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O abuso sexual infantil no ambiente intrafamiliar: uma análise dos casos no período da pandemia no Brasil

RC: 123589
1.486
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/ambiente-intrafamiliar

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL 

SOUZA, Tiffany Neves de [1],  SILVA, Luciane Lima Costa e [2]

SOUZA, Tiffany Neves de. SILVA, Luciane Lima Costa e. O abuso sexual infantil no ambiente intrafamiliar: uma análise dos casos no período da pandemia no Brasil. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 08, Vol. 02, pp. 141-156. Agosto de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/ambiente-intrafamiliar, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/ambiente-intrafamiliar

RESUMO

O abuso sexual infantil, sendo um fenômeno social, origina diversas causas, deixando vulneráveis expostos a injustiças, danos morais, sociais e preconceitos. Esse, quando denominado de intrafamiliar, está relacionado ao fato de se originar dentro do seio familiar, tendo em vista que, na maioria das vezes, os abusadores são parentes próximos da vítima, como pai, mãe, irmãos, padrasto, madrasta, tios, primos, avós, tutores ou os companheiros que moram junto com a mãe ou o pai. Assim, devido a pandemia da Covid-19, verifica-se que houve uma considerável diminuição das denúncias desses casos, suscintando a questão norteadora: qual é a relação entre a COVID-19 e a diminuição dos casos de abuso sexual infantil no ambiente intrafamiliar? Portanto, o presente artigo tem como objetivo analisar o abuso sexual infantil no ambiente intrafamiliar, verificando os casos notificados no período da Pandemia da Covid-19. Trata-se de uma pesquisa de cunho descritivo com abordagem qualitativa, que teve como procedimento a pesquisa bibliográfica. Logo, como resultados verificou-se a subnotificação dos casos e que alguns fatores, como o isolamento social, tornaram mais propícios a prática de abuso sexual infantil no ambiente intrafamiliar. Após a realização desse estudo, pode-se concluir que o abuso sexual infantil precisa estar nas discussões de políticas públicas como um fenômeno globalizado dentro da sociedade, pois sua erradicação e prevenção é um desafio constante dos profissionais das áreas sociais, da saúde e da educação, bem como de todos os envolvidos e interessados acerca da problemática.

Palavras-chave: Abuso infantil, Intrafamiliar, Pandemia.

1. INTRODUÇÃO

O abuso sexual infantil é toda e qualquer forma de violência sexual que envolva uma criança ou um adolescente que não compreende tal situação, tornando-se incapaz de informar seu consentimento (MADURO E BRITO, 2021). Nesse contexto, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), considera criança a pessoa que possui até 12 anos de idade incompletos e adolescente aquele que possui idade entre 12 e 18 anos (BRASIL, 1990b).

Posto isso, sabe-se que os casos de abusos sexuais contra crianças e adolescentes correspondem a um processo que ignora fronteiras econômicas entre as classes sociais e vem assumindo proporções epidêmicas, visto que abrange as modalidades física, sexual, social e psicológica (VICINGUERA, 2019).

Assim, apesar de as pessoas que praticam o abuso sexual se encontrarem em todas as classes sociais e, muitas delas, serem portadoras de prestígio profissional e social, dados do Ministério da Saúde demostram que em 37% dos casos de abuso sexual infantil, o criminoso é da família e, em 81,6% das situações, são homens (OLIVEIRA, 2021).

Diante disso, Souza (2021) aponta que “mais de 70% dos casos de violência sexual contra crianças ocorrem na própria casa das vítimas. Ou seja, muitas crianças estão vulneráveis dentro de suas próprias casas”.

Contudo, a esse respeito, no Brasil, a Lei 8.069/90, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dispõe sobre a proteção integral desses menores, dando prioridades absolutas no que se refere à salvaguarda de seus direitos fundamentais.

Posto isso, considerando que a família é a principal rede de proteção às crianças e adolescentes e analisando os casos de abuso sexual infantil no ambiente intrafamiliar notificados no período da Pandemia da Covid-19 no Brasil, levantou-se o seguinte questionamento: qual é a relação entre a COVID-19 e a diminuição dos casos de abuso sexual infantil no ambiente intrafamiliar? Diante dessa problemática, teve-se como objetivo analisar o abuso sexual infantil no ambiente intrafamiliar, verificando os casos notificados no período da Pandemia da Covid-19.

O trabalho realizou-se por meio de uma pesquisa bibliográfica e análise preliminar sobre o tema, tendo como foco os objetivos, a composição e a relevância social da pesquisa realizada. Portanto, primeiramente, apresentou-se uma breve aproximação conceitual do abuso infantil no Brasil, evidenciando características relativas ao problema em questão, bem como as consequências às vítimas e as penalidades aos possíveis agressores. Em seguida, abordou-se sobre o contexto da pandemia e sua relação com o agravamento do cenário de violação e abuso infantil. E, por fim, detalhou-se a relação dos casos de abuso sexual infantil no ambiente intrafamiliar no período da pandemia da Covid-19 no Brasil.

2. O ABUSO SEXUAL INFANTIL

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2003), o abuso sexual infantil pode ser entendido como o ato de envolver uma criança em uma atividade sexual que esta não compreende, sendo, portanto, incapaz de consentir tal prática.

Nesse contexto:

O abuso sexual infantil é evidenciado pela atividade entre uma criança com um adulto ou entre uma criança com outra criança ou adolescente que pela idade ou nível de desenvolvimento está em uma relação de responsabilidade, confiança ou poder com a criança abusada. É qualquer ato que pretende gratificar ou satisfazer as necessidades sexuais de outra pessoa, incluindo indução ou coerção de uma criança para engarja-se em qualquer atividade sexual ilegal. Pode incluir também práticas com caráter de exploração, como uso de crianças em prostituição, o uso de crianças em atividades e materiais pornográficos, assim como quaisquer outras práticas sexuais (OMS, 2003).

Por conseguinte, depreende-se que a definição da OMS (2003) possui um sentido amplo, pois não define os atos específicos de toques, exibicionismo ou intercurso sexual, como abuso. Não esclarecendo, portanto, se essas práticas ou somente algumas delas podem ser consideradas como abuso sexual. O que permite que até as práticas consideradas menos graves, como a exibição sexual na presença de crianças, sejam consideradas abuso sexual.

Em consonância, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (2019) retrata que toda situação em que a criança ou adolescente tem sua sexualidade invadida para satisfazer os desejos sexuais de um adulto ou adolescente mais velho, o que inclui a prática de atos de “carícias, manipulação dos genitais, mama ou ânus, voyeurismo, exibicionismo ou até ato sexual com ou sem penetração” é considerada abuso sexual infantil.

Ainda, considera-se abuso sexual os atos em que as crianças e adolescentes são impostos à violência física e/ou sexual gerada a partir de ameaças, agressões físicas e sexuais ou induções de sua vontade. Nesse aspecto, este abuso varia de atos com contato sexuais, com ou sem penetração, e de atos sem contatos sexuais. O abuso sexual pode, ainda, envolver situação de exploração sexual por meio de livros.

Diante disso, o abuso sexual infantil intrafamiliar, por sua vez, pode ser definido como aquele praticado por um sujeito que possui laços consanguíneos, afinidade ou responsabilidade para com a vítima (BRASIL, 2021). Nesse sentido, Lopes (2020) ressalta que muitas pesquisas demonstram que essa prática é de grande recorrência nos ambientes familiares sendo, na maior parte das vezes, praticada por parentes próximos ou pelos próprios pais.

O autor supracitado ainda destaca que este ato, muitas vezes, é realizado por um membro da família, uma pessoa que convive com a criança ou que frequenta o círculo familiar, o que faz com que as relações culturais e socioafetivas entre adultos e crianças/adolescentes sejam deturpadas ao serem transformadas em “relações genitalizadas, erotizadas, comerciais, violentas e criminosas” (FALEIROS e CAMPOS, 2000, p. 10).

Nesse contexto, cumpre ressaltar que qualquer ato sexual reconhecido como abuso pode acarretar graves danos psicológicos à vítima, como: o sentimento de culpa, de autodesvalorização, repulsa a sociedade e as pessoas devido ao abuso sofrido durante a infância. Além disso, o abuso sexual infantil torna-se um dos motivos inconscientes que influenciam a prostituição (RITA et al., 2020).

Zucatto (2019), também, afirma que:

a criança e o adolescente violentados sexualmente poderão sofrer consequências físicas: lesões físicas gerais, lesões genitais, gravidez geralmente problemáticas, DST/AIDS, disfunções sexuais e psicológicas tais como, sentimentos de culpa, autodesvalorização, depressão, medo da intimidade quando adultos, tendência à prostituição e ao homossexualismo, negação de relacionamentos afetivos quando adultos, distúrbios sexuais, suicídio e problemas de personalidade e identidade. 

Dessa forma, entende-se que as crianças violentadas sexualmente levarão consigo a marca dessa violência e, junto a ela, sequelas irreversíveis que poderão interferir em seu desenvolvimento físico, psíquico e social. E, além das situações citadas, elas também poderão sofrer com sentimentos que poderão arrastar-se por toda a vida, como culpa, vergonha, dor e medo da violência sexual sofrida (FREITAS; MEIRELLES; TULIO, 2020).

2.1 ASPECTOS JURÍDICOS

O Brasil ocupa lugar de destaque no estabelecimento de direitos, garantias e liberdades da criança e do adolescente, pois além de ratificar a Convenção sobre os Direitos da criança (BRASIL, 1990a) e estabelecer no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990b) medidas efetivas de proteção, é pioneiro na implementação do sistema de proteção no Texto Constitucional (BRASIL, 1988).

Entretanto, de acordo com Azambuja (2006, p. 4):

Até o advento da Constituição Federal de 1988, a criança não era considerada sujeito de direitos, pessoa em peculiar fase de desenvolvimento e tampouco prioridade absoluta. A partir de 1988, passamos a contar com uma legislação moderna, em consonância com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, inaugurando uma nova época na defesa dos direitos daqueles que ainda não atingiram os dezoito anos de idade.

Nesse contexto, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) propõe medidas de proteção às crianças e adolescentes, bem como priorizam os seus devidos direitos (BRASIL, 1990b). Em seu art. 2º define: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”, tornando, dessa forma, as crianças e os adolescentes prioridades absolutas no que se refere à salvaguarda de direitos fundamentais.

Nesse entendimento, a Constituição Federal de 1988 também estabelece, em seu art. 227, que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade; o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).

Nesse aspecto, a Lei nº 8.069/90 também garante nos art. 4º e 5º os seguintes direitos:

Art. 4º- É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Art. 5º- Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais (BRASIL, 1990b).

Ademais, no parágrafo 4º, a Constituição preceitua que: “A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração da criança e do adolescente” (BRASIL, 1988). E o ECA relata que: “Art. 130. Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum” (BRASIL, 1990b).

Ainda, em consonância, a Convenção sobre os Direitos da criança, promulgada pelo Decreto 99.170/90, estabelece que:

Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela. Essas medidas de proteção deveriam incluir, conforme apropriado, procedimentos eficazes para a elaboração de programas sociais capazes de proporcionar uma assistência adequada à criança e às pessoas encarregadas de seu cuidado, bem como para outras formas de prevenção, para a identificação, notificação, transferência a uma instituição, investigação, tratamento e acompanhamento posterior dos casos acima mencionados de maus tratos à criança e, conforme o caso, para a intervenção judiciária (BRASIL, 1990a).

Com base nisso, infere-se que a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990b), esses indivíduos passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direito, através da formulação da política de proteção integral e articulação entre o Estado e a sociedade, surgindo os conselhos tutelares e conselhos de direitos. Além disso, com o surgimento dos conselhos em nível estadual e municipal gerou-se a descentralização da política, possibilitando o acesso justo às políticas sociais e ao atendimento digno à justiça (VERONESE, 2006).

3. PANDEMIA DA COVID-19 E SUA RELAÇÃO COM OS CASOS DE ABUSO SEXUAL INFANTIL

A Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, possui rápida disseminação e pode acarretar a morte de milhares de pessoas devido ao seu mecanismo de ação. Por este motivo e devido a contaminação em massa pelo vírus, em março de 2020, a OMS a declarou como pandemia (CASACA et al., 2020). Assim sendo, como medida de contenção deste, implementou-se algumas medidas, como o isolamento social, determinando que a maior parte da população mundial deveria se resguardar em suas casas. Com isso, essa medida emergencial acarretou mudanças na rotina dos membros que compunham o núcleo familiar, trazendo consequências para toda a sua estrutura (OKABAYASHI et al., 2020).

Nesse sentido, é importante destacar que esse isolamento social, causado pela pandemia da Covid-19, na qual fecharam-se todos os serviços indispensáveis e necessários à população, entre eles, a educação, fez com que esses tornassem-se exclusivamente domésticos, aumentando, assim, os casos de abusos sexuais em crianças e adolescentes, devido ao contato maior entre os familiares e os vulneráveis.

Dito isso, este fato pode ser comprovado por um estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2020), onde se constatou que o fechamento das escolas e dos espaços considerados importantes para o convívio com as pessoas que não pertenciam ao núcleo familiar, tornou mais suscetível a prática de abuso sexual durante a pandemia da Covid-19.

Nessa perspectiva, ressalta-se que a família pode contribuir para aumentar ou minimizar os efeitos de abuso sexual em outras instâncias sobre os filhos, visto que o problema, muitas vezes, inicia-se no espaço intrafamiliar. Nesse aspecto, Winnicott (2005) menciona que, quando a convivência familiar é saudável, a família é o melhor lugar para o desenvolvimento da criança e do adolescente. Entretanto, é preciso lembrar que a família, apesar de ser considerada um lugar de proteção e de cuidado, é também lugar de conflitos, de relações de poder e pode-se configurar como espaço de violações de direitos.

Desse modo, é imprescindível que, na busca e/ou tentativa de reversão desse problema, ela esteja incluída e esteja comprometida com a busca incessante pela resolução, pois o abuso sexual infantil pode comprometer o desenvolvimento cognitivo das crianças e adolescentes.

4. ANÁLISE DOS CASOS DE ABUSO SEXUAL INFANTIL NO PERÍODO DA PANDEMIA DA COVID-19 NO BRASIL

No período pandêmico, mediante as medidas de isolamento e de distanciamento social, verificou-se que os números de notificações e denúncias de casos de abuso sexual infantil reduziram consideravelmente em comparação aos anos anteriores (LOPES, 2022).

Nesse contexto, Custódio e Cabral (2021) retratam que:

Os dados contidos no Anuário Brasileiro de Segurança Pública – Edição 2020 revelam que, no ano de 2019, houve 66.123 registros de violência sexual, o que indica que a cada 8 minutos, uma pessoa é estuprada no Brasil. Do total das vítimas, 85,7% são do sexo feminino e 57,9% tinham no máximo 13 anos. Ao analisar a autoria, o estudo aponta que em 84,1% dos casos – de estupro e estupro de vulnerável – o autor era conhecido da vítima, o que indica um complexo contexto de violência intrafamiliar. Referidos dados, contudo, não dão conta da real dimensão dos crimes sexuais, visto que revelam apenas aqueles casos que são notificados e registrados em Delegacia de Polícia. Estima-se que este número seja dez vezes maior, o que demonstra a subnotificação da violência sexual no país.

Diante disso, dados divulgados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (2020 apud SILVA, 2022), conforme demonstrado no gráfico abaixo, demonstram que no período de 2018 a 2019, houve um aumento de cerca de 45% das denúncias. Entretanto, em 2020, o número de denúncias dos casos de abuso sexual praticado contra crianças e adolescente diminuiu cerca de 25%.

 Gráfico 1 – Denúncia de abuso sexual praticado contra crianças e adolescente por período

Denúncia de abuso sexual praticado contra crianças e adolescente por período
Fonte: Ministério da Mulher, da Família e Direitos dos Humanos (2020) apud Silva (2022).

Posto isso, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve uma redução significativa das denúncias de violência contra crianças durante a pandemia. O que demonstra uma decaída das oportunidades de identificação dos casos e de denúncia, mas não necessariamente uma diminuição dos casos de violência (MELO et al., 2020).

Assim sendo, para Silva (2022), alguns fatores que podem estar associados a diminuição das denúncias são: a falta de informação sobre como realizá-la de maneira online; a falta de acesso a meios de comunicação virtual; a questão social e financeira da família; a dificuldade de realizar a denúncia devido a ameaças, medo; a presença do agressor no ambiente e cotidiano dessas vítimas.

Corroborando com o exposto, Silva e Martins (2021) relatam que:

Os dados reiteram a relação familiar entre suspeitos e vítimas. De acordo com os números do segundo semestre de 2020 do Disque 100, 67,30% dos suspeitos são familiares, o que corresponde a 4.926 denúncias. Neste ambiente, a categoria padrasto/madrasta (1.145) representa a maioria dos suspeitos de violência sexual infantil, seguidos de pais (1.121) e mães (767). (SILVA E MARTINS, 2021, p. 01).

Assim, dentre os casos ocorridos durante a pandemia envolvendo abuso sexual infantil no ambiente intrafamiliar, cita-se a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo:

ESTUPRO DE VULNERÁVEL – AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS – CONDENAÇÃO MANTIDA – Suficientes os elementos probatórios a demonstrar a ocorrência de estupro de criança de 04 anos pelo próprio pai, de rigor a manutenção do édito condenatório – PENA READEQUADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (TJSP; Apelação Criminal 0003289-32.2017.8.26.0361; Relator (a): Willian Campos; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Mogi das Cruzes – 3ª Vara Criminal; Data do Julgamento: 05/05/2021; Data de Registro: 05/05/2021) RECURSO DE APELAÇÃO. Estatuto da Criança e do Adolescente. Ação de acolhimento institucional. Apelo tirado pela genitora em face da r. sentença que decretou a procedência do feito, para ratificar a medida protetiva liminarmente aplicada aos filhos menores. Insurgência que não prospera. Demanda de natureza cautelar, que tem por objeto tão somente a aplicação de medida de proteção aos petizes. Irmãos menores expostos a risco pelos pais – o genitor, em razão das agressões físicas e sexuais praticadas contra a genitora, a enteada e a filha; a genitora, em virtude da incapacidade de se desvencilhar do relacionamento abusivo e de proteger a prole. Estudos técnicos que apontam a impossibilidade de reinserção imediata dos menores na companhia materna, ante a necessidade de fortalecimento psicossocial da genitora, com vistas à perene superação das adversidades pessoais constatadas. Medida que poderá ser revista a qualquer tempo, caso substancial e positiva alteração do panorama fático atualmente observado autorize e recomende, no superior interesse dos petizes, a reintegração familiar. Recurso não provido. (TJSP; Apelação Cível 1009423-53.2020.8.26.0361; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: 28 Câmara Especial; Foro de Mogi das Cruzes – Vara da Infância e Juventude; Data do Julgamento: 21/06/2021; Data de Registro: 21/06/2021)

O caso relatado acima demonstra uma ocorrência de abuso sexual intrafamiliar a uma criança de 4 anos ocorrida durante a pandemia. O caso relatado demonstra que o pai agredia fisicamente e sexualmente a filha, a genitora e a enteada e que, após sentença, foi determinado acolhimento institucional às vítimas, devido a violência sofrida pelo pai e a incapacidade da genitora em proteger às crianças.

Diante disso, Santos (2022) discorre que:

Nesse cenário, em casos de abuso sexual intrafamiliar a família não cumpre seu dever, tornando-se os algozes da vítima, como visto acima, pais e mães tornam-se o vilão e não cumpre o papel de proteger e cuidar de seus filhos.

Por essa razão, é importante destacar que cabe ao Estado garantir com absoluta prioridade os direitos da criança e do adolescente, como também a família e toda a sociedade. Além disso, mesmo sendo o Brasil pioneiro em estabelecer direitos, garantias e liberdades à criança e ao adolescente, possuindo uma das legislações mais avançadas do mundo no que se refere aos direitos desses indivíduos, a realidade encontrada é totalmente distante daquela disposta no plano normativo, pois esta trata-se de uma suposta proteção à criança nas esferas legal e assistencial, quando na realidade, ou seja, na hora da aplicação ao caso concreto, é feita vista grossa diante de um problema que atinge a sociedade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O “abuso sexual”, quando denominado de intrafamiliar, está relacionada ao fato de se originar dentro do seio familiar. Logo, considerando que, na maioria das vezes, os casos de abuso sexual em crianças e adolescentes estão vinculados direta ou indiretamente à família, onde os agressores, na maioria dos casos, são os pais e/ou demais familiares, o presente artigo visou responder: qual é a relação entre a COVID-19 e a diminuição dos casos de abuso sexual infantil no ambiente intrafamiliar?

Mediante ao exposto, foi possível constatar que o isolamento social foi um dos principais fatores que tornou mais sucetivel a prática de abuso sexual infantil, bem como contribuiu significamente para a diminuição das denúncias, seja pelo fato do agressor estar presente no ambiente e cotidiano das vítimas, do desconhecimento ou da falta de acesso a meios de comunicação virtual.

Sendo assim, pode-se concluir que o abuso sexual infantil precisa estar nas discussões de políticas públicas como um fenômeno globalizado dentro da sociedade. Sua erradicação e prevenção são um desafio constante dos profissionais das áreas sociais, da saúde e da educação, bem como de todos os envolvidos e interessados acerca da problemática. Nesse aspecto, não basta necessariamente apenas criar programas, mas, principalmente, estar compromissados a estudar e a analisar com rigor as causas e consequências da amplitude desse tema e os danos morais e sociais sofridos por crianças e adolescentes, vítimas de violência sexual.

REFERÊNCIAS

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[1] Acadêmica de Direito. ORCID: 0000-0001-6712-2916.

[2] Orientadora.

Enviado: Julho, 2022.

Aprovado: Agosto, 2022.

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Tiffany Neves de Souza

Uma resposta

  1. Parabéns pela exímia abordagem sobre o assunto. Didática, juridicamente correlata e fundamentalmente crítica dentro de nossa artéria social, política e jurisdicional.
    Parabéns.

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