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O anel de Giges e os contornos da lava jato

RC: 147868
223
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/o-anel-de-giges

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

AITH, Marcelo Gurjão Silveira [1], IACONO, Ricardo Fanti [2], MARQUES, Oswaldo Henrique Duek [3]

AITH, Marcelo Gurjão Silveira. IACONO, Ricardo Fanti. MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. O anel de Giges e os contornos da lava jato. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 08, Vol. 04, pp. 192-202. Agosto de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/o-anel-de-giges, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/o-anel-de-giges

RESUMO

O presente artigo busca analisar o Livro II da “A República de Platão”, especialmente no que concerne ao Mito do “Anel de Giges”, que confere ao detentor o poder da invisibilidade e sua aplicação em relação aos agentes do estado responsável pela investigação e julgamento dos processos da Lava-Jato. Serão analisadas a figura de Giges em Heródoto e na República de Platão, bem como suas nuances trazidas por Eduardo Giannetti da Fonseca.

Palavras-chave: A República de Platão, O Anel de Giges, Site Intercept, Submundo da Lava Jato.

1. INTRODUÇÃO

O objetivo do presente artigo consiste em apresentar a fábula do “O Anel de Giges” no contexto do submundo da Operação Lava Jato, trazido pelo site Intercept, que descortinou o relacionamento entre o ex-Juiz Federal Sergio Moro e os integrantes da força tarefa do Ministério Público Federal de Curitiba.

Para tanto, esse artigo será decomposto em alguns capítulos. No primeiro será apresentado o tema e as suas implicações da realidade mundana. O segundo capítulo, intitulado “O Surgimento de Giges. Figura Apresentada por Heródoto”, apresenta a Giges sob a ótica de Heródoto. No terceiro capítulo, traz o Giges do Livro II da República de Platão, narra a fábula e o resultado de se possuir um anel da invisibilidade. Já no quarto capítulo, “O Homem Justo diante do Anel de Giges. Trama Escondida nos Porões da Invisibilidade da Lava Jato”, busca examinar o comportamento de autoridades públicas responsáveis por apurar e julgar fatos, que acreditando estarem invisíveis praticavam atos ilegais com escopo de condenar a qualquer custo agentes públicos e empresário da construção civil.

2. APRESENTAÇÃO DO TEMA

Em que pese “A República” de Platão tenha como enredo principal a busca do ideal de justiça e de ética, no mito (na fábula) do Anel de Giges, presente no Livro II da citada obra, tem como pano de fundo o comportamento do homem, justo ou injusto, diante da possibilidade de se tornar invisível a todas as situações da vida.

Dessa temática surge a seguinte indagação: O homem justo, podendo praticar atos imorais, como, por exemplo, seduzir e possuir a linda esposa de seu dileto vizinho, da qual nutria pensamentos libidinosos, sem que fosse surpreendido pelo esposo ou qualquer outra pessoa, permanecerá reto em seu comportamento, mantendo enclausurado seu sentimento e a libido? Ou, ainda, o homem honesto e probo, que passando por dificuldades financeiras severas, tendo a oportunidade de obter recursos financeiros ilícitos para a alimentação e sobrevivência de sua família, se manterá firme e não se apropriará desses recursos espúrios, mesmo ciente da invisibilidade da situação?

Brás Cubas, de Machado de Assis (1997), narra em suas memórias póstumas, ter encontrado uma moeda de ouro e, por não ser sua, a devolve. Todavia, Brás, passados alguns dias, encontra um embrulho misterioso e por conter elevado valor, como ninguém tinha visto a cena, cria uma justificativa (absolutamente tortuosa) para ficar com o dinheiro.

E nós, como agiríamos diante da posse de um anel da invisibilidade? Como nos comportaríamos diante da possibilidade de agirmos a nosso bel prazer sem sermos desmascarados e jogados na arena da moralidade social?

Este brevíssimo artigo, sem a pretensão de esgotar o tema, trará algumas considerações atuais e cotidianas da utilização do anel da invisibilidade, tendo como especial atenção os graves fatos relatados pelo site “intercept”, que escancarou a relação pouco ortodoxa entre o juiz (tertium genus) e os procuradores da República (parte acusatória dos processos) da Força Tarefa da Lava Jato, os quais, achando-se detentores de um anel de invisibilidade, romperam os limites constitucionais e legais de suas atribuições.

No entanto, nada poderá ser dito sem antes tratar, sumariamente por certo, da figura de Giges, quer sob os olhares de Heródoto, quer pela fala de Platão.

3. O GIGES DE PLATÃO, FIGURA MÍTICA

No Livro 2, da República de Platão, Glaucon e Adimanto, irmãos mais velhos de Platão, interagem com Sócrates e propõem a ele um exercício dialético. Para tanto, recriam a história de “Giges”, utilizando-se de uma fábula (ou mito). A narrativa, em síntese, traz a figura do camponês Giges, que ao pastorear os gados do monarca da Lídia, presencia um estranho fenômeno da natureza (“tempestade torrencial, um terremoto”) (PLATÃO, 2019, p. 359c), que acaba por rachar o solo e abrir uma enorme fenda. Dentro dessa fenda, Giges encontra um cavalo oco de bronze e ao adentrá-lo, visualiza um defunto com um anel de ouro. Toma posse desse anel e o coloca em seu dedo.

Passados alguns dias, Giges estava em uma reunião mensal dos camponeses e ao girar a parte interior do anel, constata que ficou invisível para as pessoas que estavam ao seu redor e ao girar para o outro lado tornava-se visível novamente. Diante do poder da invisibilidade, ele consegue convencer os demais camponeses a nomeá-lo representante para ir à capital da Lídia apresentar o relatório das atividades para o monarca. Chegando no palácio real, Giges, utilizando-se, novamente, da invisibilidade que o anel lhe proporcionava, seduz a rainha e a convence a matar o rei. Giges mata o rei, desposa a rainha e usurpa o poder.

Diante dessa narrativa, Glaucon faz alguns questionamentos a Sócrates sobre o comportamento daquele que tiver a posse do anel da invisibilidade: “Suponhamos, então, que dispuséssemos de dois anéis desse tipo e um deles fosse usado por um indivíduo justo e o outro por um injusto. Nessas circunstâncias, parece que ninguém seria tão incorruptível a ponto de continuar na senda da justiça e manter suas mãos longe das propriedades alheias, quando poderia apanhar impunemente tudo o que desejasse no mercado, entrar nas casas das pessoas e deitar-se com quem lhe aprouvesse, matar ou soltar da prisão quem quisesse e realizar as outras ações como alguém igual a um deus entre os seres humanos” (PLATÃO, 2019, p. 360c).

Este experimento mental proposto por Glaucon, busca provocar Sócrates sobre a reação das pessoas de posse do anel. O homem justo e o injusto teriam o mesmo comportamento frente a possibilidade de agir sem freios morais e legais por conta da impossibilidade de serem descobertos?

Glaucon e, também, seu irmão Adimanto, indagam a Sócrates por que uma pessoa dispondo do poder da invisibilidade, permaneceria justa, sendo que poderia agir impunemente e realizar todos os desejos mundanos, sem que fossem desmascaradas e expostas a sociedade. Isto é, seria crível imaginar que pessoas podendo agir a seu bel prazer, impunemente, permaneceriam inertes?

Sócrates, de forma indireta, concluiu que ao contrário da opinião da maioria e dos poetas (Homero e Hesíodo são apontados por ele), “a justiça é, em si mesma, a coisa melhor para a alma, e que esta devia praticar a justiça, sem importar as consequências, quer fosse possuidora do anel de Giges, quer não” (PLATÃO, 2019, p. 612b.).

Para chegar a essa conclusão, Sócrates não faz uma análise exclusiva do indivíduo, e defende que as provocações dos irmãos de Platão somente poderiam ser analisadas e respondidas, considerando a psique individual e a estrutura da sociedade em que a psique se forja – na fala de Giannetti: “a psique individual é uma réplica em miniatura da estrutura da sociedade” (GIANNETTI, 2020. p. 54). Desloca, portanto, a questão do plano microindividual para o macrossocial.

Além disso propõe a remodelagem da educação grega, em especial ateniense, com escopo de moldar a estrutura da psique dos jovens, de modo a garantir o bom governo da alma, isto é, a primazia absoluta da racionalidade do intelecto sobre as partes não-racionais. Sócrates chega a propor que crianças com idade inferior a dez anos sejam retiradas do convívio dos pais para não sofrerem as inflexões dos falsos valores, crenças e superstições das gerações mais velhas.

A metodologia consistia em condicionar os afetos e as motivações da alma das crianças por meio de estímulos do prazer e da dor, de modo que passassem a gostar do que prescreve o racional e odiar o que proíbe, mesmo sem ter noção do porquê. Assim, quando chegassem a maturidade saberiam enfrentar, com maestria, as situações como as postas pelos irmãos de Platão (Anel da invisibilidade).

Com efeito, tendo como fio condutor as provocações feitas por Glaucon e Adimanto, passarei a enfrentar os referidos dilemas à luz dos comportamentos contemporâneos.

4. O HOMEM JUSTO DIANTE DO ANEL DE GIGES: TRAMA ESCONDIDA NOS PORÕES DA INVISIBILIDADE DA LAVA JATO

Eduardo Giannetti da Fonseca, em obra de fôlego sobre “O anel de Giges”, aponta as seguintes questões, as quais serviram para o desenrolar desse artigo: “as pessoas são como são – propensas à ganância, à lascívia e a uma ambição desmedida de preeminência e poder – por que são assim ou por que ficam assim? Como chegaram a representar para si mesmas os interesses e os valores que se revelam quando o anel lhes faculta agir sem constrangimento do olhar alheio e medo de punição?” (GIANNETTI, 2020. p. 66-67).

Giannetti ao enfrentar a questão da estrutura da alma (o intelecto racional, a combatividade e os apetites do corpo), destaca que na “alma bem constituída cabe ao intelecto a função de governar com autoridade e sabedoria o elemento combativo (o gosto pela preeminência), seu auxiliar, e os apetites corporais (inclusive o desejo de amealhar riqueza), seus súditos” (GIANNETTI, 2020, p. 48). Destaca ainda que a “pessoa justa é aquela em cuja estrutura psíquica se afirmam os princípios da justiça nas relações internas (entre as partes da alma) e externas (com as demais pessoas)” (GIANNETTI, 2020, p. 49).

Giannetti faz, ainda, outra importante indagação: “Ser justo ou parecer justo?”. Nessa pergunta acrescento outra: O que se espera de um magistrado em suas decisões e nas conduções dos processos, que ele seja justo ou que pareça justo? Parece ser obvia a resposta: que ele seja justo em suas decisões; respeite o devido processo legal, permitindo que às partes, em igualdade de oportunidades, possam exercer o contraditório e a ampla defesa; que aja com imparcialidade e independência; que, no âmbito criminal, julgue os fatos e não o suposto autor do delito. Portanto, mesmo de posse de um anel da invisibilidade, que permitiria agir fora das regras do jogo, todos esperam que o magistrado (tal como Sócrates imaginou para o rei-filósofo) seja justo e decida com prudência e ponderação.

Foi isso que aconteceu com os envolvidos na investigação e, posteriormente, processamento e julgamento, na Operação Lava Jato? Os fatos desvelados pelo site intercept mostram o submundo da invisibilidade e da injustiça (aqui tratada como desrespeito às regras do jogo e não quanto ao mérito) que imperaram nos processos presididos pelo ex-Juiz Federal Sergio Moro.

Não há como enfrentar essa questão sem antes tecer algumas considerações sobre a dinâmica de um processo penal. Tentarei em poucas linhas fazer um apanhado geral, que facilitará a incursão sobre os fatos apresentados pelo site e as ilegalidades e imoralidades praticadas pelos envolvidos e a certeza que tinham de que jamais seriam descortinados e expostos ao mundo.

Pois bem, no processo penal, como regra, há três atores principais: juiz, ministério público e o(s) réu(s). O juiz é o tertium genus, o sujeito processual que fica equidistante das partes, preservando a paridade de armas (oportunidades) e agindo com independência e imparcialidade. O ministério público, por sua vez, como parte no processo, é o “dominus litis” nas ações penais públicas, ou seja, é o titular da ação penal, a quem compete produzir as provas que corroborem suas hipóteses acusatórias. Por fim, o(s) réu(s) são os sujeitos passivos da ação penal, que tem a faculdade de produzir provas defensivas para consubstanciar suas teses, mas não se pode olvidar que a missão de provar o alegado (autoria e materialidade, presença do dolo e culpabilidade do réu) é do órgão acusatório.

Essa dinâmica, que, repise-se, tem o magistrado como sujeito equidistante, sem poder instrutório, que age exclusivamente mediante provocação das partes, foi visceralmente vilipendiada pelo Juiz Federal que estava à frente dos processos da Operação Lava Jato.

O Supremo Tribunal Federal, HC 95.009/SP, de relatoria do Ministro Eros Grau, apontou que o “combate à criminalidade é missão típica e privativa da Administração (não do judiciário), seja através da polícia, como se lê nos incisos do artigo 144 da Constituição, quanto do Ministério Público, a quem compete, privativamente, promover a ação penal pública (artigo 129, I)” (BRASIL, 2008).

Não foi isso que ficou demonstrado ao ser aberta a “caixa de pandora” que guardava as mensagens espúrias e pouco republicanas entre Sergio Moro e os Procuradores da República de Curitiba. O acesso oficial a tais informações foi possibilitado por uma decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal que, por maioria de votos, vencido apenas o ministro Edson Fachin, autorizou, em fevereiro de 2021, à defesa do presidente Lula acessar as mensagens trocadas no aplicativo Telegram.

Até então, o ex-Juiz e os Procuradores imaginavam que estavam de posse do anel de Giges, que permitiria que agissem fora da lei e não fossem observados pelo grande público. As conversas apontam estarrecedoras ingerências do ex-juiz na instrução probatória, inclusive indicando testemunhas para serem ouvidas etc. Uma flagrante ofensa ao devido processo legal e a regra imperiosa da imparcialidade, para dizer o mínimo.

Excertos do voto do ministro Gilmar Mendes, que acompanhou o relator, descreveu com precisão cirúrgica a angústia de muitos ao lerem os descalabros supostamente cometidos pela equipe capitaneada por Deltan Dallagnol e Sergio Moro: “A extrema gravidade dos acontecimentos perpetrados exige que se confira à defesa o direito de impugnar eventuais ilegalidades processuais que se projetam como reflexo da atuação coordenada entre acusação e magistrado, o que é objeto inclusive de uma questão que está posta para decisão na Turma” (BRASIL, 2021). E segue o ministro:

Ressalta-se que, até o presente momento, a defesa do reclamante tem procedido a análise de apenas parte do material contido nos autos da operação ‘spoofing’. De uma análise perfunctória de certa de 4,6% (quatro virgula seis por cento) do material composto pelos diálogos havidos no aplicativo Telegram, porém, já é possível depreender o funcionamento de um conluio institucionalizado e perene composto pelo ex-Juiz Sérgio Moro, pelos ex-membros da Força-Tarefa da operação ‘lava jato’ e pela Polícia Federal em Curitiba. Tal conluio era articulado com o objetivo permitir a troca de informações fora dos veículos oficiais e o alinhamento do jogo processual para além dos limites legais do processo penal brasileiro. Dentre os diversos trechos que apontam para o funcionamento desse núbio espúrio entre órgão de acusação e magistrado, sobrelevam-se diálogos que demonstram que a acusação adotava estratégias sub-reptícias que prejudicavam a defesa do reclamante nos inquéritos e ações penais, ora com a aquiescência do juiz, ora sob no (sic) cumprimento de expressas ordens do magistrado.

Ademais, o ministro Gilmar compartilhou em seu voto trechos que causam náuseas até aos inimigos do presidente Lula, senão vejamos: “Em fevereiro de 2016, quando o reclamante ainda estava sendo investigado em inquérito policial, o ex-Juiz Sérgio Moro chegou a indagar ao Procurador da República Deltan Dallagnol se já havia, da parte do Ministério Público, uma “denúncia sólida o suficiente”. O procurador responde apresentando um verdadeiro resumo das razões acusatórias do MP, de modo a antecipar a apreciação do magistrado”.

Gilmar Mendes traz, ainda, a explicação que Deltan Dallagnol faz sobre a tese que o MPF de Curitiba vai usar para denunciar Lula:

Na parte do crime antecedente, colocaremos que o esquema Petrobras era um esquema partidário de compra do apoio parlamentar, como no Mensalão, mas mediante indicações políticas usadas para arrecadar propina para enriquecimento ilícito e financiamento de campanhas. O esquema era dirigido pelas lideranças partidárias, dando como exemplo JD e Pedro Correa que continuaram recebendo mesmo depois de deixarem posição. Com a saída de JD da casa civil, só se perpetuou porque havia alguém acima dele na direção. Ele tem ampla experiência partidária, sabe como coisas funcionavam, amplificada com o conhecimento do esquema mensalão, e sabia que empresas pagavam como contraprestação e não simples caixa 2. Mais uma prova de que era partidário é o destino do dinheiro da LILS e IL, para integrantes do partido. Estamos trabalhando a colaboração de Pedro Correa (…) (BRASIL, 2021).

Ora, só por esse trecho do voto do ministro Gilmar, vislumbra-se uma promiscuidade inimaginável entre um juiz (parte necessariamente imparcial no processo) e o órgão de acusação. Essas autoridades públicas brincavam com a vida de pessoas como se estivessem em um jogo de tabuleiro. E pior, mudavam as regras do jogo para ganhar sempre e a qualquer custo. Faziam isso porque imaginavam que estavam na posse do anel da invisibilidade, que jamais seriam desmascarados, que estavam imunes aos riscos de um flagrante, da reprovação social ou de uma penalidade administrativa.

Teriam agido dessa forma se tivessem imaginado que poderiam ser desmascarados por hackers? Ao menos não teriam utilizado esse expediente para trocar mensagens, possivelmente se valeriam do velho e bom diálogo pessoal. Por certo, teriam sido mais cautelosos.

Depreende-se do descortinar dessa trama envolvendo o agente imparcial da justiça e o órgão acusador, que o anel da invisibilidade, tal como apontado por Gláucon, possibilita que seu possuidor tenha poderes extraordinários, que possa agir na sorrelfa sem ser alcançado, parecendo ser justo, sendo, entretanto, absolutamente imoral. O desfecho dessa narrativa foi a anulação de inúmeros processos criminais pelo flagrante suspeição do Juiz Federal.

Antes de serem descobertos, os referidos atores atuavam como descreve Giannetti em sua obra: “A posse do talismã escancara a fantasia guardada e encolhida na alma do canalha astuto. Como borboleta a romper o casulo, emerge a figura da besta-fera”  (GIANNETTI, 2020. p. 21-22). Ou seja, agiam como bestas-feras em busca dos seus desideratos, passando por cima de tudo e de todos, como verdadeiros tiranos de togas.

5. CONCLUSÃO

Segundo Blaise Pascal, “Há duas espécies de homens: os justos, que se julgam pecadores e os pecadores que se creem justos” (PASCAL, 2020). Sendo assim, o que faríamos se tivéssemos a posse do anel de Giges? Satisfaríamos todos os nossos desejos mundanos? Buscaríamos a plenitude pessoal e profissional? Agiríamos como um homem justo e honesto, permanecendo em uma vida reta e proba, sem qualquer oscilação?

Comungo do pensamento de Giannetti, o uso do anel dependerá da pessoa que se é. Cada indivíduo é o resultado de suas circunstâncias, heranças, influências e tudo mais que o acaso e as escolhas de uma vida definem; as contingências e os temperamentos individuais, não menos que os nossos sonhos e potencialidades, fazem-nos portadores de uma subjetividade única – um universo em si mesmo – e variam ao infinito.

Será que Moro e os procuradores de Curitiba imaginavam que o recurso da invisibilidade, consistente na utilização do telegram, em tese criptografado de ponta a ponta, daria a eles a imunidade necessária para transgredirem sem risco de represálias ou sanções?

Situações como as narradas pelo intercept e muitas outras que ficam na invisibilidade, resultam em inúmeras condenações injustiças e, consequentemente, em prisões desnecessárias. Justiça somente é efetiva com juízes imparciais, que possibilitam a paridade de oportunidades e que coloquem suas ideologias de lado, para julgar os fatos e nunca a pessoa do réu, infelizmente estamos longe de alcançar esse desiderato de justiça no Brasil.

O que importa, à final, “não é parecer justo, mas sê-lo na essência da alma – aparentem ser ou não justos nossos atos aos olhos alheios” (GIANNETTI, 2020. p. 66-67).

REFERÊNCIAS

ASSIS, J. M. Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo, 1997.

BRASIL. AG.REG. NOS EMB.DECL. NO AG.REG. NO AG.REG. NA RECLAMAÇÃO 33.543 PARANÁ. Supremo Tribunal Federal. Ementa Acórdão, 2021.

BRASIL.  Supremo Tribunal Federal STF – HABEAS CORPUS: HC 95.009/SP. Plenário, 06/11/2008.

GIANNETTI, Eduardo. O Anel de Giges: uma fantasia ética – 1957. 1ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

PASCAL, Blaise. Há duas espécies de homens: os justos, que se julgam pecadores e os pecadores que se crêem justos – Pensées 1669. Citaçoes e Frases Famosa, 2020. Disponível em: <https://citacoes.in/citacoes/108072-blaise-pascal-ha-duas-especies-de-homens-os-justos-que-se-julg/>. Acesso em: 30 ago. 2023.

PLATÃO. A República (ou Da Justiça), trad., textos adicionais e notas Edson Bini. 3ª ed. São Paulo: Edipro, 2019.

[1] Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de Salamanca. Mestrando em Direito Penal pela PUC-SP. Graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-8180-7582.

[2] Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP; Graduado pela FIG-UNIMESP; Advogado Criminalista. ORCID: https://orcid.org/0009-0008-9283-4251.

[3] Orientador. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9016-4257.

Enviado: 15 de agosto, 2023.

Aprovado: 16 de agosto, 2023.

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Marcelo Gurjão Silveira Aith

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