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Afeto no fazer literário: os mineiros Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende em registros memorialísticos

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CONTEÚDO

ARTIGO DE REVISÃO

MOTTA, Thaís Costa [1], GONÇALVES, Martina Spohr [2]

MOTTA, Thaís Costa. GONÇALVES, Martina Spohr. Afeto no fazer literário: os mineiros Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende em registros memorialísticos. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 09, Vol. 07, pp. 104-118. Setembro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/letras/fazer-literario

RESUMO

Inexistentes os lugares de memória enquanto registros espontâneos fazendo-se pertencentes quando mecanismos agentes em prol de sua própria manutenção, a análise teórico metodológica voltada a acervos de exclusividade epistolar, transferiu-se enquanto proposta uma dinâmica de visitação, em plataforma, cujos componentes audiovisuais buscaram atender a demandas teórico-reflexivas referentes a registros memorialísticos de um grupo de quatro escritores mineiros, coligadas a um acervo de correspondências em específico, sobre este mesmo grupo de intelectuais.

 Palavras-chave: Arquivo pessoal, Acervo epistolar, Memória.

1. INTRODUÇÃO

A carta como relato da intimidade aponta a amizade como exercício da sociabilidade. Em meio a laços entre razão e sensibilidade, nota-se, na Literatura, a sustentação do diálogo epistolar. Sob este aspecto, enquanto intelectuais, movimentam-se os mineiros em processo de reflexão acerca de suas posições sociais.

Memória é igualmente registro. (ARTIÈRES, 1997). Segundo Nora é preciso, ao conceituar os “lugares de memória” no mundo material, desvinculá-los de seu teor simbólico. Isto significaria dizer que, os lugares de memória existem, se fazem pertencer, uma vez que não existiria memória espontânea. Posto isto, seria preciso criar, portanto, arquivos e organizá-los, uma vez que não seriam estes, gestos naturais: “A memória se enraíza no concreto no espaço, no gesto, na imagem, no objeto” (NORA, 1993, p. 8).

Pela manutenção da memória biográfica designada ao objeto epistolar, assim como se o arquivo revelasse uma persona, seria possível contarmos com o recurso de reconstrução de memórias históricas, pertencentes aos fatos que permeiam o conteúdo destas correspondências.

Enquanto produto de uma determinada cultura, seria, portanto, a Literatura igualmente instrumento para a inserção deste lugar de memória em sua contemporaneidade, pelo traçar das trajetórias de escritores, mediante o recurso da palavra enquanto objeto referencial, e, por conseguinte, representativo de um conjunto social específico. Ao longo do ano de 2018, desenvolvi um estudo sobre Arquivo e Memória, diretamente relacionado a um contato profissional que obtive, junto ao acervo Correspondência de Terceiros, do escritor mineiro Paulo Mendes Campos, localizado no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro (Instituto Moreira Salles- Rio- Departamento de Literatura Brasileira).

2. O ACERVO EPISTOLAR DOS MINEIROS 

Uma vez compreendido como um mecanismo de manutenção de memória, o objeto de minha pesquisa de mestrado, inicialmente em sua exclusividade epistolar, bem como a análise teórico metodológica voltada a acervos desta natureza, transferiu-se para novos caminhos. Tornou-se desafiador enquanto proposta de manuseio um arquivo como do escritor Paulo Mendes Campos, uma vez que os manuscritos permitiram, a meu ver, a construção da interpretação-construção de uma persona por detrás daquela introspectiva e pouco exploratória personalidade sobre o escritor mineiro.

Propôs-se, então, no mestrado analisar a ele e seus companheiros, os também escritores Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino, mais diretamente o corpus anteriormente citado, tendo como pano de fundo outros recortes de pesquisa, como correspondências de conhecimento público, compiladas por duas editoras brasileiras, sendo estas Companhia das Letras e Record[3].

Ademais, outros documentos de acervo foram coletados, dentre os quais pesquisas à distância, junto a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (BN). Voltados a disponibilizar digitalizados importantes documentos de ordem pública, este corpus, aqui selecionados tentarão dar conta de dialogar pontualmente com as correspondências, bem como com as produções intelectuais desenvolvidas e aqui presentes, mais especificamente, a de Fernando Sabino, sendo esta a empreitada do escritor no gênero cinema-documentário.

Paulo Mendes Campos, jornalista mineiro, consagrou-se como escritor, no gênero crônica. Foi cronista da Revista Manchete e diretor do setor de obras raras da Biblioteca Nacional. Fernando Sabino, também jornalista, atuou em importantes veículos de imprensa, como o Correio da Manhã, e foi igualmente responsável pela criação, nos anos 1960, da Editora Sabiá, em parceria com o também escritor Rubem Braga, posteriormente, tendo sido a editora comprada pela livraria José Olympio.

Hélio Pellegrino, psicanalista por formação, foi um dos fundadores da União Democrática Nacional (UDN)[4], tendo participado do Primeiro Congresso de Escritores[5], realizado no Teatro Municipal de São Paulo, em 1945. Otto Lara Resende, escritor e jornalista, trabalhou à frente de importantes periódicos mineiros, tendo sido membro de O Diário de Notícias, do jornal O Globo, Jornal do Brasil e, nos anos 80, da TV Globo.

Constituíram enquanto principal objeto de análise, dentro do corpus, a pesquisa às correspondências. Ademais, documentos digitalizados integraram o corpus e foram correspondentes a crônicas de Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, publicadas pela Revista Manchete, bem como uma produção intelectual pontualmente selecionada referente a Sabino, que diz respeito a sua empreitada no cinema-documentário: O Encontro Marcado com Fernando Sabino, inspirado no título de uma de suas principais obras literárias.

Uma entrevista concedida por Fernando Sabino e Hélio Pellegrino à TV Minas, em 12 de dezembro de 1987, em época de comemoração dos 90 anos da cidade de Belo Horizonte, dialoga com alguns trechos presentes em algumas das correspondências selecionadas nesta pesquisa. Foram transcritos mais especificamente trechos relacionados à amizade entre os quatro mineiros, narrados sob as óticas de Fernando Sabino e Hélio Pellegrino.

As correspondências coletadas são integrantes de acervos do IMS-Rio e da Fundação Casa de Rui Barbosa, este sendo o Acervo Museu de Literatura Brasileira (AMLB). Em sua maioria, nestes arquivos, as correspondências selecionadas referem-se àquelas enviadas e recebidas pelos quatro mineiros, mas também tendo como conteúdo temático os escritores. Correspondências, portanto, enviadas por seus pares de formação e atividade intelectuais.

2.1 PRODUÇÕES INTELECTUAIS DOS MINEIROS

Desde o princípio, submeteu-se a pesquisa a uma exposição, que contivesse documentos vinculados a produções intelectuais de cada um dos escritores.  No que tangenciam as correspondências pesquisadas em visitas a acervos, e que haviam sido trocadas entre os amigos mineiros, estas viriam a compor a exposição, no entanto, não devendo agir enquanto protagonistas. À medida que pretendia-se sustentar espaços de vivência e produção dos mineiros, o conceito curatorial do produto- memória- fez-se necessário tornar-se potencializador representativo, devendo sofrer a elaboração do produto uma importante mudança de rota. Uma vez dispostos documentos que não propunham diálogo com as correspondências pesquisadas, o propósito do produto sofreria grandes interferências.  Para isto, os recortes anteriores passaram a não ser mais suficientes.

Foram necessárias pesquisas que envolvessem mais documentos epistolares que atendessem as demandas reflexivas deste trabalho e que mantivessem o tópico teórico envolvendo preferencialmente a relação de amizade entre os quatro mineiros. Por este motivo, pertencentes a duas publicações editoriais, algumas correspondências da Companhia das Letras e da Record também foram selecionadas. Foi necessária, a partir de então, a inclusão no corpus, de documentos que interagissem, de alguma forma, com as correspondências selecionadas, agora protagonistas no tópico teórico- metodológico desta pesquisa.

A Hemeroteca Digital permitiu a busca por importantes documentos que passaram a integrar-se junto a algumas das correspondências. A opção por este tipo de documentação oferecida na Hemeroteca se deu justamente pela possibilidade de imediata leitura, estabelecendo diálogo temático entre fatos e comportamentos, presentes nestas publicações, frente ao conteúdo das cartas.

3. A PLATAFORMA DE VISITAÇÃO

A proposta inicialmente apresentada, a de elaboração de exposição presencial não atenderia às novas demandas teórico-reflexivas. Foi então apresentada enquanto alternativa o desenvolvimento de dois produtos, teoricamente propostos como coligados. Uma exposição de caráter virtual, disposta em uma plataforma dinâmica de visitação, que permite a disposição espacial de objetos, expostos da forma como melhor este achar conveniente. Nesta plataforma constam todos os demais conteúdos pertencentes ao corpus, aqui, igualmente, já mencionado. A intenção é que se estabeleça conexão entre o conteúdo das correspondências e estes materiais expostos, concomitante às temáticas que abordam. Pretendeu-se para tal, viabilizar o acesso ao site e a plataforma de visitação através de códigos QR CODE.

O primeiro deles, um site, elaborado por uma plataforma gratuita, o “Wix” [6]. Neste site, encontram-se dispostos especificamente as correspondências selecionadas para esta pesquisa. As correspondências foram configuradas espacialmente de forma não aleatória, tendo sido dispostas em menus com os eixos centrais: o âmbito público, nomeado como fazer literário; o lugar comum, designado ao que se pode considerar uma linha tênue entre o factual e o comportamental; e o âmbito privado.

Este site foi linkado a uma dinâmica de visitação, em plataforma projetada por “Artsteps”,[7] cuja exposição recebeu o seguinte título: Afeto no Fazer Literário: os mineiros Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende em registros memorialísticos. No Artsteps, sendo possível realizar virtualmente a visitação por entre espaços desenvolvidos pela plataforma, a disposição dos componentes, antecipadamente configurados, podem ser apreciados pelo espectador. Foram publicados neste espaço os componentes audiovisuais – o cinema documentário de Sabino e a entrevista à TV Minas, e os documentos coletados na Hemeroteca Digital da BN.

A recepção artística em meio aos objetos pertencentes a exposição, tais como documentos digitalizados e material audiovisual carregam consigo referenciais de dimensão social. Isto ocorreria porque o código presente nestes objetos seria composto por metalinguagens, registros situados no espaço e tempo; pertencente a pensamentos, uma vez simbólicos.

Deste modo, “a reprodutibilidade técnica, ou seja, os novos aparatos de captação do mundo, romperiam com a aura do fazer intelectual de uma obra de arte, uma vez que modificariam a relação da massa com esta arte.” (BENJAMIN, 1955).

Isto ocorreria tendo em vista um processo de superação quanto à unicidade e exclusividade de uma obra de arte. Caberia diante de aparatos desta natureza, para tanto, um olhar crítico e aprofundado, por parte de agentes culturais, em seus conjuntos de indícios e processos históricos relevantes, que caibam transpor a estas obras de arte, em suas reprodutibilidades, um sentido político” (BENJAMIN, 1955).

4. A MEMÓRIA EM GÊNERO EPISTOLAR

Sendo a memória socialmente construída, a documentação também o é, e a história uma reconstrução. Esta construção só se tornaria acessível, à medida do contato do historiador- pesquisador com as fontes que permitam diversificar os pontos de vista sobre os objetos em si analisados. A função do ‘não dito’ pela memória social prevê em sua construção a existência de uma disputa entre as frentes representadas pelos registros oficiais e as memórias subterrâneas (POLLAK, 1992).

Antes de tudo, é necessário pensar sobre o conceito de memória histórica. A memória histórica, assim como a memória em arquivo, se apoiaria no vestígio, tendo por necessidade, suportes na ordem da preservação integral do passado, valendo-se igualmente de processos constituídos pelo contemporâneo a que estas memórias se sustentariam (NORA, 1993). Seria na diversidade das lembranças e registros que se revelariam disputas e litígios entre grupos. (POLLAK, 1992). Reflexões desta natureza frente ao conceito de memória coletiva representam o deparar-se com um processo de reconstrução biográfica da vida e trajetória como a dos mineiros, por exemplo. Em comunhão com este processo, diante de uma proposta de análise quanto à perspectiva epistolar, observa-se um recorte conceitual memorialístico voltado especificamente à esfera individual destes escritores.

Distintamente do objeto ficcional, onde o personagem limita-se à predominância da ação e do pensamento, através do exercício de atributos que expressam representações, ao estabelecer enquanto recorte a perspectiva epistolar por exemplo, permite-se notar a “representação do universo psicológico” de cada um destes escritores, em suas produções literárias, alguns com maior predicado que outros.

Entretanto, ao estabelecer-se que o personagem abrange fragmentos do “ser real” o qual representa, este nunca poderia abarcar o real em sua totalidade, sem que houvesse a ruptura com o caráter ficcional, baseado na intencionalidade criadora do escritor. Fatos estes que designariam as informações internalizadas, de configurações que tangem a personalidade e intimidade, preciosas fontes de pesquisa para a elaboração de uma exposição acerca de produções intelectuais dos literatos mineiros.

Por conseguinte, a configuração em apresentar-se na sua integralidade, em trocas epistolares cujas mensagens se baseiam em uma relação de alto grau de intimidade, requer uma análise, ainda que breve, sob as negociações de face[8] estabelecidas neste complexo contexto comunicacional, o epistolar.  A carta como relato da intimidade aponta a amizade como exercício da sociabilidade realizado através da correspondência epistolar. Em meio a laços entre razão e sensibilidade, nota-se na literatura a sustentação do diálogo epistolar. Sob este aspecto, enquanto intelectuais, movimentam-se os mineiros em processo de reflexão acerca de suas posições sociais.

Pertencente às Revistas Manchetes, por exemplo, encontraram-se documentos que permitiram compreender mais amplamente a proposta de defesa a uma arte crítica e reflexiva:  a estreita relação estabelecida entre Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos com referências intelectuais as mais diversas, nacionais e estrangeiras, contemporâneas a sua época e anteriores a ela. Nos campos das Letras, do Jornalismo e fora destes. Estreitamentos estes que permitiram tornar pertencentes Fernando Sabino e Paulo Mendes, se comparado aos demais integrantes do grupo, os literatos de maior proximidade com as rodas de convívio e produção destes referenciais literários.

O poeta Stephen Spender[9], em uma oportuna visita ao Rio de Janeiro, foi recepcionado por Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Em uma de suas publicações, a Manchete trouxe ao conhecimento público, um documento característico de Stephen Spender, intelectual cujas características de seu trabalho literário foram absorvidas por seus pares brasileiros, podendo ser observadas nas produções de Fernando Sabino, mas, sobretudo, na de Paulo Mendes Campos.

Isto dá-se ao notar-se o interesse e conhecimento de Spender pela obra do também poeta T.S Eliot[10], autor traduzido por Paulo Mendes Campos. A poesia de Spender desvelou a produção de versos inspirados na banalização do dia a dia da vida moderna, temas políticos, que envolviam a revolução social, e sobretudo, voltados à discussão sobre movimentos que propusessem a abolição da injustiça e da guerra. Eram postos isto, igualmente, estas temáticas, igualmente, muito presentes nas produções de Paulo Mendes, em algumas de suas principais crônicas.

Em uma correspondência de Otto Lara a Hélio Pellegrino, no seguinte trecho, observa-se menção a uma produção intelectual de Paulo Mendes, portanto, a um assunto de esfera pública: “Hélio, leu a crônica, publicidade do Paulo Mendes campos, na Manchete? Chama-se o Homem que calculava. Leia e veja que sabedoria. Quanto ao Fernando, está de uma burrice irremediável. ”  Sua menção, no entanto, tangencia-se pelo âmbito particular, quando na exposição de opinião pessoal, no entanto, referente a um objeto de recepção artística, e não somente, de reprodução e apreciação internas.

É válido notar que o gênero “crônica” se beneficiaria deste intercâmbio entre os faits divers do jornal e a experiência pessoal. Marcas de originalidade, entretanto, são observadas nas crônicas, pela adesão de um escritor ao heterogêneo, manifestado em sua singularidade. Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, em especial, ao rondar uma delegação de intelectuais dentre os quais Vinicius de Moraes, tratam frente a este, e a partir dele, estabelecer contato com produções intelectuais outras, cuja forma estética atravessaria as fronteiras do conto, da música popular, da peça teatral e da crítica cinematográfica. Observa-se, deste modo, e a partir daí se pode afirmar que investigações acadêmicas quanto ao percurso e a finalidade com que algumas correspondências foram inscritas em arquivos específicos são realmente possíveis. Assim posto, aí está a importância das memórias biográficas, pela manutenção da memória como um todo, representando, com isto, o limiar da correspondência e do arquivo em si (ARTIERES, 1997).

Mapeia-se a amizade entre os quatro mineiros, em correspondências, mais especificamente, as trocadas entre Otto Lara Resende e Fernando Sabino. Parte, então, neste caso, do movimento de escrita epistolar no âmbito privado, uma extensão para o campo do fazer literário, no âmbito público. Contextos datados, portanto, publicamente, no entanto, registrados em esfera privada, permitem o diálogo entre memória e símbolos construídos em coletividade pelo grupo de escritores (NORA, 1993).

O senso de individualidade que acompanha a construção do self inclui um sentido próprio, individualista, autônomo. Por outro lado, em sua construção, o senso de individualidade que o acompanha incluirá atenção e responsabilidade para com o outro, tornando-se o indivíduo completo quando se adapta ou ocupa seu próprio lugar na unidade social. Isto, tendo em vista que nos relacionamentos interpessoais, o mais importante a se considerar são os pensamentos, sentimentos e ações dos outros.  Uma análise sobre a interação linguística enquanto relação estabelecida entre os participantes em um contexto de discurso e a forma como é distribuído o poder entre os interlocutores, acredita-se observar de que forma a enunciação provoca reações distintas entre estes, bem como diferentes repercussões para as suas respectivas faces, procurando refletir acerca das consequências provocadas diante destes níveis de discurso.

5. A TEORIA DA POLIDEZ OU TEORIA DA FACE

A Teoria da Face[11], ligada igualmente a hierarquia, vem favorecer estudos acadêmicos, nos campos linguísticos e sociais, na medida em que traz conceitos e reflexões acerca do emprego da língua, em seu caráter de representatividade pela projeção do “eu” que se quer transferir para o outro, destituída de sua verossimilhança, e o quanto de sua personalidade deve ser ali impressa. Estes símbolos de reconstrução encontrar-se-iam delimitados por espaços criados pelo indivíduo contemporâneo em geral, diante da crise dos paradigmas modernos, com os quais o sujeito em si se identificaria, se unificaria e se reconheceria enquanto agente de seu tempo a partir destas perspectivas epistolares, por exemplo. O sujeito estaria investido, entretanto, de dois tipos particulares de necessidades: face wants, ou seja, o desejo de não ser impedido de agir- face negativa- e o desejo de ser aprovado – face positiva. Brown e Levinson (1987) explicam que a face negativa se refere à vontade do indivíduo de não ser impedido pelos outros na realização de suas ações, assim como na necessidade de manter o seu território.

A face positiva refere-se ao desejo que o sujeito possui de ser apoiado e aprovado perante os outros recebendo demonstrações de amizade, opinião favoráveis, partilha de objetos, etc. Nota-se que o processo individualista, em movimentos desta natureza, para tanto, talvez representem a “única expressão existente para designar o indivíduo como ser autônomo dentro das relações de pertencimento no mundo.

Nota-se que o processo individualista, em movimentos desta natureza, para tanto, talvez representem a “única expressão existente para designar o indivíduo como ser autônomo dentro das relações de pertencimento no mundo”. Estas referências assegurariam, no entanto, que quaisquer expressões humanas, de caráter individual, absolutamente involuntárias, presentes nas correspondências entre os literatos mineiros, não teriam motivo para existir, uma vez que cada um destes personagens se expressaria em interação uns com os outros.  (BAKHTIN, 1970).

A reciprocidade, enquanto categoria do espírito humano, define-se pela noção do eu e relaciona-se a pessoa e o lugar social que ela ocupa. Permite-nos observar aspectos essenciais quanto a noção do “eu” social é afastada da noção do “eu” individualizada, uma vez que o “eu” é quase intrínseco aos gestos que dão movimento aos seus sentimentos.  O indivíduo, portanto, se apresenta pela relação que só é constituída a partir do outro. O processo individualista, o Eu “individualista” é a única expressão que existe para designar o indivíduo como ser autônomo dentro destas relações, e sendo objeto da análise de si próprio, construir categorias a partir do estreitamento desse “eu” com o outro (GOFFMAN, 1971).

Nos documentários produzidos por Fernando Sabino, dentro de um cenário de criação e representatividade, vê-se imprimir no sujeito escritor Sabino suas principais referências e convivências, como a cidade de Belo Horizonte, recém modernizada, ao tornar-se uma grande metrópole, no final da década de 1960.  Fernando Sabino toma como grupos informais a possibilidade de encontro entre aqueles que comungam de suas ideologias, compartilhando, deste mesmo modo, memórias e lugares de identidade social.

Do ponto de vista da produção acadêmica sobre o tema em nosso país, pode-se destacar a definição de arquivos pessoais. Assim, pode-se definir arquivo pessoal como o conjunto de papéis e material audiovisual ou iconográfico resultante da vida e da obra/atividade de estadistas, políticos, administradores, líderes de categorias profissionais, cientistas, escritores, artistas e etc. Enfim, pessoas cuja maneira de agir, pensar, atuar e viver possa ter algum interesse para as pesquisas nas respectivas áreas onde desenvolveram suas atividades; ou ainda, pessoas detentoras de informações inéditas em seus documentos que, se divulgadas na comunidade científica e na sociedade civil, trarão fatos novos para as ciências, a arte e a sociedade.

Através de arquivos literários não somente a figura de um artista é conservada, mas a história cultural de uma nação, que uma vez reformulada, fornece subsídios para uma crítica biográfica e sobretudo, literária sobre a quem se refere. A esta estrutura mescla-se relatos de vida, concedendo às cartas o estatuto de texto autobiográfico. A linguagem significaria apenas a vigia da angústia. Mas a linguagem, ainda assim, se condenaria a ser impotente porque organizaria o distanciamento daquilo que não pode ser posto à distância. É aí que intervém, com todo o poder, o discurso interior, o compromisso do não-dito entre aquilo que o sujeito se confessa a si mesmo e aquilo que ele pode transmitir ao exterior. (POLLAK, 1992)

Destacar-se-ia também o contato entre enunciados, representativos de textos epistolares distintos. Em diálogo, estes textos simbolizariam uma fonte retrospectiva para o mecanismo de leitura e interpretação dos contextos mencionados no decorrer das mensagens. Significariam também um aporte para o não apagamento da alternância de sujeitos falantes que nele são identificados. A este processo, identificam-se duas correspondências, dentre as selecionadas. Fernando Sabino dirige-se aos demais pares Hélio e Otto em enunciados constituídos de aproximação e confissões sobre a amizade. Ademais, o reconhecimento sobre o vigiar atento do outro a produção intelectual do grupo em sua individualidade, é posto como importante mecanismo de diálogo entre Sabino e os demais amigos.

Fernando Sabino

Destinatários: Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende.

23.11.1943. Juiz de fora

“Meus jovens mentecaptos Hélio e Otto,

Li o seu poema de novo, para falar nele, Hélio. É realmente muito bom, como já disse noutra carta (que não enviei). Acho que você está conseguindo uma concisão, uma condensação poética, menos espalhado, menos lirismo, menos amargura, mais seco, até no ritmo — você também não acha, Otto?

(…)

No entanto, vale a pena salientar que a interpretação autêntica de um texto não depende de seu esclarecimento a partir de outro texto, mas sim de implicações biográficas, sociológicas e causais diretamente relacionadas à mensagem codificada (BAKHTIN, 1970). A ficção, portanto, em termos de imaginação, permitir-se-ia a recriação literária, em termos artísticos, sem afastar-se, no entanto, de um texto memorialístico, uma vez que tangencia a representação dos espaços de memória. O escritor conta e reinventa a História, passada e a presente, o agora, o quotidiano e o sistema de valores do seu povo, num trabalho de memória e de restauro. Para tanto, recorre inevitavelmente a uma atividade de criação e invenção pessoal.

Eram pretexto fatos corriqueiros e pessoais, a fim de serem discutidos assuntos literários. Ademais, discussões sobre arte tomavam posição privilegiada nos diálogos epistolares, como a carta enviada por Paulo Mendes Campos a Carlos Drummond de Andrade, em 9 de junho de 1944, mencionando a Semana de Arte Moderna, que em 2022 comemorou seu centenário.  O afeto entre os escritores, bem como o interesse em travar diálogos intelectuais triunfavam perante as eventuais diferenças e projetos estéticos.

Os lugares de memória nascem e vivem, portanto, do sentimento de que não há memória espontânea, de que é preciso criar arquivos: “Se o que defendem não estivesse ameaçado, não se teria a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que nos envolvem, eles seriam inúteis” (BAKHTIN, 1970, p. 13).

6. CONCLUSÃO

A obsessão por arquivos no mundo contemporâneo – “da escrita à alta fidelidade da fita magnética: ao mais modesto vestígio, a dignidade virtual do memorável” – e a “memória de papel” (NORA, 1993), designaria, a aura, antes o produto estético, intelectual, fosse ele a crônica, o cinema-documentário, ou mesmo a correspondência, enigmático o bastante para que nenhuma contemplação possa esgotar a sua significação. Relatos memorialistas, portanto, pertencentes a estes círculos privados, de inquestionável valor para o pesquisador, devem ser considerados no interior da chamada cultura da memória, que impõe desafios teóricos a enfrentar. A valorização da subjetividade deva ser problematizada, ao apontar que, na contemporaneidade, a descrença numa verdade única produz, como efeito paradoxal, a ideia de que o gênero testemunhal é capaz de dar sentido à experiência, em seus círculos públicos.

As narrativas pertencentes aos arquivos epistolares, como os selecionados para a presente pesquisa, ampliariam as possibilidades de recepção artística por parte do público, uma vez que lacunas, presentes na escrita epistolar, provocam indagações das mais diversas. A experiência dentro de um arquivo pode ser vista como uma nova forma de se aprender sobre a literatura e seus principais nomes. Igualmente uma oportunidade de aprender, de maneira “investigativa”, algumas das motivações, sejam elas, históricas e /ou sociais, envolvidas em processos de publicações por parte deste ou daquele escritor/poeta.

Igualmente uma possibilidade de se investigar academicamente eventuais cargos governamentais e contribuições que tenham exercido este ou aquele escritor/poeta, e suas reais intencionalidades e ações à frente de lutas educacionais e sociais. Teria sido necessário o “fim da era epistolar” para que estudos sobre cartas de escritores tivessem início, tornando-se, deste modo, e desde o princípio, a crítica epistolar, ao menos em cursos como o de Letras, tardia.

REFERÊNCIAS 

ALBUQUERQUE, Adriana. A construção dos atos de negar. 2003. Tese de Doutorado em Letras. 243p. Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2003.

ARTIÈRES, Phillipe. Arquivar a própria vida. Revista de Estudos Históricos. FGV, SB: Sistema de Biblioteca. 1997.

BAKHTIN, Mikhail. Dialogismos e Construção do Sentido. Unicamp, 2005. In: L’œuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance. Gallimard, 1970.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Instituto de Pesquisas Sociais, Frankfurt, 1936. L&PM Pocket. 1955.

BROWN, P.; LEVINSON, S.C. Politeness: some universals in language usage. Cambridge: University Press. NY, 1987.

GOFFMAN, E. Relations in public. Microstudies Of Public Order. Middlesex UK: Penguin Books, 1971.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo. PUC-SP. N.10, 1993.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro. Vol.5. N.10, 1992.

SABINO, Fernando. Cartas na Mesa. Rio de Janeiro: Editora Record, 2022.

ANEXOS

Figura 1– QRCODE Exposição Afeto no Fazer Literário

QRCODE Exposição Afeto no Fazer Literário
Fonte: Autor

Figura 2 – QRCODE Site Os 4 Mineiros

QRCODE Site Os 4 Mineiros
Fonte: Autor

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

3. “Aos três parceiros, meus amigos para sempre. O “encontro marcado” com o meu parceiro Hélio Pellegrino se deu no Jardim de Infância, aos 6 anos de idade. Depois fomos colegas de grupo e de ginásio. E continuamos amigos pela vida afora. O primeiro encontro com o parceiro Otto Lara Resende se deu na adolescência. Otto revelaria mais tarde que ficara impressionado porque eu conhecia marcas de carro, era campeão de natação e só falava futilidades…. Com o Paulo Mendes Campos iniciei a parceria também na adolescência: foi numa festa onde travamos uma discussão literária (na realidade estando um de nós – ou ambos – interessados era em impressionar uma linda jovem ali presente). Conversávamos com os quatro (ou três, para falar mal do ausente) dia e noite sem parar, em Belo Horizonte e depois no Rio. Rebeldes, inconformados, predominava entre nós a irreverência. Éramos contra as convenções e conveniências, a começar pela vocação literária que nos unia. Preferíamos exercer a criatividade animando com nossas estripulias as ruas pacatas (sem nós) de Belo Horizonte daquele tempo. ” Cartas na Mesa, Fernando Sabino.

4. A União Democrática Nacional (UDN) foi um movimento que teve seu início na época do Estado Novo (1937 – 1945), tendo contribuído de forma efetiva para o fim desse regime.

5. Em 1942, por iniciativa de escritores contrários à falta de liberdade de expressão imposta pelo Estado Novo, foi fundada no Rio de Janeiro a Associação Brasileira de Escritores. Entre seus fundadores incluíam-se Otávio Tarquínio de Sousa (presidente), Sérgio Buarque de Holanda, Astrogildo Pereira, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Sérgio Milliet, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Érico Veríssimo. Em 1944, incentivada por Jorge Amado, Aníbal Machado, Oswald de Andrade e outros, a associação resolveu realizar um congresso. No dia 22 de janeiro de 1945, reuniu-se assim no Teatro Municipal de São Paulo o I Congresso Nacional de Escritores. A reunião foi uma manifestação de oposição ao governo Vargas, contribuindo para aprofundar a crise do regime.

6. Desenvolvedor em plataforma digital, que oferece serviços gratuitos e também pagos – aos que desejem obter recursos mais específicos- de criação de sites vinculados às mais distintas propostas. https://thaiscostamottafgv.wixsite.com/os4mineiros

7. Desenvolvedor digital, que igualmente oferece serviços, gratuitos e pagos, voltado a criação de exposições, cuja dinâmica 3D permite ao público experiências imersivas e de visitação guiada. https://www.artsteps.com/view/6158f536b57ebc9c59511b3c?currentUser

8. Para Goffman (1971), o termo face consiste no valor social positivo que uma pessoa efetivamente reclama para si mesma, através daquilo que os outros presumem ser a linha por ela tomada durante um contato específico. “Face é uma imagem do self delineada em termos de atributos sociais aprovados.” (idem). Quando criamos uma imagem de nós mesmos através de um processo de interação, estamos elaborando o nosso self. Este processo de construção vai depender da interpretação que o outro faz das minhas ações, ou seja, dependendo dos julgamentos que se manifestam neste jogo interacional, o sujeito vai “moldando” o seu self. Isto nos remete aos conceitos de face positiva e face negativa de Brown e Levinson (1987), que nasceram da teoria de Goffman. A face positiva relaciona-se à nossa imagem que quer ser valorizada e aceita na interação com o outro e a negativa, ao desejo de impormos as nossas ações e de não sermos impedidos de fazê-lo. (ALBUQUERQUE, 2003).

9. Poeta, romancista e ensaísta inglês que se debruçou sobre os temas da injustiça social e da luta de classes.

10. Thomas Stearns Eliot foi um poeta, dramaturgo e crítico de língua inglesa, considerado um dos representantes mais importantes do modernismo literário. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1948.  Wikipédia.

11. A face dos outros e a própria face são construtos da mesma ordem (GOFFMAN, 1971), o que significa que são as regras do grupo e a definição da situação que regem ou determinam a quantidade de sentimentos ligados à face e como esse sentimento deve ser distribuído entre as faces envolvidas.

[1] Mestra em Bens Culturais (PPHPBC- Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea – Fundação Getúlio Vargas) – Especialista em Ensino de Língua Portuguesa como Segunda Língua (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) – Licenciada em Letras, Língua Portuguesa e Literaturas (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro).

[2] Orientadora. ORCID: 0000-0002-1487-9314.

Enviado: Julho, 2022.

Aprovado: Setembro, 2022.

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Thaís Costa Motta

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