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Moinhos semânticos: entraves para o abolicionismo penal

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SILVA, Juliana Regina de Souza [1]

SILVA, Juliana Regina de Souza. Moinhos semânticos: entraves para o abolicionismo penal. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 04, Vol. 06, pp. 05-24. Abril de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso:  https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/abolicionismo-penal

RESUMO

O presente artigo trata de subjetividades e angústias produzidas ao sujeito que se identifica com a defesa das propostas apresentadas pelo movimento abolicionista penal frente às costumeiras críticas e adjetivações – indivíduos, geralmente, caracterizados, como loucos ou utópicos. Aprofunda-se no estudo sobre os estereótipos sustentados pelos discursos cristalizados produzidos sob uma ordem vigente específica. Estuda, ainda, outra mais grave estereotipação: aquela que recai sobre o outro, quase sempre e historicamente, constituído como um não-sujeito, alvo de classificações e catalogações muito funcionais para sustentar a irracionalidade do sistema de controle criminal e o adjetivo utópico ao abolicionista. Propondo rupturas semânticas nos discursos, gira-se os significados, analisando-os, para descristalizá-los, objetivando uma metodologia de resistência que também deve ser trilhada pelo próprio abolicionista penal.

Palavras-chave: Rupturas, análise do discurso, utopia, abolicionismo.

1. INTRODUÇÃO

O movimento “Law and Literature Movement”, ocorrido em 1970 nos EUA, teve representantes ilustres como Kelsen, Jhering, Jellinek, Radbruch. E, abriu as portas para trabalhar no direito de forma transdisciplinar, aproximando-o a realidade das discussões profundas e passíveis dentro da literatura (MONTEIRO, 2020). É nesse viés que iremos também nos apoiar para discorrer sobre os estereótipos sustentados pelos discursos cristalizados e seus respectivos entraves para o abolicionismo penal, trazendo um argumento semântico, reflexivo e propondo uma discussão que se aproxima da filosofia e do empirismo que se aproximará sempre dos argumentos e bases literárias.

Na esteira do possível, ainda que não muito recomendado, as linhas seguintes tratarão de angústias, sem dúvida a maior dificuldade dos juristas que buscam sempre apoio na resignação. A bom gosto de Brás Cubas: “a obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus” (ASSIS, 1978, p. 11).

As angústias apresentam pontos de identificação muito detectáveis e se sedimentam dia após dia por meio de cristalizações discursivas trazidas por ventos de outros tempos. Rótulos e adjetivações, sempre com uma tentativa perigosa de “explicar” para rejeitar, são parte do caminho daquele que se apresenta um abolicionista penal. Se o “mundo” das ciências criminais fosse uma grande sala com diversas cadeiras, onde todos que estão sentados precisam ficar de pé para discursar, o abolicionista penal, após sua fala, é aquele a quem não é permitido mais se sentar e que, em alguns casos, perde até mesmo o assento. Todavia, dádiva ou maldição, nunca será esquecido. E, nesse “mundo”, não para garantir o assento, mas para manter as possibilidades de desconstrução de estereótipos, caminhamos com as ciências criminais empíricas, especificamente com a criminologia crítica, nossa base teórica, para que possamos reclamar nossa identidade.

Para seguir o percurso proposto, não trataremos de todas as possibilidades abolicionistas penais, evidentemente por serem um campo muito amplo e fecundo, mas, também, como já sinalizado, não ocultaremos nossos atravessamentos: estamos aproximados da teoria marxista, pois nesse enviesamento entendemos ter auxílio para incorporar a margem capitalista periférica, lugar de onde falamos. Percebendo as consequências nefastas e deletérias que atingem o lado de cá, compreenderemos como a abolição do sistema de controle penal e sua irracionalidade fundamental transpõe a ordem da ilusão, porque uma necessidade. Assim, tomamos distância de utopias, principalmente enquanto campo semântico nocivo, para compreender como a superação do capitalismo está relacionada a um movimento que caminha para superação do caos, especificamente em nosso lado periférico, fruto de uma crise de percepção que precisa ser enfrentada.

Ruínas e corpos tombados pesam sobre nossos ombros como uma grande permanência, mas jamais podem ser ignorados e, por isso, será pontuado porque não cabe um discurso estereotipado de utopia que ratifica as reformas de um sistema que sempre abafou todas as tentativas de protagonismo do povo brasileiro e expandiu o controle sobre seus corpos. Como afirmou Batista (2003, p.19): “a história continua”. Não negociaremos o inegociável e, isso, se amplia para muito além de um mero jogo de palavras.

O selo da utopia tem impactos também subjetivos. Identificar-se como abolicionista, dentro ou fora da Academia, dispara e alimenta sentimentos de angústias, motivados por diversos pontos de incompreensão sobre o que é o abolicionismo penal. O abolicionista, muitas vezes, classificado como “alguém de coração bom”, inicia o árduo percurso em que precisa lutar em duas trincheiras: desmanchar estereótipos sobre si e implodir discursos cristalizados sobre o outro – sem dúvida a maior vítima do sistema vigente.

Duplo objetivo que custa, até mesmo, a estrutura interna do abolicionista, suas edificações, (in)certezas. De qualquer forma, na trincheira dupla, não se trabalhará com neutralidade nem com uma metodologia que deixe o abolicionista penal a uma distância “segura” de seu objeto. Não é possível – nem pretendemos – esconder nossas inclinações com uma neutralidade própria da escrita acadêmica. Isso porque, aqui, somos objeto e observadores, e, por essa própria condição, estamos confundidos e expostos. “Sinto que o leitor estremeceu – ou devia estremecer. Naturalmente a última palavra sugeriu-lhe três ou quatro reflexões” (ASSIS, 1978, p. 127).

2. PARA DESMANCHAR ESTEREÓTIPOS: ACEITÁ-LOS

Quase sempre um abolicionista penal vive a se esquivar de estereótipos. Além dos questionamentos próprios sobre a “ausência de soluções práticas”, é extremamente comum ser classificado como “alguém que vive a se nutrir de utopias”. Tal sujeito caminha como quem, embora um pouco cansado frente aos discursos que encontra sobre si, pode decidir traçar a via que abraça a classificação ilusória para demonstrar que, talvez, não seja tão ruim assim o estereótipo se girarmos os sentidos.

Ademais, a mais grave estereotipação nos recai sobre o abolicionista, mas sobre o outro. Alvo de classificações e catalogações há tanto tempo que nem sabemos mais dizer, é ele quem faz o empréstimo de sua imagem construída perversamente para sustentar a funcionalidade irracional do sistema de controle criminal.

Girar os significados, analisando os discursos para descristalizá-los pode se constituir como uma metodologia de resistência. Por ambos os caminhos seguiremos.

2.1 O (IN)ADEQUADO DOM QUIXOTESCO

O abolicionista penal tenha, talvez, em si muito de um peculiar engenhoso fidalgo, pontualmente conhecido como Dom Quixote de la Mancha. A porta que sinaliza rumo ao descompasso é a mesma que une esses dois “personagens”: os atravessamentos – “que esses malditos livros de cavalaria que ele tem e costuma ler todo dia lhe viraram a cabeça!” (CERVANTES, 2012, p. 92). Assim, seguindo o destino de Quixote, tornamo-nos loucos, ou utópicos como alguns preferem cirurgicamente demarcar para dar o tom próprio do (des)eufemismo.

Pois bem, aqui iniciamos, saindo de uma aldeia da Mancha, para fazer girar a perspectiva: estamos frente à loucura ou ao excesso de razão? Nesse caminho, imersos nas concretudes do abolicionismo penal, fazemo-nos personagens para que nos assumamos Quixote, sem receios dos rótulos atribuídos à triste figura. Afinal, estamos frente às consequências próprias e inevitáveis que recaem sobre aqueles que se propõem a discorrer sobre angústias.

É necessário fazer, antes, uma primeira parada, quase obrigatória, para perceber as incompatibilidades que, quando evidenciadas, afastam de pronto o abolicionista penal como o ser que vive a sonhar como uma “sociedade ideal e, portanto, imaginária”. Para tanto, abordaremos as concretudes, não aparentes para a maioria, que de fato circundam o abolicionismo penal. E Quixote caminha conosco.

Para refletir sobre o lugar do outro que envolve o abolicionismo penal em uma nuvem de utopia, busca-se compreender as relações entre o homem e a sociedade em nossa margem capitalista periférica. Questiona-se: o que leva um sujeito, enquanto produtor de discursos simbólicos, a interpretar dessa forma as (não) propostas abolicionistas penais? Estamos adentrando terreno pantanoso, território que articula o simbólico e o político para observar os rótulos classificadores produzidos como uma prática histórica e social.

Escolhendo o caminho da análise do discurso, adentramos para compreender o lugar do observador, ou seja, daquele que enxerga com suas lentes interpretativas, aparentemente livres, as (não) propostas do abolicionista penal. Assim, colocamo-nos, generosamente, no lugar daqueles que não compreendem o movimento desconstrutor do sistema de controle penal como uma concretude para só depois voltarmos a tomar nossos assentos.

Para alcançar as compreensões objetivadas, é preciso perceber que:

De um lado, é na movência, na provisoriedade, que os sujeitos e os sentidos se estabelecem, de outro, eles se estabilizam, se cristalizam, permanecem. Paralelamente, se, de um lado, há imprevisibilidade na relação do sujeito com o sentido, da linguagem com o mundo, toda formação social, no entanto, tem formas de controle da interpretação, que são historicamente determinadas: há modos de se interpretar, não é todo mundo que pode interpretar de acordo com sua vontade, há especialistas, há um corpo social a quem se delegam poderes de interpretar (logo de “atribuir” sentidos), tais como o juiz, o professor, o advogado, o padre, etc. Os sentidos estão sempre “administrados”, não estão soltos. Diante de qualquer fato, de qualquer objeto simbólico somos instados a interpretar, havendo uma injunção a interpretar. Ao falar, interpretamos. Mas, ao mesmo tempo, os sentidos parecem estar sempre lá (ORLANDI, 2020, p. 8).

Quando um indivíduo seleciona o adjetivo utópico em seu discurso para classificar um abolicionista penal acredita estar fazendo isso de forma autônoma e com ampla liberdade discursiva. A sensação de liberdade sobre o discurso proferido e suas possibilidades, que parecem concretas, vicia e oculta o real acúmulo de discursos cristalizados por trás da seleção do vocábulo. Não cabe o espaço da neutralidade, ainda que assim se queira analisar da forma mais ingênua possível, pois “a entrada no simbólico é irremediável e permanentemente: estamos comprometidos com os sentidos e o político” (ORLANDI, 2020, p. 7-8). Assim, é possível observar quem é esse homem que fala, rotula e classifica, revelando a contaminação das nuances de nosso capitalismo periférico, modelo em que está irremediavelmente inserido. Portanto, o rótulo tem concretude e forma, pois está sendo utilizado nestes tempo e espaço.

Por isso, o primeiro passo para compreender o selo da utopia direcionado ao abolicionista é admitir que o sistema capitalista não oferece nem mesmo a liberdade de escolha discursiva:

[…] é um sujeito ao mesmo tempo livre e submisso. […] Essa é a base do que chamamos de assujeitamento. Tomando em conta a relação da língua com a ideologia, podemos observar como, através da noção de determinação, o sujeito gramatical cria um ideal de completude, participando do imaginário de um sujeito mestre de suas palavras: ele determina o que diz. […] Submetendo o sujeito mas ao mesmo tempo apresentando-o como livre e responsável, o assujeitamento se faz de modo a que o discurso apareça como instrumento (límpido) do pensamento e um reflexo (justo) da realidade (ORLANDI, 2020, p. 48-49).

Seguindo por um atravessamento marxista, é evidente que não há possibilidade de escolhas frente a alternativas concretas, pois elas não existem. Logo, não há liberdade nem no ato discursivo, na escolha dos vocábulos, já que tudo está atravessado por condicionantes históricas e o discurso nunca está voltado apenas para si mesmo. A ilusão de um sujeito livre em suas escolhas, promovida pela relação de liberdade-submissão, é condição própria do capitalismo. Essa ordem tem forma de assujeitamento, mas, paradoxalmente, sustenta a ideia de autonomia discursiva individual, pois “este processo é fundamental no capitalismo para que se possa governar” (ORLANDI, 2020, p. 49).

A escolha do vocábulo está, inegavelmente, atada às especificidades das relações de produção humana. Essa forma, que vai muito além da visão economicista, é ampla e abarca a maneira como nos relacionamos enquanto sociedade, gerida, evidentemente, pelo sistema vigente. Para alcançar essa percepção, é necessário observar o capitalismo não apenas como um sistema econômico em um modo de produção – embora também o seja -, mas, na amplitude proposta, como um modo de relação, motivo pelo qual não se pode ignorar seus efeitos materiais concretos.

A partir dessa proposta de observação é que podemos compreender a existência de uma narrativa que sustenta o capitalismo como um sistema possível de regulação de corpos – alguns mais especificamente – e de condutas – ditas criminalizáveis. Afinal, “o capital precisou sempre de um grande projeto de assujeitamento coletivo, de corpo e alma” (BATISTA, 2011, p. 19). É contra o controle de almas e corpos que o abolicionista penal se insurge. Assim, é preciso observar e descristalizar discursos de classes que têm como objetivo manter a hegemonia desse sistema, não havendo dúvidas, portanto, que o direito penal é via eleita.

Para entender a questão criminal, é preciso apartar os objetivos declarados e reais do discurso penal (SANTOS, 2014). Na ordem dos objetivos declarados, temos a sustentação da “proteção de bens jurídicos” (SANTOS, 2014, p. 423-424). Todavia, pela via real, é necessário compreender a amplitude política do discurso penal como estratégia de controle em sociedades capitalistas:

O conceito de modo de produção da formação social, formado pela articulação de forças produtivas em determinadas relações de produção da vida material, permite identificar os objetivos reais do Direito em geral – cuja existência é encoberta pelos objetivos declarados do discurso jurídico oficial -, que revelam o significado político do Direito Penal com instituição de garantia e de reprodução da estrutura de classes da sociedade, da desigualdade entre as classes sociais, da exploração e da opressão das classes sociais subalternas pelas classes sociais hegemônicas nas sociedades contemporâneas – esclarecendo, complementarmente, a formação econômica das classes sociais no terreno das ideologias […] (SANTOS, 2014, p. 423-424).

Assim, quando um abolicionista penal é classificado como utópico, o sujeito que emite este discurso está atuando pela e a favor da via dos objetivos declarados do direito penal. Ocorre, entretanto, é que não se pode ignorar esse discurso como uma decisão política, fruto de muitos acúmulos, proveniente de uma classe hegemônica. Nessa escolha vocabular – utópico – podemos ler complexas relações políticas de poder.

Consequentemente, isso se reflete na comunicação e na elaboração discursiva, superficialmente entendidas como manejos livres do sujeito. Para romper essa lógica, é que se precisa mais do que abrir os olhos, é necessário dilatar as pupilas para, por meio da contribuição da análise do discurso, cultivar um “estado de reflexão e, sem cairmos na ilusão de sermos conscientes de tudo, permite-nos ao menos sermos capazes de uma relação menos ingênua com a linguagem” (ORLANDI, 2020, p. 8).

A “estranha potência” das palavras, de Cecília Meireles, destacada por Batista (2013, p.86-90) nos atenta para o perigo dos vocábulos que rodam a órbita do campo semântico do sistema de controle penal. Utopia, sem dúvida, palavra usada para limitar o abolicionismo penal, revela-se em potencial periculosidade e astúcia. Por isso, é necessário vigilância para perceber o risco de escolhas vocabulares nada inocentes e questionar: “afinal, fomos capazes de teorizar sobre ‘homens perigosos’ e até mesmo sobre ‘classes perigosas’; por que não conseguiríamos identificar palavras perigosas?” (BATISTA, 2013, p. 87). Estamos travando uma batalha de vocábulos ainda que pareça impossível: descristalizar o campo semântico que ronda o abolicionismo penal. Por esse motivo, os esforços devem se dirigir para forçar o afastamento de qualquer noção de imaginário e de irrealizável para que se avance nesse movimento com um tom de necessidade e possibilidade.

Nesse sentido, acreditamos que para entender, agora, o lugar de onde fala o abolicionista penal, é necessário não esquecer que os discursos importam e se tornam seu principal obstáculo:

[…] os diferentes abolicionistas, por valorizarem a dimensão comunicacional e simbólica do sistema penal, concordam que abolição não significa pura e simplesmente abolir as instituições formais de controle, mas abolir a cultura punitiva e superar a organização “cultural” e ideológica do sistema penal, a começar pela necessidade de superação da própria linguagem e pelo conteúdo das categorias estereotipadas e estigmatizantes (crime, autor, vítima, criminoso, criminalidade, gravidade, periculosidade, Política criminal etc.) que tecem cotidianamente o fio dessa organização (pois têm plena consciência de que de nada adianta criar novas instituições ou travestir novas categorias cognitivas com conteúdos punitivos) (ANDRADE, 2012, p. 262).

Acrescentamos, ainda, que é preciso superar, também, os rótulos que classificam como utópico o abolicionismo penal com tons de impossibilidades e devaneios, pois é na ordem discursiva que os entraves se iniciam. Eis nossos moinhos semânticos. A superação se oferta nas incontáveis maneiras e oportunidades de desconstrução da lógica punitiva e, consequentemente, de seu discurso, ainda que os tempos sejam os mais obscuros.

Negar o rótulo da utopia é, consequentemente, colocar-se na trincheira contra a ordem capitalista, iniciando novo estereótipo: o de inimigo. Nesse campo semântico, o abolicionista penal é visto como alguém que incita o retorno ao caos e, por isso, seu discurso deve ser prontamente combatido e eliminado, seja na Academia seja fora dela. Qualquer lógica de aceitação, infelizmente, está contaminada desde o início por um modelo de ordem que se sustenta na desigualdade. Realmente, aqui, parece que o abolicionista penal luta contra gigantescos moinhos de vento, pois sua luta nasce viciada. Linha tênue cruzamos entre o louco e o inimigo:

– Que gigantes? – disse Sancho Pança.

Aqueles ali, de braços compridos – respondeu o amo. – Alguns costumam ter braços de quase duas léguas.

Olhe vossa mercê – respondeu Sancho -, aqueles que estão ali não são gigantes, mas moinhos de vento, e o que neles parecem braços são as pás, que, rodadas pelo vento, fazem trabalhar as mós.

Bem se vê – respondeu Quixote – que não és versado em aventuras: eles são gigantes. E, se tens medo, some-te daqui e fica rezando enquanto isso, porque vou travar com eles uma batalha feroz e desigual.

E, dizendo isso, esporeou seu cavalo Rocinante, sem ligar para os gritos de seu escudeiro Sancho, avisando-o de que sem dúvida nenhuma eram moinhos de vento e não gigantes aqueles que ia atacar. Ele ia convencido de que eram gigantes que nem ouvia seu escudeiro Sancho nem conseguia ver o que eram, embora já estivesse bem perto; pelo contrário, ia dizendo aos brados:

Não fujais, covardes e vis criatura, que apenas um cavaleiro vos ataca (CERVANTES, 2012, p. 109-110).

Porque não somos dados a rezas e para não entregarmos a vitória aos moinhos em uma batalha tão desigual, focalizamos como discursos punitivos se cristalizaram em nossa margem capitalista periférica, lançando abolicionistas penais ao estereótipo da triste figura do fidalgo – ingênuo, louco e sonhador –, e também a do inimigo, e os corpos selecionados pelo sistema capitalista a uma condição bem pior, de outro aterrorizador – o que enfrentaremos em segundo ponto para descristalizar também essa classificação.

Conforme dicionário Michaelis, utopia pode ser definida como:

1Qualquer descrição ou conceito imaginário de uma sociedade com um sistema social, político e econômico ideal, com leis justas e dirigentes e políticos verdadeiramente empenhados no bem-estar de seus membros. 2. Plano ou sonho irrealizável; ideia generosa, porém impossível; fantasia, quimera (MICHAELIS ONLINE, s.d.).

Frente a tantos vocábulos que precisam ser desacreditados e questionados, pinçamos apenas alguns como ponto de partida, mas não porque geram discursos classificadores menos ou mais limitantes. Para compreender as incompatibilidades, tem-se de esclarecer que o abolicionismo penal não se trata de uma descrição, mas de um movimento estratégico que caminha tendo ao horizonte teorias que possam deslegitimar a pena, ferindo de morte, portanto, todas as aspirações a castigos.

Nesse sentido, muito menos o seria um conceito imaginário de uma sociedade, uma vez que repensa a sociedade em seus problemas concretamente, justamente olhando para o que o sistema de controle criminal sempre oculta. Por isso, é necessário devolver aos críticos o rótulo sob o seguinte questionamento: por que se considera como único modelo “concreto” de sociedade (logo, não imaginário) o capitalista vigente? “Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho” (ASSIS, 1978, p. 18). Ideias fixas são limitantes. Ademais, funcionam bem para ocultar a seletividade do controle criminal muito funcional em nossa margem periférica. É preciso, portanto, não estacionar em discursos cristalizados.

No plano do sonho, da quimera e da fantasia, a classificação sobre o abolicionismo penal desconhece fronteiras e o rótulo de utopia bloqueia qualquer movimentação como irrealizável. Nesse momento, sempre haverá um discurso contrário para convencer de que o abolicionista só pode ter perdido a razão e, por isso, é preciso repudiar sempre suas propostas:

(…) pelo contrário, são escritos com tantos membros que mais parece que tinha a intenção de formar uma quimera ou um monstro do que fazer uma figura bem-proporcionada. Além disso, no estilo são duros; nas façanhas, inacreditáveis; nos amores, lascivos; nas cortesias, grosseiros; prolixos nas batalhas, estúpidos na argumentação, delirantes nas viagens e, por fim, alheios a todo artifício inteligente. Por isso, são dignos de desterro da república cristã, como gente inútil (CERVANTES, 2012, p. 581).

Como Quixote, primeiro contra o padre e o barbeiro, que realizaram o escrutínio a respeito de sua biblioteca, e depois contra o cônego, que insistiu em convencê-lo de que estava louco por ter lido demais, é preciso discursar pela via contrária: por ler e perceber o poder do dizer é que o abolicionista penal se cura de uma perspectiva de mundo inadequada. Quixote lê, mas não tira os olhos de sua realidade.

Talvez a dificuldade daqueles que rotulam os abolicionistas como utópicos esteja no errôneo esforço em querer vislumbrar o abolicionismo penal em um sistema que não o comporta. Antes mesmo de tratar dessa impossibilidade entre “forma” e “conteúdo”, é necessário ajustar o foco das lentes para o que seria, em sua plena potência, sem distorções, esse movimento:

O abolicionismo penal é uma prática libertária interessada na ruína da cultura punitiva da vingança, do ressentimento, do julgamento e da prisão. Problematiza e contesta a lógica e a seletividade sócio-política do sistema penal moderno, os efeitos da naturalização do castigo, a universalidade do direito penal, e a ineficácia das prisões (PASSETTI, 2006, p. 83).

Enxergar o abolicionismo penal como uma estratégia de superação do capitalismo é, sobretudo, tratar de ruínas. Não há como o debate ganhar corpo e sinuosidade sem demolir o estereótipo da ilusão, da utopia, da loucura. Por isso, também é preciso partir de um olhar marxista para confrontar as verdades do sistema de controle penal tão aclamadas pelos juristas, sendo possível construir um olhar desconstrutor ao assumir as angústias que atravessam esse mesmo sistema. Mais do que um jogo de palavras, o abolicionista penal é o sujeito que está constantemente trabalhando seu olhar desconstrutor, ainda que classificado pelo percurso. E, assim como Batista (2013, p. 87) indica o caminho para “desacreditar a palavra segurança”, como abolicionistas penais, estamos desacreditando a palavra utopia. Ademais, se negar o disfarce a respeito do controle criminal de indesejáveis é uma utopia, então somos adequadamente quixotescos.

2.2 AFINAL, ONDE HABITA A DITA UTOPIA?

A ideia de retribuição e prevenção (especial e geral) desenvolvida pelas diversas teorias da pena chega a níveis inalcançáveis. E por que não dizer utópicos? A pena, amarga senhora saudosa que só sabe olhar para o passado, só se sustenta em sua simbólica “manifestação de poder e em sua finalidade não explicitada de manutenção e reprodução deste poder” (KARAM, 1997, p. 67). Este, que pertence ao Estado, apenas produz seletividade, violência, dor, sofrimento e morte.

Para localizar a utopia, escolhemos olhar, desta vez, para a seletividade. O medo, construído em torno do outro que o classifica como aquilo que pode ser denominado como “sujeito matável” (BATISTA, 2020, p. 299-312), tem um percurso, nossa grande difusão histórica. Essa construção costura a crença no sistema de controle criminal, sobretudo nas penas, ocultando um modelo colonial e racista, muito mais nocivo em nossa margem capitalista periférica.

Construção conhecida por nossa história nacional positivista de rupturas e permanências desde a implantação da República brasileira no século XX (BATISTA, 2016, p. 293-307). O discurso médico tão focalizado e explorado por Rodrigues (2008) se assentou como grotesca facilidade a partir desses marco histórico para patologizar africanos e indígenas. Nutrindo-se por uma veia aberta e ainda muito pulsante, o positivismo criminológico segue objetificando e verticalizando corpos em permanência atroz que “justifica” porque alguns jovens não podem sair para comprar pão em favelas cariocas.

Naquilo que Batista (2016, p. 295) identifica como “tecnologia de produção de verdade” da Inquisição, a qual nos toca até hoje como um método muito mais refinado, o sujeito matável é constantemente atualizado, como verdadeiro produto de uma cultura discursiva, em uma lógica do inimigo interno, para sustentar discursos de que o castigo é destinado a todos. “Na constituição do sujeito matável é fundamental assinalar a visão seletiva do sistema penal” com sua funcionalidade perversa que dita o tom para classificar como utópicos qualquer um que a revele (BATISTA, 2020, p. 299-312). Ademais, “[…] é também a ideologia que faz com que haja sujeitos. O efeito ideológico elementar é a constituição do sujeito. Pela interpelação ideológica do indivíduo em sujeito inaugura-se a discursividade” (ORLANDI, 2020, p. 46). Assim, é preciso delimitar o outro, excluindo-o, para que se delimite a si próprio.

Todavia, resistimos volvendo um passado empoeirado de presente:

Podemos demarcar aí a rápida passagem dos projetos no sentido de novas políticas públicas no setor para uma crescente ânsia de segurança ancorada nos medos históricos advindos da paisagem da memória escravista. O Rio de Janeiro foi um dos centros do escravismo brasileiro e o medo branco foi sempre o grande vetor de políticas de truculência e extermínio contra a movimentação da população afrodescendente pelas ruas da cidade. Suas estratégias de sobrevivência, resistências e suas próprias existências foram sempre alvo de corporações policiais brutais e brutalizantes. A tortura e morte dos corpos negros é uma permanência histórica de longa duração em nossa história e uma espécie de paisagem natural do nosso cotidiano (BATISTA, 2020, p. 299-312).

Revolvendo a poeira de outras épocas, Batista (2003, p. 192) cita um trecho editorial de um jornal local do Rio de Janeiro do século XIX a respeito da Revolta dos Malês, o qual desenha o ponto sensível da formação de nossa polícia:

Parece que as mais obvias e imediatas que se devem tomar, he estabelecer primeiramente huma Policia activa e vigilante, que observe com cuidado todos os passos que os Africanos derem que pareção encaminhar-se a conjurações contra nossa existência, para que a tempo se previnão, empregando para esse fim todos os meios que mais convincentes forem para se descobrirem tenções tão pavorosas: segundo, termos huma força armada sufficiente, que pela sua disciplina, gente escolhida de que se compozer, nos insipire confiança, e aos escravos infunda terror […].

Seguindo uma definição discursiva de ideologia, abolicionistas penais precisam caminhar sobre uma teoria materialista do discurso para detectar como esse outro, a quem é preciso se “infundar terror”, é vendido como uma permanência discursiva, pois “o dizer tem história”, principalmente naquilo que ele esconde (ORLANDI, 2020, p. 47). Da margem em que falamos, as questões de raça e classe atravessam o rótulo e “as palavras simples do nosso cotidiano já chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se constituíram e que no entanto significam em nós e para nós” (ORLANDI, 2020, p. 18).

Falando com os pés bem fincados em nossa margem, onde inevitavelmente os estragos são proporcionalmente maiores, observamos como o capitalismo seleciona corpos específicos aos quais se dirigem silenciosos processos de exclusão e, portanto, de afastamento. Detecta-se, assim, algo verdadeiramente assustador: “o que se afirma cada vez mais como direito humano na sociedade capitalista tardia é o direito a não ser assediado, que é o direito a permanecer a uma distância segura dos outros”, pois o encontro com o outro não é algo que possa ser suportável (ZIZEK, 2014, p. 46).

A indignação, ou mesmo incompreensão, sobre aqueles que decidem atuar contra essa política do medo e do controle, trabalhando um olhar desconstrutor, é tão seletiva que ignora diversas formas de violência não geradas pelo outro, mas sofridas por ele:

No Brasil, basta pensar na fome e na desnutrição, na concentração da propriedade de terras e nas submoradias, na falta de saneamento, na caótica situação da educação e da saúde públicas, nas sucessivas políticas econômicas geradoras da miséria e desigualdade crônicas, no quadro revelador do sistemáticos desatendimento às necessidades básicas da maioria da população, violentamente privada de seus direitos fundamentais à moradia, à alimentação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à educação, privação violenta minimizada pela conveniente ideia de que as maiores ameaças à sobrevivência provêm de ações individualizadas de estupradores, sequestradores, assaltantes ou homicidas (KARAM, 1997, p. 69).

Como cantava Elis Regina, “O Brazil não merece o Brasil, o Brazil tá matando o Brasil”. Nunca nos aprofundamos, de fato, sobre violências. Nas margens periféricas de onde falamos, para aplicar o rótulo da utopia sobre o abolicionista penal, é comum construir esse outro com total ausência de uma política que poderíamos chamar de positiva, pois ela é um entrave. O estranhamento e a criminalização são introjetados sobre ele, a quem tudo sempre se negou, para que o medo possa sustentar a função real desse sistema de controle. É dissipado um discurso fácil que exige maior rigor punitivo, as custas da ocultação de um mecanismo muito funcional ao controle dos subalternos, por meio da “manipulação de […] uma multidão paranoica: é a união assustadora de pessoas aterrorizadas” (ZIZEK, 2014, p. 46). E já sabemos que “sociedades assombradas produzem políticas histéricas de perseguição e aniquilamento” (BATISTA, 2003, p. 26). Todavia, abolicionistas são desconstrutores por sua própria condição e a partir dessa latência do medo é que iremos localizar a utopia. Afinal, como de costume, dizem que de ilusões entendemos muito bem.

O medo, fio dos discursos legitimantes das ações de controle criminal do Estado, é o que alimenta a construção de um estereótipo do outro enquanto um sujeito que deve ser controlado e quase sempre aniquilado, sem esquecermos de que a guerra às drogas foi, e é, alicerce na construção de desse não-sujeito:

No Rio de Janeiro das duas últimas décadas do século XX, milhares de crianças e jovens, predominantemente negros e invariavelmente habitantes de favelas, são mortos por incursões policiais que, a serviço da cruzada contra as drogas, cumprem na verdade a tarefa de intimidar uma população insatisfeita e faminta, numa espécie de controle social penal preventivo pelo terror. […] As oligarquias brasileiras contemporâneas, que estimulam e enaltecem – velada ou expressamente – a permanente opressão que a polícia, a pretextos da “guerra santa” contra as drogas, exerce sobre as comunidades faveladas, com seu saldo fantástico de mortos, mais do que cúmplices de um terrorismo permanente e sistemático, são dotadas de confortável indiferença a que aludimos; elas também pensam, como o abade Arnaud, que Deus reconhecerá os seus (BATISTA, 2002, p. 241).

A construção seletiva do outro, maior inimigo público, precisa trabalhar na sua cumplicidade perversa essa visão de ser identificado como um todo monolítico criminoso – “massa enxameada e sem rosto de marginais de pele escura” – para que se justifique um destino de toda sorte de perversões e punições (WACQUANT apud BATISTA, 2003, p. 10). Em nossa margem, o capitalismo produz uma insone sensação de insegurança, o que, sem dúvida, é também um produto que se constrói e se alimenta de discursos punitivos. Estamos a tratar de permanências: discursivamente, constrói-se para ocultar. Abolicionistas penais desconstroem para revelar. Onde habita a dita utopia? “Eis aí um mistério; deixemos ao leitor o tempo de decifrar este mistério” (ASSIS, 1978, p. 117).

O papel dos mass media é implacável para vender o desejo punitivo e oferecer seus produtos garantidores de segurança (GOMES e ALMEIDA, 2013).

A qualquer diminuição de seu poder [política penal] os meios de comunicação de massa se encarregam de difundir campanhas de lei e ordem que aterrorizam a população e aproveitam para se reequipar para os “novos tempos”. Os meios de comunicação de massa, principalmente a televisão, são hoje fundamentais para o exercício do poder de todo o sistema penal, seja através dos nossos seriados, seja através da fabricação de realidade para produção de indignação moral, seja pela fabricação de estereótipo do criminoso (BATISTA, 2003, p. 33).

A solução midiática, que nada tem de ingenuidade, é sempre pela via do controle criminal. Esses meios alimentam, cotidianamente, as validações criminosas sobre esse outro depósito de toda a ira punitiva:

Nessa perspectiva, se os mass media alardearem uma grande cifra de crimes em sua programação, além de qualificarem cotidianamente certas leis penais de brandas ou defasadas, bem como determinadas instituições de ineficazes, esta imagem produzida será fatalmente introjetada como verdade, reverberando em medo e insegurança que, por sua vez, conduzirão à fragilização dos vínculos sociais e a demandas por respostas estatais mais duras […].

Desse modo, para que logrem êxito ou legitimidade, pressupõe-se necessário o encontro de alguma ressonância na coletividade, a qual pode ter astutamente esculpida com o manejo de estereótipo e de etiquetamentos ou, então, representada pelos comentários de (e)leitores em jornais, cujo clima estampado convergirá em ferramenta perspicaz (GOMES e ALMEIDA, 2013, p. 141-142).

O consenso reforça a imagem perversa e distorcida de que esse outro é, portanto, um sujeito matável. Os que apontam não haver propostas devem se questionar: mas o que fazer?

(…) muito de nossa luta para alcançar, escancarar, revelar e então eliminar o calcanhar de Aquiles do sistema carcerário – sua irracionalidade fundamental e total – precisa ser direcionada à televisão e aos meios de comunicação de massa em geral, já que são seu escudo mais protetor. Isso faria com que os outros escudos caíssem e liberassem o segredo (MATHIESEN, 1997, p. 283).

Derrubar os escudos como dominós em sequência é para onde o abolicionista penal deve rumar, pois, “tomadas essas providências, (…) incitando-o a falta que pensava que fazia no mundo com sua demora, por causa das afrontas que queria reparar, erros que corrigir, injustiças que emendar, abusos que sanar e dívidas que cobrar”, há muito que se descristalizar (CERVANTES, 2012, p. 67). Revelar o fantasma que ronda a sociedade completamente perdida e afogada em números alarmantes de criminalidade, o medo que clama pela intervenção do sistema de controle penal e a segurança, sempre por imposição de flagelo sobre o corpo do outro, é uma necessidade, ainda que sejamos uma “figura despropositada, munida de armas tão desiguais” (CERVANTES, 2012, p. 71). Ainda assim, seguimos errantes como a triste figura na angústia sobre o escudo do segredo: “a crença na reação punitiva é fruto de uma perversa fantasia” (KARAM, 1997, p. 68), mas é no abolicionismo penal que habita a utopia?

Consequentemente, a ilusão creditada ao sistema de controle criminal, amparada no amor à punição, faz crer e atravessar discursos cristalizados de que “com a imposição de uma pena aos responsáveis por aquelas condutas, toda a violência, todos os perigos e ameaças, todos os problemas estarão sendo solucionados” (KARAM, 1997, p. 70). Nesse caminho discursivo perverso, oculta-se a real funcionalidade do sistema penal em sua plena operacionalidade: ele não se destina a todos, sendo sua lógica a da excepcionalidade. A utopia existe, e não habita nos discursos abolicionistas penais:

Podemos então, finalmente, enxergar além da carapuça de uma sistema que tem se mantido de pé por meio de um discurso da igualdade da lei, da segurança jurídica e de tantas outras artimanhas elaboradas para seu triunfo. (…) O sistema penal funciona e funciona bem. Funciona para os fins para os quais foi sempre dirigido: manter as pessoas onde estão. (…) Como meio racionalizador das práticas penais, o saber penal procura justificar teoricamente as ações de todas as agências do sistema, naturalizando as ilegalidades e os excessos como meio de legitimação do aparelho de controle (FLAUZINA, 2006, p. 27).

Nessa estrutura, o outro perigoso, perversamente construído, precisa fazer o empréstimo de sua figura para manter oculta a real estrutura de dominação do sistema de controle criminal. A escolha do termo utopia se relaciona com a construção do sujeito matável, pois, ao afastar o outro instigador de medos, sustenta o rótulo utópico do abolicionismo penal. Afinal, como não punir e aniquilar esse outro? Não o fazer é, evidentemente, pensar na ordem do impossível. No passado deixamos os indesejáveis para o exército de reserva. Agora, e muito rapidamente, aplaudimos os abatimentos.

Utopia, após seu descrédito trabalhado até aqui, é crer nesse(s) sistema(s) ainda que por meio de modernizações e reformas. É bem verdade, entendemos de ilusões. Negar o abolicionismo penal, aplicando o rótulo conveniente da utopia, em nossas margens custa muito caro: a seletividade toma sempre os mesmos corpos. A partir disso, os abolicionistas penais devem se perguntar: o que fazer?

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tudo começa no discurso, bem como termina. Sob a sombra da utopia estão os abolicionistas penais e o outro matável, construções discursivas antes de tudo. Por isso, é sempre muito importante travar lutas para deslegitimar e descristalizar discursos limitantes sobre o abolicionismo penal, e sobre o próprio abolicionista, o outro, a pena e tudo mais que possa estar na via do impossível e do não concreto. Romper pactos discursivos há muito sedimentados é realmente difícil, mas de forma alguma é irrealizável. A análise do discurso fere de morte o pacto com a utopia.

Por outro lado, os abolicionistas penais também precisam fazer um movimento de mea culpa. Nas diferenças que os aproximam, é urgente realizar uma autocrítica e (re)pensar sobre os discursos que produzem para que depois não sejam alvejados pelo próprio campo semântico que permitem cristalizar. Toda vez que um abolicionista utiliza a palavra utopia para defender suas propostas, escrever um artigo, reivindicar, o que seja, arrasta para si todo o campo da impossibilidade, do irrealizável. É impossível descolar essas adjetivações. Aqui, os abolicionistas penais têm culpa por deixar que esses sentidos avancem acoplados em suas propostas.

Para encontrar seu mais sólido argumento, os abolicionistas penais precisamos dar um passo atrás e começarmos analisando nossos próprios discursos. Interpretar o abolicionismo afastado das adjetivações utópicas é compreender esse processo e transcendê-lo, pois procura-se ir além da superfície das evidências (ORLANDI, 2020, p. 27). Precisamos saber como as adjetivações utópicas funcionam e se aderem para afastá-las.

Ademais, é necessário um segundo movimento: abrir-nos para que sejamos desconstrutores transdisciplinarmente atravessado (MATHIESEN, 1997, p. 285).

Evidentemente, ortodoxias reagirão a esse movimento, mas o abolicionista penal não pode aceitar o caminho da conversão ou do assujeitamento. Assim como a utopia, a doxa, inquestionável, não pode fazer parte de seu campo semântico nem de atuação (MATHIESEN, 1997, p. 178-179).

Como hereges ou relegados, os abolicionistas precisamos afastar o campo semântico da utopia para transformar ocasiões em permanências, aprendendo com as abolições passadas, as quais nada ensinam sobre impossibilidade, porque realizáveis para o desmantelamento do sistema de controle criminal e toda sua irracionalidade fundamental.

De tudo isso podemos extrair, portanto, que a maior luta do abolicionista penal, paradoxalmente, é contra si. Não devemos naturalizar o uso da palavra utopia, porque é perigosa e, por isso, propõe-se rupturas semânticas. Negar a lógica punitiva cotidiana nada tem de utópico, é uma necessidade para que se desconstrua a lógica penal discursiva. Aceitar a utopia no campo semântico abolicionista é servir à manutenção da ordem no capitalismo, latente em submissão tipicamente exercida por classes dominantes. Como já afirmado, tudo começa no discurso, que é sempre político, ideológico.

Os moinhos contra os quais lutamos são reais. Que possamos, enquanto abolicionistas, assumir-nos Quixotes, negando visões inadequadas do mundo, ficando ao lado dos outros, ainda que sejamos classificados, mas nunca permitindo que “melancolias e amarguras” deem cabo de nós (CERVANTES, 2012, p. 629). E quando sentirmos que essa visão nos alcança, ainda que no leito de morte, possamos ser uns aos outros como Sancho foi para Quixote, aconselhando-o a viver sua vida e não se deixar morrer pela melancolia (CERVANTES, 2012, p. 632).

Quixote nunca perdeu a razão. E, assim como a triste figura, o abolicionista penal precisa escolher sua margem e apenas seguir por caminhos necessários para humanizar todas as experiências humanas. Assim como fez Quixote.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012.

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

BATISTA, Nilo. Criminologia sem segurança pública. Revista Derecho Penal y Criminología. Buenos Aires, 2013, ed. La Ley: v. 10, pp. 86-90.

BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro, I. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2002.

BATISTA, Vera Malaguti. Crime e guerra no Brasil contemporâneo. In: GUSIS, Gabriela e FARB, Laura (coords.). Poder patriarcal y poder punitivo: diálogos desde la crítica latinoamericana. Buenos Aires: Ediar, 2020, pp. 299-312.

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

BATISTA, Vera Malaguti. O positivismo como cultura. In: Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. Rio de Janeiro: vol. 8, no.2, maio-agosto, 2016, p. 293-307.

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. Vols. 1 e 2. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade de Brasília, abril de 2006.

GOMES, Luiz Flávio; ALMEIDA, Débora de Souza de. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013.

KARAM, Maria Lúcia. Utopia transformadora e abolição do sistema penal. In: PASSETTI, Edson; SILVA, Roberto Baptista Dias da. (Orgs.). Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo: IBCCRim, 1997.

MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI: Abolição, um sonho impossível? In: PASSETTI, Edson; SILVA, Roberto Baptista Dias da. (Orgs.). Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo: IBCCRim, 1997.

MONTEIRO, Eduardo Aleixo. Direito e literatura no Brasil. Revista de Direito, Arte e Literatura.  Vol. 6, n. 1, pp.60-82, 2020. Disponível em: << file:///Users/macbookair/Downloads/6591-19596-1-PB.pdf>>.

MICHAELIS ONLINE. Utopia. Uol. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/utopia/>. Acesso em: 08.08.2021.

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ORLANDI, Eni P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 13. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2020.

PASSETTI, Edson. Ensaio sobre um abolicionismo penal. Revista Verve, v. 9, p. 83-114, 2006.

RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Madras, 2008.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba, PR: ICPC Cursos e Edições, 2014.

ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

[1] Mestranda em Direito Penal (pós-graduação stricto sensu) pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Especialista em Direito Tributário (pós-graduação lato sensu) pela UCAM (Universidade Candido Mendes). Especialista em Ciências Penais (pós-graduação lato sensu) pela UCAM (Universidade Candido Mendes). Bacharela em Direito pela UCAM (Universidade Candido Mendes). Bacharela e Licenciada em Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa – pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). ORCID: 0000-0003-2860-4933.

Enviado: Abril, 2022.

Aprovado: Abril, 2022.

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Juliana Regina de Souza Silva

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