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Impactos da COVID-19 nos contratos imobiliários

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL 

BARBOZA, Arthur Kaiser [1]

BARBOZA, Arthur Kaiser. Impactos da COVID-19 nos contratos imobiliários. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 02, Vol. 04, pp. 189-211. Fevereiro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/contratos-imobiliarios

RESUMO

A pandemia de COVID-19 tem consequências graves em todas as áreas da vida social. O presente artigo apresenta uma análise do ponto de vista do Direito das obrigações e dos contratos, diante de um acontecimento inesperado e de grande repercussão, que suscita imediatamente as ideias de caso fortuito, de alteração súbita das circunstâncias e as correspondentes figuras jurídicas. A questão norteadora do tema busca responder à seguinte pergunta: A pandemia de COVID-19 ou os efeitos das medidas associadas a evitar sua expansão, encaixam-se nos requisitos do caso fortuito como exoneração da responsabilidade por descumprimento das obrigações contratuais? Este questionamento concentrou a discussão com respeito à teoria da imprevisão, do princípio da boa-fé contratual e da frustração do fim do contrato. Foram objetivos deste artigo verificar se a pandemia ou os efeitos das medidas efetuadas com o intuito de evitar sua expansão, encaixam nos requisitos do caso fortuito como exoneração da responsabilidade por incumprimento das obrigações contratuais e, discutir a respeito da utilização da teoria da imprevisão, do princípio de boa-fé contratual e da teoria da frustração do fim do contrato. A metodologia utilizada foi a revisão da literatura de publicações entre os anos de 2012 e 2020. Ao final do estudo conclui-se que a pandemia de COVID-19 em si, não é passível de ser definida como um caso fortuito, mas que a ação do Poder Público como resposta a esta pandemia, pode ser considerada caso fortuito. Em seguida, trata de três teorias que podem ser aplicadas no Direito Civil Brasileiro: teoria da imprevisão, teoria da frustração do fim do contrato e a utilização do princípio da boa-fé. Estas, possibilitam interpretar que o devedor teve sua capacidade de adimplir comprometida drasticamente pelos efeitos da pandemia COVID-19, possibilitando a revisão ou resolução, o que obriga às partes a um dever de renegociação, derivado “da função integrativa da boa-fé”. Estas, em si, configuram uma solução menos gravosa, deixando-se claro que não se pode adotar a mesma perspectiva para contratos paritários e contratos de consumo e que, qualquer caminho para que se encontre uma solução negocial, deve passar pela análise do caso concreto.

Palavras-chave: COVID-19, Caso Fortuito, Imprevisão, Frustração do fim do contrato, Boa-fé.

1. INTRODUÇÃO

A rápida escalada da crise de saúde pública gerada pela pandemia de COVID-19 derivou em uma situação sem precedentes, que propõe inumeráveis desafios jurídicos tanto a nível internacional como nacional ao ramo do Direito imobiliário.

Desde que a Organização Mundial da Saúde declarou em 30 de janeiro de 2020 que a situação supunha uma emergência de saúde pública de importância internacional, depois confirmada como pandemia e as diversas medidas adotadas pelo Poder Público, que adotou medidas restritivas da liberdade de movimentos de seus cidadãos, que limitaram ou restringiram a entrada de viajantes procedentes de países com surtos de COVID-19 e que aprovaram diversos tipos de disposições, com a dupla finalidade de proteger a saúde dos cidadãos e mitigar, no possível, as consequências econômicas derivadas desta situação, a gravidade da crise foi crescendo.

É indubitável que o impacto tanto econômico como social da expansão da epidemia e das medidas adotadas para controlá-la é de enorme magnitude e tem especial incidência em distintos setores produtivos relevantes. No Direito imobiliário não foi diferente, causando diversas controvérsias enumeradas por Margoto (2020):

[…] (1) nos contratos imobiliários: (a) nulidades, (b) juros, (c) correção monetária, (d) inexecução contratual e suas consequências, (e) revisão e (f) resolução contratual; (2) nas locação não residenciais: (a) valor do aluguel, (b) inadimplemento, (c) multa pelo pagamento em atraso, (d) devolução antecipada do imóvel pelo locatário, (e) locação em shopping centers e (f) contrato built-to-suit (construído para servir); (3) na compra e venda de imóveis: (a) prazos para pagamento, (b) inadimplemento, (c) prazo para purgação da mora, (d) multa pelo pagamento em atraso, (e) atraso na entrega do imóvel e (f) desistência da compra; (4) nos condomínios: (a) direito de propriedade, (b) limitação ao uso de áreas comuns, (c) limitação de circulação de pessoas, (d) cancelamento de assembleias ordinárias e extraordinárias e (e) suspensão de autorização para obra (MARGOTO, 2020, p. 3).

Encontramo-nos em uma etapa em que os efeitos da pandemia ultrapassaram o âmbito exclusivo da saúde, trasladando-se ao plano jurídico e econômico provocado pelo cessamento da atividade não essencial e o confinamento domiciliar no contexto de uma quarentena precedida pela declaratória de estado de exceção.

A preocupação pela segurança das transações, geralmente respaldadas contratualmente sobreveio frente à incerteza. Os últimos meses foram intensificados os debates sobre a figura aplicável frente ao incumprimento das obrigações contratuais, especialmente as mais cotidianas como o aluguel de imóveis para moradia ou com fins comerciais.

O presente artigo apresenta uma análise do ponto de vista do Direito das obrigações e dos contratos, diante de um acontecimento inesperado e de grande repercussão como a pandemia de COVID-19, que suscita imediatamente as ideias de caso fortuito, de alteração súbita das circunstâncias e as correspondentes figuras jurídicas.

Neste ponto, surgiu a questão norteadora: a pandemia de COVID-19 ou os efeitos das medidas associadas a evitar sua expansão, encaixam-se nos requisitos do caso fortuito como exoneração da responsabilidade por incumprimento das obrigações contratuais?

Este questionamento concentrou a discussão com respeito à teoria da imprevisão. Somam-se à busca de racionalidade dos efeitos da pandemia outros critérios derivados do princípio de boa-fé contratual, como a frustração do fim do contrato.

É importante ressaltar que não se pode adotar a mesma perspectiva para contratos paritários e para contratos de consumo. Os primeiros são regidos pelo Código Civil e a legislação específica, sem amparo, em princípio, nas disposições do Código de Consumidor, uma vez que é presumida a liberdade das partes em condições de igualdade negocial.

De qualquer modo, qualquer caminho para que se encontre uma solução negocial deve passar pela análise do caso concreto, tornando-se indispensável a análise de cada relação contratual com vista à constatação da causa de tal ocorrência. Ou seja, os contratos não foram atingidos da mesma forma pela pandemia do coronavírus e não se deve deixar de considerar a excepcionalidade da situação e os efeitos concretos em cada relação negocial.

O objetivo geral do trabalho é verificar se a pandemia de COVID-19 ou os efeitos das medidas efetuadas com o intuito de evitar sua expansão encaixam nos requisitos da força maior como exoneração da responsabilidade por incumprimento das obrigações contratuais e, assumindo que a resposta seja positiva, discutir a respeito da utilização da teoria da imprevisão, do princípio de boa-fé contratual e da teoria da frustração do fim do contrato, como uma possível solução menos gravosa.

A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica, através de uma revisão da literatura com publicação entre os anos de 2012 e 2020.

2. A PANDEMIA DE COVID-19 É UM CASO FORTUITO?

Os contratos são instrumentos indefectivelmente projetados para o futuro, distribuem riscos entre as partes e estabelecem como estas deverão suportar os efeitos de sua possível materialização; trabalho no qual se deve procurar o equilíbrio nas obrigações mutuamente pactuadas e as respostas que as partes oferecerão ante os imprevistos. As partes podem decidir que uma delas se encarregue destes efeitos; ou, pelo contrário, podem compartilhar esta carga (DINIZ, 2020).

A força maior ou caso fortuito tem importância como causa que exime da responsabilidade o devedor frente ao incumprimento de suas obrigações contratuais. O caso fortuito exime-se de responsabilidade também, frente a casos de responsabilidade objetiva, nos quais nem sequer o atuar diligente do devedor lhe serve como justificação; pelo que se constitui como limite frente à responsabilidade pelo incumprimento. Isso significa que a possibilidade do devedor ser acobertado por esta causa seja limitada, devendo cumprir requisitos estritos; caso contrário, estar-se-ia afetando ao núcleo mesmo da noção de pacta sunt servanda, e a boa-fé contratual (FARIAS; ROSENVALD, 2020).

Até onde pode chegar a autonomia das partes em sede contratual, no que respeita à regulação do caso fortuito? Entende-se que as faculdades são amplas; por exemplo, que as partes pactuem que uma delas assuma unilateralmente os efeitos do imprevisto; que podem ser agravatórias, ou restritivas, atenuarem ou eximirem da responsabilidade o devedor como parte do pacto prévio.

No caso de que nada se tenha pactuado pelas partes, opera-se o regime geral do art. 393 do Código Civil: “Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado” (BRASIL, 2002). Neste regime geral podem ser identificadas duas funções do caso fortuito no âmbito contratual; em primeiro lugar, eximir do pagamento de indenização de prejuízos pelo incumprimento o devedor, função que também é aplicável no âmbito extracontratual e afeta à responsabilidade; e, em segundo lugar, extinguir uma obrigação, se o caso fortuito ou força maior é definitivo, ou permitir ao devedor a suspensão no cumprimento da obrigação, se o fato que suscita o caso fortuito ou força maior é temporário (DINIZ, 2020).

São requisitos para considerar um fato como caso fortuito: primeiro, a externalidade, quer dizer, que não haja sido a conduta do devedor a que haja provocado o fato que se pretende apresentar como caso fortuito. O fato deve ser externo ao devedor e essa externalidade pode ser medida a partir do distanciamento do mesmo respeito do alcance de suas obrigações (FARIAS; ROSENVALD, 2020).

A externalidade como elemento do caso fortuito, na sua perspectiva subjetiva, considera que o fato é externo ao devedor se está fora de sua vontade, quer dizer, da culpa. A culpa que corresponde no caso de contratos que contêm obrigações recíprocas é a leve, atribuível ao padrão de conduta de uma pessoa razoável. Esta valorização se faz in abstracto, quer dizer, se confronta a conduta do devedor frente à que houvesse adotado uma pessoa razoável nas mesmas circunstâncias. Qualifica-se, portanto, se o fato que provoca o incumprimento do devedor está, ou não, produzido por uma conduta culpável do mesmo, no sentido de que dito fato poderia ser previsto no momento da subscrição do contrato. Finalmente, a qualificação in abstrato deve considerar variáveis tais como as circunstâncias externas e a qualificação do devedor para elevar ou reduzir é padrão da conduta com a qual se compara (RIZARDO, 2019).

Uma segunda maneira de abordar a externalidade se refere à perspectiva objetiva fundamentada na causalidade. Esta segunda diz que um fato é externo ao devedor se não existe relação causal entre a conduta deste e sua produção (RIZARDO, 2019). Assim, se o fato que impede o cumprimento da obrigação por parte do devedor não tem nenhuma contribuição deste e é produzido por um acontecimento fora de seu controle, cumpriria o primeiro requisito da força maior; porque este fato não é causado pelo devedor.

O devedor, portanto, não se exime de responsabilidade ou cumprimento da obrigação se o caso fortuito é produzido por sua culpa; ou, quando o mesmo tem um vínculo causal objetivo com a conduta deste. As duas visões se relacionam com a concepção subjetiva e objetiva da externalidade do caso fortuito

A consideração objetiva da externalidade é comum nos instrumentos de unificação do Direito de Contratos; assim, por exemplo, o art. 79.1 da Convenção de Viena sobre os Contratos de Compra e venda Internacional de Mercadorias se referem a que o fato pretendido como caso fortuito deve estar alheio à vontade do devedor; entretanto, em sua versão em inglês se assinala “beyond his control”, portanto, a doutrina concluiu que a norma busca que o fato deve estar fora da esfera dos riscos de sua atividade. Em similares termos os Princípios Latino-americanos de Direito dos Contratos (PLDC) assinalam no art. 86 que o fato deve ser alheio ao controle do devedor (VALLEJO, 2020). O Código Civil brasileiro em seu art. 393 assinala que o caso fortuito é um ato “necessário” que se refere à relação de causalidade entre este e o incumprimento.

O segundo requisito do caso fortuito é a imprevisibilidade, sobre a qual existem também uma noção clássica e outra contemporânea. A primeira se fundamenta na comparação do atuar da pessoa que comete o fato frente à outra razoável nas mesmas circunstâncias; analisa ademais as medidas que esta haja tomado para evitar o sucesso; finalmente, estas são avaliadas ao momento da execução do contrato. Esta noção adoece de não considerar o dever de diligência devida que têm determinados agentes em certas relações contratuais, contudo ademais, confunde a imprevisibilidade com a irresistibilidade ao avaliar as medidas de precaução (RIZARDO, 2019).

A principal crítica a esta noção clássica é o entendimento da imprevisibilidade como algo absoluto, desde um prisma abstrato; porquanto, na realidade, as circunstâncias nas quais é produzido o fato são relevantes e influem na possibilidade de prever ou não o fato. Entender a imprevisibilidade em termos absolutos converteria em previsíveis fatos tão adversos como a pandemia, posto que, em abstrato, um contratante extremadamente diligente houvesse podido dar seguimento às publicações científicas de expertos em virologia durante os últimos quinze anos e saber que este fenômeno podia ser produzido em qualquer momento. Por outro lado, a verificação das medidas de precaução para a qualificação da imprevisibilidade não só incorre na confusão com a irresistibilidade, mas que se concentra na execução do contrato, quando a verificação da mesma realmente obedece ao que se pode prever no momento em que este foi celebrado. Só assim pode ser útil o critério de previsibilidade frente a figuras como a teoria da imprevisão (VALLEJO, 2020).

A maneira moderna de entender a previsibilidade se concentra na definição do padrão de comportamento exigível ao devedor, segundo as circunstâncias nas quais se encontravam as partes ao momento de celebrar o contrato. Sob estes parâmetros relativos compreende-se se o fato pode ou não ser previsto (DINIZ, 2020).

A apreciação da previsibilidade deve ser feita in abstracto, quer dizer, comparando a atuação do sujeito com a de uma pessoa razoável em suas mesmas circunstâncias e com uma qualificação ou especialidade equivalente. A imprevisibilidade está ligada ademais com a probabilidade, o qual reviste de realidade dito termo, em efeito, se a diligência requerida é a máxima, haverá que considerar como previsíveis para o devedor tanto aqueles fatos cujo grau de probabilidade, devido à frequência com que se apresentam, seja, sobretudo alto, como outros que podem não ser tão frequentes, contudo que a diligência superior imposta ao devedor obriga igualmente tomar em conta, de modo tal que o âmbito do imprevisível resulta reduzido (RIZARDO, 2019).

A probabilidade é um critério objetivo e quantificável para verificar que um fato ocorra, neste caso, se relacionam sua frequência ou excepcionalidade; igualmente, a jurisprudência sobre desastres naturais permite aclarar os requisitos de um fato em base a sua probabilidade. A imprevisibilidade implica que em condições normais tenha sido impossível para o agente precaver-se contra ela. Em cada caso se requer: a) o referente a sua normalidade e frequência; b) o atinente à probabilidade de sua realização; c) o concernente a seu caráter excepcional e de surpresa (RIZARDO, 2019).

Outro critério utilizado para determinar a imprevisibilidade é verificar a frequência de um fato, porquanto é mais difícil para o devedor prever algo que não é esperável estatística ou quantitativamente (FARIAS; ROSENVALD, 2020). Os eventos de extrema intensidade, pelo geral, podem ser marcados como imprevisíveis ao serem quantitativamente improváveis; assim um terremoto pode ser previsível, de fato, assim foi institucionalizado para os contratos de construção no Chile; contudo um movimento anormalmente violento é mais difícil de esperar.

Existem registros de pandemias com influência global a cada certo tempo como o SARS em 2003, MERS em 2014, ambas com expansão global e características nocivas; entretanto, um fenômeno como o atual que obrigue ao isolamento domiciliar de grandes grupos humanos e paralise a vida econômica de cidades inteiras, provavelmente só se assemelha a outros ocorridos faz mais de cinquenta ou cem anos como a gripe espanhola ou a gripe de Hong Kong; por outro lado, contribui também para sua categorização como caso fortuito o desconhecimento generalizado sobre suas características, porquanto apenas se tem uma aproximação geral a respeito de seus sintomas e sequelas. Pelo assinalado se pode sustentar a qualificação da pandemia de COVID-19 e seus efeitos como imprevisíveis, pelo menos para os contratos vigentes antes que a emissão dos atos de autoridade ou prévios ao momento em que se podia determinar a iminente chegada do vírus ao país, ainda que, provavelmente, a imprevisibilidade já não seja um elemento facilmente apreciável agora que transcorreram alguns meses (BERGER; BEHN, 2020).

Este último nos leva a determinar o momento do iter contratual em que deve verificar-se a imprevisibilidade, sendo unânime a resposta de que é à celebração do contrato, tanto porque é ali onde se plasma a negociação fixando-se direitos e obrigações para as partes e se produz a assunção de risco.

Finalmente corresponde analisar o requisito de irresistibilidade, respeito do qual também se pode verificar uma acepção clássica que se identifica com a absoluta impossibilidade do devedor de cumprir; pelo que se exclui a possibilidade de sua aplicação a maior dificuldade ou onerosidade como caso fortuito; obrigando-se neste segundo caso o devedor a cumprir mediante a implementação de maiores esforços (RIZARDO, 2019).

Uma revisão mais recente deste requisito assume uma posição relativa que se contrasta com a conduta exigível do devedor. Este postulado assinala que a irresistibilidade não se refere a um conceito absoluto, mas medido através do prisma da diligência do devedor que obriga a resistir qualquer evento que possa gerar um incumprimento, inclusive os mais imprevistos (VALLEJO, 2020).

Por outro lado, esta discussão leva a desentranhar qual é a verdadeira conduta exigível ao devedor frente a um fato que pode levar ao incumprimento, evitar que este suceda ou resistir seus efeitos uma vez que seja produzido? Parece mais adequado inclinar-se pela segunda opção, posto que a imprevisibilidade se concentre no momento da celebração do contrato e se refere à capacidade das partes para adiantar-se ao futuro e programar as respostas a eventos que têm uma importante probabilidade de ser produzido e afetar o cumprimento das obrigações contratuais. Em contraste ao assinalado, a irresistibilidade se refere à capacidade para aplicar remédios a fatos que não puderam ser previstos no momento de contratar e se produziram, contudo que as partes, com um esforço razoável que não implique um desequilíbrio contratual importante, podem atender para procurar o cumprimento. Um exemplo do mencionado poderia ser aplicado ao contrato de prestação de serviços educacionais ante o fenômeno da pandemia de COVID-19; os centros educacionais se valeram de ferramentas tecnológicas para procurar o ensino à distância, cobrindo os elementos essenciais desta.

Em todo caso, a irresistibilidade supõe fazer o necessário para que o fato não afete o cumprimento; e de fazê-lo, verificar se o devedor não tinha maneira de resistir-se ao incumprimento, seja postergando-o ou oferecendo um substituto de igual qualidade.

Sobre a irresistibilidade se aplica o mesmo modelo de apreciação da imprevisibilidade, quer dizer, se deve contrastar a diligência do devedor, em abstrato, com a conduta de uma pessoa razoável em suas circunstâncias externas, incluindo sua qualificação, grau de profissionalização e as possibilidades de resistir que tinha a seu alcance. Portanto, um evento pode constituir força maior em matéria contratual se, sendo imprevisível e alheio, um devedor diligente, em suas circunstâncias externas, não pode evitá-lo ou resistir sua produção (BERGER; BEHN, 2020).

No âmbito contratual a jurisprudência recente toma, ademais da inevitabilidade, a necessidade de avaliar as medidas que se tomaram para resistir o incumprimento. A adoção de medidas para resistir o incumprimento demonstra a diligência devida e se converte em um justificativo mais claro para eximir o devedor da responsabilidade, no caso que o incumprimento chegue a ser produzido de todas as maneiras; em outros termos, de nada servirá a alegação de que o fato era inevitável, se a diligência imposta pelo contrato exigia tomar medidas adicionais para de todas as formas cumprirem o contrato (VALLEJO, 2020).

A irresistibilidade, diferentemente da imprevisibilidade, tem dois momentos de verificação; o primeiro se refere a se o fato pode ser evitado, para o que é chave indagar a respeito da celebração do contrato e a adoção de medidas destinadas a evitar o incumprimento; como por exemplo, uma cláusula hardship[2], muito comum em contratos complexos de longa duração que requerem flexibilidade com relação a sua revisão. O segundo momento se refere à verificação das medidas adotadas para resistir o fato, uma vez produzido, o que se produz na execução do contrato (VALLEJO, 2020).

Com base ao mencionado, Berger e Behn (2020) defendem que, partindo-se da premissa de que a pandemia não é em si o fato que pode ser configurado como caso fortuito, mas os atos de autoridade como consequência dela; entretanto, a geração de um fenômeno desta magnitude e com alcance global é externo a qualquer comportamento de hipotéticos devedores descumpridos; também seria inevitável, posto que, embora pudesse ser previsto um evento de similares características por pessoas altamente qualificadas, é irreal afirmar que alguma pessoa pudesse assinalar com segurança um evento de dimensões globais sem precedentes, ao menos nos últimos sessenta anos.

A doutrina que se manifestou até o momento voltou sua atenção para o requisito de fato irresistível; o que, de verificar-se, permitiria qualificar incumprimentos contratuais objetivos por caso fortuito ou força maior (VALLEJO, 2020).

No Brasil opera para o caso fortuito o art. 393 do Código Civil que exime de responsabilidade ao devedor por aqueles casos em que não foram possíveis ser previstos ou que previstos foram inevitáveis. É claro que a crise da pandemia de COVID-19 é um caso de caso fortuito e que o factum principis da declaração do Estado de alarme, impede que os danos e prejuízos provocados a uma parte pela impossibilidade de cumprir o contrato pela outra devem ser indenizados.

A dificuldade que se suscita respeito à pandemia de COVID-19 é que em muitos casos a irresistibilidade para cumprir não é definitiva, mas temporária, enquanto se mantenha uma medida restritiva da mobilidade como a quarentena. Por outro lado, o incumprimento será temporário, enquanto dure a medida, pelo que, na finalidade de manter a relação contratual, o mais requerido pelas partes poderia ser a suspensão temporária ou a resolução antecipada (VALLEJO, 2020).

Outros contratos poderão ter um panorama cinzento, porquanto a irresistibilidade não parecerá clara, contudo, a uma das partes é convertido o cumprimento de suas obrigações em excessivamente oneroso, ante o qual é necessário aproximar-se a análise da teoria da imprevisão. Em alguns casos, o que sucederia é a frustração do fim do contrato, afetando a dois requisitos primordiais como são o objeto e a causa.

3. INSTITUTOS DE DIREITO CIVIL PASSÍVEIS DE UTILIZAÇÃO NA PANDEMIA

3.1 TEORIA DA IMPREVISÃO

Como foi assinalada, a questão de o fato não ser irresistível não significa que não se tornou mais gravoso o cumprimento, o que pode afetar o equilíbrio contratual.

Historicamente, a jurisprudência civil se recusou a revisar o contrato no caso de uma mudança repentina (e imprevista) das circunstâncias. A intangibilidade dos contratos e o respeito ao princípio de pacta sunt servanda é a regra no Brasil. No entanto é possível a revisão de um contrato ao invocar-se a parte afetada a mudança fundamental das circunstâncias. Situação essa que se dá no que a doutrina denomina teoria da imprevisão, doutrina da imprevisão ou excessiva onerosidade sobreveniente. Assim, a imprevisão é a faculdade do devedor de solicitar a resolução ou revisão do contrato de execução postergada quando um imprevisto alheio à vontade das partes tornou sua obrigação excessivamente onerosa (SCHREIBER, 2018). Deve ser uma alteração imprevisível no momento da celebração do contrato, e que torne o cumprimento da sua disposição excessivamente onerosa para a parte que não assumiu contratualmente o risco materializado. Se essas condições forem cumpridas, a parte afetada poderá solicitar à outra parte contratante uma renegociação, durante a qual, no entanto, deverá continuar cumprindo suas obrigações. Se a renegociação for rejeitada ou falhar, as partes contratantes podem acordar a resolução do contrato na data e nas condições que determinarem, ou solicitar ao juiz de comum acordo a adaptação do contrato. Não havendo acordo em prazo razoável, o juiz pode, a requerimento de uma das partes, rever o contrato ou rescindi-lo a partir da data e nas condições que fixar.

A aplicação inflexível do axioma pacta sunt servanda pode conduzir a resultados funestos e injustos para uma das partes contratantes. Por isso, não poucas legislações e tribunais estrangeiros buscaram evitar ou remediar as consequências intoleráveis da mudança das circunstâncias. Conhece-se como teoria ou doutrina da imprevisão o estudo dos casos sob os quais os juízes estariam autorizados para prescindir da aplicação do contrato de forma literal, e o estudo das soluções possíveis ao desajuste produzido. Estas soluções são fundamentalmente duas: a revisão judicial dos contratos e a resolução por excessiva onerosidade sobrevinda (EISAQUI, 2019).

Os requisitos para a aplicação da teoria de imprevisão estão, em primeiro lugar, na existência de um fato imprevisível, para o qual aplicam os argumentos anteriormente assinalados para o caso fortuito; quer dizer, que se valore em abstrato em base à diligência devida que emana das obrigações do contrato e que não fosse possível ser previsto no momento de celebrar o contrato. Em segundo lugar, o cumprimento da obrigação para uma das partes deve voltar-se excessivamente oneroso e romper o equilíbrio sintagmático contratual; neste ponto, se entende que a mera dificuldade para o cumprimento não habilita à aplicação da teoria. Finalmente, o fato imprevisível e que provoca a excessiva onerosidade não deve ser provocado pelo devedor (DINIZ, 2020).

A teoria da imprevisão, portanto, é uma instituição que pode conviver com o pacta sunt servanda, contudo se configura como limite do mesmo, permitindo às partes renegociar por si mesmas o conteúdo do pacto e restabelecer o equilíbrio contratual, ou em sua versão mais ampla, solicitar a revisão judicial do contrato, situação essa que podia haver sido encarada como escandalosa no princípio do direito de contratos do século XIX, mas que se torna não só recomendável, mas necessária em tempos globalizados.

Sobre os fundamentos que foram esgrimidos para explicar a pertinência da teoria da imprevisão, alguns autores rechaçam como argumentos apropriados a cláusula rebus sic stantibus, já que é artificial considerar que as partes pactuaram inicialmente que possa ser modificado o contrato por não permanecer as mesmas condições em que foi celebrado; o enriquecimento sem causa ao estar a causa justamente no conteúdo contratual; e, o abuso de direito, tampouco presente na figura analisada. Por outro lado, identificam melhores argumentos para explicar a teoria da imprevisão na boa fé contratual, a responsabilidade contratual e a livre investigação científica relacionada com a análise a respeito da justiça contratual e os efeitos econômicos do contrato (SCHREIBER, 2018; EISAQUI, 2019).

A prevalência do princípio de intangibilidade dos contratos próprio do “Code” francês de 1804 e o racionalismo positivista de finais do século XVIII e o século XIX desterrou temporariamente esta figura da legislação; não foi até entrado o século XX com os esforços de Karl Larenz e a teoria da base do negócio jurídico, que se retomou sua importância, sob a constatação prática de que o ideal do positivismo não podia ser cumprido, porquanto a Lei e o contrato erigido como lei para as partes não podiam prever a variedade de situações que podem ser apresentadas (LARENZ, 2002).

De acordo com a doutrina brasileira, há dois tipos de revisão contratual no Direito Civil brasileiro: a do art. 478 e a do art. 317, ambos do Código Civil.

A primeira mostra a influência francesa, tendo como requisitos: a vicissitude do evento, o possível prejuízo de forma extraordinária acoplado ao lucro da outra parte e a comprovação dos efeitos ruinosos do fato superveniente na circunstância subjetiva do credor. Assim, uma vez que há uma extrema dificuldade no cumprimento do contrato com a demonstração do sacrifício econômico agravado, a vantagem econômica para outra parte e o nexo de causalidade entre estes com o fato imprevisível e extraordinário, dar-se-ia a resolução ou a revisão contratual (DINIZ, 2014).

A segunda se aproxima da influência italiana, substituindo o requisito do fato extraordinário pela desproporcionalidade exteriorizada entre as prestações. Se for constatado objetivamente o desequilíbrio superveniente, sem interferência das partes, que não poderia ser previsto, tendo como resultado uma excessiva onerosidade. Ou seja, dada a desproporcionalidade manifesta da prestação e o nexo de causalidade entre esta desproporcionalidade e o motivo imprevisível alegado seria possível o reajuste no valor da prestação (FARIAS; ROSENVALD, 2020).

De acordo com Miragem (2020), o descumprimento de cláusulas contratuais, advindo dos efeitos da pandemia COVID-19 poderá ser definitivo, quando a impossibilidade não desaparece ou atenua com o fluir do tempo, ou temporário, embora sem prazo futuro determinado, poderá ser concretizado. O autor também divide o descumprimento em absoluto, quando extingue a obrigação, liberando o devedor, ou relativo, quando há dificuldade ou onerosidade da prestação, quando mantém o devedor vinculado e responsável pelo cumprimento da obrigação.

Souza e Silva (2020) discorrem que a revisão ou resolução contratual devida aos efeitos da pandemia decorrem de três hipóteses fáticas: (i) Relacionada aos atos estatais que inviabilizaram o cumprimento. Ocorrendo a impossibilidade jurídica superveniente, possibilitará o pedido de resolução sem imputação de culpa às partes. São os casos dos cinemas, teatros, casas de espetáculos, estádios; (ii) Relacionada com os contratos em que há absoluta perda do interesse original da prestação. Trata-se dos casos dos passageiros de transporte aéreo e dos hóspedes de hotéis, que em virtude da pandemia, viram a inutilidade das prestações contratadas. Hipótese que será tratada na próxima seção; (iii) Relacionada à onerosidade excessiva a uma das partes. Casos em que o devedor teve sua capacidade de adimplir comprometida drasticamente pelos efeitos da pandemia COVID-19, possibilitando a revisão ou resolução, diante da imprevisão ou da onerosidade excessiva.

A aplicação de força maior no contexto da pandemia de COVID-19 não é inquestionável. Por exemplo, uma pessoa poderia invocá-lo para ser dispensado do pagamento de um benefício que não poderá usufruir (por exemplo, em decorrência de restrições de mobilidade)? Há quem já tenha dado uma resposta negativa, salientando, no entanto, que existem exceções em leis específicas. Outro aspecto problemático é o vínculo que deve ser estabelecido entre a crise provocada pelo coronavírus e a impossibilidade de cumprimento, que nem sempre será fácil.

Posto isto, a verdade é que as dificuldades para o bom desenvolvimento das relações contratuais podem não derivar tanto da pandemia em si, mas das medidas adotadas pelas autoridades para responder à ameaça sanitária. Tais medidas poderiam constituir um “fato do príncipe” (fait du prince). Essa noção consiste em uma decisão tomada pelo poder público que dificulta o cumprimento das obrigações, podendo ensejar um caso de força maior. Para isso, será necessário que os atos das autoridades sejam imprevisíveis para o devedor no momento da celebração do contrato, e que tenham caráter irresistível. No entanto, e aqui reside muito do seu interesse no cenário atual, para considerar a força maior com base em um fato do príncipe, não será necessário que ocorra um impedimento total. Bastará que a parte afetada não possa continuar a exercer a sua atividade nas mesmas condições. É o caso, por exemplo, dos profissionais da hotelaria que viram a sua atividade limitada à venda de produtos para levar ou entregar a domicílio.

3.2 TEORIA DA FRUSTRAÇÃO DO FIM DO CONTRATO

Dentro dos casos de eficácia sobrevinda do contrato, a teoria da frustração do fim do contrato (Zweckstörung) compartilha com a teoria da imprevisão a existência de um fato externo, imprevisível e irresistível que sucede de maneira posterior à celebração deste e que não foi assumido como risco por nenhuma das partes no pacto. Diferentemente da teoria da imprevisão, na qual o fato que constitui caso fortuito converte à obrigação de uma das partes em excessivamente onerosa e obriga à revisão do contrato; neste caso, a causa do contrato é afetada, provocando que o cumprimento do mesmo devenha em ilegal, impossível ou estéril economicamente (MARINHO, 2020).

Pode-se ilustrar o assinalado com a revisão dos casos de deram origem à figura (“frustracion of purpose of contrat”) no “commom law”, para logo verificar como foi expandido sua regulação. O primeiro caso no qual se acunhou o termo frustração foi Taylor v. Caldwell, no qual o primeiro demandou o segundo o pagamento de indenização por descumprir o contrato de aluguel de uma sala de concertos que foi destruída por um incêndio uma noite antes que começasse a ser usada para distintas atividades programadas pelo locatário. O juiz modulou a regra de cumprimento absoluto aplicada aos contratos que vinha regendo no direito inglês desde, ao menos, dois séculos atrás e assinala que no caso dos contratos que dependem da existência do objeto, não existe responsabilidade do locador se este perece sem culpa, já que constituía uma obrigação conhecida desde a gênese mesma do contrato (COGO, 2012).

O exemplo assinalado verifica a ineficácia sobreveniente do contrato por destruição da coisa objeto do mesmo ou especificidade nos serviços da contraparte; outros casos que podem encaixar-se são a inaptidão sobrevinda do contrato para cumprir sua missão econômica, a destruição do risco mercantil natural, a ilicitude sobreveniente do objeto do contrato e a frustração de uma condição implícita não expressa (MARINHO, 2020).

Assim, a teoria da frustração inglesa gera uma ruptura (“discharge”) automática do contrato, inclusive contra a vontade das partes, que não poderiam continuar a execução se o negócio foi declarado frustrado pelos juízes. As partes, portanto, só devem cumprir com as obrigações exigíveis previamente ao fato que frustra o contrato, por conceito de direitos adquiridos. A figura é regulada também no ordenamento americano e se contrasta com a “impracticability” ou “impossibility”, porquanto nesta última não pode ser cumprida com a obrigação por ser impossível faticamente, enquanto na frustração as obrigações podem ser cumpridas, contudo são inúteis porque foi afetada a base do negócio jurídico. A regra geral ademais assinala que se o devedor assumiu a obrigação na distribuição de riscos do contrato, apesar de frustração do mesmo, deve responder (COGO, 2002).

Tanto no ordenamento jurídico inglês como americano o aparecimento da teoria da frustração é limitada e se entende como uma medida de “ultima ratio”, com o fim de que não seja utilizada frente à mera dificuldade no cumprimento, o fundamento final descansa na justiça contratual e na boa fé objetiva (MARINHO, 2020).

Para Karl Larenz há uma base objetiva e outra subjetiva. Esta, se identifica com a reapresentação mental dos contratantes no momento de concluir o negócio e que influi nas partes para a definição do conteúdo do contrato. A base subjetiva representa a pressuposição de circunstâncias presentes ao momento de contratar ou passadas e a expectativa de que se mantenham no futuro; o erro de uma das partes a respeito da suposição e o aproveitamento desleal do mesmo pela outra é o que faculta o devedor a solicitar o remédio, sob o fundamento final da boa-fé como princípio central. Por sua parte, a dimensão objetiva é um estado geral das coisas cuja existência dota de sentido o negócio realizado e o conteúdo mesmo do contrato. A dimensão objetiva do negócio jurídico é afetada por ruptura grave na equivalência das prestações mútuas; ou porque o fim objetivo do contrato é impossível apesar de que as partes cumpram suas obrigações (LARENZ, 2002). Da perspectiva do exposto no presente trabalho, a teoria da imprevisão seria utilizada do primeiro caso (equivalência das prestações) e a frustração do fim do contrato do segundo (inutilidade sobrevinda do contrato).

Para Larenz (2002) o contrato e seu conteúdo respondem a uma realidade objetiva correspondente ao momento em que se celebra; assim como, a uma reapresentação mental conjunta das partes a respeito de como deve ser desenvolvida a execução e o resultado esperado, para o qual se intenta precautelar que existam soluções frente a variações que possam afetar gravemente ao mesmo. Podem-se verificar na teoria da base do negócio jurídico de Larenz os casos de erro comum, frustração das expectativas razoáveis das partes, a ruptura da equivalência das prestações, equiparável à teoria da imprevisão; e, a perda da finalidade do contrato que abarcaria a frustração de seu fim.

De acordo com o Enunciado nº 166, na III Jornada de Direito Civil, realizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: “art. 421 e 422 ou 113: A frustração do fim do contrato, como hipótese que não se confunde com a impossibilidade da prestação ou com a excessiva onerosidade, tem guarida no Direito brasileiro pela aplicação do art. 421 do Código Civil” (CJF, 2005, p. 58). O Enunciado 431 da V Jornada de Direito Civil reza que: “A violação do art. 421 conduz à invalidade ou à ineficácia do contrato ou de cláusulas contratuais” (CJF, 2012).

É a hipótese dos passageiros de transporte aéreo e dos hóspedes de hotéis, que em virtude da pandemia, viram a inutilidade das prestações contratadas. Em tese, a teoria em comento poderia ser invocada nas relações de trabalho, em virtude da pandemia de COVID-19, já que o desde março de 2020 foram reguladas a suspensão de algumas atividades, como os eventos, exigência de fechamento de bares, cafés e restaurantes durante o período declarado de emergência, além do fato de haver “lockdowns” temporários, com o fim de diminuir o contágio pela COVID-19. E com isso, possibilitando a frustração de diversos tipos de contratos pela absoluta impossibilidade de desempenho do serviço contratado.

Esta breve revisão da teoria da imprevisão e a frustração do fim do contrato nos permite visualizar soluções frente à modificação das circunstâncias sobre as quais se fundou o contrato, por um caso fortuito. Se for observado o devir histórico destas figuras se confirmará sua recorrência em casos de guerra, desastre ou emergências.

3.3 UTILIZAÇÃO DE PRINCÍPIO DA BOA FÉ

Pode um juiz ordenar redução de preço, postergação do pagamento de aluguel, ou outro pagamento relacionado ao direito imobiliário, ou moratória se lhe for solicitado a adaptação contratual; ou inclusive, resolver o contrato que já não traga utilidade às partes?

Para responder esta pergunta se deve indagar sobre os fundamentos finais do direito de contratos que se assenta em seus princípios gerais. Os princípios, diferentemente das regras, constituem mandatos de otimização que procuram ser cumpridos no máximo possível, mostram a direção na qual pode ser oferecida a solução a um conflito; por isso, a colisão entre princípios não se resolve por exclusão de um deles mas por ponderação, o peso designado a cada um corresponde à base axiológica sob a qual são avaliados e cedem mutuamente até chegar à solução mais equitativa, por fim, têm correspondência com valores e se constituem como racionalização das regras.

Um princípio do direito de contratos como a boa-fé contratual, incorporado ao Código Civil, inspirado em valores como a honestidade, honradez e retitude que devem guardar os que pactuam e que no contexto de sua construção tinha a finalidade de fortalecer a força obrigatória dos contratos e a segurança jurídica; no contexto do século XXI, pleno de incertezas e afetado pelo desequilíbrio da posição dos contratantes ante o surgimento de uma emergência extraordinária e global, pode permitir às mesmas partes, ou ao julgador, a revisão contratual; ou, em seu caso, a resolução do contrato sem que esteja atada ao incumprimento culpável (FARIAS; ROSENVALD, 2020).

A boa fé, desde sua função integradora, parece ser o fundamento mais adequado de um dever de renegociação das partes frente à excessiva onerosidade sobreveniente no cumprimento das obrigações, por motivo do advento de um caso fortuito. Este princípio fundamenta-se, principalmente, nos art. 113, 187 e 422 do Código Civil. A boa fé como princípio geral exerce suas funções informadora, interpretativa e integradora. Nas palavras de Scavone Junior (2019, p. 592) “os negócios jurídicos, antes de qualquer princípio e antes mesmo da obrigatoriedade do que foi convencionado, devem respeito à boa-fé”

Agora, o problema de princípios, finalmente ante um caso fortuito, como o que aconteceu pela pandemia COVID-19, conduz à aparente colisão entre o pacta sunt servanda e o dever de renegociar ou a faculdade de resolver ante um iminente desequilíbrio contratual produzido pela ineficácia sobrevinda do contrato para uma das partes; ambas sustentadas, finalmente, na boa fé. Ao ser princípios, sua colisão não implica a exclusão de um frente ao outro, mas a correta valoração de seu alcance de aplicação dentro do caso concreto; portanto, o que os juízes estão chamados a fazer nos meses e anos subsequentes, ante a falta de uma regra específica estabelecida pelo legislador; ou, que existindo esta, não seja capaz de abarcar a multitude inimaginável de situações que a crise sanitária trará consigo; será ponderar, e de dita ponderação, se deve obter um grau de satisfação dos interesses das partes, que afinal têm um transfundo em direitos (DINIZ, 2020).

Dessa forma, nos casos dos contratos nos quais a pandemia de COVID-19 houvesse causado um desequilíbrio contratual, haveria o dever de renegociar que é derivado “diretamente da função integrativa da boa-fé” (PIANOVSKI, 2020). Essa renegociação pode ocorrer por acordo mútuo ou recorrendo-se à Justiça. Não havendo acordo em prazo razoável, o juiz pode, a requerimento de uma das partes, rever o contrato ou rescindi-lo a partir da data e nas condições que fixar.

O direito por princípios e a ponderação são comuns no Direito Constitucional, no qual os juízes devem fazê-lo ante a colisão de direitos fundamentais que não têm hierarquia entre si e se consagram em forma de princípios nas Constituições. Parece ser que a emergência sanitária corroborou a necessidade de que o direito de contratos tenha ferramentas eficazes frente à incerteza; se o direito comum gera maior injustiça em caso de excepcionalidade, a busca da justiça permite que os juízes possam encontrar nos princípios e na equidade instrumentos para alcançar soluções justas quando as regras são insuficientes, o que se verá refletido na jurisprudência dos anos vindouros.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

  1. São requisitos para se considerar um fato como caso fortuito: a externalidade, a imprevisibilidade e a irresistibilidade. Com fundamento em Berguer e Behn (2020) foi verificado que a pandemia da COVID-19, embora externa e irresistível, era um fato previsível. Já houve pandemias em épocas recentes e passadas. Entretanto, o que não era previsível foi o ato das autoridades que adotou medidas restritivas da liberdade de movimentos de seus cidadãos, que limitaram ou restringiram a entrada de viajantes procedentes de países com surtos de COVID-19 e que aprovaram diversos tipos de disposições, com a dupla finalidade de proteger a saúde dos cidadãos e mitigar, no possível, as consequências econômicas derivadas desta situação, a gravidade da crise foi crescendo. Se o proposto é certo, os atos de autoridade emanados devido à pandemia reúnem as características do caso fortuito, a saber, imprevisibilidade, externalidade e irresistibilidade.
  2. A teoria da imprevisão e a frustração do fim do contrato e o princípio da boa-fé são figuras úteis frente a situações anormais, podem conviver com o princípio de pacta sunt servanda. A primeira está relacionada aos atos estatais que inviabilizaram o cumprimento. Ocorrendo a impossibilidade jurídica superveniente, possibilitará o pedido de resolução sem imputação de culpa às partes. São os casos dos cinemas, teatros, casas de espetáculos, estádios ou relacionados à onerosidade excessiva a uma das partes. Casos em que o devedor teve sua capacidade de adimplir comprometida drasticamente pelos efeitos da pandemia COVID-19, possibilitando a revisão ou resolução, diante da imprevisão ou da onerosidade excessiva; A segunda está relacionada com os contratos em que há absoluta perda do interesse original da prestação. Trata-se dos casos dos passageiros de transporte aéreo e dos hóspedes de hotéis, que em virtude da pandemia, viram a inutilidade das prestações contratadas, possibilitando a sua resolução. A terceira obriga as partes a um dever de renegociação em virtude de desequilíbrios contratuais advindos da pandemia de COVID-19, derivado “da função integrativa da boa-fé”.
  3. A reação do direito de contratos imobiliários deve ser dúctil, como a realidade mesma, entender o direito de contratos por princípios e a estes como racionalização das regras, pode ser fundamental para o desafio imediato dos julgadores, especialmente sem normas à medida.

Esgotada assim a explanação acerca do tema proposto, considera-se como resposta à questão norteadora inicial: a pandemia de COVID-19 ou os efeitos das medidas associadas a evitar sua expansão, encaixam-se nos requisitos do caso fortuito como exoneração da responsabilidade por incumprimento das obrigações contratuais? Conclui-se que sim, uma vez que os atos de autoridade emanados devido à pandemia reúnem as características do caso fortuito, a saber, imprevisibilidade, externalidade e irresistibilidade. E, de forma complementar, vislumbra-se como uma possível solução menos gravosa, com base nas teorias da imprevisão, do princípio de boa-fé contratual e da teoria da frustração do fim do contrato, a possibilidade de revisão ou resolução contratual, o que obriga às partes a um dever de renegociação em virtude de desequilíbrios contratuais advindos da pandemia de COVID-19, derivado “da função integrativa da boa-fé”.

Por fim, é importante deixar claro, a despeito de todas as teorias acima expostas que, não se pode adotar a mesma perspectiva para contratos paritários e contratos de consumo e que, qualquer caminho para que se encontre uma solução negocial, deve passar pela análise do caso concreto.

REFERÊNCIAS

BERGUER, Klaus Peter; BEHN, Daniel. Force majure and hardship in the age of corona: a historical and comparative study. McGill Journal of Dispute Resolution (2019/2020), n. 4, p, 79-130, 20 abr. 2020. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3575869. Acesso em 10/12/2020.

BRASIL. Presidência da República. Lei N° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm. Acesso em 10/12/2020.

BRASIL. Presidência da República. Lei Nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L13979.htm. Acesso em: 10/12/2020.

CJF- CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Jornada de Direito Civil. Brasília: CJF, 2005.

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COGO, Rodrigo Barreto. A frustração do fim do contrato: o impacto dos fatos supervenientes sobre o programa contratual. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p.385.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. V.3: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 36 ed. São Paulo: Saraiva, 2020. p.936.

EISAQUI, Daniel Dela Coleta. Revisão judicial dos contratos: A teoria da imprevisão no Código Civil brasileiro. Curitiba: Juruá, 2019. p.228.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 10. ed. Salvador: Juspodivm. 2020. V. 2. p.848.

LARENZ, K. Base do negócio jurídico y cumplimiento de los contratos. Granada: Editorial Comares, 2002. p.232.

MARGOTTO, Germano Naumann. Impactos do coronavírus nos negócios imobiliários: Prevalência da boa-fé objetiva, da função social do contrato e do interesse coletivo. Análise da pandemia da COVID-19 como caso fortuito ou força maior, a não obrigatoriedade do cumprimento do negócio imobiliário ou fato imprevisível e extraordinário e revisão ou resolução contratual. Disponível em: https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/11565/Impactos-do-Coronavirus-nos-negocios-imobiliarios. Acesso em: 20/11/2020.

MARINHO, Maria Proença. Frustração do fim do contrato. São Paulo: Foco, 2020. p.164.

MIRAGEM, Bruno. Coronavírus: repercussões sobre os contratos e a responsabilidade civil. GEN Jurídico, 27 mar, 2020. Disponível em: http://www.genjuridico.com.br/2020/03/27/coronavirus-responsabilidade-civil. Acesso em: 20/10/2020.

PIANOVSKI, Carlos Eduardo. A força obrigatória dos contratos nos tempos do coronavírus. Migalhas, 26 março 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhascontratuais/322653/a-forca-obrigatoria-dos-contratos-nos-tempos-do-coronavirus. Acesso em: 20/01/2021.

RIZARDO, Arnaldo. Contratos. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p.1456

SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Direito Imobiliário: teoria e prática. 15 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p.1736

SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva, 2018. p.929

SOUZA, Eduardo Nunes; SILVA, Rodrigo da Guia. Resolução contratual nos tempos no novo coronavírus. Migalhas, 25 mar. 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322574/resolucao-contratual-nos-tempos-do-novo-coronavirus. Acesso em: 21/05/2020.

VALLEJO, Antonio Orti. Riesgo contractual en los contratos privados después o Covid-19: análise, problemática e soluções. Madri: Tiranto Blanch, 2020. p.12

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

2. Se entende por tal aquela que prevê a capacidade dos contratantes para renegociar o conteúdo contratual ante circunstâncias imprevisíveis sobrevenientes. A finalidade é restaurar o equilíbrio contratual.

[1] Cursando MBA em Marketing, Branding e Growth na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Pós-graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direito Imobiliário pela Universidade Cândido Mendes, Advogado inscrito na OAB-RJ sob o nº 214.561, Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes. ORCID: 0000-0002-9272-9266.

Enviado: Janeiro, 2022.

Aprovado: Fevereiro, 2022.

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Arthur Kaiser Barboza

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