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Música e aprendizagem: apropriação da psicologia histórico-cultural à formação da compreensão musical

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

ROCHA, Rafael Beling [1]

ROCHA, Rafael Beling. Música e aprendizagem: apropriação da psicologia histórico-cultural à formação da compreensão musical. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 04, Ed. 01, Vol. 08, pp. 89-129 Janeiro de 2019. ISSN: 2448-0959

RESUMO

em resumo, nesse trabalho, apresentamos um estudo que se propõe a fazer uma apropriação dos pressupostos teóricos da psicologia histórico-cultural à educação musical. Partindo da conjectura de que a lei geral da supracitada psicologia pode nos apontar diretrizes para um repesar da educação musical na escola regular, buscamos apresentar que sua apropriação pode não apenas nos levar ao almejado escopo, outrossim a superar antigos preconceitos exclusivistas, tão prejudiciais às necessidades da educação musical.

Palavras-chave: Educação Musical, Psicologia histórico-cultural, Lei Geral da psicologia histórico-cultural, Vigots

INTRODUÇÃO

O tema desenvolvimento humano tem despertado o fascínio de inúmeros pesquisadores ao decorrer do tempo. Fascínio que não se postula como sendo inoportuno ou sujeito a margem de irrelevância, mas sim como temática de total pertinência em nossos dias, ressaltando a valia da compreensão dos seres humanos como entidades pensantes e possuidoras de necessidades fisiológicas, afetivas e intelectuais.

Essa necessidade de compreensão, contudo, se demonstrou mais evidente com o advento da psicologia, que se destaca com maior intensidade no início do século XX, postulando-se como a ciência que, de forma bastante ampla, se preocupa com os processos mentais e comportamentais dos seres humanos, bem como suas interações com o ambiente material e social. À vertente da psicologia que se empenha nos fatores do desenvolvimento do ser humano desde a infância até a fase adulta denominamos psicologia do desenvolvimento.

A psicologia do desenvolvimento se preocupa ou mesmo define-se como área de conhecimento que estuda o desenvolvimento do ser humano em todos os aspectos: físico, motor, intelectual, afetivo, emocional e social. Alegando a existência de uma relação ininterrupta entre os aspectos biológicos, físicos, sociais e culturais que se interconectam e que se influenciam reciprocamente, definindo nossa maneira de pensar, agir, sentir e se relacionar com o mundo (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2008).

O desenvolvimento humano refere-se ao desenvolvimento mental e ao crescimento orgânico. O desenvolvimento mental é uma construção contínua, que se caracteriza pelo aparecimento gradativo de estruturas mentais. Elas são formas de organização de atividade mental que se vão aperfeiçoando e solidificando até o momento em que todas, estando plenamente desenvolvidas, caracterizarão um estudo de equilíbrio superior quanto aos aspectos da inteligência, da vida e das relações sociais (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2008, p. 116).

Uma vez que a psicologia do desenvolvimento de preocupa com todo o processo de desdobramento humano, essa ciência busca compreender possíveis características de cada fase da vida, possibilitando um melhor entendimento da singularidade humana, bem como suas peculiaridades; fatores que de longe se demonstram atrativos para a educação – em sua totalidade – bem como para a educação musical, que vem a ser a temática do presente trabalho.

Atualmente o uso da psicologia tem sido claramente distinguido no campo da educação, levando em conta que, tal ciência, cada vez mais tem dado subsídio para novas reflexões sobre a compreensão do homem. Os processos educacionais, contudo, nem sempre se basearam em estudos psicológicos (propriamente ditos), uma vez que a própria psicologia apresenta-se ainda hoje como uma “menina”, se comparada a filosofia, por exemplo, que encontra espaço na história desde da Grécia Antiga. Como bem salientam Fontana e Cruz (2011), a psicologia é apenas uma entre as ciências que corroboram para reflexão sobre educação. Não obstante, sua apropriação para as atuais concepções educacionais é bastante oportuna e vantajosa, sendo claramente capaz de dar subsídio para atuações mais significativas em música e seu ensino, por exemplo.

Assim como tantas outras áreas de conhecimento, a psicologia do desenvolvimento não se resume apenas a uma vertente. Existem várias teorias a seu respeito. Mediante observação, pesquisas e análises dos mais variados grupos e circunstâncias, formulando as mais diferentes hipóteses sobre o modo como os seres humanos se desenvolvem, vários pesquisadores se posicionaram e contribuíram de diversas formas aos estudos dessa temática. Dentre alguns nomes, poderíamos mencionar Alfred Binet (1857-1911), John B. Watson (1878-1958), Burrhus F. Skinner (1904-1990), Jean Piaget (1896-1980) e Lev Vigotski[2] (1896-1934).

Logo em seguida do item de número 2 (Metodologia), de forma sucinta e direta passaremos por cada um desses pensadores, pontuando aspectos importantes de suas vertentes e concepções teóricas. Isso, a fim de, contrapondo-as, fazermos as devidas discussões em relação a educação musical. Apontando, assim, por meio dessa pesquisa de caráter introdutório, o quanto a apropriação do conhecimento psicológico pode nos levar a melhores práticas em relação ao ensino e a aprendizagem musical.

Vale salientar ainda que, nessa pesquisa, adotaremos como referencial teórico a psicologia histórico-cultural, e que, partindo de seus fundamentos, construiremos nossa argumentação visando ligações e apropriações ao campo da música, em especial o da educação musical na escola regular.

METODOLOGIA

O presente trabalho se refere a uma pesquisa bibliográfica e de campo que teve o objetivo de desvelar a influência dos aspectos socioculturais na compreensão musical humana, além de apontar a lei geral da psicologia histórico-cultural como possível ponto de partida para fundamentação teórica de práticas em educação musical. Tivemos como instrumentos de pesquisa entrevistas e levantamento documental.

A pesquisa contempla as seguintes etapas:

  • Estudo bibliográfico sobre a teoria histórico-cultural;

Analisando uma significativa gama de material bibliográfico ligado a psicologia histórico-cultural buscamos respaldo nos autores originais dessa vertente psicológica, bem como em autores brasileiros que, como nós, assumem esse referencial.

  • Elaboração de questionário;

Como base no que foi escrito a respeito das diferentes correntes psicológicas sobre do processo de desenvolvimento humano, foram elaboradas algumas entrevistas que tiveram como objetivo conhecer qual é ou quais são as concepções de aprendizagem musical e seu desenvolver nas pessoas.

  • Coleta de dados;

Com vista a uma maior variedade de respostas foram entrevistados grupos com características iniciais diferentes. O primeiro grupo se constituiu de pessoas que têm formação sistematizada em música (superior ou conservatorial). O segundo grupo de pessoas que não têm formação sistematizada, mas que fazem/atuam em música de alguma forma (leigos que cantam e/ou tocam). E terceiro, por sua vez, pessoas que não têm formação em música e que não desenvolvem nenhuma atividade relacionada a prática musical.

  • Análise de dados;

Os dados recolhidos foram cuidadosamente analisados e assim serviram de base para a elaboração da redação final;

  • Redação final;

A redação final contempla os dados coletados nas entrevistas, bem como o referencial bibliográfico usado para o processo de desenvolvimento do texto. As falas e dados coletados das entrevistas serviram para ilustrar as concepções do senso comum a respeito do processo de aprendizagem musical; dados que foram analisados de acordo com o referencial adotado.

DESENVOLVIMENTO

REFERENCIAL TEÓRICO

Como anunciado no fechamento da introdução, nessa primeira etapa do desenvolvimento, gastaremos algum tempo na explanação das principais vertentes da psicologia do desenvolvimento humano; isso a fim de uma melhor construção argumentativa de nossa tese, buscando ressaltar as diferenças existentes em relação a compreensão do processo de aprendizagem humana e o quanto isso pode ser útil na educação musical.

A TEORIA INATISTA-MATURACIONISTA

É comum ouvirmos frases do popularesco como, por exemplo: “ele ainda não tem idade para isso”, “meu filho tem muita aptidão para música” ou mesmo “ela é muito teimosa! Puxou a mãe!”. Aspectos como inteligência, talento, maturidade e outros de gênero semelhante, são vistos pela teoria inatista-maturacionista como sendo algo inato, ou seja, intrínseco/inerente ao ser humano; que se refere apenas aos fatores biológicos. Segundo essa perceptiva, todo o processo de desenvolvimento humano se desencadeia com base em aspectos herdados e hereditários. Logo, “fatores biológicos são mais importantes para o desenvolvimento da criança do que fatores relacionados a aprendizagem e à experiência”, por exemplo (FONTANA; CRUZ, 2011, p. 11).

O principal expoente dessa corrente de pensamento é Alfred Binet. Ao longo de seus estudos, esse pensador se deparou como indagações como: “por que somos diferentes uns dos outros?”, “por que algumas pessoas parecem ser sensíveis a música enquanto outras são aos números?” Suas inquietações o fizeram direcionar seus estudos para natureza das aptidões e da inteligência sob uma perspectiva hereditária (FONTANA; CRUZ, 2011).

Como base em estudo com indivíduos inseridos em diferentes contextos, Binet concluiu que gêmeos idênticos apresentavam uma relação mais próxima de aptidão se comparados a irmão não gêmeos, por exemplo. Também detectou que homens e mulheres de diferentes raças, por exemplo, se inclinavam a aptidões antagônicas.

Binet concluiu que os fatores biológicos eram muito mais determinantes do que quaisquer outros aspectos relacionados às experiências do meio e à educação. Como apontam Fontana e Cruz, “o papel do meio social, segundo essa perspectiva inatista, se restringe apenas a impedir ou a permitir que essas aptidões se manifestem (2011, p. 12). É importante compreender que para Binet a ideia de inteligência não se confunde com os conhecimentos adquiridos pelos indivíduos durante sua vida. “O que define a inteligência de um indivíduo não é a quantidade de conhecimento que ele possui, mas sua capacidade de julgar, compreender e raciocinar”, o que segundo ele, depende apenas de fatores inatos (FONTANA; CRUZ, 2011, p. 14).

Obviamente a teoria inatista-maturacionista abrange muitos outros aspectos de maior e menor grau de importância. A título de exemplo poderíamos mencionar as pesquisas com crianças e as elaborações das escalas de desenvolvimento, que tiveram como figura principal o estudioso Arnold Gesell.

Respeitando, porém, a proposta inicial de uma breve síntese de cada perspectiva teórica, prosseguiremos em direção a próxima corrente de pensamento.

A TEORIA COMPORTAMENTALISTA

A teoria comportamentalista, também conhecida como behaviorismo, teoria comportamental, análise experimental do comportamento e análise do comportamento, foi apresentada pela primeira vez em 1913 através do livro “Psicologia: como os behavioristas a veem” tendo como expoente o americano John B. Watson (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2008).

Diferentemente da teoria inatista-maturacionista, a abordagem comportamentalista evidencia a importância dos fatores externos sobre o comportamento. Divergindo da proposta com ênfase no biológico e hereditário, alega que as habilidades e ações dos indivíduos são determinadas por sua relação com o meio no qual estão inseridos (FONTANA; CRUZ, 2011).

Outro aspecto importante acerca da teoria comportamentalista se refere a uma suposta relação entre o comportamento animal e humano. “Ou seja, para os comportamentalistas, embora o comportamento do homem difira do dos animais, ambos podem ser explicados pelos mesmos sentidos”. (FONTANA; CRUZ, 2011, p. 25); o que pressupõe um estudo imparcial do comportamento, não fazendo distinção entre o comportamento humano e animal.

Para uma melhor compreensão da teoria behaviorista faz-se necessário uma definição do que viria a ser comportamentalismo, estímulo e resposta. Segundo Fontana e Cruz, “na perspectiva de Watson, podemos definir que o comportamento é sempre uma resposta do organismo (humano ou animal) a algum estímulo presente no meio ambiente” (2011, p. 25). O estímulo, por sua vez, seria toda comutação do ambiente que é percebida pelos sentidos, chegando nas respostas, que podem ser, por sua vez, definidas como o surgimento de mudanças no organismo em sua decorrência. E é justamente esse processo estímulo-resposta que atrai a atenção da psicologia.

Traçando um paralelo com a teoria inatista-maturacionista, a corrente de pensamento comportamentalista considera que:

O comportamento animal ou humano é sempre uma adaptação, uma reação aos estímulos, às alterações que se processam no estímulo. Esse ambientalismo opõe-se a qualquer tipo de inatismo. Para Watson, não existem aptidões, disposições intelectuais ou temperamentos inatos ou hereditários. O que existe é certa propensão para responder a certos estímulos de uma forma determinada (FONTANA; CRUZ, 2011, p. 25).

Outro importante nome do comportamentalismo é Burrhus F. Skinner. Suas propostas fazem eco aos trabalhos de Watson. Para ele, a aprendizagem é o tema central do comportamentalismo, sendo o comportamento do indivíduo um reflexo daquilo que aprendemos ao decorrer de toda a vida.

Para Skinner existem dois tipos de comportamento. O primeiro deles é denominado como condicionamento clássico e pode ser definido como um tipo de comportamento pré-estabelecido, que é provocado por um estímulo, que de semelhante modo, também é determinado. “Refere-se mais a uma reação do organismo ao meio e não uma ação do organismo sobre o meio”. O segundo tipo de condicionamento foi nomeado de condicionamento operante, que diz respeito “não a relações provocadas por estímulos, mas em comportamentos imitidos pelo organismo que são seguidos por algum tipo de consequência” (FONTANA; CRUZ, 2011, p. 27).

Para concluir poderíamos dizer que em suma, a teoria comportamentalista se propõe a ressaltar a relevância quase que total dos fatores externos na formação do homem. Portanto, aquilo que denominamos desenvolvimento, nada mais é, que o produto da aquisição das experiências que se condensam no decorrer da vida do indivíduo (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2008).

A TEORIA PIAGETIANA

De Piaget conhecemos a tão famosa questão: “Como se adquire o conhecimento?”. Essa questão sugere, pelo menos, três concepções: a primeira delas se refere a aquisição do conhecimento a partir das propriedades do objeto; a segunda, por sua vez, parte da estrutura do sujeito. Dessa relação surge o terceira questão: a interação entre o sujeito e o objeto (BEYER, 1988).

Piaget, assim como Binet, Watson e Skinner, foi um dos estudiosos da psicologia atraído pela peculiaridade de pensamento lógico das crianças. Ele também se preocupou com questão da elaboração do conhecimento humano, buscando muitas de suas respostas no pensamento infantil. Suas ideias acerca das relações entre homem e objeto atraíram e ainda hoje atraem pesquisadores de diferentes áreas (FONTANA; CRUZ, 2011).

Entre os anos de 1918 e 1980, Piaget produziu uma extensa obra, sistematizando assim o que hoje chamamos de teoria construtivista. Assim é chamada sua teoria, justamente por sua busca em elucidar as transformações no percurso do desenvolvimento intelectual, bem como os mecanismos responsáveis pela construção dos processos cognitivos (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2008).

Vale salientar que em suas pesquisas Piaget se deteve a investigar os mecanismos que explicam a evolução do desenvolvimento cognitivo. “Para ele a formação das funções cognitivas no ser humano estão subordinadas a um processo geral de equilíbrio para o desenvolvimento cognitivo como um todo” (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2008, p. 138).

Um ponto interessante da teoria piagetiana pode ser ressaltado aqui. Enquanto a teoria inatista-maturacionista lançava fora os fatores culturais e comportamentalista os biológicos, a abordagem piagetiana leva em consideração ambos os aspectos. Vejamos a seguinte afirmação:

O ser humano, dotado de estruturas biológicas, herda uma forma de funcionamento intelectual, ou seja uma maneira de interagir com o ambiente que o leva à construção de um conjunto de significados. A interação desse sujeito com o ambiente permitirá a organização desses significados em estruturas cognitivas (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2008, p. 139).

Para Piaget, a maturidade representa uma condição imprescindível ao desenvolvimento intelectual. Essa maturidade permite o advento de condutas peculiares a cada etapa da vida (SALVADOR, 1997). Esse autor divide o desenvolvimento em períodos, baseando-se no aparecimento de novas qualidades do pensamento, o que, por sua vez, interfere o desenvolvimento global. Vejamos:

  • 1° período: sensório-motor (0 a 2 anos)
  • 2° período: pré-operatório (2 a 7 anos)
  • 3° período: operações concretas (7 a 11 ou 12 anos)
  • 4° período: operações formais (11 ou 12 em diante).

É importante dizer que para Piaget, cada período é caracterizado por aquilo que o indivíduo consegue fazer de melhor. Todos os humanos passam por essas etapas, seguindo a sequência proposta. “Porém o início e o término de cada uma delas depende das características biológicas do indivíduo e de fatores educacionais, sociais. Portanto, essa divisão é uma referência, não uma norma rígida” (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2008, p. 118).

Ainda na concepção piagetiana o desenvolvimento da criança, por exemplo, define-se como um processo baseado na equilibração, o que segundo a autor “é uma capacidade natural de auto regulação do indivíduo”. As relações/processos cognitivos das crianças “são elaborados e reelaborados continuamente a partir de sua ação (física ou mental) sobre o meio” (FONTANA; CRUZ, 2011, p. 54).

Aqui talvez se resuma com maior clareza a teoria construtivista de Piaget: para ele, a aprendizagem praticamente não interfere no curso do desenvolvimento; ao contrário, a aprendizagem é dependente do processo de desenvolvimento. “Tudo que for transmitido à criança sem que seja compatível com seu estágio de desenvolvimento cognitivo não é de fato incorporado por ela”. (FONTANA; CRUZ, 2011, p. 54). A criança pode até ser capaz de imitar de forma mecânica as ações de um adulto, ela contudo, não compreende o que está fazendo.

Também o papel ativo da criança no processo de elaboração do conhecimento é destacado. Assim sendo, de acordo com a teoria piagetiana, a função da escola é proporcionar à criança o agir sobre o objeto de conhecimento, o que faz do professor responsável apenas por facilitar e desafiar aquela que irá construir seu próprio conhecimento: a criança (FONTANA; CRUZ, 2011).

 A TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL

Como vimos até aqui, o processo de desenvolvimento tem sido visto de forma paradoxal, mesmo dentro da psicologia. Para os inatistas, o constituir-se humano não passa de um processo biológico, inato a nossa espécie. Para os comportamentalista somos moldados e constituídos basicamente pelos estímulos externos. O construtivismo, por sua vez, traça um paralelo entre essas duas concepções, dizendo que ambos, fatores biológicos e externos, exercem influência sobre a construção do conhecimento humano. Há, contudo, outra forma de se pensar tal processo. Uma abordagem que se propõe a superar as demais concepções até aqui mencionadas. A essa abordagem damos o nome de teoria histórico-cultural. Sobre ela se fundamenta o presente trabalho. Portanto, por um viés histórico-cultural, traçaremos uma proposta de apropriações cabíveis à Educação Musical. Antes, contudo, de forma mais abrangente, propomo-nos a uma definição teórica dessa corrente psicológica.

Vivemos em um mundo coletivo. Para nos desenvolvermos como seres humanos precisamos do outro. Interagimos, partilhamos, trocamos e nos comunicamos. Possuímos uma linguagem; nossa maior e mais importante ferramenta de comunicação. Ela é quem possibilita a troca de conhecimento com os demais, desencadeando o processo que permite o desenvolvimento de nossas potencialidades coletivas e individuais. Nisso se baseia a teoria de Lev Vigotski. Pensador russo do século XX que, juntamente com pessoas como A.R. Luria e A.N. Leontiev[3] desenvolveu a então chamada psicologia histórico-cultural, também conhecida como teoria histórico-social, teoria sócio-cultural ou ainda teoria da atividade.

A HISTORICIDADE NO DESENVOLVIMENTO HUMANO

Para iniciarmos uma abordagem explicativa a respeito da teoria histórico-cultural, faz-se necessário entender que Vigotski estava inserido em um contexto bastante peculiar. Em sua época, a psicologia se dividia para entender o desenvolvimento do homem em duas correntes. Primeiro: uma psicologia que valorizava o desenvolvimento da consciência e segundo: uma psicologia que dava ênfase a discussão do desenvolvimento baseado no comportamento. Vigotski se propõe a superar ambas vertentes. Tanto a idealista, que entende as características humanas como vindas do pensamento, do campo das ideias, como também a corrente mecanicista, que se pauta numa visão fisiológica do comportamento.

Toda a teoria de Vigotski está fundamentada/fundada/sustentada por um caráter histórico da compreensão do desenvolvimento humano (VIGOTSKI, 1998); o que denominamos historicismo. Ou seja, não podemos entender nenhum movimento social desvinculado de seu tempo, mas sim como movimentos historicamente relacionados. A teoria histórico-cultural parte da apropriação de um método materialista, histórico e dialético; método esse que não entende o mundo como um conjunto de coisas acabadas que se constituem isoladamente, mas sim como fenômenos que se relacionam de forma dialética (COLL; MARCHESI; PALACIOS, 2004).

A teoria vigotskiana se ressalta ainda mais quando levamos em conta que “o conceito de historicismo era, em geral, alheio aos psicólogos, gestaltistas, por exemplo, que procuravam estudar o ‘aqui e o agora’” (VIGOTSKI, 1996, p. 446). Para Vigotski, as funções psíquicas do ser humano deveriam ser estudadas por uma ótica não apenas biológica, mas também cultural. Deveria se levar em consideração as formações históricas do ser humano. Ao decorrer de suas inúmeras pesquisas sua conclusão foi que “as funções psíquicas do ser humano desenvolvem-se ao longo da evolução histórica da humanidade” (VIGOTSKI, 1996, p. 465).

Aqui encontramos a Lei Geral da psicologia histórico-cultural; o que vem a ser o grande diferencial em relação às correntes psicológicas até então conhecidas. Segundo essa perspectiva teórica o desenvolvimento humano ocorre primeiro no âmbito social e só depois no individual. Vejamos como é formulada essa lei pelos elaboradores da psicologia histórico-cultural:

Todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso de desenvolvimento da criança: a primeira vez nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas; a segunda, nas atividades individuais. Como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como funções intrapsíquicas (LURIA; LEONTIEV; VYGOTSKY, et al, 2005, p. 38-39).

Assim sendo, uma boa ilustração desse importante aspecto seria a diferença entre natureza humana e condição humana. Não existe uma essência universal para o desenvolvimento humano. Existe uma condição humana que se caracteriza pela construção histórica da própria constituição coletiva dos homens. Quando falamos de natureza humana, falamos de algo inerente, que nasce nos homens e apenas se desenvolve. Ao falarmos de condição humana, entretanto, apontamos para algo que nos caracteriza por uma relação histórico-cultural, mas que não nos dá aptidões ou habilidades inatas (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2008). Logo, tudo que é especificamente humano e diferencia o homem dos demais seres se origina de sua vida em sociedade. O Homem, pelo trabalho transforma o meio produzindo cultura. Como assegura Leontiev citado por Fontana e Cruz (2011, p. 58) “podemos dizer que cada indivíduo aprende a ser homem”.

A seguir destinaremos algumas páginas para abordar aspectos importantes a respeito da teoria vigotskiana. Passando por tópicos como mediação semiótica, instrumentos, signos, linguagem, mediação e o papel do outro, mostraremos que a extrema importância que Vigotski dá a esses conceitos sugere a marca distintiva da teoria histórico-cultural.

MEDIAÇÃO SEMIÓTICA

Por volta dos anos de 1920, quando Vigotski chega à ciência da psicologia, a importância da atividade prática do homem não era devidamente notada pela comunidade científica soviética ou mesmo a mundial. O carro-chefe dos estudos psicológicos daquela época girava em torno da atividade motora externa do homem e buscava compreender o fracionamento de elementos isolados de conduta (behaviorismo), em relação motoras (reatologia) ou em reflexos (reflexologia). Não havia uma preocupação consistente em analisar a atividade prática do homem em sua totalidade (VIGOTSKI, 1996).

Nesse contexto, destaca-se a pessoa de Vigotski como sendo o primeiro dos psicólogos soviéticos a fazer uma ligação entre a filosofia materialista de Marx “desenvolvendo assim sua teoria filosófico-metodológica de ‘nível intermediário’” (VIGOSTSKI, 1996, p. 437).

É importante salientar que as contribuições mais significativas de Vigotski (e também as mais originais) se referem a atividade humana como fenômeno mediado. As argumentações desse pensador apontam para as relações entre as pessoas e o meio nas quais estão envolvidas as funções superiores do comportamento humano. Os indivíduos modificam, através da atividade, o meio onde estão inseridos, bem como sua própria forma de ser (COLL; MARCHESI; PALACIOS, 2004). Reforçando ainda mais essa ideia, Pino (1991) em texto que se propõe a falar sobre o conceito de mediação semiótica em Vigotski e seu papel na explicação do psiquismo humano alega que contrariamente a outras correntes de psicologia do desenvolvimento, a corrente Histórico-Cultural entende o psiquismo humano como uma construção social que torna possível pela apropriação da mediação dessa mesma sociedade.

O que viria a ser, então essa mediação? “Num sentido mais amplo, mediação é toda a interação de um terceiro ‘elemento’ que possibilita a interação entre os ‘termos’ de uma relação” (PINO, 1991, p. 32). O termo mediação é usado para qualificar a função que os sinais executam nas relações entre os indivíduos e também na relação destes com o meio. Vejamos o que diz Pino:

Os processos mediadores multiplicam-se na vida social dos homens, em razão sobretudo da complexidade das suas relações sociais. Diferentemente dos animais, sujeitos aos mecanismos instintivos de adaptação, os seres humanos criaram instrumentos e sistemas de signos cujo uso lhes permite transformar e reconhecer o mundo, comunicar suas experiências e desenvolver novas funções psicológicas. A mediação dos sistemas constitui o que denominamos “mediação semiótica” (1991, 33, grifo nosso).

Nesse sentido, uma vez que “a propriedade elementar característica da consciência humana escolhida por Vigotski foi a da mediação” (LURIA, 2013, p. 12), reconhecemos sua importância e validade para o processo do desenvolvimento humano. É através desse caráter mediado que todo o processo laboral por meio de ferramentas se destaca e se consolida no homem (VIGOTSKI, 1996).

INSTRUMENTOS, SIGNOS E LINGUAGEM

Como apontam Nassif e Barbosa (2014, p. 2) “para se adaptarem ao meio em que vivem, os homens, ao invés de modificarem seu próprio organismo como fazem as outras espécies animais, transformam a natureza”. Isso implica uma espécie de adaptação indireta que se demonstra quando atentamos para aquilo que talvez seja a maior característica humana: a criação de instrumentos, signos e linguagem. Para uma melhor compreensão desses termos, destinaremos um espaço para algumas definições pontuais.

INSTRUMENTOS

Podemos denominar instrumento “tudo aquilo que se interpõe entre o homem e o ambiente, ampliando e modificando suas formas de ação”. São “objetos criados pelo homem para lhe facilitarem a ação sobre a natureza (FONTANA; CRUZ, 2011, p. 58). Nessa categoria, entram, por exemplo, máquinas, machados, arados, talheres, etc.

Os instrumentos acabam por interferir diretamente na forma do comportamento humano. Como assegura Leontiev citado por Coll; Marchesi; Palacios (2004), por meio do uso desses instrumentos, os seres humanos regulam e transformam a natureza, e com isso, a si mesmos. Logo, os instrumentos modificam de tal forma o comportamento humano que nossa ação deixa de ser direta sobre o objeto, tornando-se uma ação indireta.

SIGNOS

Marca dotada se significação. “O Signo é qualquer símbolo convencional que tenha um significado determinado. O signo universal é a palavra” (VIGOTSKI, 1996, p. 465). Como afirmam Fontana e Cruz (2011) se comparado ao instrumento, o signo pode ser denominado como uma espécie de instrumento psicológico. Nisso consiste tudo aquilo que é usado pelo ser humano para representar, evocar ou tornar presente aquilo que de alguma forma está ausente, como, por exemplo, ideias, acontecimentos ou pessoas. Exemplos de signos são: a palavra, o desenho, obras de arte ou mesmo símbolos como bandeiras e emblemas. Enquanto o instrumento se denomina como algo externo, ou seja, algo que serve para a modificação do meio ambiente, o signo, por sua vez, pertence a uma ordem de orientação interna, que modifica diretamente não o meio, mas sim o funcionamento psicológico do homem.

Segundo Vigotski, todo signo é um meio de comunicação, e de forma ampla também um meio de “conexão de certas funções psíquicas de caráter social” (1996, p. 114). Os signos possuem caráter social e são denominados como produtos de práticas culturais do homem. São produtos provenientes da evolução histórico-cultural dos diferentes grupos culturais, sendo, destarte, adquiridos sob práticas culturais que só ocorrem pela interação social (COLL; MARCHESI; PALACIOS, 2004).

Para Vigotski (1996), um signo é sempre um instrumento que influi, em primeiro lugar, nos demais para, aí sim, influir no próprio indivíduo. Fazendo eco a essa ideia, Fontana e Cruz salientam que de acordo com a concepção histórico-cultural é importante compreender que a utilização dos signos e mesmo dos instrumentos não se limita a experiência única de um indivíduo apenas. “O acesso à escrita, às notações musicais, às convenções gráficas e à palavra se faz na interação com outras pessoas, sendo uma incorporação de experiências anteriores de determinados grupos culturais” (2011, p. 60). Por fim, “se pelo instrumento, o homem modifica o objeto de sua ação, pelo signo, o homem age sobre si mesmo codificando seu modo de ser, de pensar, de agir, de se comportar (MARTINS, 2013, p. XV).

LINGUAGEM

A linguagem aparece como nossa maior e mais importante ferramenta de comunicação; ela é, por assim dizer, o signo dos signos (MARTINS, 2013). Ao longo do processo do desenvolvimento humano, constitui-se como o principal mecanismo da mediação psicológica. A linguagem se compõe ainda como uma ferramenta que surge no âmbito social, para posteriormente ser uma ferramenta de diálogo interior. A princípio aparece como função comunicativa que age sob o mundo externo. Em seguida, contudo, se torna um regulador da própria ação do homem (VIGOTSKI, 2008).

A linguagem é um instrumento importante na expressão e na formação da consciência. Segundo Aguiar citado por Bock; Furtado; Teixeira (2008, p. 81), ela é “o instrumento fundamental no processo de mediação das relações sociais, no qual o homem se individualiza, se humaniza, apreende e materializa o mundo das significações que é construído no processo social e histórico”.

A linguagem é um instrumento psicológico que age de forma mediada no estágio precoce do pensamento (por estágio precoce do pensamento subentendia-se a atividade prática). Como resultado desse caráter mediado se forma o pensamento verbal. […] No pensamento que tem sua origem na atividade prática, age de forma mediada a linguagem, a palavra (vigotski, 1996, p. 455-456).

Nassif e Barbosa (2014, p. 3) colocam em pauta um importante aspecto quando se referem a essa temática: quando lidamos com linguagens, ferramentas, signos, objetos, hábitos, precisamos levar em conta que “no curso de seu desenvolvimento o indivíduo não pode contar somente com aquilo que lhe é transmitido naturalmente, mas precisa se apropriar desses instrumentos e signos, resultado de toda a experiência humana anterior”. Isso implica dizer que o ser humano deve, afim de seu próprio desenvolvimento, se apropriar do conhecimento existente a respeito dos instrumentos, dos signos, bem como a linguagem (que aparece como sua maior expressão). Traçando um paralelo àquela que denominados anteriormente como Lei Geral da psicologia Histórico-Cultural, vale lembrar que o desenvolvimento humano, que ocorre primeiro no âmbito social, deve ser apreendido por cada novo ser humano; cada indivíduo, por uma imersão no “mundo adulto”, deve se apropriar da linguagem.

A INTERNALIZAÇÃO E O PAPEL DO OUTRO

É importante reiterar que a internalização dos instrumentos e dos signos pelos indivíduos sempre ocorre na interação com o outro. Vigotski, citado por Fontana e Cruz, alega que “o caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa através de uma outra pessoa”. Assim sendo “essa estrutura humana complexa é o produto de um processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre história individual e história social (2011, p. 60). É através da relação com os demais indivíduos que a criança, por exemplo, se apropria daquilo que foi socialmente construído pelas gerações anteriores.

A partir de suas relações com o outro, a criança reconstrói internamente as formas culturais de ação e pensamento, assim como as significações e os usos da palavra que foram com ela compartilhados. A esse processo interno de reconstrução de um processo externo, Vygotsky dá o nome de internalização (FONTANA; CRUZ, 2011, p. 61).

Esse processo de mediação (abordado com alguma ênfase no item (3.1.4.2), em suma, é visto como algo intencional, do qual surge o processo de transmissão de conhecimento. O processo de internalização, por sua vez, constitui o que Vigotski chamou de zona de desenvolvimento proximal, onde ocorre, por parte daquele que conduz a mediação, a intervenção no indivíduo em desenvolvimento. Tal processo de interação possibilita a apropriação por parte do indivíduo menos experiente. É importante elencar que aquele que significa[4] não se restringe a ensinar o mediatizado, ele oferece-lhe ainda seu comportamento como modelo de observação e imitação, agregando assim uma forma significativa no processo aprendizagem-desenvolvimento (FONSECA, 2008).

É Vigotski quem introduz na psicologia o conceito de zona de desenvolvimento proximal, conceito que constitui uma enorme contribuição à educação. Segundo ele, a zona desenvolvimento proximal pode ser definida como: a distância entre o nível de desenvolvimento (capacidade de resolver um problema de forma independente) e o nível potencial, que é definido sob a resolução de um problema com o auxílio de um indivíduo mais experiente (VIGOTSKY, 1979) ou ainda, em termos mais claros, como aquilo que “caracteriza a diferença entre o que a criança é capaz de alcançar por conta própria e o que é capaz de conseguir com a ajuda de um instrutor” (VIGOSTKI, 1996, p. 463).

Essa nova forma de compreender o processo de desenvolvimento é importante justamente por seu caráter questionador a respeito das formas tradicionais que entendiam a aprendizagem como resultado subordinado/dependente ao processo de desenvolvimento. A esse respeito, em seu livro Cognição, Neuropsicologia e Aprendizagem, Fonseca (2008) descreve um parágrafo muito cabível:

O mistério humano não poderá ser concebido apenas com base numa evolução biológica inata, pois não basta possuir uma herança genética inata, um cérebro normal, um corpo ágil e adequada acuidade sensorial para aprender. Sem acesso à mediação de artefatos, de instrumentos simbólicos, da linguagem etc., proporcionada pela interação intencional das gerações experientes sobre as inexperientes, a continuidade de humanidade talvez não fosse viável ao ritmo temporal a que se operou. Neste contexto, a mediatização é a chave do desenvolvimento social e cognitivo de espécie humana (FONSECA, 2008, p. 112).

Logo, o desenvolvimento pessoal do indivíduo só se faz possível porque a criança tem pessoas ao seu redor. Pessoas que não são objetos ou apenas meros espectadores e juízes do desenvolvimento, mas sim companheiros que possuem ação ativa; ajudam, orientam, planejam, regulam, assistem, exercendo sobre as crianças um papel ativo no desenvolvimento (SALVADOR, 1997).

Com base no conceito da zona de desenvolvimento proximal, Vigotski propõe um importante ponto da construção de sua teoria. Ao contrário de outras correntes psicológicas que apontam o desenvolvimento como precursor da aprendizagem[5], a teoria vigotskiana sugere que o que de fato acontece é o processo inverso. Considera também que os processos da aprendizagem e de desenvolvimento caminham juntos desde o primeiro dia da vida da criança, mas que o primeiro (aprendizagem) suscita e impulsiona o segundo (desenvolvimento).

O PAPEL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR

A maneira como Vigotski via e estudava o processo de desenvolvimento humano o levou a atentar com bastante ênfase para o papel da educação escolar. Ele reconhecia que as relações de conhecimento advindas do ambiente escolar divergiam das do ambiente cotidiano. “A escolar diz respeito ao conhecimento elaborado e não conhecimento espontâneo; ao saber sistematizado e não ao saber fragmentado; à cultura erudita e não à cultura popular” (SAVIANI, 2003, p. 14). Na visão da psicologia histórico-cultural, a escola é vista como ambiente que possibilita um contato intenso e sistematizado da criança com os sistemas de leitura e escrita, por exemplo. É na escola que a crianças entra em contato com os conhecimentos acumulados e organizados das mais diferentes áreas científicas. É também nesse ambiente que ocorre a apropriação dos instrumentos que essas ciências utilizam (mapas, dicionários, máquinas de calcular, etc.) por parte das crianças (FONTANA; CRUZ, 2011).

Vigotski reconhece que, ao chegar à escola, a criança possuiu uma bagagem significativa de conhecimento. Contudo, é no ambiente escolar que ela realiza e elabora de forma sistematizada seu conhecimento, fazendo assim uma relação cognitiva com o mundo externo e seu próprio pensamento. Nas condições escolares, as condições de transmissão do conhecimento são modificadas pelo planejamento e pela intencionalidade. A própria criança reconhece que está ali para se apropriar de novos conhecimentos. Conhecimentos que, como asseguram Fontana e Cruz (2011), vão lhe modificar a forma de enxergar e lidar com o mundo.

Desconsiderar aspectos como o valor do ambiente escolar na/para formação do indivíduo, é se referir ao ideário “que historicamente tem se alinhado à manutenção de condições que, para a maioria da população, se coloca como obstáculo à plena humanização dos homens e mulheres”. Em suma, “trata-se, pois, da afirmação da educação escolar como traço inalienável do desenvolvimento do indivíduo” (MARTINS, 2013, p. 3-7).

A apropriação do conhecimento em sala de aula se denomina como um processo social compartilhado entre os indivíduos em ação. A criança se apropria dos instrumentos e das práticas que são culturalmente organizadas (COLL; MARCHESI; PALACIOS, 2004). Destaca-se aqui o papel do professor como agente que significa, de forma intencional, todo esse processo.

Na educação escolar, o professor tem um papel singular no processo de desenvolvimento do indivíduo. Como bem esclarecem Fontana e Cruz (2011), o professor é responsável por fazer junto. Ele demonstra, sugere, instrui e tutoriza a criança em seu desenvolvimento. É ele quem atua de forma direta na zona de desenvolvimento proximal. [6]

Na teoria histórico-cultural, o professor não é apenas aquele que tem a responsabilidade de criar um ambiente propício para a aprendizagem, sujeitando objeto e indivíduo um ao outro. Ele é, contudo, aquele que transmite sua bagagem histórica e social e, de forma adjunta, pode “desenhar” o futuro da criança.

EDUCAÇÃO MUSICAL

Passaremos agora a uma nova etapa de nosso estudo. Em sequência começaremos a abordar, de forma mais específica, o tema educação musical, relacionando-o, portanto, com tudo que vimos até o presente momento.

Entendendo que grande parte dos esforços da educação musical se detém às crianças, nesta parte do trabalho, daremos alguma ênfase ao contexto infantil da aprendizagem musical. Isso não sugere a impossibilidade da apropriação das próximas considerações para a educação musical com adultos mas apenas conota um direcionamento específico, cujo fim é a construção de ideia e melhor compreensão do tema.

Quando falamos sobre educação musical lidamos com um panorama bastante antagônico. Vemos centenas, senão milhares, de crianças em nosso país que manifestam alguma lacuna no que se refere a sua aprendizagem musical, quando sob outros pontos de vista nada parece distingui-las das outras crianças da sua idade.

Tais casos merecem nossa consideração. Obrigam a ponderar sobre aqueles que permanecem excluídos de um processo sistemático de musicalização. Isso se deveria a um fato irremediável ou sua sorte ficou à mercê de más condições provenientes do ambiente ou métodos aos quais foram submetidos?

Ao falar sobre o processo de aprendizagem (em sua totalidade), mas também sobre o processo de aprendizagem musical, geralmente costumam-se levar em conta os fatores biológicos e/ou hereditários e fatores do meio que advém da relação com o mundo externo. Essa concepção está tão arraigada justamente por estar conforme a simples constatação de fatos que parecerem ser evidentes. Alguns autores agregam papel decisivo aos fatores biológicos, outros aos fatores sociais e outros ainda a uma fusão de ambos os fatores.

Vale ressaltar, contudo, que a corrente de pensamento que atribui papel principal aos fatores biológicos e hereditários do processo de aprendizagem musical tem sido vista com maior aceitação entre o senso comum e mesmo (em alguma proporção) entre o meio acadêmico (SCHROEDER, 2005). Daí provém as tão conhecidas concepções que compreendem a música como algo dado, herdado de pai para filho ou como um talento especial; um dom que é dado a poucos e definitivamente não é para todos. As diferentes teses propostas no quadro dessa concepção são suficientemente conhecidas para que nelas nos detenhamos neste momento.

Assim sendo, quando não se consegue aperceber características patológicas evidentes nas crianças quanto a seu processo de aprendizagem musical, admite-se que sua condição “abaixo da média” se deve à influência dos aspectos internos e biológicos. Ou seja, possibilidades naturais das quais é dotada.

Os resultados que podem ser obtidos por essa concepção inatista do talento musical pouco ou nada contribuem para novas formas de compreensão da atual necessidade da educação musical. Com a promulgação da Lei nº 11.769/2008, que coloca a música como conteúdo obrigatório do componente curricular arte, o desafio de levar música para todos continua latente entre os educadores musicais; principalmente quando se compreende a música com algo inerente a algumas pessoas.

O maior agravante de tudo isso é que a sorte de uma criança se decide, muitas vezes, em função do “quociente de inteligência” – o chamado QI – previamente estabelecido, lançando fora as nuances dos possíveis detalhes da relação com o outro.

Portanto, parece-nos que é nossa obrigação pôr em questão as tradicionais concepções que permeiam o senso comum a respeito do processo de aprendizagem musical. O objetivo é formular aproximações teóricas que se proponham a superar os desafios existentes e tão profundamente arraigados entre algumas pessoas.

ENTREVISTAS

A fim de dar um teor mais cabal a esse estudo, julgamos que seria relevante uma pesquisa de campo através da qual se buscasse entender o processo de aprendizagem musical de alguns indivíduos. Os resultados obtidos nessa pesquisa, no entanto, não foram a base para o desenvolvimento desse trabalho; eles apenas têm a intenção de fazer uma aproximação ilustrativa acerca do que temos discutido até aqui no âmbito teórico e o que de fato acontece – ou pode acontecer – na prática. A seguir faremos um relato detalhado de como se deu todo o processo de entrevistas, bem como as normas sobre as quais se estabeleceu a pesquisa.

Partiremos, então, da análise de relatos expressos por indivíduos com diferentes ‘níveis’ de práticas musicais. Nossos entrevistados, portanto, se dividem em três grupos bastante distintos. Vejamos:

  • GRUPO A

Pessoas que tiveram um ensino formal de música. Os componentes desse grupo frequentaram conservatórios, escolas especializadas ou/e projetos de ensino de música. Todos, sem exceção, desenvolvem uma ativa prática musical – tocam em grupos, orquestras, bandas, cantam em coro etc. Buscamos entender o quanto seu ensino sistematizado foi capaz de influenciar sua atual prática musical. Com base em seus próprios relatos, pretendemos fazer uma análise comparativa entre suas práticas/experiências e suas concepções acerca de como se dá o processo de aprendizagem musical;

  • GRUPO B

Pessoas que não tiveram um ensino formal ou informal de música. Os componentes desse grupo são pessoas que não desenvolvem práticas musicais – tais como cantar em coros, grupos, tocar em orquestras, bandas etc. Buscamos saber se tiveram ou não oportunidades de estudar música quando eram crianças ou/e jovens, por exemplo. Assim como no grupo A, pretendemos fazer uma análise a fim de comparar suas práticas/experiências – ou a inexistência delas – e suas concepções acerca de como se dá o processo de aprendizagem musical;

  • GRUPO C

Pessoas que não tiveram um ensino formal de música, mas que mesmo assim exercem uma notável prática musical. Os componentes desse grupo nunca frequentaram escolas ou conservatórios musicais. Não tiveram um ensino sistematizado de execução ou/e notação musical, por exemplo. Não obstante, todos, sem exceção, têm uma intensa prática musical – tocam e cantam em grupos, fazem solos, regem grupos e coros etc. A exemplo dos grupos A e B, os componentes do grupo C também foram entrevistados acerca de suas experiências musicais na infância ou/e juventude. De semelhante modo, pretendemos fazer uma análise comparativa entre suas práticas/experiências e suas concepções acerca de como se dá o processo de aprendizagem musical.

As entrevistas aconteceram de maneira bastante informal e foram realizadas em forma de diálogo entre entrevistado e pesquisador. Todos os participantes foram entrevistados individualmente e tiveram seus relatos devida e cuidadosamente registrados. Ambos foram questionados acerca de suas experiências musicais e de como acreditam se dar o processo de aprendizagem musical.

Os participantes dos três grupos foram submetidos a perguntas – variando conforme as características de cada grupo – que giravam em torno de um relato de suas experiências musicais no decorrer de sua vida: suas oportunidades e falta delas, incentivos, motivações, desafios, conquistas, concepções de música, entre outras. No fim de cada entrevista, todos os candidatos foram indagados a respeito do que pensam ser música – fruto do trabalho/experiências ou dádiva inata e inerente a algumas pessoas.

Em nossa abordagem, buscamos ser o mais imparciais possível. No decorrer dos diálogos, buscávamos apenas levantar questionamentos, nunca dando dicas ou sugestões a respeito do que “pretendíamos” ouvir. Quando, em alguns casos, nossa opinião era solicitada, de forma bastante delicada dissemos que preferíamos não opinar até o término da entrevista. Não obstante, reconhecemos e concordamos com o que dizem Fachim (2006) e Unglaub; Unglaub (2010) a respeito do risco que incorrem os pesquisadores quanto a parcialidade em relação ao seu objeto de pesquisa. Assim sendo, os dados que apresentaremos não têm a pretensão de ser definitivos, mas apenas ilustrativos do ideário de nossos entrevistados.

SOBRE MÚSICA E APRENDIZAGEM: ALGUMAS REFLEXÕES

Julgamos que nesta etapa do trabalho deveríamos nos ater a algumas análises comparativas entre os diferentes perfis dos entrevistados. Como nossa tese principal diz respeito a hipótese de que o meio – abarcando aqui toda a influência advinda do contexto histórico e social – pode definir diretamente a formação do indivíduo, decidimos, como primeira abordagem, comparar a história inicial de nossos entrevistados. Buscamos saber quais foram suas primeiras experiências musicais, ou no caso do grupo B – das pessoas que não estudaram música e que não desenvolvem nenhuma atividade musical – qual foi o grau de seu distanciamento do fazer musical. As perguntas que nortearam essa primeira parte da entrevista giraram em torno de: houve influência musical na infância? Música em casa? Pais, tios ou parentes músicos? Ouvia, assistia ou praticava música? Vale salientar que nossos entrevistados possuem idade média entre dezoito e vinte e cinco anos, tendo, portanto, informações consolidadas a respeito de sua infância.

Quando questionados a respeito das influências musicais recebidas na infância, os candidatos do grupo A – dos que estudaram música e que hoje são músicos – relataram detalhes bastante interessantes. Um dos candidatos do grupo disse o seguinte:

Meu pai me colocou para estudar música aos 6 anos de idade. Meus irmãos e eu tínhamos aulas particulares de piano.

Outro participante explicitou ainda mais detalhes:

Eu me vi gostando de música quando comecei a ouvir canções na igreja, isso por volta dos 5 anos. Mas minha mãe conta que sempre colocava música clássica enquanto eu estava na barriga dela. Me lembro que quando ainda era pequeno eu colocava CDs clássicos e “regia” aquelas músicas que eu ouvia desde o tempo de bebê.

A presença da música e de alguma espécie de fazer musical pôde ser vista desde a mais tenra idade nos indivíduos desse grupo. Como relatado, um deles afirma que ouvia música clássica desde o ventre materno e que aquelas músicas sempre fizeram parte de seu cotidiano.

Quando fizemos essas mesmas perguntas aos candidatos do grupo C – dos que não estudaram música formalmente, mas que desenvolvem notável fazer musical – as respostas foram de gênero semelhantes. Observe:

Eu ainda era bem pequenino, e lembro que na minha casa tínhamos um violão bem velho. Como não tinha nada para fazer, brincávamos com aquele violão, meu irmão e eu. Afirma um dos participantes desse grupo. Ele ainda salienta que:

Logo depois meu pai me deu um violão e um tio que sabia tocar veio até minha casa. Esse tio também tinha um violão, e eu o reparava tocando; ele sabia apenas o básico, mas eu prestava muita atenção e sempre tentava imitar tudo o que ele fazia.

Outro entrevistado, assemelhando-se aos candidatos do grupo A, afirma que desde os 5 anos já se lembra de ter visto e ouvido muita música em casa. Segundo ele:

Quando criança, meus tios e minha mãe cantavam em casa. Desde dos meus 5 anos eu os ouvia. Eu sempre fui tímido e então eu os ouvia cantando e só cantava sozinho no banheiro. Mas sempre procurava imitar tudo que eu ouvia da minha mãe e dos meus tios.

A semelhança entre os participantes dos grupos A e C é evidente, a nosso juízo. Muito embora no grupo A possa se notar um ensino formal, onde havia presença de um professor específico de música, por exemplo, ao passo que no grupo C encontramos apenas uma exposição a instrumentos ou à prática do canto, o contato com a fazer musical era intenso. Todos os participantes dos dois grupos tiveram contato com algum tipo de prática musical desde bem cedo.

Como foi, porém, o contato musical dos candidatos do grupo B? Vejamos suas afirmações.

Eu nunca tive nenhuma prática musical. Afirma um dos entrevistados. Ele ainda complementa que:

Minha mãe não cantava musiquinhas para mim. Eu não tinha nenhuma vivência. Na infância eu nunca tive contato com instrumento musical, por exemplo. Eu sempre quis aprender um instrumento, mas a escola não oferecia nada de música. Eu nunca aprendi a valorizar a música pelo que ela é. Minha família não tinha o dom musical. Ninguém tinha. Meu pai sempre cantou mal, e minha mãe também, daí não cantavam para mim.

Outro participante desse grupo afirmou ainda que:

Minha relação com a música é distante. Na minha família ninguém faz música, só alguns primos distantes. Na igreja, por exemplo, minha família só ouvia, nós nunca participávamos ativamente das poucas atividades musicais que eram realizadas. Eu tive vontade de aprender música, mas onde eu morava não havia ninguém que dava aula, na minha comunidade não tínhamos muitas práticas musicais.

Como vemos, os entrevistados do grupo B não tiveram um considerável contado com o fazer musical. Ao contrário dos candidatos dos grupos A e C, eles não possuíam uma prática musical em sua casa e tão pouco tiveram pais ou parentes próximos que pudessem influenciar de alguma forma. Antes o contrário. Como afirmou uma das candidatas: Minha mãe não cantava musiquinhas para mim. Tais afirmações corroboram claramente as ideias de Luria R. A.; Leontiev, A. N.; Vygotsky, L. S. et al. (2005) a respeito da importância das inter-relações sociais no desenvolvimento infantil. Uma criança jamais poderá dar aquilo não lhe é oferecido.

Analisar quais foram as influências que nossos entrevistados receberam é, sem dúvida, muito relevante. Mas avaliar o quanto essas influências se transformaram em oportunidades, e, por sua vez, o quanto essas oportunidades foram aproveitadas por eles, é igualmente importante. Vamos, portanto, a essas considerações, mas, ao contrário, começando agora pelos entrevistados do grupo B.

Como explicitado acima, os entrevistados do grupo que não estudaram música e não desenvolvem algum fazer musical não tiveram influências musicais na infância. A despeito disso, contudo, as entrevistas mostraram que, ambos, por volta da adolescência tiveram algum contato com ensino/fazer musical.

Um dos candidatos, por exemplo, afirmou que na adolescência teve a oportunidade de participar de um projeto onde havia aulas de violão em grupo. Esse é um fator interessante e deve ser levado em consideração. Esse indivíduo teve algum contato com um ensino – inclusive sistematizado – de instrumento. Por que, então, não obteve êxito? A razão logo aparece:

Eu tive vontade de continuar no projeto, mas eu não tinha violão, e quando o projeto acabou eu fiquei sem instrumento.

O projeto ao qual o entrevistado se referiu durou apenas algumas semanas e, obviamente, o participante recebeu apenas algumas poucas aulas. A situação se complica ainda mais quando o violão, o único instrumento ao qual teve acesso por poucos dias, se vai e o projeto acaba. Por maior que fosse seu entusiasmo com a aprendizagem do novo instrumento, nosso entrevistado jamais poderia obter qualquer tipo de êxito, uma vez que, desprovido do instrumento – e consequentemente da possibilidade da prática – perdia toda a chance de prosseguir.

Caso semelhante pode ser notado no relato de outro participante do grupo B. Esse, também na adolescência, teve contato com algum tipo de fazer musical. Não por meio de um instrumento, mas, agora, pela prática coral. Nosso entrevistado afirmou:

Eu tive uma pequena participação num conjunto, mas durou pouco tempo. E quando acabou fiquei sem cantar.

Assim como no primeiro caso, o referido candidato não permaneceu por muito tempo no grupo vocal ao qual pertencia, deixando assim a prática do canto. É importante notar que existe uma considerável diferença entre esse e o primeiro exemplo. Aquele entrevistado perdeu seu instrumento e, obviamente, não poderia ter progresso. No segundo caso, porém, o que está em questão é a voz; algo que não lhe foi “tirado”, e que, mesmo sem o envolvimento com o grupo musical, poderia ser desenvolvido. Será? Um detalhe precisa ser revelado: o entrevistado em questão é o mesmo que, a pouco, afirmou: minha mãe não cantava musiquinhas para mim. Esse adolescente, sem nenhuma prática no canto, sem nenhuma vivência familiar, encontra nesse projeto sua primeira oportunidade de começar a direcionar todo seu aparelho vocal para prática do canto. Mas ao dar seus primeiros passos, o conjunto se desfaz e novamente se vê exilado da prática. Não seria esse um motivo razoavelmente plausível?

Ainda se referindo às oportunidades recebidas na infância/juventude, mas agora tendo em foco os candidatos do grupo A, apresentaremos elementos importantes das entrevistas. Vejamos o que afirma um dos entrevistados:

Comecei a estudar violoncelo aos 12 anos, não escolhi estudar, mas era a chance de ganhar uma bolsa; o projeto onde eu estava precisava desse instrumento. Recebi muita motivação do professor, das pessoas. Logo no início começaram a me chamar para tocar na orquestra da escola.

Esse entrevistado – aquele mesmo que, como acima mencionado, alegou ter tido aula particular de piano desde os 6 anos – revelou detalhes muito importantes. Segundo ele, a escolha do instrumento veio atrelada à necessidade do projeto ao qual se referiu. O projeto precisava de violoncelos e, ao que parece, esse foi o principal “motivador” na escolha do instrumento. Notem ainda, que o entrevistado afirma que logo começou a participar da orquestra da escola, e que houve muito incentivo por parte das pessoas para que prosseguisse estudando.

Outro participante, curiosamente, afirma que escolheu tocar violino por influência do tio, que também era violinista. Veja o que ele diz:

Meu tio tocava violino e eu achava aquele instrumento interessante. A música era algo distante mas ao mesmo tempo eu via que as pessoas em volta de mim me davam oportunidade de chegar lá. Escolhi o violino por influência das pessoas que estavam perto de mim.

Para nosso entrevistado, a influência externa dos familiares foi totalmente pertinente, direcionando suas escolhas e práticas musicais. A forma de “aproveitar” a oportunidade de estudar desse entrevistado também é bastante curiosa. Notemos:

Eu tinha um violino alugado e se eu não estudasse eu não ganharia o meu; esse era o trato do meu pai.

Nosso jovem entrevistado, fortemente influenciado pelo tio, queria seu instrumento, mas a única forma de obtê-lo, porém, era estudando e mostrando bom desempenho enquanto estava com o instrumento alugado; sem mais delongas, o que lhe restava era o estudo.

Partimos agora à análise dos candidatos do grupo C, tendo como objetivo notar como foram suas práticas musicais e como souberam fazer bom uso de suas oportunidades.

Retornemos ao exemplo do entrevistado que possuía um velho violão em casa e que gastava horas brincando com ele. Lembremos de que um dos tios desse candidato tocava, modestamente, o instrumento, e que o juvenil “prestava muita atenção e sempre tentava imitar o que ele fazia”. Quando perguntado a respeito do tempo que dedicava ao instrumento, qual foi nossa surpresa ao ouvir que:

Eu gastava muitas horas com o meu violão. Gastava praticamente metade do dia tocando. Eu dava alguns intervalos, mas se fosse contar as horas de estudo, era quase a metade do dia tocando.

Apesar de nunca ter frequentado uma escola formal de música, nosso entrevistado afirma que várias horas foram dedicadas ao instrumento durante a juventude. Ele ainda alega que tudo que conseguia aprender com o tio e com o estudo, ele ensinava para o irmão.

Outro importante fator apresentado por esse candidato se refere ao estímulo recebido dos pais.

Os meus pais sempre foram muitos ligados a música. Meu pai investia muito; ele incentivava, gastava tempo me vendo tocar. Isso me motivou muito. Ele tinha orgulho de mim; minha família tinha muito orgulho de mim.

Ainda nesse grupo, encontramos o exemplo de outro entrevistado. Aquele mesmo candidato que afirmou ouvir seus pais e tios cantando desde os 5 anos. Vejamos o que diz:

Eu sozinho imitava meus tios e meus pais. Eu aprendi a dividir vozes com eles. Eu aprendi ouvindo.

Totalmente imerso nesse ambiente musical, o referido candidato afirma que, quando já mais velho, começou a receber o contato de outros ambientes.

Aos 15 fui chamado para coordenar o grupo que eu participava. Recebi motivação da minha igreja. Eu comecei a tocar piano vendo meu tio. Eu gostava de brincar com o piano.

Assim como no caso do primeiro entrevistado, esse segundo nunca frequentou escola e projetos de música; não obstante, é possível ver seu envolvimento com o fazer musical. Notemos que nosso entrevistado teve, desde a infância, um significativo contato com a prática musical. Vemos que mesmo sem formação sistematizada, o entrevistado continuou recendo apoio e influência de seu ambiente social. Esse segundo, igualmente ao primeiro, dedicava horas à música e à medida que se especializava passava ele mesmo a influenciar outros ao seu redor. Vale ressaltar que esse entrevistado é regente de um coro e desenvolve um notável trabalho de inclusão.

O que podemos perceber, grosso modo, é que existem diferenças pontuais em cada grupo – em especial entre os grupos A/C e B. Quanto aos grupos A e C, o que pudemos perceber foi que, embora os candidatos do grupo C também desenvolvam atividades musicais e, mesmo sem nunca terem estudado são, de fato, músicos, eles se sentem “incompletos” em relação aos entrevistados do grupo A. Os entrevistados do grupo C sentem que o domínio da escrita/notação musical lhes faz falta. Já os entrevistados do grupo A não apresentaram esse tipo de afirmação. Antes disseram que sua boa formação lhes proporcionou a plena capacidade de decifrar nosso sistema de notação musical, bem como se expressar por meio de improvisos melódicos e harmônicos.

A maior diferença notada diz respeito aos candidatos do grupo B. Esses entrevistados demonstraram sentir-se, de alguma forma, diminuídos por não terem tido a oportunidade de estudar música. Um dos entrevistados chegou a afirmar:

Um fator interessante: música é só para ricos. O pobre não pode aprender música. O instrumento é caro, e muitas vezes ele fica sem condições de aprender.

Afirma ainda que:

Meu contexto social nunca me proporcionou a oportunidade de aprender música. Se eu tivesse aprendido música eu seria uma pessoa mais completa. Quando eu vejo as pessoas fazendo música eu me sinto um pouco aquém. Eu me comparo com o outro e vejo que outros têm dom enquanto eu não tenho.

Mesmo com afirmações como, vejo que outros têm dom enquanto eu não tenho, notamos que, na verdade, os participantes do grupo B não tiveram as devidas oportunidades; não receberam as devidas ferramentas que lhes proporcionassem uma real experiência de aprendizagem com a música. É importante chamar a atenção para alguns “conflitos” conceituais presentes no discurso dos entrevistados. Existe uma dubiedade de percepção sobre sua própria condição: não sabe música porque é pobre e não teve oportunidade ou não sabe música porque não tem o dom? Em suma, como base no referencial que demonstra a importância do fator histórico e social na constituição da musicalidade, não seria exagero afirmar que os candidatos do grupo B só não aprenderam música justamente por não terem a oportunidade de dela se apropriar – como aconteceu com os candidatos do grupo C, por exemplo. Não deixaram de ser músicos por alguma razão biológica, ou mesmo mística, como talento ou dom inato, mas sim por não terem uma profunda imersão no mundo musical; por não terem tido a oportunidade de se apropriar culturalmente dessa expressão artística.

EDUCAÇÃO MUSICAL – NOVAS PERSPECTIVA, ANTIGOS DESAFIOS: O TALENTO INATO

Como foi possível averiguar até aqui os entrevistados dos diferentes grupos expuseram detalhes de sua relação com a música. Pudemos notar uma significativa diferença em relação aos perfis, observando, assim, como o contato com o fazer musical na infância, por exemplo, se apresenta como fator determinante em sua atual relação com a música. Do modo que cada um dos participantes apresentou elementos diferentes em relação a sua aprendizagem – ou não aprendizagem – musical, decidimos, no término de cada entrevista, perguntar aos candidatos qual era, em sua opinião, a razão/origem da musicalidade; como pensam ter aprendido, ou não aprendido, música.

Sem exceção, todos os entrevistados do grupo B e C afirmaram entender a música como um dom, algo inerente às pessoas – ou melhor dizendo, algumas pessoas. Os participantes desses grupos afirmaram que o talento musical é algo que nasce com determinados indivíduos; indivíduos agraciados pela divindade ou pela natureza. Tais resultados não nos pareceram surpreendentes, uma vez que, no ideário do senso comum, é justamente essa a concepção de talento que comumente se nota.

Os entrevistados do grupo A, todavia, foram enfáticos em dizer que o talento musical é algo a ser aprendido, e que seu atual grau de domínio da musicalidade reflete, na verdade, sua profunda dedicação à música e seu estudo sistemático[7]. Assim como se aprende uma língua, todo mundo que não tem deficiência pode aprender música da mesma forma, afirma um dos entrevistados do grupo A. Complementa ainda dizendo que: Eu tenho que praticar muito mais para tocar tão bem quanto outras pessoas. Outro participante do mesmo grupo complementa dizendo: Eu percebo que as oportunidades que recebi foram muito importantes. Meus professores diziam para mim que o que eu fazia era necessário, que era importante. Qualquer pessoa consegue; ela precisa ter oportunidade e saber aproveitar; correr atrás, é só isso.

Entretanto, como há pouco afirmamos, esse não foi o resultado obtido entre os participantes do grupo B. Como nenhum deles nunca havia tido qualquer tipo de imersão no mundo musical e, portanto, não se tornaram músicos, era claro – para eles – que o talento musical só poderia ser algo dado e inato a alguns escolhidos. Veja o que diz um dos entrevistados do grupo B:

Eu acredito que eu não tenho esse dom. Eu acho que música é inato. Eu acredito que a música é uma arte, então é algo inerente da pessoa. Não depende de um estímulo para ela ser boa. E termina dizendo que quem tem o dom sempre vai fazer melhor, simplesmente porque esse é o dom dele. Outro entrevistado, apenas reforçando a primeira citação, alega: eu vejo que algumas pessoas têm um dom especial. Algumas pessoas já nascem com dom musical desde de criança; crianças prodígio.

Como podemos ver, entre os que não tiveram relação com essa expressão artística é forte a ideia de que apenas algumas pessoas podem aprender música. Notamos que, paradoxalmente, as pessoas estão falando em dom quando já disseram que não tiveram oportunidade. Mas o que teriam a dizer os candidatos do grupo C? Eles nunca estudaram música formalmente. Vejamos o que pensam a respeito da ideia do dom e/ou talento inato.

Eu entendo que a música foi um presente de Deus, alega um dos entrevistados. Complementa dizendo: isso é um dom. Eu acho que as pessoas veem um dom em mim.

Eu já tinha o talento musical. É algo que nasceu dentro de mim. Foi importante ver o que estava fora, mas existia um cosmo dentro de mim, assegura outro dos entrevistados.

Assim como no grupo B, os participantes do grupo C também, unanimemente, afirmaram entender a música como algo inerente e a aprendizagem musical como algo a ser determinado por um dom inato. Para eles, não havia dúvida de que sua aprendizagem musical estava à sorte desse referido dom.

Obviamente nosso olhar externo nos possibilitou atentar para outros fatores. Embora as citações dos participantes do grupo C parecessem valorizar o inato em detrimento do adquirido, pudemos fazer uma comparação entre suas vivências e suas concepções. A despeito de terem salientado com tanta veemência seu suposto talento inato, o que notamos, na verdade, são sujeitos que afirmam claramente o quanto se dedicaram à música. O entrevistado que afirmou “eu entendo que a música foi um presente de Deus” é o mesmo que minutos antes dizia “eu gastava muitas horas com o meu violão. Gastava praticamente metade do dia tocando. Eu dava alguns intervalos, mas se fosse contar as horas de estudo, era quase a metade do dia tocando.” O entrevistado que disse: “eu já tinha o talento musical. É algo que nasceu dentro de mim”. Tem gente que nasce para ser músico. Música é algo que vem da alma. É uma inspiração que eu sinto que vem do alto”, é o mesmo que momentos antes afirma: “eu via música na igreja; eu ouvia as pessoas cantando e eu também cantava. Quando criança, meus tios e minha mãe cantavam em casa. Desde dos meus 5 anos eu os ouvia.” É-nos mais que evidente que os fatores externos foram o fator chave do desenvolvimento de seu “dom” – mesmo que algumas pessoas “esqueçam” isso. Sem todo o contato musical, sem as práticas que viram, ouviram e vivenciaram, nossos entrevistados jamais teriam desenvolvido sua musicalidade ao ponto de serem tão talentosos.

Em meados do século XX, Theodor W. Adorno, filósofo alemão da escola de Frankfurt, afirmou:

Caso alguém questione o privilégio do dom musical, isso era visto como blasfematório tanto pelos indivíduos musicais, que com isso se sentiam degradados, quanto pelos não musicais, que já não podiam se convencer, diante da ideologia cultural, de que a natureza havia privado-lhes de algo (ADORNO, 2011, p. 272-273).

Quase um século depois observamos, com tristeza, que esse ainda é o ideário corrente entre o senso comum. Vemos que, ainda hoje, a ideia do dom inato se apresenta como empecilho à aprendizagem musical.

Desde agosto de 2008, com a aprovação da Lei Federal 11769 que, alterando o artigo 26º da nossa atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/1996), obriga os conteúdos musicais dentro do componente curricular arte em toda a educação básica, temos observado que as possibilidades de algumas das nossas crianças e jovens terem acesso a uma educação musical de qualidade ainda são poucas ou nulas; a ideia de que algumas crianças apenas possuem aptidão para música ainda assombram até mesmo a educação musical na escola regular. Como afirma Pederiva, “no âmbito do ensino formal da música, a exclusão é um acontecimento, ainda que veladamente praticado e discursivamente negado entre professores” (2009, p. 13-14, grifo nosso). Mesmo que de forma tácita, educadores musicais correm o risco de entrar em sala de aula classificando seus alunos como “aptos” e “não aptos” a aprender música.[8]

A LEI GERAL DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E A EDUCAÇÃO MUSICAL

Como vimos, a ideia de música como algo restrito apenas a uma determinada parcela da sociedade nada tem a colaborar para o desenvolvimento ou o avanço da educação musical em nosso país. A ideia de que essa tão preciosa expressão artística pode estar ao alcance de todos precisa ser defendida e, de todas as formas possíveis, disseminada entre as pessoas. Educadores musicais, e mesmo pessoas de outras áreas do saber, têm se esforçado para isso, destacando-se nomes como Penna (2012), Fonterrada (2005), Kleber (2006), Barbosa (2001; 2010; 2013), Schroeder (2005), Pederiva (2008; 2009), entre outros. Vemos, contudo, que tal desafio demanda ainda mais esforços – razão e ímpeto principal dessa monografia.

Como a proposta deste estudo é demonstrar que a psicologia histórico-cultural pode nos equipar de fortes subsídios para um escopo ideal em educação musical, queremos expor aquele que, talvez, seja nosso principal argumento: que a lei geral da psicologia histórico-cultural, devidamente aplicada à aprendizagem musical, pode ser útil na superação das equivocadas concepção a respeito da aprendizagem musical. Notemos:

Toda função no desenvolvimento cultural entra em cena duas vezes, em dois planos, primeiro no plano social e depois no psicológico, ao princípio entre os homens como categoria interpsíquica e logo no interior como categoria intrapsíquica. Esse fato se refere igualmente à atenção voluntária, à memória lógica, à formação de conceitos e ao desenvolvimento da vontade. Temos todo direito de considerar a tese exposta como um lei, à medida, naturalmente, em que a passagem de externo ao interno modifica o próprio processo, transforma sua estrutura e função. Detrás de todas as funções superiores e suas relações se encontram geneticamente as relações sociais, as autênticas relações humanas (Vigotski apud MARTINS, 2013, p. 100).

Se partirmos desse pressuposto, se partimos da tese de que todo o desenvolvimento ocorre primeiro no social para só depois ocorrer no individual, veremos que, aplicada ao processo de aprendizagem musical, essa tese pode ser totalmente pertinente às nossas necessidades.

Se concordamos com Vigotski na teoria de que o cérebro humano é, em grande parte, uma lousa em branco sem inscrições inatas, exceto as características físicas primárias, e que a mente se origina em sua quase totalidade da aprendizagem social e da relação com o mundo externo, chegaremos à conclusão de que também a música – como atividade culturalmente construída – pode ser culturalmente aprendida. Partindo desse viés, entenderemos que a aprendizagem musical pode e deve estar acessível a todo e qualquer indivíduo.

Essa base biológica da atividade de caráter musical permite afirmar sobre a universalidade da musicalidade, isto é, se depender das possibilidades enquanto animais humanos, todos somos capazes de nos expressar musicalmente, de expressar nossas emoções por meio de sons, do mesmo modo como, de modo geral, se depender da anatomia e fisiologia humana, todos somos capazes de nos expressar por meio da fala. Isso é dado ao ser humano, independentemente das formas que possam assumir. A musicalidade possui assim, caráter universal (PEDERIVA, 2009, p. 185).

Assim como Penna (2012) e Schroeder (2005), pensamos num ensino que entenda a música como uma “linguagem” a ser aprendida. Não uma “linguagem universal”, como comumente transparece ao ideário comum, mas sim como “um fenômeno universal, que como linguagem é culturalmente construída” (PENNA, 2012, p. 24). Uma educação musical que seja acessível a todos, onde a criança e o jovem possam aprender música não de forma desconexa ou subdividida, mas sim de forma integradora e, no mais amplo sentido da palavra, completa.

A psicologia histórico-cultural, com suas propostas e teses, se propõe a superar todas as demais teorias apresentadas no início deste estudo. Se analisarmos a essência de suas propostas, veremos que a teoria inatista-maturacionista, por exemplo – por seus pressupostos inatistas em relação ao desenvolvimento humano – não seria capaz de superar os tão arraigados preconceitos em relação ao dom inerente, que sendo notoriamente exclusivista tem minado a motivação de tantos alunos ao redor de escolas e conservatórios. Observa-se também que a teoria comportamentalista – por seus fundamentos que entendem o homem como estímulo/resposta, desconsiderando, por exemplo, seus meandros sociais – de mesmo modo não nos daria suporte para esse novo e necessário passo. Igualmente, a teoria piagetiana também não nos levaria ao tão esperado escopo – uma vez que postula que o desenvolvimento do homem precede sua aprendizagem, sugerindo, portanto, que tal desenvolvimento é oriundo de forças internas e não aprendidas. Falha ao não notar que, ainda que conte com todas as propriedades morfisiológicas requeridas ao seu desenvolvimento, o homem sucumbirá no pleno gozo de suas propriedades naturais, caso se mantenha alienado de condições de vida e educação, isto é, de um acervo de objetificaçãos a se apropriar (MARTINS, 2013).

Portanto, apenas a psicologia histórico-cultural é capaz de nos dar subsídios para essa nova etapa educacional e musical de nosso país. Apenas ela é capaz de fornecer luz e embasamento para o tão necessário superar das antigas e preconceituosas compreensões de música na educação. Uma educação musical pensada com base nos pressupostos teóricos das concepções vigotskianas pode nos levar à teorias e práticas mais promissoras em educação musical. Uma educação musical que se desvincule completamente da retrógrada ideia de talento musical como algo inato e que reconheça que não há outro caminho para se desenvolver essa habilidade senão por uma profunda relação com a música; pelo acesso democrático e igualitário a esse bem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tecidas essas considerações queremos concluir nosso estudo salientando novamente a importância de se compreender os seres humanos como entidades pensantes e possuidoras de necessidades fisiológicas, afetivas e intelectuais, bem como o quanto a psicologia poder nos auxiliar nesse processo. Reconhecemos, de igual modo, a amplitude e vastidão dessa temática, entendendo que essa pesquisa, apesar de concluída, nos postula novas incógnitas; novos objetos de estudo – que com certeza merecem aprofundamento em estudos futuros.

Por fim reafirmamos nossa tese, apontamos a lei geral da psicologia histórico-cultural como sendo capaz de nos oferecer subsídio teórico para um ensino de música mais democrático e promissor. Um ensino de música que nos proporcione a sistematização do conhecimento musical em suas formas mais desenvolvidas, objetivando, assim, o pleno desenvolvimento humano. Entendendo, portanto, que dependendo dos fundamentos subjacentes às ideias da psicologia histórico-cultural, a música não pode ser vista como uma capacidade de alguns. Ela é, pelo contrário, acessível a todos.

REFERÊNCIAS

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  1. Adotaremos a grafia Vigotski, excerto em citações, onde reproduziremos a forma presente na obra referida.
  2. Alexis N. Leontiev [1903-1979] e Alexander R. Luria [1902-1977] foram os principais colaboradores de Vigotski.
  3. “Aquele que significa”: referindo-se aqui ao ser mais experiente não como sendo o “mediador”, mas sim como aquele que significa os símbolos para o menos experiente. Para maior aprofundamento cf. Martins, 2013.
  4. Para análise comparativa com outra teoria da aprendizagem, ver item 3.1.
  5. Para maior aprofundamento sobre a zona de desenvolvimento proximal consultar Duarte (1993).
  6. Sistemático como relativo de contínuo.
  7. Para considerações um pouco mais detalhadas de nossa reflexão a respeito do talento musical e as correntes inatistas que defendem a ideia de dom, cf. “E para quem não tem o dom? reflexões sobre o conceito de talento e musicalidade e suas implicações na educação musical” (BELING; LIMA, 2013).

[1] Doutorando em Educação Escolar, Mestre em Educação Musical, licenciado em educação artística/música. Professor da Educação Básica.

Enviado: Janeiro, 2018

Aprovado: Fevereiro, 2019

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Rafael Beling Rocha

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