sem infância, portanto sem presente e sem futuro porque não têm direito ao sonho –– e chama a atenção para a cruel realidade de não nos causar assombro o morticínio destes seres ainda em formação por grupos de extermínio das grandes capitais de países latino-americanos e asiáticos, mas que poderíamos estender a todo o globo. Existe uma falta de cuidado com as pessoas de modo geral, porém mais perigosa desde a infância, gerando males futuros difíceis de consertar. O resultado são seres-aberrações como Zé Pequeno e Fleck.

Os “Versos íntimos”, de Augusto dos Anjos, nos dão uma noção de como e em que se pode transformar o ser humano, quando não recebe os cuidados dos quais fala Boff:

[…]

O Homem, que, nesta terra miserável,

Mora entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera. […]

(ANJOS, 2011, p. 104).

Como nas duas obras, com suas personagens sendo negligenciadas e maltratadas desde a infância, o clima vivido por elas contagiou-as, modificando-as. Ambientes saudáveis podem curar, enquanto um meio com atmosfera negativa, agressiva tem o poder de influenciar e envenenar o ser. Mais uma vez, a poesia vem expressar o que se sente, traduzindo em um eu lírico transtornado em meio à selva na qual, tendo que sobreviver, vê transformar sua natureza interior em outra mais feroz, de acordo com a necessidade de revidar os golpes recebidos.

Quanto ao riso e ao seu antônimo, as lágrimas, estas comovem e contagiam. Já aquele também faz o mesmo, contamina, no bom sentido da palavra: afeta, comove e move o ser, conduzindo-o ao que é experimentado pelo outro e, nesse momento, por ele próprio. Uma das sensações mais deliciosas, uma espécie de êxtase, conforme relata Bataille, em sua experiência reportada por Alberti (2002, p. 14). Enquanto chorar nos deixa angustiados, rir nos torna mais alegres, animados e motivados. Quanto mais se ri, mais se sente a alma vibrar e os olhos se inundam –– curiosa e igualmente como acontece com as lágrimas de dor  ou  tristeza –– mais nos sentimos agradavelmente renovados, como se uma sensação de delicioso torpor nos inundasse. Por isso a preferência de muitos pelas comédias, gênero mais leve e que também pode provocar a catarse, a lavagem purificadora da alma; e também pelas piadas, pois nos dizem, nas entrelinhas, que precisamos levar a vida o mais amenamente possível, sem nos preocuparmos tanto, afinal tudo é passageiro. E, se tudo passa, para que preocuparmo-nos? É quando rir torna-se um remédio.

4. RIR PARA NÃO CHORAR

As diversas atrocidades cometidas pelas personagens demonstram um contexto de violência vivenciado em suas famílias e ao redor, na comunidade. Tem-se mais crimes cometidos por Zé Pequeno, levando-se em consideração que a narrativa privilegia toda a história de sua vida desde a infância (embora não se conheça a idade precisa dele, mas subentende-se que seja jovem), enquanto que em Coringa o enredo focaliza-se na vida adulta da personagem Fleck, com alguns flashes de sua infância, sem um desfecho de sua vida, isto é, com um final aberto, pois a personagem não pode morrer, já que continua vivendo outras aventuras contra Batman.

O riso como mecanismo de resposta à comunidade aparece de formas diferentes nas duas personagens. Em Arthur, é devido a uma doença chamada Epilepsia Gelática, que causa a risada incontrolável em situações adversas, não coincidindo com o real sentimento e fazendo o antagonista rir incontroladamente em conversas com tom sério ou de sua própria dor. Como quando ele relata todas as suas histórias para a funcionária pública e a ação mais marcante da cena são as constantes gargalhadas diante de tantas dores relatadas ou quando ele é demitido do trabalho e, ao invés de rebater ou tomar qualquer ação violenta, sua única reação foi soltar mais uma risada.

Essa incongruência de expressões do riso, que não representavam o seu real sentimento, possibilitou o desenvolvimento de novas gargalhadas com sentimentos ainda não vivenciados, como, por exemplo, o prazer ocasionado pela violência na cena em que Coringa está no programa de televisão de Murray Flanklin e, após uma longa discussão com o apresentador, atira em Murray e fica um tempo vendo e assimilando a ação até que o riso tome conta de sua face. Outro momento em que a risada aparece e marca esse mecanismo de expressão social mediante o terror é quando o bandido é preso e, ao passar pela cidade na viatura, tudo o que ele enxerga é a população quebrando, atacando e queimando o que havia pelo caminho.

São diversos os momentos em que a risada aparece no comportamento de Coringa. Porém, a cena em que o riso é pré-moldado nesta era contemporânea pode ser percebida num dos episódios do filme, em que a personagem está no camarim e há uma tentativa de colocar um sorriso no rosto, enquanto várias notícias ruins são relatadas no rádio ao fundo. Arthur força o sorriso no rosto, retomando para a cara de tristeza e forçando ainda mais os lábios ao ponto em que nem mesmo a dor o possa parar, mas ele alarga os lábios, e esse movimento final da personagem pode representar o conformismo com as dores sofridas ao ponto de não ser mais possível sequer esboçar alguma expressão facial.

No caso de Zé Pequeno, o riso apareceu quando ele era ainda uma criança e sua risada ganha destaque após o primeiro assassinato no qual, depois de matar uma pessoa, ele pôde finalmente sentir o prazer de tirar a vida dos outros: “No terceiro assalto com revólver, fez questão de matar a vítima, não porque ela tivesse esboçado reação, mas para sentir como é que era aquela emoção tão forte: e riu a sua risada fina, estridente e rápida por muito mais tempo do que em outras situações” (LINS, 1997, p. 185).

Esse trecho deixa claro quão cruel é essa personagem, mesmo aos seis anos de idade, já ceifando vidas e gozando dessa ação sem dó. Dadinho é uma criança órfã de pai e forçada a trabalhar desde cedo pela mãe para ajudar nos custeios de casa. No entanto o menino nunca quis essa vida, pois para ele trabalho era perda de tempo, ocupação de otário, como ele se referia aos trabalhadores (LINS, 1997), e mesmo nas funções em que sua mãe se encarregava de o colocar, sempre apareciam oportunidades de furtar algo ou violentar alguém.

Tema da filósofa Hannah Arendt (1994), a violência alcançou um patamar inimaginável, sendo até glamourizada e tendo seu aparato elevado às alturas da sofisticação com o aperfeiçoamento técnico dos seus instrumentos. A violência está ligada aos meios e mecanismos de coação próprios da chamada autoridade soberana ou de entidades constituídas pelo poder para esse fim (ANDRÊS, 2012). Esse conceito, elaborado por Arendt, segundo Andrês (2012), diz respeito às instituições constituídas de poder a exemplo do Estado, mas pode-se estendê-lo a todo e qualquer contexto de domínio. No caso de Zé Pequeno, trata-se também do desejo de poder sobre os mais fracos e uma tentativa de forçá-los a o respeitarem através da imposição pelo medo.

Essa criança cresceu e virou um dos chefões do tráfico na favela Cidade de Deus e uma das características mais marcantes de sua personalidade é a violência, uma vez que distribuía tapas  a qualquer sujeito da rua que o encarasse de modo estranho (LINS, 1997). Troca de nome, tornando-se o Zé Pequeno, já que Dadinho era nome conhecido pela polícia desde os tempos de Cabeleira –– outro marginal, seu conhecido –– e isso lhe causaria problemas no tráfico. Mudou o nome, entretanto a crueldade permaneceria a mesma ou até recrudesceria, como na cena em que um rapaz o chama de Dadinho e se recusa a lhe entregar o dinheiro: “O rapaz recusou-se a dar o dinheiro, ainda o xingou, afirmou que era sujeito homem. Pequeno gargalhou antes de atirar próximo ao pé do rapaz, que emudeceu e passou a seguir as determinações do traficante sem pestanejar” (LINS, 1997, p. 274).

A gargalhada, como citada anteriormente, é algo presente em quase todas as cenas de violência provocada pelo protagonista e torna-se sua peculiaridade marcante. É possível que cada momento de tortura causado por ele tenha sementes de prazer, até pela sua formação no crime, desde o primeiro assassinato a risada acompanhou esse deleite. Logo, o riso pode ser ocasionado pelo mal, mas também pode ser produto da sociedade violenta, como no exemplo em que, durante a guerra com Galinha, mais uma personagem do crime, Pequeno perde um de seus combatentes, uma criança, e sua única ação foi soltar uma risada: “Quando Pequeno viu o corpo de seu vapor despedaçado riu fino, estridente e rápido” (LINS, 1997, p. 463). Ou quando o seu território estava sendo atacado pelo inimigo e, mesmo assim, riu enquanto tudo pegava fogo e foi necessário: “Os parceiros ficavam enervados vendo Cuscuzinhos correndo para todos os lados em chamas, um fogo azul o chocalhava da cabeça aos pés, aquele grito grave, contrastando com a risada fina, estridente e rápida de Pequeno” (LINS, 1997, p. 473).

O lance que melhor marca o riso em Zé Pequeno como uma fissura na sua personalidade, sendo assim uma construção social de que se deve rir de tudo e em qualquer momento, mesmo quando se sente medo, dor, ou outro sentimento que não esteja interligado com a alegria, é no momento em que ele está apavorado em perder a vida para o oponente Galinha. Este já havia eliminado muitos dos combatentes de Pequeno e tomado o território como forma de se impor. Logo, o medo de perder a vida para o adversário foi real, mas, mesmo assim, a risada e o deboche fizeram parte da cena:

[…] na terceira diminuiu a passada, tirou a arma da cintura, engatilhou-a e entrou na viela de frente para o Bloco Sete, onde costumava ficar […] Pequeno riu fino, estridente e rápido e devolveu os tiros e procurou abrigo, os outros dois também atiraram e acompanharam o estuprador, o terceiro tentou trocar tiros francamente com o vingador e foi atingido fatalmente na testa (LINS, 1997, p. 406).

Nessa cena é Pequeno e seus companheiros que estão sendo perseguidos por Galinha e seu bando. Um deles, então, é atingindo na cabeça pelo exímio atirador. Zé Pequeno não sentia medo da morte, pois ele era o ceifador, porém nesse momento sentiu, e a risada o acompanhou, fazendo com que este fragmento de Pequeno se interligue ao do protagonista do filme Coringa. Sorrir foi um mecanismo de defesa para esconder o que estava sentindo realmente, pois se chorasse, mostraria fraqueza. Mesmo desesperado, fez questão de dar uma gargalhada pois ela apagaria as marcas de dor de seu rosto.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O corpo do trabalho pôde possibilitar que tanto Joker, o personagem norte-americano, quanto o carioca Zé Pequeno estão imersos em sociedades que proporcionam o riso, ainda que o forjado. Uma gargalhada que não condiz com sentimentos de alegria, uma vez que a morte, mesmo que ocasione prazer nas personagens, não tem essa origem semântica. Torturar, causar assassinatos ou contemplá-los está mais atrelado a sentimentos de dor e sofrimento.

Ambas as personagens sentem satisfação em extinguir vidas e, muitas vezes, comemoram com gargalhadas, um riso do mal. A risada que, em outras situações, é uma resposta à sociedade violenta em que os dois cresceram e que aos poucos vai sendo normalizada com situações norsense e cada vez mais comuns, hoje é televisionada, com todos os tons de um realismo chocante, ou mostrada ao vivo nas mídias sociais em tempo real para todos de todas as idades e a todas as nações.

Ao estudarmos os dois protagonistas, vemos a necessidade de cuidar da infância, já que eles não tiveram uma. Bergson (1983) considerava que os brinquedos da infância (que muitos não existem mais, a exemplo de marionetes), são como os espetáculos cômicos da idade adulta, isto é, transportamos para o futuro o que vivemos no passado. Verrone (2009) afirma, com base nesse filósofo do riso, que não existem emoções novas, as emoções do presente se referem àquelas antigas vividas na infância de cada pessoa, bem guardadas na memória. Se tivermos construtivos e agradáveis relacionamentos e sensações durante a infância, tornar-nos-emos igualmente felizes na fase adulta. Nós revivemos nossa infância na fase madura, se feliz ou não.

Nossas personagens de Cidade de Deus e de Coringa, esplanadas aqui, tendo sofrido abusos quando crianças, só puderam mais tarde fazer aflorar tudo de pior vivido e sofrido antes. Elas nos fazem lembrar de pessoas reais –– e não personagens de ficção –– que, sendo maltratadas extensivamente por familiares em casa e/ou colegas nas escolas, desenvolveram problemas psicológicos ou psiquiátricos, fazendo com que se tornassem verdadeiros facínoras. Não nasceram marginais, mas tornaram-se aberrações, como produtos bizarros de uma sociedade igualmente bizarra, doente como eles, uma sociedade excludente, bárbara e individualista, tendo de sobreviver nela de uma forma pela qual não optaram, mas escolhida para eles pelos mais poderosos. Devemos, portanto, estar atentos a essa sociedade que naturaliza toda e qualquer violência, pois nem todos reagem igualmente em situações limite.

O filme é sobretudo uma crítica atroz ao modelo de sociedade que exclui os que apresentam mais dificuldade em vencer –– jogando os derrotados na sarjeta –– os quais se sentem profundamente acabrunhados e respondem a isso com revolta e violência desmedida. Os bobos, cuja palavra remonta a balbus, gago, isto é, aquelas pessoas que provocavam gargalhada, os truões da Idade Média, com seu trabalho de entreter os nobres, provocando-lhes boas risadas, tinham como um de seus mais importante objetivos, criticar os costumes, segundo Neves (2012). Os tempos mudam, mas as expressões apenas atualizam-se, pois são as mesmas, apenas com outras aparências.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, N. Dicionário Filosófico. Tradução de 1. ed. brasileira coord. e rev. por Alfredo Bosi; rev. da tradução e tradução dos novos textos Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ALBERTI, V. O riso e o risível: na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

ALVES, C.; Varella, F. Vozes d’Africa. Navio Negreiro. Cantico do Calvario. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Academica de J. G. de Azevedo, s.d. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000068.pdf>. Acesso em: 20 dez 2020.

ANDRÊS, A. D. S. O conceito de ‘violência’ no pensamento de Hannah Arendt. 72 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Nova Lisboa, Lisboa, 2012.

ANJOS, A. dos. Eu e outras poesias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

ARALDI, I. S. Os Clowns de Fellini: a porção palhaça da subjetividade. 216 p. Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013.

ARENDT, H. Sobre a violência. 3. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.

BERGSON, H. O Riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis,  Rio de Janeiro: Vozes, 2017.

COSTA, D. B.; Azevedo, U. C. de. Das senzalas às favelas: por onde vive a população negra brasileira. Socializando. ano 3, n. 1. jul. p. 145-154, 2016.

ELIAS, R. R. Batman, o Cavaleiro das Trevas – A HQ, o desenho animado e o filme: transfiguração. 115 p. Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem) – Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, 2016.

FRANCO, F. M. “Os superpoderes do Coringa: um estudo sobre a relevância de um vilão na cultura midiática”. In Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos. São Paulo: PUC de São Paulo: 15, 2018.

 Joker. Direção de Todd Phillips. Estados Unidos: Warner Bros. Pictures, 2019. (122 min.)

LEITE, T. R. de M. Nietzsche e o riso. 2016. 205 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.

LINS, P. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

MINOIS, G. A história do riso e do escárnio. São Paulo: UNESP, 2003.

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QUEIROZ, A. P. de. Sobre as origens da favela. Mercator. Fortaleza, v. 10, n. 23, p. 33-48, set./dez. 2011.

SOUSA, J. da C. Cruz e Sousa: seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico por Aguinaldo José Gonçalves. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

VERRONE, A. B. Uma abordagem cognitiva do riso. 2009. 94. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) – Universidade Federal de São Carlos, 2009.

APÊNDICE – REFERÊNCIA DE NOTA DE RODAPÉ

3. O palhaço encarna os personagens da criatura fantástica, que expressa o aspecto irracional do homem, componente do instinto, tão rebelde e contestador da ordem superior que há em cada um de nós. É uma caricatura do homem em seus aspectos de animal e criança, de zombado e de ridicularizado. O palhaço é um espelho no qual o homem se vê numa imagem grotesca, deformada, engraçada [Tradução livre nossa].

4. A edição é do século XIX, mas aparece sem data na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, no endereço eletrônco: <https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4938> capturado em 20/10/2020. “Tragedia” aparece sem acento tônico. Mas no trecho do poema o português foi atualizado.

[1] Doutora e Mestra em Ciências da Educação pela Universidade de Évora (Portugal), especialista em Literatura Infantil (pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná), em Docência do Terceiro Grau (pela Universidade da Amazônia) e em Ciências da Educação (pela Universidade de Évora). Graduada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

[2] Acadêmico do curso de Letras no Instituto Federal do Pará e pesquisador do projeto Correspondência Literária Luso-Brasileira na Amazônia do Século XIX integrado ao grupo de pesquisa Linguagem, Literatura e Tecnologia na Amazônia do IFPA.

Enviado: Janeiro, 2021.

Aprovado: Junho, 2021.

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Maria da Luz Lima Sales

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