REVISTACIENTIFICAMULTIDISCIPLINARNUCLEODOCONHECIMENTO

Revista Científica Multidisciplinar

Pesquisar nos:
Filter by Categorias
Administração
Administração Naval
Agronomia
Arquitetura
Arte
Biologia
Ciência da Computação
Ciência da Religião
Ciências Aeronáuticas
Ciências Sociais
Comunicação
Contabilidade
Educação
Educação Física
Engenharia Agrícola
Engenharia Ambiental
Engenharia Civil
Engenharia da Computação
Engenharia de Produção
Engenharia Elétrica
Engenharia Mecânica
Engenharia Química
Ética
Filosofia
Física
Gastronomia
Geografia
História
Lei
Letras
Literatura
Marketing
Matemática
Meio Ambiente
Meteorologia
Nutrição
Odontologia
Pedagogia
Psicologia
Química
Saúde
Sem categoria
Sociologia
Tecnologia
Teologia
Turismo
Veterinária
Zootecnia
Pesquisar por:
Selecionar todos
Autores
Palavras-Chave
Comentários
Anexos / Arquivos

Sociedade e educação: um olhar sociológico da formação cidadã

RC: 33741
358
5/5 - (3 votes)
DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/sociedade-e-educacao

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

TIRELLO, Márcia Moreira [1]

TIRELLO, Márcia Moreira. Sociedade e educação: um olhar sociológico da formação cidadã. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 04, Ed. 07, Vol. 04, pp. 81-94. Julho de 2019. ISSN: 2448-0959

RESUMO

O presente artigo analisa a formação do ser humano através de um olhar sociológico que relaciona interatividade cidadã, relações interpessoais, criticidade com a qualidade da educação que uma sociedade produz. Para fundamentar essa análise, aborda o contexto histórico do surgimento da Sociologia e o relaciona com o Positivismo e suas contribuições na estruturação da sociedade da época. Nessa reflexão sobre o surgimento da Sociologia e suas influências na organização da prática pedagógica, traça um paralelo entre dois autores reconhecidos nessa área: o clássico Émile Durkheim e Pierre Bourdieu, um dos destaques do Século XX. O primeiro participa da consolidação da Sociologia no campo científico e afirma que a mesma estuda as várias formas de socialização e integração dos indivíduos, através da educação; o segundo, que introduziu uma síntese teórica entre o modelo durkheiminiano e o estruturalismo, afirma que as teorias pedagógicas, na verdade, são um disfarce para ocultar o poder reprodutor do sistema, que está nas mãos das instituições educadoras.

Palavras-chave: Ordem social, fatos sociais, sociologia da educação, poder reprodutor do sistema social.

INTRODUÇÃO

Criticidade e cidadania parecem ser as palavras da atualidade. Quanto mais os atores sociais conseguem indagar as razões e consequências de seus atos, mais conseguem interferir nas decisões e rumos da sociedade. Mas não nascemos seres críticos por excelência, essa é uma habilidade que precisa ser estimulada, cultivada e, principalmente, exercitada. Parece claro que a mesma está intrinsicamente relacionada à uma prática educativa que vá além do domínio de conteúdos isolados, uma vez que as interações linguísticas, sociais, culturais e comportamentais que permeiam o processo ensino-aprendizagem são fatores determinantes na estruturação geral do ser humano.

Mas, para entender como o exercício da criticidade e cidadania está relacionado com a qualidade da educação que um povo tem, primeiro é necessário questionar como os seres humanos constroem suas interações sociais e se relacionam com seus objetivos sociais, políticos, econômicos, culturais e, consequentemente, falar sobre Sociologia e alguns pressupostos teóricos e metodológicos utilizados por essa ciência na análise dos fenômenos sociais.

Os grupos sociais se organizam de formas diversas; as regras, que geralmente norteiam os valores morais, crenças, religião, entre outros aspectos, não são estabelecidas pela ação de um indivíduo, são muitas vezes construídas na convivência comum , de acordo com as necessidades que têm, sendo também fruto daquilo que as gerações anteriores construíram e exprimem as suas necessidades (DURKHEIM, 1995).

Tecer um olhar sociológico sobre a educação, exige indagar, mesmo que superficialmente, pois somente essa definição já constituiria tema de outra pesquisa, o que é a sociologia e a sua relação com uma prática educativa que objetive ações reflexivas e transformadoras. Pode-se inicialmente entender a sociologia como o estudo da vida social humana e suas relações interpessoais, que inserem o indivíduo em associações, grupos e instituições sociais. Existem outras ciências que tratam de questões específicas da sociedade, como a psicologia que observa o indivíduo social em sua singularidade, mas a sociologia lança uma análise de como os indivíduos sociais se integram e interagem em grupos e, de que forma são influenciados pelas forças históricas e sociais (DURKHEIM, 1955).

O surgimento da sociologia está relacionado às transformações econômicas, políticas e culturais do Século XVIII, tais como a revolução industrial, a revolução francesa e o fortalecimento da sociedade capitalista; vale ressaltar que o regime capitalista teve início na Inglaterra antes da França, porém é a partir desses eventos citados que a necessidade de um olhar racionalmente social passa a ser primordial. O pensamento capitalista principalmente, ao transformar massas humanas em trabalhadores assalariados, impulsiona novas formas de organização social. Crescimento de cidades, concentração de capital pela burguesia, introdução de mulheres e crianças no mercado de trabalho, entre outros fatores característicos do referido contexto, trazem problemas sociais totalmente diferentes dos existentes até então no Feudalismo.

Nessa nova perspectiva social ocorre o avanço do pensamento científico: o método de observação e experimentação apresenta outras formas de analisar as novidades que a sociedade daquele período passa a ter e as questões relacionadas aos seres humanos deixam de ser parte apenas do senso comum e resultam na constituição de um saber científico. O uso da razão, como ferramenta na construção do progresso e o emprego da mesma como pensamento divergente do autoritarismo, marca o binário divergente do Iluminismo. A razão e a autoridade, simbolicamente representadas respectivamente pela luz e pela treva, constituíram a base das discussões filosóficas e sociais. Inicialmente, os estudiosos imaginavam poder explicar os fenômenos sociais utilizando uma lógica de deduções exatas, parecidas com as utilizadas nas ciências naturais como a física, que mais ou menos nesse período também mudavam o paradigma ou o referencial teórico utilizado até então (COMTE, 1988).

Nesse momento histórico, as preocupações com o ser humano e suas diversas formas de viver em grupo exigiram atenção de uma nova ciência que abarcasse essas questões. Quanto a essa diferente forma de pensamento que seria construída, obteve o nome de Fisiologia Social, que colocava o pensamento positivista na categoria de ciência, valorando a intervenção humana com seu caráter mediador e provocador de novas realidades. Nesse sentido, um socialista utópico, Saint-Simon[2], pregava a divisão do trabalho, juntamente com a propriedade, como pilares sociais. Ele acreditava que “a base da sociedade é a produção material, a divisão de trabalho e a propriedade. Defendia “uma ciência social positiva que revelaria as leis do desenvolvimento da história permitindo uma organização racional da sociedade” (BINETTI, op.cit. p. 605).

Derivada dessa corrente denominada Fisiologia Social, surge assim a sociologia, embora a mesma só se consolide enquanto ciência mais tarde com as reflexões de Émile Durkheim. Pode-se inferir que a sociologia descende da Filosofia social construída pelos gregos e pelos iluministas do Séc. XVIII, e paralelamente, exige uma metodologia científica de atuação. Para a sociologia, não importa ou interessa fatos isolados ou individuais, uma vez que essa ciência preocupa-se com os fenômenos sociais gerais. Dessa forma, o suicídio de um ser humano, mesmo que famoso, não seria objeto de estudo da mesma, e sim a crescente estatística de suicídios de uma determinada comunidade.

Predominantemente indutiva, a sociologia sistematiza casos individuais para generalizar questões sociais e, por ser ciência, prima pela neutralidade valorativa, ou seja, julgar o bem e o mal, o certo e o errado, o aceitável e o inaceitável, não é objetivo dos profissionais dessa área; não se trata de classificar como a sociedade deve ser e sim explicar como ela de fato está organizada. Augusto Comte, considerado o pai da sociologia, buscando respostas científicas para alguns questionamentos, tais como o que é ordem social ou como a mesma se transforma, propõe uma reforma intelectual do homem com bases positivistas, onde os estudos científicos superassem os literários. Nessa visão, a referida reforma deveria perpassar pela educação sistematizada, abolindo as características teológicas jesuíticas, valorizando assim a hierarquia e classificando a ordem e a disciplina como pilares educacionais. O compromisso de valorizar as características altruístas do ser humano é uma responsabilidade da escola para Comte. O empirismo era a principal base do Positivismo, sendo a observação e análise dos processos mentais considerados dados não científicos e portanto, sem valor para os positivistas (COMTE, 1988).

Na verdade, o método positivista encontrou, em certa medida, condições culturais favoráveis para seu desenvolvimento não apenas na Europa, mas também em países de menor tradição cultural e carentes de ideologia para seus anseios de desenvolvimento, como ocorreu na América do Sul e sobretudo no Brasil (GIANOTTI; LEMOS, 1988)

DESENVOLVIMENTO

Pensar na consolidação da Sociologia como ciência, com definição de teoria e método é, inevitavelmente, abordar as contribuições que Émile Durkheim deixou nesse campo. Para ele, a atividade moral de uma sociedade é o caminho para a construção e sustentação da mesma. Nesse sentido, o tecer interpessoal da individualidade comportamental de diversas gerações seriam a matéria-prima da formação de determinadas regularidades do fazer social, que são analisadas pela ciência inicialmente chamada de Física social, semente básica da formação da sociologia tal como se apresenta atualmente.

O funcionamento, dentro de uma perspectiva de ordem, das instituições ou organismos sociais são o alicerce da harmonia e do progresso para esse autor francês discípulo de Comte, que entende principalmente a família, a escola e a religião como os primeiros responsáveis pelo satisfatório andamento do todo social.

Émile Durkheim, nascido em Epinal, na Alsácia, era descendente de uma família de rabinos, estudou Filosofia na Escola Superior de Paris e terminou seus estudos na Alemanha. Enquanto lecionava, reuniu um grupo de cientistas que ficou conhecido como A Escola Sociológica Francesa. Foi um dos autores clássicos que institucionalizou a sociologia como disciplina acadêmica, com definição rigorosa de teoria e método. Para ele, as consciências individuais constituem as civilizações. Essas seriam o resultado da ação dos homens ao longo do tempo, onde a individualidade moral de cada indivíduo integrada mutuamente à do outro indivíduo, formam um organismo, ou corpo social, cuja harmonia depende da existência de determinadas leis ou regras. Surge aí o conceito de Fato Social, uma das palavras-chave na produção desse estudioso.

Na teoria Durkheniana, esse funcionamento harmonioso da sociedade fica por conta das instituições educativas, que com suas leis e regras, determinariam as formas de pensar, agir e construir o convívio social e, a Sociologia, a ciência que estuda as várias formas de socialização e integração dos indivíduos de uma mesma sociedade. Para ele não existe homem sem sociedade, pois o homem é um ser essencialmente social, pensamento conhecido como o primado da sociedade sobre o indivíduo.

A educação é a ação exercida pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objetivo suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destina. (DURKHEIM, 1978, p. 41)

Não se forma então uma sociedade apenas pela soma de indivíduos e sim pela combinação de consciências individuais que resultam na consciência coletiva, com realidade e características específicas, que forma a exterioridade do ser social. Em 1895, com a obra As Regras do Método Sociológico (DURKHEIM, 1995), Durkheim define Fato Social como uma realidade independente, exterior e preexistente ao indivíduo. Ele acreditava que os acontecimentos sociais poderiam ser analisados como coisas (objetos) e propôs regras para análise dessas coisas, fenômenos ou fatos sociais.

As principais características dos Fatos Sociais estão relacionadas a coletividade (o fenômeno é comum a muitos elementos de um grupo), é exterior ao indivíduo (acontece independente da vontade individual) e coercitivo (o comportamento é preestabelecido pelo grupo). Não está na mão de um ser humano a escolha de qual língua materna utilizará ou quais as regras mediarão a sua existência em sociedade , uma vez que esses e outros fatores são determinados pelo local ou sociedade em que nasce, existindo então uma coerção social que, se não determina totalmente, no mínimo influencia grandemente a consciência e ação individual, que por sua vez compõe a coletividade.

Nesse raciocínio, a existência de uma coerção social resultaria na existência de sanções, legais ou espontâneas, para punir àqueles que contrariassem as regras da consciência coletiva. Essas punições podem ser de ordem jurídica ou espontânea, ou seja, legalmente instituída ou socialmente cobrada através da exposição ao ridículo. Esse mecanismo disciplinar, também existente e promovido pela escola enquanto instituição educacional, objetiva garantir o sentido da ordem, da lei e do dever presentes em uma determinada sociedade, que deve aplicar sanções às condutas indesejáveis pela moral vigente daquela comunidade.

Segundo Durkheim (1955), a sociedade é um sistema de tecido solidário e os conflitos existentes em toda sociedade seriam apenas anomalias dessa solidariedade, que se apresenta basicamente em dois tipos, a mecânica e a orgânica. A mecânica ocorre quando os indivíduos se aproximam por semelhança de sentimentos e valores sagrados. Nessa constituição, os seres sociais não se diferenciam muito uns dos outros e a consciência coletiva construída é muito próxima da individual. Já na solidariedade orgânica, há muitas divergências de consciências individuais e o que promove a unidade é o consenso. Nessa última, os seres sociais agem com maior autonomia de ação e liberdade de expressão e crenças.

Na sociologia durkheimiana, não há homem sem sociedade; o indivíduo nasce da sociedade e não esta do indivíduo. Esse seria um dos mais importantes princípios desse sociólogo clássico, que também se preocupou em analisar “a educação como um fenômeno eminentemente social”. Por reconhecer que a sociedade é composta por indivíduos em processo de socialização, o mesmo destaca a importância simbólica das instituições socializadoras, como a escola. Durkheim se destaca pela relevância dada à educação na organização social. Nesse sentido, Durkheim afirma que:

A Sociologia da educação é uma forma de conhecimento diferente daquele que produz as teorias pedagógicas exatamente porque essas últimas, “por vezes”, distinguem-se das práticas em uso, a ponto de se oporem a elas francamente (1955, p. 57).

A educação é um fato social que não deve ser entendida isoladamente de outras práticas sociais e está diretamente relacionada com as necessidades de um tempo e de um lugar específicos. Portanto, é guiada pela coletividade, que impõe a necessidade do domínio de determinadas habilidades necessárias e comuns ao grupo que o ser social pertence. Depois da família, a escola é a instituição pedagógica mais atuante na coletividade. Nesse contexto, um dos papeis do professor é revelar à criança as regras sociais.

Basta observar a maneira como são educadas as crianças. Quando se observam os fatos tais como são e tais como sempre foram, salta aos olhos que toda educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente (DURKHEIM, 2007, p. 06).

Vale ressaltar aqui que não se pode confundir o papel da Pedagogia e da Sociologia no que tange à educação, pois aquela se ocupa com os planos de educação e o processo ensino-aprendizagem, enquanto está, como ciência, pode melhor entender a constituição das instituições pedagógicas e se ocupar, portanto, com a melhoria do resultado dessas instituições (DURKHEIM, 1978).

Embora adepto de uma educação tradicionalista, Durekheim (1955) determinou restrições para garantir a liberdade da consciência. Para ele, a educação não pode estar baseada nos interesses individuais e deve ter uma perspectiva funcionalista, pois atua como elemento mantenedor da vida social, pois sem a sociedade os instintos mais primários do homem o dominariam. Em outras palavras, é a sociedade que suscita no ser humano sua mais plena humanidade e sem o convívio social, o homem só consideraria os seus próprios interesses e objetivos individuais, descaracterizando assim a sua essência de “ser social”.

Por ter a educação uma importância tão grande na organização da sociedade, a mesma não deve ficar a cargo de instituições particulares, o Estado deve ser responsável pela mesma. Para garantir a harmonia e a funcionalidade da sociedade, a educação deve ser submetida à influência do Estado que deve “necessariamente monopolizar o ensino” (DURKHEIM, 1955, p.48).

Se fizermos um paralelo entre a concepção sociológica da educação de Durkheim e os questionamentos sobre a mesma do Século XX, podemos encontrar semelhanças e diferenças. Alguns estudiosos se ocuparam dessa tarefa, e um dos destaques, que se baseia nos estudos e produções de Durkheim, embora nunca tenha se reconhecido como um durkheimiano, é Pierre Bourdieu, outro sociólogo francês que afirma “ ser possível pensar como Marx contra Marx e com Durkheim contra Durkheim, e também, é claro, com Marx e Durkheim contra Weber, e vice-versa. É assim que funciona a ciência” (Bourdieu, 1990, p. 65-66).

Pierre Bourdieu nasceu na França em 1930. Graduado em Filosofia, depois de servir na Argélia como militar filiou-se ao Centro Europeu de Sociologia. Autor de inúmeros livros e artigos, propôs a criação de uma “sociologia da sociologia”. Representava um símbolo de repúdio à globalização cultural e econômica, além de admitir uma postura de extrema resistência contra as privatizações na França, seu país de origem. Claramente contrário à política neoliberal, criticou fortemente a produção dos meios de comunicação em geral, que chamava de “lixo cultural”. Morreu em 2002, mas permanece alvo de pesquisa de muitos sociólogos e pesquisadores da atualidade.

Uma das principais preocupações convergentes entre a obra de Durkheim e Bourdieu, não esquecendo as óbvias diferenças existentes entre as sociedades analisadas pelos dois, determinadas especialmente pela distância temporal e os avanços que a mesma promove na organização social (Bourdieu se apresenta no contexto intelectual francês quatro décadas após a morte de Durkheim), se refere ao fato da educação, e suas implicações sociológicas, ser um dos principais elos entre o indivíduo e a sociedade.

O primeiro acredita que a integração do indivíduo e a ordem social são promovidas pela educação à medida que a mesma trabalha o espírito de disciplina, a autonomia da vontade e a necessidade de adesão aos grupos sociais; enquanto para o segundo sociólogo, a subjetividade e as diferenças que a classe social a que pertence o indivíduo impõem e permeiam o processo educacional fortemente.

Bourdieu introduziu uma síntese teórica entre o modelo durkheimiano e o estruturalismo, o que era uma antiga ambição de Durkheim, que serviu de base e ofereceu os métodos fundamentais para a construção de uma sociologia da educação muito influente ao longo de século XX. Discutindo os esquemas reprodutores, Bourdieu, na primeira fase de sua produção, por volta da década de 1960, viu os sujeitos sociais como uma espécie de marionetes das estruturas dominantes. Para esse sociólogo, o estruturalismo permite demonstrar como os indivíduos, em sua ação, apenas reproduzem as orientações determinadas pela estrutura social vigente.

Em sua obra Os Herdeiros (1970), Bourdieu considera as teorias pedagógicas uma verdadeira cortina de fumaça que confunde a sociedade e serve, primeiramente, para ocultar o poder reprodutor do sistema que está nas mãos dos educadores. O principal tema presente nesse livro é a relação entre a educação, a subjetividade e as diferenciações sociais existentes.

Segundo ele, o êxito escolar é influenciado pela origem social e subjetividades que a mesma apresenta. Traçando um paralelo dessa afirmação com a realidade atual, pode=se observar, já na educação infantil, a diferença entre crianças que vivem em lares instigadores de leitura e os que convivem com pais que não são leitores e não valorizam essa prática .O gosto pela leitura, pela investigação e pesquisa devem ser estimulados muito cedo na família, que é a primeira instituição educadora com a qual a criança tem contato. Para Bourdieu, certos “habitus de classes” e “estilos de vidas” podem ajudar indivíduos cujas famílias são detentoras de grande capital cultural.

Esse pensador francês defende a teoria de que a educação é o principal veículo de desigualdades sociais e econômicas. Ele critica fortemente o Funcionalismo, teoria que relaciona muito intimamente a escolarização e igualdade de oportunidades, numa perspectiva onde os indivíduos, cuja origem fosse os extratos sociais mais modestos, eram prejudicados, colocando assim a educação como ferramenta de reprodução da dominação de determinadas classes sobre outras classes sociais.

A análise sobre a neutralidade que a escola deve apresentar, assim como dos jogos sociais de dominação que perpassam pelo fazer pedagógico escolar, não é uma novidade no campo da sociológica, pois vários pensadores empreenderam estudos sobre a educação, porém essa análise só se concretizou efetivamente com as pesquisas de Bourdieu, que resulta na afirmativa de que a escola é uma instituição que produz uma intensa reprodução de valores e de sistemas de dominação, isso aproximadamente no início do Século XX. Embora causando divergência entre estudiosos, as conclusões pessimistas dele com relação à estrutura da educação vigente da época ainda são fonte de pesquisadores da atualidade.

Um dos pontos, que apresenta essa carga pessimista, é a importância e influência que as desigualdades sociais alcançam na sala de aula. Avesso à globalização e ao poder da mídia, Bourdieu acredita que a escola deveria ter uma função transformadora, principalmente no que diz respeito ao futuro dos alunos de classes desfavorecidas socialmente; mas afirma que essa função é distorcida à medida que reforça as desigualdades sociais através da prática pedagógica diária, excludente por sua própria natureza.

A compreensão do universo social na obra de Bourdieu está centrada na existência de preceitos básicos que interferem na mediação do agente social e a sociedade, sendo eles hábitus, Campo e Espaço Social. A genealogia do primeiro termo está no pensamento de Aristóteles e se refere à virtude que apresenta um caráter moral aos nossos sentimentos e desejos; para Bourdieu, habitus é um conceito que se refere à adoção de determinadas estruturas sociais pelo cidadão, em sua ação individual, que mesmo sendo inconsciente na maioria das vezes, influencia no agir, pensar e sentir dos seres sociais. Segundo esse francês a noção de habitus é

Uma espécie de máquina transformadora que faz com que nós reproduzamos as condições sociais de nossa própria produção, mas que de uma maneira relativamente imprevisível, de uma maneira tal que não se pode passar simplesmente e mecanicamente do conhecimento das condições de produção ao conhecimento do produto (BOURDIEU, 1983, p.105).

A produção simbólica, presente e resultado do fazer social em várias áreas da produção do conhecimento e interação humanos, disfarça a aceitação dos sistemas hierárquicos, construindo engrenagens sociais com caráter conservador, sem que todos os indivíduos envolvidos nesses processos sociais se dêm conta do quanto estão sendo dominados ou influenciados a reproduzir esse pensamento dominador.

Trazendo essa discussão para a sala de aula, ainda hoje é comum alguns alunos serem discriminados ou serem obrigados a uma atitude de segregação simplesmente por apresentar, em algum aspecto sociocultural, diferenças do comportamento considerado “modelo” pela classe dominante. Como exemplo, pode-se observar a desqualificação das produções textuais escritas dos alunos, quando as mesmas são estruturadas em forma de funk ou raps, tipos musicais considerados representantes de grupos oriundos de favelas e comunidades carentes.

A linguagem funciona como uma das ferramentas mais eficazes nesse processo de dominação disfarçado. A diversidade , característica própria e intrínseca da linguagem, representa, no contexto escolar e também externo à ele, um dos primeiros fatores de classificação social, de aceitação e valorização de quem sabe utilizá-la de acordo com a “gramática normativa”, que é a oficialmente utilizada pela classe dominante e por aqueles que sistematizam o conhecimento formal.

O segundo conceito pilar da análise sociológica de Bourdieu é o de Campo, utilizado na luta pela detenção do poder simbólico em várias áreas, produzindo e confirmando significados aceitáveis pelo senso comum. Por exemplo, no campo da Arte, a luta simbólica tenta classificar o que pode ser classificado como popular ou erudito e através dessa classificação são construídos os parâmetros de valorização e, consequentemente, de aceitação social. Esses Campos podem estar relacionados às construções culturais, sociais e econômicas. As relações interpessoais, por exemplo, compõem o capital social de um grupo, assim como a educação é alicerce do capital cultural.

Os fatores econômicos da sociedade não representam a ênfase central das discussões e análises de Bourdieu; o mesmo criou o conceito de “violência simbólica” para tratar da dominação que certas classes sociais exercem sobre outras. Segundo ele, essa dominação simbólica se traduz nas relações interpessoais que os sujeitos constroem diariamente e, a escola representa um dos ambientes onde a mesma é mais palpável, pois ela legitima a transformação da herança econômica em herança cultural.

A “bagagem cultural” que os alunos nascidos nas classes dominantes trazem para o ambiente escolar, por inúmeras vezes, é vista como um diferencial positivo , ajudando a concretizar a ideia inadequada de que o não avanço ou insucesso educacional é próprio daqueles que não recebem essa “herança cultural”; esse equívoco quase sempre resulta na diminuição do esforço, tanto do aluno quanto da família, em continuar investindo na educação formal, reproduzindo cada vez mais as desigualdades sociais.

Por fim, Bourdieu afirma que o espaço social nos remete ao lugar da coexistência de posições sociais. Também compara o espaço social ao geográfico, desenvolvendo a ideia de que a existência de propriedades em comum é influenciada pela proximidade, ou seja, quanto mais perto ou mais longe geograficamente estiverem os grupos ou instituições, terão respectivamente mais ou menos propriedades em comum. Ele diz que

Quaisquer divisões e distinções no espaço social (alto\baixo-esquerda\direita etc.) se exprimem real e simbolicamente no espaço físico apropriado como espaço social reificado por exemplo, na oposição entre bairros elegantes e os subúrbios e bairros populares (BOURDIEU, 1998, p. 164).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através dessa breve análise, pode-se entender que a educação exerce grande influência sobre os indivíduos, à medida que medeia a estruturação do ser social e, consequentemente, a organização da sociedade. Seria impossível compreender essa importância sem lançar um olhar sociológico sobre como as regras sociais se configuram historicamente, daí a relevância de conhecer o surgimento da sociologia e o legado de dois reconhecidos autores desse campo, Durkheim e Bourdieu.

Um dos principais legados das amplas reflexões que Durkheim e Bourdieu fizeram é a compreensão de que o indivíduo nasce da sociedade e que portanto, os processos de socialização dos indivíduos perpassa pelo processo educacional, seja ele no âmbito escolar ou familiar.

Após refletir sobre de que maneira as relações interpessoais constituem os jogos de dominação e poder e de que forma as regras sociais do ontem refletem na vida das futuras gerações, conclui-se que a educação é fundamental para que a sociedade funcione de forma coesa. O objetivo maior dessa ação, quer seja realizada pela família, escola ou outra instituição social, deve ser a solidificação de uma coletividade estruturada e embasada no respeito mútuo e na igualdade de direitos e deveres para todos os cidadãos.

REFERÊNCIAS

BINETTI, Saffo Testoni. Iluminismo. In:Bobbio, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 8 ed. Tradução de João Ferreira. Brasília: Editora UNB, 1995

BOURDIEU, P; PASSERON, J.C. A Reprodução. Elementos para uma teoria do Sistema de Ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.

__________ Questões de Sociologia. Tradução Jeni Vaitsman. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1983.

__________ Coisas Ditas. Tradução Cássia R. da Silveira e Denise Moreno Pegorim. Rio de Janeiro: Editora Brasileira, 1 ed, 1990.

__________ Meditações Pascalianas. Tradução Sérgio Micelli. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1998.

COMTE, Augusto. Curso de Filosofia Positiva: Discurso sobre o conjunto do Positivismo; Catecismo Positivista. Tradução de José Arthur Giannotti; Miguel Lemos. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

__________ Educação e Sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1955

__________ Educação e Sociologia. Tradução Lourença Filho, 11 ed, São Paulo, SP: Melhoramentos, 1978.

__________ Sociologia e Filosofia. São Paulo: Ícone Editora, 1994.

FERNANDES, Florestan. A Herança Intelectual da Sociologia. In: Sociologia e Sociedade: Leituras de Introdução à Sociologia. Marialice Mencarini Foracchi & José de Souza Martins. 3 ed. Rio de Janeiro: LTC Editora, 2004.

GIANOTTI, José Arthur; Lemos Miguel. Introdução In: COMTE, AUGUSTO. Curso de Filosofia Positiva: Discurso sobre o Conjunto do Positivismo; Catecismo Positivista. Tradução de José Arthur Giannotti; Miguel Lemos. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

2. Sociólogo positivista (1760-1825), autor que defendia a criação de uma ciência do homem.

[1] Graduada em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia (2000), Especialista em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado da Bahia (2004) e Mestranda em Ciências da Educação pela The Grendal College And University – Unigrendal.

Enviado: Maio, 2019.

Aprovado: Julho, 2019.

5/5 - (3 votes)
Márcia Moreira Tirello

Uma resposta

  1. Excelente artigo, desconcertante em alguns momentos pois suscita a possibilidade de boas discussões em diversos pontos por conta da visitação às ideias de autores a meus olhos controversos

    Parabéns

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pesquisar por categoria…
Este anúncio ajuda a manter a Educação gratuita