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Contribuições das ciências das religiões aplicadas ao ensino religioso escolar

RC: 146565
302
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/religioes-aplicadas

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

PIUMBINI, Mario Cesar [1]

PIUMBINI, Mario Cesar. Contribuições das ciências das religiões aplicadas ao ensino religioso escolar. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 07, Vol. 02, pp. 96-111. Julho de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/religioes-aplicadas, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/religioes-aplicadas

RESUMO

O artigo esboça algumas contribuições das Ciências das Religiões Aplicadas no currículo do Ensino Religioso em semelhança às outras áreas que compõem o currículo das escolas brasileiras. A BNCC ganha destaque como instrumento norteador da prática docente no Ensino Religioso, que tem seus referenciais teórico-metodológicos nas Ciências das Religiões Aplicadas. Na trilha de uma pesquisa bibliográfica e documental, evidencia-se o status acadêmico dessa área que, além de empreender estudos sobre as religiões e mundividências seculares do mundo, mostra-se pertinente para a formação docente nesse componente curricular. Defende-se, pois, que as Ciências das Religiões Aplicadas representam, em última instância, emergem como referencial privilegiado para o currículo do Ensino Religioso com potencial de garantir a laicidade do Estado e sua aplicação como ciência aplicada do fenômeno religioso.

Palavras-chave: Ensino Religioso, Ciências das Religiões Aplicadas, Currículo.

1. INTRODUÇÃO

O artigo destaca as Ciências das Religiões[2] como área de conhecimento capaz de possibilitar a formação docente inicial de Ensino Religioso (ER) e o estudo das religiões e visões seculares do mundo, nas escolas brasileiras. Trata-se de uma compreensão elementar e adequada à dinâmica educacional dos outros componentes curriculares, que fundamentam suas áreas de conhecimento para a formação docente bem como sua prática de ensino no contexto da Educação Básica (EB). Ou seja, com o ER isso não poderia ocorrer de modo distinto.

O referencial teórico e metodológico deste artigo se estrutura mormente numa das subáreas das Ciências das Religiões, a saber: as Ciências das Religiões Aplicadas. Procura-se propor possíveis aplicações dessa subárea capazes de afetar ocupações e/ou instituições seculares ou não.

O objetivo do artigo, nesses termos, é reafirmar as Ciências das Religiões como referencial adequado para o currículo do Ensino Religioso, capaz de garantir o cumprimento dos termos que envolvem a laicidade do Estado e sua aplicação como ciência aplicada do fenômeno religioso. Espera-se, com esse esforço, e como resultado almejado, alinhar o currículo do ER à luz dos pressupostos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), considerando que, de modo inédito, isso foi garantido num documento normativo oficial.

2. CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES E CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES APLICADAS

De modo semelhante às demais ciências, as Ciências das Religiões enfrentaram, e talvez ainda enfrentam, desafios no seu processo de desenvolvimento, considerando, é claro, a natureza e a complexidade de seu objeto de estudo privilegiado, o fenômeno religioso. Tanto no contexto de constituição dessa ciência quanto nos contextos americanos e, nesse caso, no cenário brasileiro, ainda se percebem conexões com referenciais religiosos sobretudo cristãs, dadas a relevância e a influência que a fé cristã imprimiu sobre tais contextos.

Compreender a religião em seus termos próprios, isto é, humanos, consequentemente, científicos, remete aos fundamentos das Ciências das Religiões enquanto ciência humana que se debruça sobre a produção religiosa essencialmente e estritamente humana, e não em referenciais meta-humanos para justificar a cientificidade que lhe é inerente, porque isso já gestaria certo comprometimento, caso fosse assim. Friedrich Max Müller tentou esclarecer que o objeto de investigação dessa área é a religião, num sentido mais amplo e não particular. Para ele, “quem conhece uma, não conhece nenhuma” (MÜLLER, 2020, p. 311). Ele compreendeu que a religião deveria ser perscrutada numa ótica externa e imparcial, ou seja, científica. Isso pressupõe que o estudo comparado da religião situa-se numa perspectiva empírica, que é compatível com sua materialidade temporal e espacial nos diversos cenários e inter-relações religiosas essencialmente humanas.

Para Wach (2018, p. 233), “o objetivo geral da Ciência da Religião é estudar sistematicamente e empiricamente as religiões de todos os tempos e lugares”, destacando esse empreendimento dentro de seu paradigma científico classicamente proposto e adotado internacionalmente. Esse paradigma implicaria numa estrutura interna das Ciências das Religiões em que o estudo do fenômeno religioso é articulado em dois eixos distintos e concomitantemente complementares, a saber: empírico e histórico.

O eixo empírico da disciplina possui um equivalente semântico, o histórico, embora “não se trate de uma espécie de arqueologia […]. Todavia, […] a ‘história da religião’ ocupa-se mais frequentemente com o presente e com religiões vivas do que com o passado e com religiões extintas” (GRESCHAT, 2005, p. 47-48). Ou seja, “o eixo histórico perscruta as religiões de maneira longitudinal. Cortes longitudinais são feitos dentro de um objeto religioso entre dois pontos de seu contínuo histórico” (GRESCHAT, 2005, p. 47) e geográfico.

Como observado, o estudo específico do fenômeno religioso elaborado no eixo empírico ou histórico não pressupõe a reconstrução histórica de uma determinada religião com suas dinâmicas e complexidades. Isso pode ser compreendido sobretudo com as religiões extintas, o que não as exclui do escopo disciplinar das Ciências das Religiões, mas pode estabelecer conexões dessas religiões com o aparecimento e mudanças de outras, bem como incorporar e/ou assimilar narrativas, crenças, objetos, ritos, entre outros elementos. Nas palavras de Greschat:

Elas também examinam a tensão entre aquilo que um objeto religioso pretende apresentar e o que realmente é. Querem investigar os efeitos de fatos religiosos singulares sobre a totalidade do seu sistema religioso e sobre uma cultura, e comparam o objeto em questão com uma roda em que uma engrenagem ou com um indivíduo que pertence a uma família. Além disso, estudam o impacto da religião em adeptos individuais e em grupo de fiéis (GRESCHAT, 2005, p. 47).

Esse eixo disciplinar das Ciências das Religiões, para além de descrever um fato religioso ou o percurso histórico de uma religião específica, analisa os efeitos dos objetos e dos fatos religiosos gestados pelos sujeitos ou grupos religiosos sobre uma realidade empírica específica, interna ou externa, que pode ser uma comunidade, uma cultura ou mesmo uma sociedade. Por isso, as Ciências das Religiões Aplicadas emergem como um novo eixo das Ciências das Religiões, vislumbrando a aplicação dessa disciplina.

De acordo com Tworuschka (2018, p. 46), As Ciências das Religiões Aplicadas “não explica apenas realidades presentes repletas de problemas ‘religiosos’ (componente descritivo), mas é norteada pela intenção de criação de uma realidade melhor e emancipada (componente normativo)”. Com efeito, as Ciências das Religiões Aplicadas interferem na realidade, sempre orientada pelas Ciências das Religiões, de modo que seus interesses “são entre outras coisas pacificadores, humanizadores e conciliadores” (TWORUSCHKA, 2013, p. 579).

Diante dessas considerações, o debate sobre as Ciências das Religiões Aplicadas pode ser considerado recente, remontando ao início do presente século. Desde sua gênese, as Ciências das Religiões foram tratadas como uma ciência teórica, sem qualquer implicação prática ou possibilidade de aplicação, evitando-se, assim, sua instrumentalização para atender a interesses religiosos.

3. A BNCC E O CURRÍCULO DO ENSINO RELIGIOSO: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, previa-se a BNCC. No Art. 210 do texto constitucional preconiza-se: “serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (BRASIL, 1988). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), nº 9.394/96, também assegurou essa exigência, de acordo com o Art. 26:

Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos (BRASIL, 1996).

Mas, esse conjunto de esforços, até então, não teria sido suficiente para consolidar o texto da BNCC até o final da última década. Mas, tais esforços culminaram na publicação do Referencial Curricular Nacional (RCN) para a Educação Infantil, feito pelo Ministério da Educação (MEC), no ano de 1998 como também os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Mesmo de modo fragmentário, mas considerando as etapas da Educação Básica em que os PCNs para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental foram consolidados em 1997, ao passo que para os Anos Finais do Ensino Fundamental, em 1998, e para o Ensino Médio no ano de 2000.

De qualquer forma, o RCN e os PCNs tornaram-se referenciais no processo de organização dos currículos no Brasil e, em certo sentido, contribuíram na estruturação do trabalho pedagógico realizado pelos docentes. Mesmo assim, as orientações estabelecidas nesses documentos oficiais deixaram a organização dos currículos à revelia dos sistemas de ensino básico, não sendo possível falar numa base nacional comum curricular integrada que pudesse garantir uma aprendizagem essencial para os estudantes.

Dessa forma, os currículos eram estruturados sem uma preocupação com essa etapa fundamental da formação básica dos estudantes. Dentre as áreas do conhecimento e os componentes curriculares preconizados pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), tanto para cada etapa quanto para a Educação Básica, embora seja assegurado, o Ensino Religioso permaneceu fora dos PCNs, pois não havia uma orientação curricular nacional sob a responsabilidade dos sistemas básicos de ensino (BRASIL, 2010a; BRASIL, 2010b; BRASIL, 2012).

Dessa forma, além de continuar sem um referencial curricular oficial para nortear a prática do Ensino Religioso nas escolas brasileiras, o lapso identificado nas DCNs para a formação docente inicial enfatizava a plausibilidade pedagógica e científica desse componente curricular como inerente aos contextos das escolas e às responsabilidades estatais.

Todavia, o conjunto de esforços que culminariam na elaboração e concretização da BNCC continuaram e, a partir do Plano Nacional de Educação (PNE), cujo estabelecimento ocorreu com a Lei nº 13.005/2014, e com a Conferência Nacional pela Educação (CONAE), realizada pelo Fórum Nacional de Educação (FNE), nos anos de 2010 e 2014, desembocaram na primeira versão da BNCC. Esse primeiro avanço pode ser considerado inédito, no sentido de pavimentar referenciais oficiais para o Ensino Religioso.

O percurso de elaboração e concretização da BNCC ocorreu em três versões desse documento. Na primeira e na segunda versão, o Ensino Religioso aparecia para consulta pública e amplos debates, mas fora excluído na terceira e reinserido apenas com a homologação da BNCC no ano de 2017 (BRASIL, 2018). Até então, o texto da BNCC somente incluía as etapas relacionadas à Educação Infantil e o Ensino Fundamental, de modo que o Ensino Médio foi integrado ao documento apenas em 2018.

A BNCC representa um documento de caráter normativo que determina o conjunto progressivo e orgânico dos processos de aprendizagens fundamentais que os estudantes precisam desenvolver no decorrer das etapas e das modalidades da Educação Básica brasileira (BRASIL, 2018). Trata-se de um documento norteador para as etapas dos sistemas de ensino público e privado, eivado de propostas pedagógicas para tais etapas e modalidades da Educação Básica. Logo, a BNCC propõe conhecimentos, competência e habilidades a serem desenvolvidas nos estudantes no decorrer da escolaridade elementar. Trata-se um texto orientado por princípios éticos, políticos e estéticos definidos pelas DCNs da Educação Básica e, por isso, a BNCC se articula em paralelo aos propósitos que norteiam a educação nacional para a formação humana integral, bem como para a edificação de uma sociedade mais justa, inclusiva e democrática.

Em 2017, após a homologação da BNCC, publicou-se a Resolução CNE/CP nº 02/2017 que preconizava a implementação da base na Educação Infantil e no Ensino Fundamental. No Art. 23 desta Resolução, o Conselho Nacional de Educação (CNE) ficou responsável pela definição dos critérios para o trato com o Ensino Religioso, isto é, se ele permaneceria como área de conhecimento ou como componente curricular no âmbito das Ciências Humanas (BRASIL, 2019).

Foi através do Parecer CEB/CNE nº 8/2019 que o Ensino Religioso começou a ser tratado como componente curricular da área das Humanidades. Embora a aprovação desse Parecer, sua homologação é essencial para o Ensino Religioso, que ainda recebe o tratamento, na prática, como uma área à parte, ou melhor, como área de conhecimento e como componente curricular simultâneo, o que em nossa análise não deveria existir, uma vez declarada a dependência de sua área de conhecimento referencial, as Ciências das Religiões – tanto para formação docente quanto para aplicação dos conhecimentos gestados, acumulados e sistematizados para a prática pedagógica, que envolve o estudo do fenômeno religioso e as visões seculares de mundo.

Nesses termos, a definição das Ciências das Religiões como área de conhecimento referencial para a formação docente inicial, empreendida pela Resolução CNE/CP nº 5/2018, enfatizou a necessidade de homologação do Parecer nº 8/2019, porque as Ciências das Religiões, como uma das áreas sistematizadas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), emerge como uma das áreas que pertencem às Ciências Humanas (STERN, 2018).

Ou seja, uma vez que as Ciências das Religiões oferecem um arcabouço teórico-metodológico para o Ensino Religioso e está estruturada nesse modelo no contexto da educação superior, organizadas em conformidade com a Educação Básica e atendendo aos mesmos critérios estabelecidos para os componentes curriculares e áreas de conhecimentos escolares, as exceções e os tratamentos diferenciados não deveriam existir para esse componente curricular. Nesse sentido, o estabelecimento da dependência das Ciências das Religiões como uma disciplina científica autônoma, o que já está claramente resolvido na atualidade, considerando o estado da arte desta área, torna possível, relevante e plausível sua presença no processo de formação humana e integral dos estudantes.

O texto da BNCC preconiza as Ciências das Religiões como uma área pertinente para o desenvolvimento do currículo do Ensino Religioso nas escolas nacionais, destacando, na mesma intensidade, a natureza científica imprescindível que apresenta para a formação cidadã e humana dos estudantes. Além disso, a BNCC reconhece nas Ciências das Religiões o trato com o conhecimento e com as aprendizagens fundamentais que devem ser asseguradas às pessoas, com base no respeito aos direitos civis, sociais, políticos e humanos (BRASIL, 2018).

4. CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES APLICADAS COMO BASE PARA O CURRÍCULO DO ENSINO RELIGIOSO

Pensar no modelo de um currículo capaz de assumir a aplicação de uma área de conhecimento envolve a apresentação de propostas, elementos de análise e estudos próprios para sua devida aplicação. Mas, isso não envolve apenas um processo de seleção de conteúdo, pelo contrário, é preciso esclarecer os objetivos, abordagens, métodos, tratamento didático, enfoques e, sobretudo, o destino que se pretende chegar com tais propostas, sinalizando os resultados e influência na vida dos estudantes e da sociedade em geral.

De acordo com Silva (2017), toda proposta curricular possui, implícita ou explicitamente, um profundo caráter normativo e prático, capaz de induzir e indicar caminhos e possibilidades entre um estado e outro. Por causa disso, as finalidades estabelecidas no currículo precisam se embasar nos princípios, valores e direitos humanos universais, considerados indispensáveis para o desenvolvimento humano igualitário e libertário com perspectivas de dignidade e solidariedade.

A produção de um currículo, com efeito, envolve amplos debates sobre as teorias e as metodologias selecionadas para sua produção. Trata-se de um documento de identidade e, por isso, exige um olhar mais minucioso e menos inocente. Nas palavras de Silva (2017, p. 150):

Não podemos mais olhar o currículo com a mesma inocência de antes. O currículo tem significados que vão além daqueles aos quais as teorias tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é a relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade (SILVA, 2017, p. 150).

Destarte, com base no pensamento de Silva (2017), o currículo tem múltiplas facetas que se sobressaem juntas, separadas e integradas. O currículo, segundo o autor, forja uma identidade que, indubitavelmente, não pode ser mais estruturada nos pressupostos e princípios da metafísica, considerados nestas linhas como extra-humanos ou meta-empíricos.

Diante disso, defende-se a forja de um currículo escolar assentado em pressupostos especificamente humanos, cujo ponto de partida e de chegada sejam os seres humanos em suas várias e distintas orientações, sentidos, organizações e realidades empíricas passíveis de observação, de pesquisa e aprimoramento. Trata-se, na verdade, de uma prática eivada de intencionalidades e sempre orientada nos conhecimentos e nos métodos científicos.

Com efeito, o currículo do Ensino Religioso, pautado nas Ciências das Religiões, em especial nas Ciências das Religiões Aplicadas, constitui-se dos princípios elementares inerentes ao desenvolvimento dessa área do conhecimento. As Ciências das Religiões pressupõem um compromisso irrestrito acerca do seu objeto, isto é, as religiões e as visões seculares do mundo. Trata-se de uma área desprovida de interesses apologéticos e/ou proselitistas, mas que exerce, ao invés disso:

A consciência da ‘relatividade’ e a postura de um ‘não-etnocentrismo’ diante das expressões múltiplas no mundo religioso, ‘a capacidade potencial de abstração religiosa de si mesmo’ e ‘indiferença’ a respeito das contraditórias pretensões da verdade com os quais o pesquisador é confrontado na realização de seus projetos, são competências-chave que caracterizam a Ciência da Religião (USARSKI 2006, p. 17).

Os princípios relativos às Ciências das Religiões podem ser sintetizados em duas dimensões, a saber: adesão ao discurso ético e não êmico, por assim dizer, e o agnosticismo metodológico.

A dimensão de adesão do discurso ético pressupõe os subsídios do conhecimento científico, no intuito de garantir o respeito às cosmovisões êmicas, ad intra, das religiões e outras visões seculares de mundo (STERN, 2018; STERN, 2020). Já o agnosticismo metodológico indica uma postura cética em relação às elaborações religiosas quanto às verdades absolutas. Em razão disso, os cientistas da religião não deveriam desprezar os aspectos observáveis empiricamente (COSTA, 2015; STERN, 2020), mesmo que tais aspectos evoquem o princípio da “tensão com os fiéis [em virtude dos] resultados científicos em relação ao autoconceito discrepante dos membros da comunidade pesquisada [o que levaria ao enfraquecimento da] estrutura de plausibilidade” (USARSKI, 2018, p. 73-74). Desse modo, essa comunidade estaria assistindo à desmistificação de sua crença, que, agora, mostra-se relativizada e/ou naturalizada.

Entretanto, Usarski (2018, p. 74) alerta que tal consequência do estudo nas Ciências das Religiões pode gerar reações nas comunidades religiosas pesquisas em benefício da “autodefesa e/ou do diálogo construtivo com o pensamento moderno”, mesmo que esse não seja o objetivo da disciplina. Mas, conta-se “o fato de que o caso exemplifica o efeito colateral de um conhecimento científico produzido de acordo com as normas constitutivas para o contexto de justificação” (USARSKI, 2018, p. 74).

Essas normas constitutivas serviriam como diretrizes e/ou princípios capazes de assegurar um dado conhecimento como científico no âmbito da justificação, e são precedidas pelas descobertas em que se situa um problema compartilhado no interior da comunidade acadêmica. Posteriormente, acrescenta-se a utilização para a qual esse conhecimento científico foi gestado, sem perder de vista os contextos de descoberta e de justificação, que se tornam públicos e que podem ser devidamente aplicados (USARSKI, 2018, p. 70-72).

Usarski (2018) explica que esse processo aponta para os estágios da produção de conhecimento à luz do pensamento de Reichenbach, que diferenciou duas dimensões dessa trajetória intelectual, a saber: o contexto de descoberta e o contexto de justificação, assim como fora descrito anteriormente, mas, que recebeu acréscimos de outros pensadores, na Autorenkollektiv Leipzig, em 1968, para delinear o contexto de utilização.

Em seu texto, Usarski (2018, p. 73-74) criticou a Ciência da Religião Prática na perspectiva de Tworuschka (2013; 2018), alegando certa “negligência” desse pensador em relação aos diferentes estágios da produção do conhecimento das Ciências das Religiões, o que implicaria, assim, nas conquistas históricas como sua “emancipação da tutela eclesiástica e política”, quando Tworuschka estaria desconsiderando: “o compromisso com a descrição dos nossos objetos sem interferência das posições extra-acadêmicas do pesquisador; e a análise dos dados levantados em uma atitude norteada pelo princípio de indiferença ideológica” (USARSKI, 2018, p. 73-74).

Com base nas críticas empreendidas por Usarski (2018), Tworuschka teria desconsiderado dois pilares inegociáveis das Ciências das Religiões que a constituem científica e distinta de outras disciplinas como a Teologia e Filosofia, isto é: a adesão ao discurso ético e o agnosticismo metodológico, capazes de afastar os interesses religiosos e políticos predominantes. Para Usarski (2018), a proposta de uma ciência prática da religião de Tworuschka não pode ser inviabilizada. Entretanto, ele entende que é preciso que as Ciências das Religiões sejam consideradas à luz de seus próprios termos e princípios relativos à produção acadêmica. Nesse sentido, sua aplicação ou prática aparece como um poderoso instrumento de contribuição e relevância social e cultural, face aos problemas de desinformação, violação de direitos e ideologias que impulsionam a intolerância e outras formas de discriminação.

Cavallin (2021) propõe quatro tipos ideais de Ciências das Religiões Aplicadas, a saber: modernista; pós-modernista emancipatório; utilitarista; e ciência da religião aplicada à lei natural e aos direitos humanos. A primeira abordagem pauta-se no ideal iluminista europeu, visando a garantia da laicidade do Estado com base na vontade e na razão humana, e não nas cosmovisões da religião. A segunda abordagem assume um caráter mais crítico, que não apenas critica a impureza da razão, do fenômeno religioso e das Ciências das Religiões em suas propostas ideológicas de classes dominantes, fomentando, assim, “a igualdade de gênero e do empoderamento e proteção de minorias sexuais dentro das religiões” (CAVALLIN, 2021, p. 179). A terceira abordagem foca na utilidade da disciplina em relação ao auxílio na abordagem de questões urgentes. A quarta e última abordagem baseia-se no direito natural e nos direitos humanos (CAVALLIN, 2021, p. 176-180).

O debate teórico em torno das Ciências das Religiões Aplicadas ao currículo do Ensino Religioso não é uma novidade, mas é marcadamente restrita (COSTA, 2015; SANTOS, 2018; SANTOS; JUNQUEIRA, 2018). A proposta curricular elaborada por Costa (2015) se estrutura em três eixos didáticos para o Ensino Religioso, a saber: religiões comparadas; estudo empírico das religiões; e conflito e diálogo inter-religioso. Segundo esse autor, o Ensino Religioso representa uma “produção cultural-religiosa humana [cujo objetivo consiste em] estudar toda produção cultural-religiosa humana numa perspectiva laica, escolarizada e fundamentada em conhecimentos da Ciência da Religião e outras áreas acadêmicas” (COSTA, 2015, p. 52).

Portanto, a metodologia das Ciências das Religiões Aplicadas precisa preservar seus pilares inegociáveis sustentados no discurso ético e na postura do agnosticismo metodológico, sem perder de vista dois princípios básicos: a interdisciplinaridade, que permite a integração dos sujeitos e dos conhecimentos pressupostos no processo; e o estudo não normativo do fenômeno religioso, em conformidade com os seus pilares inegociáveis supramencionados (COSTA, 2015, p. 53).

Os argumentos de Santos (2018) procuram estabelecer uma aproximação entre as Ciências das Religiões como referencial para a prática pedagógica do Ensino Religioso e, ao mesmo tempo, como transposição didática. Ou seja, o autor pensa nas Ciências das Religiões Aplicadas ao currículo do Ensino Religioso (SANTOS; JUNQUEIRA, 2018; SANTOS, 2018).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O reconhecimento de um currículo referenciado pelas Ciências das Religiões Aplicadas representa, antes de qualquer coisa, o reconhecimento das Ciências das Religiões como ciência elementar e teórica adequada aos estudos sobre o fenômeno religioso e outras visões seculares do mundo. As Ciências das Religiões Aplicadas podem contribuir no processo de resolução de problemas e demandas societais, em especial nos espaços públicos que consideram a religião como um elemento impactante na educação, no comportamento humano, na saúde, nas mídias, nas políticas públicas, na alimentação, e muitos outros.

Sabe-se que, até hoje, pode-se encontrar dificuldades em relação à participação dos estudantes em certas atividades de outros componentes curriculares que articulam datas e eventos culturais, tais como, danças, comportamentos, restrições, vestimentas e outros. Para interferir nessas situações, a partir de uma abordagem essencialmente humana e científica, são necessários conhecimentos articulados nessa mesma intensidade, no intuito de conter e evitar conflitos e atitudes discriminatórias, intolerantes, homofóbicas, racistas e xenofóbicas, entre outras, que violam o direito à liberdade religiosa, a dignidade e integridade humana dos estudantes e dos diferentes atores presentes nas escolas brasileiras.

Depreende-se, pois, que as Ciências das Religiões Aplicadas ao currículo do Ensino Religioso viabilizam tais conhecimentos, reduzindo as relações conflituosas e desconstruindo estereótipos sobre grupos e sujeitos, conferindo reconhecimento e visibilidade às minorias e aos grupos historicamente excluídos da sociedade. Com isso, esclarece-se a relevância da laicidade, com as devidas distinções entre o privado e o público, prevendo a recuperação e a efetivação dos direitos. Logo, as Ciências das Religiões Aplicadas podem mediar as relações entre grupos e pessoas na escola e na sociedade, oferecendo uma abordagem científico-social, porque está intrinsecamente comprometida com a melhoria social.

REFERÊNCIAS

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APÊNDICE – NOTA DE RODAPÉ

2. O termo é assumido neste artigo preferencialmente no plural, pois, compreende-se que ajuda elucidar a interdisciplinaridade entre as Ciências das Religiões com as outras ciências.

[1] Graduação em Ciências Contábeis e em Direito, pós-graduação em Direito Tributário. ORCID: https://orcid.org/0009-0001-0557-2396.

Enviado: 4 de abril, 2023.

Aprovado: 22 de junho, 2023.

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Mario Cesar Piumbini

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