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A perspectiva ética no segundo Wittgenstein

RC: 76663
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

DAMIANI, Ruy Sampaio [1]

DAMIANI, Ruy Sampaio. A perspectiva ética no segundo Wittgenstein. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 02, Vol. 10, pp. 87-98. Fevereiro de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/perspectiva-etica

RESUMO

A filosofia de Wittgenstein tem se evidenciado como um marco importante para discussão acadêmica hodierna com reflexo em diversificadas áreas da filosofia e com profundas implicações e desdobramentos éticos. O presente trabalho tem por objetivo analisar a perspectiva ética de seus escritos tardios, em especial àqueles que emergem de sua obra; Investigações Filosóficas. A partir dos conceitos; jogo de linguagem e forma de vida, e, com a progressiva rejeição do essencialismo, o filósofo austríaco empreendeu uma ampliação de horizontes referente às concepções de filosofia e linguagem. A justificativa para a elaboração do presente estudo encontra sua relevância na apresentação de um material claro e objetivo sobre o lugar da ética em Investigações, e, tem por resultado a conclusão em favor da plausibilidade dos discursos valorativos. Em relação aos procedimentos metodológicos, a pesquisa realizada envolveu a coleta bibliográfica, reunindo a posição de comentadores autorizados que analisaram o lugar da ética no segundo Wittgenstein.

Palavras-chave: Wittgenstein, Ética, Jogos de Linguagem.

INTRODUÇÃO

A reflexão acerca da moral sempre esteve presente no pensamento ocidental. Desde os gregos passando pelos cristãos até chegar à Modernidade, o debate moral sempre ocupou lugar de destaque no cenário filosófico.

A filosofia, desde suas origens, se preocupou com as questões concernentes ao agir humano. Como julgar corretamente ou de maneira errada uma determinada ação e que critérios devem nortear esse julgamento. No seu desenvolvimento teórico e especulativo, a filosofia foi reservando um espaço significativo à discussão ética, bem como à justificação dos enunciados morais.

O procedimento de determinação da ação correta foi variando com o passar do tempo e seguindo os padrões das correntes filosóficas. Cada escola filosófica procurou identificar a melhor forma de viver e averiguar a inteligibilidade dos princípios morais que regem a conduta humana.

O século XIX é marcado pela virada linguística que situou a linguagem no centro da especulação filosófica. Uma vez abandonado o protocolo da antiga tradição que buscava no extramundo as justificações da moralidade, um novo empreendimento filosófico se faz mister para a compreensão dos enunciados morais.

No decorrer da tradição filosófica ocidental, é possível perceber diversas formas de justificação dos enunciados morais. Cada um dos períodos do pensamento ocidental recorre a um expediente filosófico de justificação de seus respectivos postulados, e, cada um desses períodos privilegia uma disciplina como recurso de fundamentação dos enunciados morais. Durante o período clássico e o medievo a metafísica se sobrepõe como disciplina para este propósito, durante a modernidade a ênfase recai sobre a teoria do conhecimento e na contemporaneidade a filosofia da linguagem passa a figurar como horizonte de fundamentação do discurso filosófico como um todo.

A legitimação ou fundamentação dos postulados éticos não pode mais ser ancorada na revelação ou na pura razão solipsista ou em apriorismos de qualquer natureza, assim sendo, a radical contingência e a linguagem se apresentam como subsídios para a estruturação racional dos enunciados morais.

Vale ressaltar a diferença entre ética normativa e metaética antes de passar para exposição dos argumentos concernentes ao tema propriamente dito. A ética normativa versa sobre o conjunto de juízos; o que é certo, o bom, o bem, enquanto a metaética antecede a reflexão normativa para elaborar uma teoria do significado, justificação e racionalidade dos enunciados morais, aquilo que sustém, que torna inteligível o enunciado. Desta feita, a metaética apresenta-se como reflexão mais radical a respeito de um determinado enunciado moral.

Uma vez feitos os devidos esclarecimentos, cumpre salientar que o nosso objeto de investigação compreende as consequências do pensamento do segundo Wittgenstein para a metaética que, neste escrito, consideramos sinônimo de ética. Não se trata de construir um arcabouço ético-normativo a partir de seu pensamento, o que seria impraticável do ponto de vista filosófico pelos motivos que serão expostos no desenvolvimento deste artigo. Pretende-se investigar as contribuições do pensamento do filósofo austríaco, Ludwig Wittgenstein, para a metaética, especificamente do seu segundo momento filosófico, expresso de maneira substancial nas Investigações filosóficas.

Wittgenstein é um daqueles pensadores que inauguram novo tempo e dividem a história em antes e depois de seus escritos. O marco erigido pelo filósofo austríaco é radical, tornando-se indispensável no estudo da filosofia contemporânea.

A FILOSOFIA DE WITTGENSTEIN E A ÉTICA

Ludwig Wittgenstein (HUISMAN, 2004, p. 1008)[2] é um grande exponencial da filosofia analítica. Tal filosofia se pode dividir em antes e depois de seu pensamento. Pensador complexo, seminal e radical, seus escritos têm forte influência sobre toda a filosofia e diversas outras disciplinas, em especial a filosofia da linguagem. As consequências de suas teses e postulados podem ser estendidas para a reflexão ética, em especial à metaética.

Não é o objetivo deste trabalho construir uma ética wittgensteiniana. Trata-se de investigar implicações que a filosofia do segundo Wittgenstein traz para a metaética e para linguagem ética em particular.

Para lograr êxito no escopo pretendido por este escrito é preciso fazer algumas explanações acerca do pensamento do filósofo em questão, explanando, de modo geral, as diferenças entre as duas principais fases de seu pensamento. O objetivo do presente artigo consiste em empreender uma investigação das implicações éticas que se pode extrair do pensamento do segundo Wittgenstein, para tanto, não se pode prescindir de uma apresentação, ainda que em linhas gerais, de sua primeira filosofia e as diferenças que surgem em seu pensamento posterior.

A única obra publicada por Wittgenstein em vida foi o Tractatus Logico-philosophicus (GLOCK, 1998, p. 357),[3] trata-se de um livro amplamente conhecido e de suma importância para a filosofia contemporânea. Nesta obra, de forma densa e magistral, o autor expõe as relações entre lógica e filosofia, e traça os limites da linguagem.

Através de uma estilística própria, com seus aforismas elipticamente encadeados, o texto aponta para caracterização lógica da filosofia, os limites da linguagem e sua correspondência com os fatos, buscando estabelecer a estrutura essencial do mundo identificando-a com a estrutura essencial da proposição, o que aponta para a lógica com ponto de intersecção entre linguagem e mundo, o que pode ser dito e o que não pode ser dito.

O ponto gravitacional do Tractatus é a teoria lógica da linguagem e, para a sustentação deste postulado, depreende-se uma ontologia que aponta para uma essência do mundo. O objetivo central da obra em questão é a identificação de uma linguagem lógica. Pierre Hadot em sua obra; Wittgenstein e os limites da linguagem, afirma:

Qual foi o objetivo de Wittgenstein, quando compôs seu Tractatus? B. Russel, na sua Introdução ao Tractatus, diz que Wittgenstein quis determinar em quais condições uma linguagem pode ser logicamente perfeita. Algumas fórmulas da obra parecem lhe dar razão: Wittgenstein diz, por exemplo, para evitar confusões que ocupam toda a filosofia (3.324). (HADOT, 2014, p. 25).

Em outros termos, o núcleo do Tractatus consiste no pressuposto de que o mundo possui uma forma lógica (GLOCK, 1998, p. 178-179),[4] assim como a linguagem. Tal pressuposto implica na possibilidade da linguagem de representar o mundo, figurá-lo. Na perspectiva tractatiana, o objeto é uma entidade fixa, o que possibilita a teoria referencial do significado. Tal qual uma pintura representa uma paisagem, a linguagem representa a realidade fática, o que se denomina teoria pictórica (GLOCK, 1998, p. 353).[5]

A filosofia tradicional é estruturada com uma formulação sistemática de teses positivas sobre essências. Isto, para Wittgenstein, é um grande mal-entendido linguístico que será resolvido, ou de maneira mais tractatiana, dissolvido, pela adequada compreensão do funcionamento das proposições com sentido. Ainda no prefácio, diz: “[…] Portanto, é minha opinião que, no essencial, resolvi de vez os problemas.” (WITTGENSTEIN, 2017, p. 127).

Também no primeiro Wittgenstein é possível detectar esta intuição ficcionista, não mais nos moldes da tradição racionalista, mas sob outro paradigma de investigação filosófica, a saber, a perspectiva da linguagem. Na filosofia tractatiana o mundo é um emaranhado de fatos lógicos e a linguagem uma entidade fixa capaz de representá-los fidedignamente.

Tal qual um espelho, ou uma pintura, a linguagem pode representar e designar o mundo com precisão, assim sendo, o significado das palavras seria aquilo que elas se referissem e designassem na concretude do empirismo, sendo impossível ultrapassar este limite. Com efeito, ao sustentar esta posição, Wittgenstein fixa os limites da linguagem que correspondem aos limites do mundo.

Sobre este tema pontua Hadot:

Qual será “a visão correta do mundo” de que Wittgenstein fala? Resultado do ultrapassamento das proposições filosóficas, ela só pode ser a contemplação ingênua da realidade. Essa ingenuidade do olhar só pode ser obtida depois de uma libertação de todos os preconceitos, de todos os pseudoconceitos, de todos os pseudoproblemas (HADOT, 2014, p. 55).

Como já mencionado, o ponto gravitacional do Tractatus é a teoria lógica da linguagem e, para a sustentação deste postulado, depreende-se uma ontologia que aponta para uma essência do mundo e uma essência da proposição. O objetivo central da obra em questão é a identificação de uma notação lógica perfeita. Nestes termos assinala Pierre Hadot em sua obra Wittgenstein e os limites da linguagem:

Qual foi o objetivo de Wittgenstein, quando compôs seu Tractatus? B. Russel, na sua Introdução ao Tractatus, diz que Wittgenstein quis determinar em quais condições uma linguagem pode ser logicamente perfeita. Algumas fórmulas da obra parecem lhe dar razão: Wittgenstein diz, por exemplo, para evitar confusões que ocupam toda a filosofia (3.324) (HADOT, 2014, p. 25).

Em outros termos, o núcleo do Tractatus consiste no pressuposto de que o mundo possui uma forma lógica (GLOCK, 1998),[6] assim como a linguagem. Tal pressuposto implica na possibilidade da linguagem de representar o mundo, figurá-lo, representá-lo. Na perspectiva tractatiana, o objeto é uma entidade fixa o que possibilita a teoria referencial do significado. Tal qual uma pintura representa uma paisagem, a linguagem representa a realidade fática, o que se denomina teoria pictórica (GLOCK, 1998, p. 353).[7]

A proposição é uma figura (Bild) da realidade. É possível considerar que, no Tractatus, o autor se refere a uma situação semelhante ao que acontece ao se tomar uma fotografia – uma vez que esta representa a realidade, como aquilo que mostra uma situação por figura. Embora a figura e a coisa figurada sejam independentes, a essência da relação figurativa prevê a existência de alguma relação entre ambas (VALLE, 2003, p. 60).

Destarte, o Tractatus propõe uma notação da linguagem ideal. Vale salientar o contexto histórico em que está inserido o autor, e as suas influências sobre o positivismo lógico o círculo de Viena  (STEGMÜLLER, 2012, p. 259).[8] Esta incidência é notável diante do paralelismo lógico-físico que subjaz na teoria pictórica, que relaciona a identidade de estrutura entre universo físico e linguagem.

Deste modo, sendo o mundo um conjunto de fatos avaliado a partir de uma proposta lógica, que elimina toda proposição que não possua referência nos estados de coisas. O mundo são os fatos, não os objetos e fatos não possuem conteúdo valorativo. Destarte, por não serem os valores observáveis nos fatos, o discurso sobre a ética torna-se inviável, sendo este tema relegado ao silêncio, estando para além dos limites do mundo e, portanto, da linguagem. O mundo, como compreendido no Tractatus, não abarca a ética, pois não existem fatos éticos.

A pretensão de Wittgenstein é bastante grande em sua primeira fase, nada mais nada menos do que eliminar e resolver de vez os problemas filosóficos. De sua concepção essencialista decorre uma implicação puramente negativa da filosofia. “A única filosofia possível consistirá em delimitar o pensável.” (HADOT, 2014, p. 54).

O Tractatus termina com um solene silêncio do autor, para o qual é exilado o discurso ético.

As minhas proposições são elucidativas pelo facto de que aquele que as compreende as reconhece afinal como falhas de sentido quando por elas se elevou para lá delas (tem que, por assim dizer, deitar fora a escada, depois de ter subido por ela). Tem que transcender estas proposições depois vê o mundo a direito. Acerca daquilo que não se pode falar tem que se ficar em silêncio (WITTGENSTEIN, 2002b, p. 142).

O que se pode concluir é que o silêncio propugnado pelo autor ao final de sua obra autógrafa escondia muito mais elementos do que se podia captar à primeira vista. Trata-se do elementar de sua forma de encarar a vida e conceber a própria existência. Contrário à interpretação positivista, o Tractatus não está abolindo esses domínios da vida humana, mas protegendo-os (DALL’AGNOL apud PERUZZO, 2018, p. 58). Quanto à linguagem, podemos afirmar que o Tractatus propõe uma limpeza, quanto à ética pretende um reposicionamento ao seu ethos originário: a vida cotidiana.

A ÉTICA NO SEGUNDO WITTGENSTEIN

Depois da publicação do Tractatus, Wittgenstein afasta-se, por um período, da filosofia e, ao retornar, pouco a pouco desenvolveu novas ideias, que foram publicadas postumamente sob o título de Investigações filosóficas.[9] Neste ínterim ocorre o que se pode denominar de virada pragmática no pensamento do autor.

O método da operacionalização parece, à primeira vista, prolixo e ingênuo. Mas a demonstração minuciosa de Wittgenstein tem uma vantagem dupla: quando concebemos o ato de compreensão não como um processo mental, mas como um processo que funciona como uma ação prática, então reconhecemos os diferentes modos de uso das expressões e as diferentes maneiras como significados são produzidos com eles. Além disso esse exemplo deixa claro que, em jogos de linguagens simples, ações físicas práticas são assumidas pela linguagem, como na contagem, na indicação, na identificação de cores, na expressão de desejos, de modo que sua execução é supérflua (GEBAUER, 2013, p. 71-72).

Entre as duas obras, é notável uma concepção mais ampla do fenômeno linguístico em Investigações. Esta dilatação, dos limites da linguagem e do significado, é fundamental para que se possa falar em implicações éticas, uma vez que em Investigações o tema é completamente ausente.

Já no prefácio da obra encontramos algumas pistas que nos auxiliam na compreensão desta ampliação de horizontes que Wittgenstein opera nas Investigações:

Desde que comecei, pois, há dezesseis anos, a me ocupar novamente com a filosofia, tive que reconhecer graves erros naquilo que eu expusera naquele primeiro livro. Ajudou-me a reconhecer estes erros – nem eu mesmo consigo avaliar em que medida – a crítica de Frank Ramsey às minhas ideias – com quem as discuti em inúmeras conversas durante os últimos dois anos de sua vida . – Mais ainda do que esta crítica – sempre vigorosa e segura –, sou agradecido à crítica que um professor desta universidade, sr. P. Sraffa, continuamente fez aos meus pensamentos, durante muitos anos (WITTGENSTEIN, 2002a, p. 26).

O excerto citado dá um pouco do tom revisional em relação ao Tractatus que Wittgenstein pretende trazer nas Investigações. O período de transição entre as ideias expostas na sua primeira obra e as Investigações compreende os anos de 1930 em diante, quando retorna a Cambridge para dedicar-se novamente à filosofia.

Wittgenstein cita duas figuras que foram importantes para uma reformulação de seu pensamento. Merece especial destaque o economista marxista Piero Sraffa, que contribuiu para uma perspectiva marcadamente antropológica presente nas Investigacões, que será de suma relevância para uma nova concepção de linguagem e sua virada pragmática (GLOCK, 1998, p. 30).

Depois da publicação do Tractatus, Wittgenstein afasta-se, por um período, da filosofia e, ao retornar, pouco a pouco desenvolve novas ideias que foram publicadas postumamente sob o título de Investigações filosóficas. Neste ínterim ocorre o que se pode denominar de virada pragmática no pensamento do autor. Pontua Gebauer:

No entanto, o posicionamento do filósofo em relação ao mundo sofre uma alteração fundamental: enquanto no Tractatus Wittgenstein observa o mundo exclusivamente da margem, na filosofia mais tardia ele se vê como parte do mundo. Podemos até dizer que, no momento em que Wittgenstein entra no mundo, seu pensamento se modifica radicalmente, ainda que ele se atenha a muitas ideias antigas (GLOCK, 1998, p. 41).

O tema central de sua primeira filosofia, a teoria pictórica, cede espaço para uma teoria da funcionalidade, que o autor demonstra operando o conceito de jogo de linguagem (GLOCK, 1998).[10] “É principalmente quanto à concepção de linguagem que encontramos a ruptura mais explícita entre as Investigações filosóficas e o Tractatus. Nas Investigações encontramos uma concepção pragmática da linguagem” (MARCONDES, 2013, p. 104) em oposição a uma perspectiva essencialista do Tractatus. Nesta direção, lê-se nas Investigações:

Em vez de especificar o que é comum a tudo aquilo que chamamos linguagem, eu afirmo que todos estes fenômenos nada têm em comum, em virtude do qual nós utilizemos a mesma palavra para todos – mas antes que todos eles são aparentados entre si de muitas maneiras diferentes. E por causa deste parentesco ou destes parentescos chamamos a todos “linguagens” (WITTGENSTEIN, 2002a, p. 227).

Se antes, no prisma tractatiano, havia uma inclinação em apontar uma essência fixa da linguagem, agora, nas Investigações, esta perspectiva cede lugar a uma dinâmica funcionalística que, é forjada por formas de vida, sendo que o jogo de linguagem e a forma de vida se influenciam reciprocamente:

Mas quantas espécies de proposições há? Talvez asserção, pergunta e ordem? Há um numero incontável de espécies: incontáveis espécies diferentes da aplicação daquilo a que chamamos “símbolos”, “palavras”, “proposições”. E esta multiplicidade não é nada de fixo dado de uma vez por todas; mas antes novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem, como poderíamos dizer, surgem, outros envelhecem e são esquecidos (a evolução da matemática pode dar-nos uma imagem aproximada desta situação). A expressão jogo de linguagem deve aqui realçar o facto de falar uma língua é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida (WITTGENSTEIN, 2002a, p. 189).

Hadot, em sua obra A filosofia como maneira de vida, afirma que: “[…] para Wittgenstein, é a atividade, a situação que dá sentido ao que dizemos, é o contexto concreto em que uma frase é pronunciada” (HADOT, 2016, p. 168).

Os jogos obedecem a determinadas regras. Isto posto, a significação é análoga à função, esta nuance denota a virada pragmática do pensamento de Wittgenstein. Esta mudança de perspectiva permite inferir uma compreensão funcionalista da significação implicada no uso que, a seu turno, é regido por regras tacitamente acordadas pelos “jogadores”. O significado não é mais compreendido apenas nos termos da correspondência em relação aos fatos do mundo.

A polaridade entre fato e valor se sustentava no Tractatus, tomando a linguagem como representação figurativa. Nas Investigações, por sua vez, a mesma polaridade é tratada com o abandono de tal representação e a adoção da concepção de jogos de linguagem. A gênese dos jogos de linguagem coincide com a tomada de consciência da inadequação da teoria da linguagem como representação figurativa, bem como a consciência do absurdo de se adotar uma linguagem única. No advento das Investigações, Wittgenstein se dá conta de que não pode haver uma teoria uniforme da linguagem e que a linguagem, ela mesma, não é uniforme (VALLE, 2003, p. 95).

Desta feita, uma vez que o significado está desatrelado da facticidade e ligado à noção de funcionalidade, palavras de cunho valorativo podem ser tão inteligíveis e significativas quanto palavras que substituem um objeto físico. O discurso ético, além de possível, conquista um estatuto lógico-epistemológico como o das ciências. Assim afirma Wittgenstein:

§ 116. Quando os filósofos usam uma palavra – “saber”, “ser”, “objeto”, “eu”, “proposição”, “nome” – e procuram apreender a essência da coisa, deve-se sempre perguntar: essa palavra é usada de fato desse modo na linguagem em que ela existe? Nós reconduzimos as palavras do seu emprego metafísico para seu emprego cotidiano (WITTGENSTEIN, 2002, p. 72).

Neste ponto é salutar trazer a ideia da irredutibilidade dos jogos de linguagem, ou seja, o jogo de linguagem descritivo é independente do jogo de linguagem valorativo. Cada um possui um estatuto lógico-semântico próprio, que apesar de suas respectivas independências se tocam em muitos aspectos. Ainda sobre este tema, é importante salientar a não existência de uma hierarquia entre os jogos de linguagem, o que garante a validade de um discurso de cunho valorativo, sendo que este tipo de discurso não está em grau de inferioridade diante de outra forma de discurso.

Portanto, o jogo de linguagem próprio da ciência é jogado por aqueles que decidiram compartilhar as mesmas regras e que se puseram de acordo sobre aferições e justificativas.

No primeiro Wittgenstein a ética está no domínio transcendental, considerada inefável fadada ao silêncio. Contudo, no segundo Wittgenstein, apesar da ausência de um postulado ético explícito, abrem-se possibilidades para uma reabilitação da ética que pode ser expressa, falada e justificada a partir do conceito de jogo de linguagem, ganhando cidadania no reino do discurso. A ética perde seu caráter transcendental e adquire as implicações próprias do jogo de linguagem.

No quadro conceitual das Investigações filosóficas, a ética pode assumir uma forma de discurso tão significativa ou racional quanto a física, daí se pode inferir uma racionalidade do enunciado moral a partir dos desdobramentos funcionalísticos que emergem do jogo de linguagem.

Este trabalho pretende demostrar a plausibilidade do discurso ético e, sua racionalidade, no pensamento do segundo momento filosófico de Wittgenstein. O núcleo duro da filosofia do segundo Wittgenstein é o conceito de jogo de linguagem, o qual proporciona uma compreensão funcionalística de significado, ampliando os limites da linguagem e outorgando plausibilidade para o discurso valorativo, situando o discurso ético no mesmo patamar de outras formas de discurso. Assim pontua Wittgenstein:

[…] Estamos debaixo da ilusão que o peculiar, o profundo, o essencial da nossa investigação, reside no facto de ela tentar captar a essência incomparável da linguagem, isto é, a ordem que relaciona entre si os conceitos de proposição, palavra, inferência, verdade, experiência, etc. Esta ordem é uma superordem entre, por assim dizer, superconceitos. Enquanto as palavras “linguagem”, “experiência”, “mundo”, têm uma aplicação, ela tem que ser tão humilde como a das palavras “mesa”, “candeeiro”, “porta” (WITTGENSTEIN, 2002, p. 252).

O excerto acima, extraído das Investigações, permite duas conclusões, a saber: a plausibilidade da enunciação valorativa, e, a não hierarquização entre os jogos de linguagem. Uma vez que a natureza pragmática do jogo de linguagem garante a equalização racional de cada discurso, o que pode ser aplicado à ética. Nestes termos:

A polaridade entre fato e valor se sustentava no Tractatus, tomando a linguagem como representação figurativa. Nas Investigações, por sua vez, a mesma polaridade é tratada com o abandono de tal representação e a adoção da concepção de jogos de linguagem. A gênese dos jogos de linguagem coincide com a tomada de consciência da inadequação da teoria da linguagem como representação figurativa, bem como com a consciência do absurdo de se adotar uma linguagem única. No advento das Investigações, Wittgenstein se dá conta de que não pode haver uma teoria uniforme da linguagem e que a linguagem, ela mesma, não é uniforme (VALLE, 2003, p. 95).

Portanto, existe uma intencionalidade ética que perpassa toda obra de Wittgenstein. No Tractatus o silêncio e nas Investigações os jogos de linguagem que, como mencionado anteriormente, garantem a legitimidade do discurso ético.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de uma leitura do segundo Wittgenstein, cujo núcleo conceitual é o conceito de jogo de linguagem, é possível extrair implicações filosóficas que tangenciam a ética.

Primeiramente a partir da mudança de perspectiva no pensamento do pensador austríaco é possível outorgar cidadania ao discurso ético, bem como inteligibilidade e racionalidade aos enunciados morais. Se no primeiro momento de sua filosofia a ética esta alojada no domínio do inefável, no segundo momento está subsumida no conceito de jogo de linguagem.

Desta mudança de posicionamento na forma de conceber a linguagem emergem implicações sensíveis ao que se refere ao discurso ético. Esta mudança que garante a possibilidade do discurso e lhe atribui racionalidade são os pontos mais relevantes possíveis de extrair do segundo Wittgenstein para ética.

Conforme o exposto a equalização do discurso descritivo com o discurso valorativo e a consequente extinção de qualquer hierarquia entre os discursos se apresenta como uma contribuição significativa das Investigações filosóficas para ética. Vale ressaltar que esta equalização não implica que os respectivos discursos estejam sob a égide das mesmas regras, ou guiados pelas mesmas formas de justificação. Trata-se antes de jogos de linguagens que possuem o mesmo status lógico-epistemológico, que partilham de algumas regras e movimentos, mas são de natureza distinta.

Ao romper com o idealismo e com o cientificismo a partir da noção de jogo de linguagem o filósofo faz voltar atenção para as ilusões imagéticas de uma abordagem lógico-formal da linguagem.

REFERÊNCIAS

GEBAUER, Gunter. O pensamento antropológico de Wittgenstein. São Paulo: Loyola, 2013.

GLOCK, Hans. Dicionário Wittgenstein. Trad. Helena Martins. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1998.

HADOT, Pierre. Wittgenstein e os limites da linguagem. Trad. Flavio Fontanelle Loque e Loraine Oliveira. São Paulo: Editora É Realizações, 2014.

HADOT, Pierre. Filosofia como maneira de viver. Trad. Lara Christina de Malipemsa. São Paulo: É Realizações, 2016.

HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. Trad. Cláudia Berliner et al. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

MARCONDES, Danilo. Textos básicos de linguagem: de Platão a Foucault. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013.

STEGMÜLLER, Wolfgang. A filosofia contemporânea: introdução crítica. Trad. Adaury Fioreti. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

VALLE, Bortolo. Wittgenstein: a forma do silêncio e a forma da palavra. Curitiba: Champagnat, 2003.

VALLE, Bortolo. A natureza da realidade interior/exterior em Wittgenstein: breves contribuições para a filosofia da mente. In: CANDIOTTO, Cesar (org.). Mente, cognição, linguagem. Curitiba: Champagnat, 2008. p. 32.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. M. S. Lourenço. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002a.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Trad. M. S. Lourenço. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002b.

APÊNDICE – REFERÊNCIAS DE NOTA DE RODAPÉ

2. Filósofo austríaco, nascido em Viena em 1889, em 1939 adotou a nacionalidade inglesa. De família de posses. Estudou engenharia em Berlim. Em 1911 deu início a seus estudos filosóficos em Cambridge. Alistou-se como soldado do exército austríaco em 1914. Desinteressado pelos bens materiais renuncia a sua herança após a morte do pai em 1919 e assume um posto de professor numa escola primária na Baixa Áustria.

3. O Tractatus logico-philosophicus foi a única obra publica em vida por Wittgenstein, corresponde a seu primeiro momento filosófico em que o autor estava sob forte influência do logicismo de Frage e Russel. A obra se divide em quatro partes, a teoria lógica (1912-1914), a teoria pictórica (1914), discussão sobre a ciência e matemática (1915-1917) e a discussão sobre o místico (1916-1917).

4. A forma lógica de uma proposição é sua estrutura tal como parafraseada na lógica formal, com o objetivo de revelar os aspectos relevantes para a validade dos argumentos em que ocorre. O alvo de Wittgenstein aqui era a ideia compartilhada por Russel e Frege, de que os signos lógicos são entidades arcanas que constituem os objetos de interesse da lógica.

5. A representação proposicional é uma figuração da realidade, descrevendo um estado de coisas e afigurando-o (TLP 4.016-4.021). O sentido de uma proposição é o estado de coisas que afigura.

6. A forma lógica de uma proposição é sua estrutura tal como parafraseada na lógica formal, com o objetivo de revelar os aspectos relevantes para a validade dos argumentos em que ocorre. O alvo de Wittgenstein aqui era a ideia compartilhada por Russel e Frege, de que os signos lógicos são entidades arcanas que constituem os objetos de interesse da lógica.

7. A representação proposicional é uma figuração da realidade, descrevendo um estado de coisas e afigurando-o. (TLP 4.016-4.021). O sentido de uma proposição é o estado de coisas que afigura.

8. O círculo de Viena foi um dos mais importantes acontecimentos da filosofia contemporânea. Compreende uma redução total da filosofia à análise da linguagem. Pontua que todos os enunciados metafísicos são desprovidos de sentido uma vez que não são passíveis de verificação empírica. O movimento identificava questões teórico-científicas como uma postura filosófica radicalmente positivista. Seu membro mais notável foi Rudolf Carnap (1891-1970).

9. Investigações filosóficas; iniciadas em 1936 e, concluídas, se é que se pode dizer isso, em 1945, mas publicadas apenas postumamente é a suma filosófica do segundo Wittgenstein, cujo ponto central é o conceito de jogos de linguagem.

10. Wittgenstein passa a comparar sistemas axiomáticos a um jogo de xadrez. O ponto de partida desta analogia é que a linguagem é uma atividade guiada por regras. Assim como um jogo, a linguagem possui regras constitutivas, as regras da gramática. O significado de uma palavra não é um objeto do qual ela é um sucedâneo, sendo antes determinado pelas regras que governam seu funcionamento.

[1] Mestrando em Filosofia Universidade do Vale dos Sinos UNISSINOS, especialista em Ética Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUC-PR, Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia São Luiz de Brusque, Licenciado em História pela Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL.

Enviado: Fevereiro, 2021.

Aprovado: Fevereiro, 2021.

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Ruy Sampaio Damiani

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