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O Poder Vigário do Estado segundo Jacques Maritain

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CONTEÚDO

ARTIGO DE REVISÃO

LIMA, José Carlos Farias de [1], NARDI, Edson Renato [2]

LIMA, José Carlos Farias de. NARDI, Edson Renato. O Poder Vigário do Estado segundo Jacques Maritain. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 04, Vol. 05, pp. 64-75. Abril de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/jacques-maritain

RESUMO

A política continua sendo um dos temas mais atrativos e discutidos pela população, é assim hoje e foi assim também na época de Jacques Maritain que sofreu os dissabores da segunda guerra mundial, quando o estado se confundiu com a sociedade política e acreditou-se senhor de tudo e patrão do homem. A proposta de Maritain é separar o estado da sociedade política, atribuindo a cada um seu papel original, resgatando a dignidade da pessoa humana e o teocentrismo cristão. Este artigo tem como objetivo analisar o real poder que um estado democrático tem, verificando como se dá o surgimento de uma sociedade, priorizando os aspectos políticos, e analisar o papel que o estado tem em uma sociedade. Pretende-se utilizar a metodologia de revisão bibliográfica por ser o método mais adequado para o desenvolvimento do nosso trabalho. O poder do estado emana do povo, fonte originária de todas as realidades sociais, por isso o estado é revestido de poder para representar e servir a todos através da promoção da justiça, da paz social e do bem comum. A sociedade surgiu através de pequenas comunidades que somadas formaram uma nação e desta brotou a sociedade política, fruto da razão que qualificou a vida em sociedade. A sociedade política criou o estado para administrar a vida em sociedade, o bem coletivo e a justiça entre todos, evitando assim a anarquia e os sistemas totalitários de governo. Desta forma o estado assume o posto de órgão vigário do povo, isto é, servidor da sociedade. Os resultados apontam para uma sociedade política organizada, harmônica, justa e firmada no estado democrático de direito. Podemos concluir afirmando que atualmente a sociedade tomou consciência de sua soberania em relação ao estado e o submeteu a seu poder, colocando-o em seu lugar original, qual seja, servidor e vigário da sociedade.

Palavras-chave: Política, estado, sociedade, democrático, vigário.

1. INTRODUÇÃO

Sem dúvidas, a política será sempre um tema atual a ser discutido e repensado a partir de várias propostas filosóficas, sempre à luz da história. Desde a Grécia antiga, até os nossos dias, estamos nas praças discutindo a política, ideologias políticas, propostas políticas. Embora hoje esse espaço seja muito mais virtual, continuamos debatendo essa temática tão essencial para nosso presente e futuro, visto que “A sociedade política, exigida pela natureza e realizada pela razão, é a mais perfeita das sociedades temporais” (MARITAIN, 2003, p. 13). Jacques Maritain se apresenta na reflexão sobre a político com o objetivo de afastar do futuro experiências que não deram certo no passado, como: o iluminismo, o fascismo e o nazismo. Sua proposta política é de um humanismo teocêntrico e de um estado menor, que se limite à sua função administrativa e promova o bem comum. Este órgão chamado estado, por ser representante do corpo político, isto é, do povo, exerce uma função vigária, atua em nome de outrem, por isso não tem poder em si mesmo, visto que o povo é o detentor desse poder. Maritain separa com precisão o estado do corpo político, o representante do representado. O estado é a menor parte dentro do corpo político que é o todo. Todas as vezes em que o estado se confundiu com o corpo políticos, vimos o surgimento de ditaduras e sistemas totalitários, por isso ele insiste na permanente separação destas duas realidades sociais.

Minhas principais motivações, pessoais e sociais, na confecção deste artigo são as de reavivar o pensamento de Jacques Maritain e apresentá-lo a quem ainda não o conhece. A um leitor distraído, parecerá que tudo que ele diz é mais do que lógico, entretanto quando se abre o livro da história passada recente, percebe-se a importância do seu pensamento na luta contra sistemas totalitários e pela garantia dos direitos universais do homem. Jacques Maritain é um autor que nos recoloca na praça das discussões políticas, mesmo virtual, com a capacidade de dialogar com todos os autores contemporâneos, partindo sempre dos parâmetros éticos, morais e cristãos.

Para apresentar com clareza a reflexão filosófica de Jacques Maritain sobre a política, sobretudo no que diz respeito ao poder representativo, vigário, do estado em relação à sociedade política organizada, é necessário entendermos o real poder do qual o estado goza, fazer a distinção entre nação, corpo político e estado e dizer qual o seu papel em uma democracia.

Escolhemos a metodologia de revisão bibliográfica por entendermos ser o método mais adequado e prático para o desenvolvimento do nosso trabalho em detrimento da escassez de tempo. Exploraremos o máximo possível o pensamento do nosso autor com a ajuda das suas obras e de outras escritas sobre ele.

2. O PODER DO ESTADO

Inicio com uma breve verificação sobre o poder do qual goza o estado, partindo sempre de Maritain, que se estenderá por todo este artigo científico. Referente a este tema, Maritain observa em um modo muito crítico que, “o poder tende ao crescimento do poder, a máquina do poder tende continuamente a se estender; a suprema máquina legal e administrativa à autarquia burocrática, e gostaria de se considerar não como um meio, mas como um fim” (VIOTTO, 2003, p. 217).

Esta é uma visão realista de poder que tem Maritain em geral, e em particular modo daquele poder do estado que, distanciando-se da sua origem, movido por várias “heresias” políticas, reivindicou um poder que não lhe era próprio, um poder e um fim que não podia ter e esperar; e quando o estado conseguiu a posse desse poder total e se interpretou como um fim em si mesmo, então foram escritas as páginas mais amargas da história humana. A atenção de Maritain é direcionada à tendência do crescimento do poder estatal que quer sempre ir além de si mesmo e dos seus limites essenciais e chegar, através da identificação com a sociedade política, ao ponto máximo do poder que é aquele do estado totalitário.

Em um Estado totalitário, o poder de quem comanda chega ao ponto máximo, transforma-se em poder absoluto que domina cada setor da vida do homem, o público e o privado, através da ideologia ou da força bélica. O totalitarismo resume em si o ‘sim’ e o ‘não’ de cada cidadão que se encontra sob tal regime, assume o direito de decidir em um modo arbitrário sem a intervenção de ninguém, visto que nada está acima do estado. Em tal regime a sociedade civil é dissolvida e transformada em massa juntamente com todas as classes sociais que a compunham.

O totalitarismo político quer a todo custo que o estado seja a realidade absolutamente soberana da vida temporal dos homens, e também dos atos de consciência que tal vida implica – “Tudo no estado, nada contra o estado, nada fora do estado” – e quer informar sozinho, “alma na alma”, as energias da alma para a conduta da vida terrena, a única que lhe interesse (MARITAIN, 2002, p. 296-297).

O poder do qual dispõe o estado não encontra sua verdadeira origem na vontade geral, como pretendia Rousseau, mas na natureza humana guiada por Deus e habilitada para o autogoverno. Só o povo tem naturalmente o direito a autogovernar-se. Deste modo, percebe-se que o poder estatal tem sua raiz na sociedade política, que em virtude do bem comum social, cria-se uma instituição que seja capaz de administrá-lo. O homem deve ser a medida do estado e não o estado a medida do homem. Neste sentido a autoridade da qual goza o estado é uma autoridade delegada, vigaria, representativa e não uma autoridade própria, natural e permanente.

A palavra estado, que inicialmente indicava as condições de um sujeito, agora passa a indicar as condições de uma sociedade política. Quando fazermos referência a qualquer estado político, reconhecemos a existência de uma sociedade politicamente organizada. O termo estado, como conhecemos hoje, é fruto de um percurso filosófico-político que atravessou os séculos da nossa história, também de um modo implícito, como veremos com Maritain, e se concretiza em modo definitivo em Machiavel. Referente ao termo estado Maritain diz que:

Apareceu só no curso da história moderna. A noção de estado era implicitamente continuada no antigo conceito de cidade (civitas, que significava exatamente corpo político), e mais ainda no conceito romano de império, mas não foi nunca explicitamente individualizada na antiguidade (MARITAIN, 2003, p. 18).

A história da filosofia política nos ensina que o corpo político precede o estado. O estado enquanto órgão habilitado para administrar uma sociedade não existe há muito tempo, ao menos explicitamente.

Quando ‘nasceu’ o estado, em virtude daquele crescimento de poder do qual fala Maritain, verificou-se uma crescente identificação entre sociedade política e estado. Será com Hobbes que esta identificação se consolidará perfeitamente, criando uma enorme confusão no campo político. Esta identificação entre estas duas realidades diversas de um povo levou o estado ao poder absoluto e a se pensar o todo de um povo. Como exemplo de identificação-confusão entre estas duas realidades, podemos citar dos dois grandes sistemas políticos absolutos: o nazismo alemão e o fascismo italiano. Tanto Mussolini quando Hitler fizeram esta identificação entre sociedade civil e estado gerando atrocidades irreparáveis às suas nações e também a outras.

Maritain, na sua obra O homem e o Estado, fará a separação entre sociedade política e estado, tirando deste o monopólio que vigorava sobre a sociedade política, e repondo o poder sobre o povo, onde é seu justo lugar. Assim ele quebra completamente aquela identificação que foi feita por Hobbes entre sociedade política e estado. A sociedade política é para Maritain o todo de uma nação e o estado é uma parte deste todo.

O estado é só aquela parte do corpo político que tem como fim específico manter a lei, promover a prosperidade comum e a ordem pública, e administrar os afazeres públicos. O estado é uma parte especializada nos interesses do todo. Não é um homem ou um grupo de homens: é um conjunto de instituições que se combinam para formar uma máquina reguladora que ocupa o vértice da sociedade (MARITAIN, 2003, p. 18).

Maritain conduz o estado à sua origem, enquanto parte de um corpo político, e por isso vigário (representante) de um povo. Quem governa representa a sociedade civil e o faz não com seu poder pessoal, mas com o poder do povo que o elegeu. Quem governa a máquina estatal não se pode atribuir nenhum poder se este não lhe foi dado pelo povo. Então o poder que tem quem governa o estado não é seu, é do povo que lhe confiou a administração de tal máquina. O poder de um estado não provém de si mesmo, mas da sociedade política, do povo. Neste sentido, vê-se a superioridade da sociedade política em detrimento do estado. Sabido que a autoridade emana do povo é que se exigi que o estado seja democrático, porque a autoridade provém de baixo para cima. O papel do estado é unicamente aquele de organizar justamente a sociedade.

3. DISTINÇÃO ENTRE NAÇÃO, CORPO POLÍTICO E ESTADO

Antes de tudo precisa-se dizer que distinguir estas três noções políticas, que nasceram da necessidade prática, é um dever difícil, segundo nosso filósofo, mas que tem que ser feito se se quer realizar uma filosofia política justa e correta. “A confusão entre nação e sociedade política, ou entre sociedade política e estado, ou seja, a sua identificação sistemática, foi uma praga da história moderna” (MARITAIN, 2003, p. 5).

Por nação Maritain entende “… uma comunidade de homens que tomam consciência de si mesmos de como a história os fez, que são ligados ao tesouro do seu passado e que se amam como são ou como se imaginam de ser, com uma espécie de inevitável introversão” (MARITAIN, 2003, p. 9). Maritain insiste sobre o fato da cultura comum que espontaneamente se cria através dos costumes de uma comunidade, em que prevalece a obra da natureza, para depois atingir, com a tomada de consciência de ser diferente das outras comunidades, o nível de comunidade nacional.

Uma comunidade pode se transformar em uma nação através da autoconsciência das suas características e da sua particularidade, mas uma comunidade não pode se transformar em uma sociedade política, visto que a comunidade é de caráter natural, é um produto do instinto e a sociedade é de caráter racional. “… em uma comunidade prevalece a obra da natureza e é mais estreita sua ligação à ordem biológica; em uma sociedade prevalece a obra da razão em uma estreita ligação às atitudes intelectuais e espirituais do homem” (MARITAIN, 2003, p. 6). A comunidade e a sociedade são essencialmente diferentes. A nação, que é formada de uma comunidade, não pode se confundir com a sociedade política, porque enquanto caráter social, não coincide.

A nação não é uma sociedade [porque] não ultrapassa o limite da ordem política. É uma comunidade de comunidade, uma rede consciente de representações e de sentimentos comuns que a natureza humana e o instinto humano fizeram povoar entorno de um certo número de dados sociais, históricos e físicos (MARITAIN, 2003, p. 7).

A nação, como vimos, não pode pretender ser sociedade política porque é acéfala, não tem uma ordem racional interna, não goza de nenhuma estrutura jurídica sistemática que regule os indivíduos; porém, é no interior de uma nação que pode surgir uma sociedade política. A nação é o lugar próprio onde o embrião da sociedade política pode surgir, sem nunca coincidir com a nação mesma. “Não apenas ganha forma, o corpo político se distingue da comunidade nacional” (MARITAIN, 2003, p. 13).

A sociedade política que é de origem diferente e superior à nação, justamente porque é de caráter racional e não acéfala, mas estruturada juridicamente e organizada civilmente, pode gerar naturalmente novas comunidades no seu interior. De fato, no interior de uma sociedade política podem existir diversas comunidades humanas, diversos grupos, de línguas e culturas diferentes, a nação pode ser mudada culturalmente pela influência de outras culturas, mas de toda sorte a existência da comunidade nacional dependerá sempre da existência do corpo político e não o contrário. “Assim tudo que se diz de contrário ao princípio de nacionalidade, a nação depende da existência do corpo político, e não o corpo político da existência da nação” (MARITAIN, 2003, p. 10).

A nação de frente para o corpo político e para o estado é aquela parte inferior deste complexo social, porque se fundamenta sobre uma comunidade que surge dos sentimentos comuns e dos instintos humanos. O corpo político e o estado se encontram em um nível superior porque partem da sociedade que tem como característica a razão. Todavia, não podemos cometer o mesmo erro dos modernos que unificaram estas duas realidades superiores. “Na época moderna os dois termos foram utilizados como sinônimos…” (MARITAIN, 2003, p. 13). A sociedade política se diferencia do estado, porque, como vimos, é o todo de uma sociedade e o estado é apenas uma parte deste todo.

A sociedade política compreende dentro de si os vários grupos familiares com os seus direitos e os seus deveres; é o lugar em que o homem se desenvolve de muitos modos, é o lugar da multiplicidade ordenada. “A sociedade política, exigida pela natureza e realizada pela razão, é a mais perfeita das sociedades temporais” (MARITAIN, 2003, p. 13). O estado aparece como expressão da razão humana que tem a intenção de administrar com justiça o bem comum. O estado é fruto da vontade humana que quer institucionalizar os direitos e os deveres de todos. O estado é um órgão criado pela sociedade civil que está entre dois cidadãos. Por este motivo o estado pode ser chamado analogicamente de órgão vigário, isto é, aquele órgão que representa o poder do povo, aquele órgão que tem seu poder fundamentado no poder do povo e não em si mesmo. O estado é vigário do povo. O poder “o povo o possui de maneira inerente e permanente o direito de se autogovernar. E os governantes, tendo sido feitos vigários do povo e sendo sua imagem, são revestidos, por participação – nos limites dos seus poderes – daquela mesma autoridade…” (MARITAIN, 2003, p. 132).

A partir desta distinção entre sociedade política e estado se forma um novo conceito de estado como parte da sociedade política e como vigário do povo. Esta mudança que Maritain fez na filosofia política seria, seguramente, desagradável a Hobbes, Hegel e a tantos outros filósofos que sustentavam a ideia de um estado absoluto.

O estado não é a suprema encarnação da ideia, como pensava Hegel; o estado não é uma espécie de super-homem coletivo; ele não passa de um órgão habilitado a usar o poder e a coerção, e composto de técnicos e especialistas da ordem e do bem coletivo: é um instrumento a serviço do home (MARITAIN, 2003, p. 16).

Aqueles que são escolhidos pelo povo para governar possuem a autoridade em modo vicariante e não em modo próprio e natural. Aquele direito natural que o povo tem a autogovernar-se é confiado, através das eleições, aos indivíduos da sociedade política para representarem a todos e trabalhar em função do bem comum. Mesmo que o corpo político confie seu poder ao estado, não o perderá jamais em virtude da sua natureza e origem.

Maritain não entende fazer da sociedade civil um ente absoluto, visto que ela não pode se colocar acima de si mesma. Certamente o estado deve ser reconhecido enquanto um órgão revestido de poder e enquanto tal deve ser respeitado. “Não podemos nutrir aversão pela máquina do estado. Por aquilo que entendo não gosto dessa ideia. Todavia, muitas coisas que não gostamos são necessárias, não só de fato, mas também de direito” (MARITAIN, 2003, p. 23).

Maritain, em virtude daquela tendência natural ao crescimento do poder, seja do estado, seja da Igreja, seja do corpo político…, coloca no povo a responsabilidade de controlar o exercício de tal poder e o antidoto contra tal tentação.

O estado, se não é controlado pelo povo, perverte-se: “este processo de perverter-se surge quando o estado comete o erro de acreditar-se um tudo, o tudo da sociedade política; e por consequência assumir para si o exercício das funções e a execução dos deveres de responsabilidade do corpo político, e aos seus vários órgãos (VIOTTO, 2003, p. 284).

O filósofo francês constrói sua filosofia política com base na noção de pessoa humana. Ele entende a pessoa humana como uma totalidade que transcende todos os grupos e a sociedade. Enquanto indivíduo o homem é subordinado ao grupo, mas enquanto pessoa o supera. A pessoa está presa entre dois polos, espiritual e material, formando assim uma unidade total e aberta. O perfil antropológico de Maritain tem raiz sobretudo na filosofia cristã que por princípio vai contra o humanismo antropocêntrico (e ateu) que limita o homem em sua materialidade e individualidade. A tentativa filosófica de Maritain é de ressuscitar o verdadeiro humanismo que é aquele que coloca Deus no centro.

4. O PAPEL DO ESTADO

Nos parágrafos anteriores vimos como para Maritain o estado não é fim em si mesmo, mas um meio para a sociedade política que serve enquanto instrumento administrativo das tratativas públicas e como promotor do bem comum, mantendo a ordem pública e a justiça social. O estado, neste sentido, tem um valor social fundamental, porque modera a vida em sociedade, e por ser instrumento, não perde a relevância social, muito pelo contrário, é reconhecido como órgão essencial para a vida pública dos cidadãos.

Sem um órgão social dotado de poder adequadamente orientado ao serviço público social, a vida em sociedade seria caótica. Neste sentido, “a função concreta do estado – a sua função principal – é aquela de assegurar a ordem jurídica e a aplicação da lei” (MARITAIN, 2003, p. 21). A lei é aplicada pelo estado sobre todos os cidadãos com o objetivo de preservar o bem comum.

É na aplicação da justiça entre os cidadãos que o estado encontra seu verdadeiro sentido, a sua verdadeira natureza e prestígio. Mesmo que o estado seja aquela menor parte do corpo político, está presente em todas as partes do corpo como um agente que harmoniza todas as partes segundo a justiça e vigia o bem comum.

O estado tem esse grandíssimo papel dentro da sociedade política de defender o bem de todos e de colocar em prática a justiça social. Esta função do estado não lhe permite de se colocar acima da sociedade política e de se pensar o tudo da sociedade porque “o povo é a substância, a livre e viva sustância do corpo político” (MARITAIN, 2003, p. 29).

O estado se deve prestar a servir e respeitar o homem na sua totalidade, porque como vimos, o homem não é apenas matéria, mas é também espírito, não é apenas indivíduo, mas é também pessoa. O estado moderno, influenciado pelo humanismo antropocêntrico e ateu, tende a negligenciar completamente o lado espiritual do homem e considerar apenas seu lado material.

Jacques Maritain se apresenta aqui quase como um profeta da sociedade para chamar o estado a seu completo dever para com a pessoa humana e a sua dignidade. O estado se deve preocupar não apenas com o lado material humano, mas também com o lado espiritual, deve compreender o homem como um todo e não como um sujeito unicamente material. Maritain nos chama continuamente a considerar a dimensão espiritual humana eliminada pelo modernismo. Convida o homem a olhar para o alto e a olhar para dentro de si e reconhecer o primado do espiritual sobre o material “… não apenas nos fins, mas também nos meios, superando o dualismo e a dissociação entre as coisas de Deus e as coisas do mundo, e atuando as esperanças dos homens na eficácia terrena do evangelho e da razão” (VIOTTO, 2003, p. 207).

Ele denuncia a ‘exclusão’ de Deus da sociedade, realizada pelo humanismo antropocêntrico (VIOTTO, 2003, p. 206) e nos faz entender as consequências negativas. O homem sem Deus é sempre menos humano e sempre mais máquina e fechado em si mesmo; a política se separa da ética e da moral e os fins passam a justificar os meios. Maritain constata a fragilidade desse humanismo ateu e a sua incapacidade de corresponder às várias exigências humanas. É necessário um humanismo que seja integral, que contemple o homem na sua integridade humano-espiritual, e permita o “retorno” de Deus à sociedade. Este humanismo é aquele cristão capaz de reabilitar o homem em Deus.

Neste novo momento da história da cultura cristã, a criatura não seria desconhecida nem anulada diante de Deus; não seria também reabilitada sem Deus ou contra Deus; seria reabilitada em Deus. […] humanismo, mas humanismo teocêntrico, radicalizado onde o homem tem suas raízes, humanismo integral, humanismo da encarnação (MARITAIN, 2002, p. 119).

Uma verdadeira e sã política de um estado não pode ser separada da ética e da justiça “sendo a política alguma coisa de intrinsecamente moral, a primeira condição política de uma boa política é de ser justa” (MARITAIN, 2003, p. 58). A justiça de uma política é fruto de uma reta moral que parte da natureza humana e protege o homem na sua integridade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendemos com Maritain que o poder do qual goza o estado emana do povo, fonte original de todas as realidades de uma sociedade, que exerce esse poder para garantir a ordem social e a preservação do bem de todos, por isso o estado se coloca entre dois cidadãos para fazer justiça. Desta forma, o estado representa a vontade da sociedade política organizada que o instituiu e o designou para evitar a anarquia e sistemas de governo totalitários que se assemelham a monarquias, garantindo assim um estado democrático de direito republicano, capaz de acolher a pluralidade social e estabelecer paz e harmonia entre todos.

O estado se diferencia por seu caráter eminentemente racional e representativo da nação, porque esta nasce espontaneamente da aglomeração de comunidades que trocam experiências culturais entre si e formulam, com o passar do tempo, uma identidade cultural. A nação é fruto do instinto humano que nos leva a viver em comunidade para nosso fortalecimento e preservação da espécie. A comunidade política surge dentro na nação e dela se distingue por seu caráter racional e organizacional ao ponto de instituir o estado como seu principal órgão para administrar a vida social e aquilo que é de todos, isto é, os espaços e os bens públicos. Em suma, a nação é a primeira realidade social, nela surge a comunidade política que por sua vez institui o estado por necessidade da vida em comunidade.

Jacques Maritain, se estivesse vivo, ficaria muito feliz em ver o povo consciente da sua força e do seu poder, em ver o povo passando a política brasileira e mundial a limpo através do voto, fazendo escolhas livres e éticas para retirar do poder público quem se corrompeu e não administrou adequadamente o poder que recebeu para representá-lo. O povo finalmente tomou consciência da sua soberania em relação ao estado que deve exercer unicamente a função de servo do povo, porque é apenas um órgão especializado na administração da coisa pública e dentro da sociedade ocupa a menor parte da comunidade política que é o todo e o mandatário de uma sociedade. Esta é a função de um estado, promover a justiça, a paz e o bem comum de um povo. Finalmente Maritain foi ouvido, cada coisa ocupa seu lugar e desenvolve seu papel específico, o estado servindo a seu patrão que é o povo.

REFERÊNCIAS

BARS, H. Il pensiero politico di Jacques Maritain. Brescia: Morcelliana, 1965.

GALEAZZI, G. Jacques Maritain, un filosofo per il nostro tempo. Ancona: Massimo, 1997.

MARITAIN, J. La persona e il bene comune. Brescia: Morcelliana, 1998.

______. L’uomo e lo stato. Milano: Marietti, 2003.

______. I diritti dell’uomo e la legge naturale. Roma: Vita e Pensiero, 2003.

______. Umanesimo integrale. Roma: Borla, 2002.

VIOTTO, P. Introduzione a Maritain. Roma: Laterza, 2000.

______. Jacques Maritain: dizionario delle opere. Roma: Città Nuova, 2003.

[1] Graduação em Teologia. Graduação em Filosofia. Graduação em Pedagogia. Especialização em Filosofia e ensino de filosofia. Mestrado em andamento em Filosofia.

[2] Doutorado em Educação Escolar. Mestrado em Educação Escolar. Especialização em andamento em Foundations of Positive Psychology. Especialização em Logoterapia aplicada a Educação. Especialização em Violência Doméstica Contra Crianças E Adolescentes. Graduação em Filosofia. Graduação em Educação Física.

Enviado: Novembro, 2018.

Aprovado: Abril, 2020.

5/5 - (3 votes)
José Carlos Farias de Lima

8 respostas

  1. José Carlos, parabéns pelo artigo!
    Muito bem feito. Ajudou-me bastante na compreensão sobre o tema.

  2. José Carlos, o seu artigo foi bem esclarecedor e muito bem escrito na discussão política sob a ótica de Jacques Maritain. Com certeza ampliou meu conhecimento sobre o assunto. Parabéns e já aguardo os próximos artigos.

  3. José Carlos, parabéns pelo artigo! Um tema que muito precisa ler para poder entender, mas uma vez lhe parabenizo, um artigo que vc ler e entende todo o contexto, adorei.

  4. Aleisiane, obrigado pela gentileza de seu comentário e saiba que fiquei bastante feliz em ter contribuído com seu avanço cultural e acadêmico.

  5. É um texto claro, coerente e sério. Meus parabéns ao professor José Carlos!
    Genival

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