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O Cérebro Bilíngue: Processos cerebrais durante a aquisição de linguagem

RC: 58481
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/cerebro-bilingue

CONTEÚDO

DISSERTAÇÃO

GABRIOTTI, Rafaela Bepe [1], ZOMIGNAN, Rosângela [2]

GABRIOTTI, Rafaela Bepe. ZOMIGNAN, Rosângela. O Cérebro Bilíngue: Processos cerebrais durante a aquisição de linguagem. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 08, Vol. 16, pp. 68-96. Agosto de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/cerebro-bilingue, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/cerebro-bilingue

RESUMO

Este trabalho é um estudo sobre a aquisição de linguagem, processos cerebrais envolvidos durante sua aquisição e o bilinguismo. O objetivo dessa pesquisa é melhor compreender como se dá o aprendizado de duas línguas simultaneamente, a fim de poder estarmos melhor preparados para assistir às crianças durante a aquisição linguística, bem como dar suporte ao professor e a família através de fundamentação teórica. Aspectos como a organização cortical da linguagem, diferenças entre o cérebro bilíngue, comparado ao monolíngue, e influência da interação social no aprendizado linguístico são explicados neste trabalho para proporcionar uma visão ampla da aquisição de linguagem bilíngue. Para esse estudo optamos por utilizar a pesquisa bibliográfica de literatura estrangeira, por não terem sido encontrados materiais suficientes no português que abrangessem as áreas de estudos contempladas. Os resultados apresentam de que maneira o cérebro processa a aquisição de linguagem, mostra a diferença entre aprender duas línguas simultaneamente, e de forma sequencial, e apresenta como os fatores sociais e a linguagem estão associados.

Palavras-chave: aquisição de linguagem, neurociência, bilinguismo, aspectos sociais, fonética.

INTRODUÇÃO

A aquisição de linguagem é um processo bastante complexo e que envolve inúmeros aspectos cognitivos, comportamentais e sociais. Ao longo dos séculos, estudiosos tentaram formular teorias que explicassem como se dá o processo de aprendizagem linguística. Com os avanços da tecnologia, as contribuições da neurociência foram extremamente significativas para esclarecer, com base científica através de exames cerebrais, como ocorre a aquisição de linguagem. Atualmente novos desafios e questionamentos acerca do assunto surgiram com o aumento da necessidade de se falar dois ou mais idiomas. De acordo com Ramírez e Kuhl (2016), cerca de dois terços da população mundial estimada compreendem ou falam pelo menos dois idiomas.

Com relação ao bilinguismo, existem ainda muitos questionamentos sobre como acontece a aquisição de duas linguagens simultaneamente, e muitas dúvidas quanto aos seus efeitos sobre o aprendizado. Neste estudo abordaremos o tema aquisição de linguagem, apresentando os processos cerebrais envolvidos, e faremos um paralelo entre o cérebro bilíngue e o monolíngue.

O estudo aponta as hipóteses de que a aquisição de linguagem é mais fácil nos primeiros anos de vida, que se nos primeiros anos de vida a criança for exposta a dois ou mais idiomas ela os aprende como línguas maternas, e não secundárias, e que para a aquisição de duas ou mais línguas ao mesmo tempo, a criança precisa de referências distintas.

O objetivo desse trabalho é melhor compreender como se dá o aprendizado de duas línguas simultaneamente, a fim de poder estarmos melhor preparados para assistir às crianças durante a aquisição linguística, bem como saber o que esperar deste processo e como medir o aproveitamento, dando suporte ao professor e a família através de fundamentação teórica.

A motivação para a realização deste estudo tem base na prática pedagógica, em que, trabalhando com crianças em escola bilíngue, sendo expostas a dois idiomas, pudemos observar alguns padrões, como, por exemplo, o fato de as crianças compreenderem o professor em inglês, porém só responderem em português, às vezes misturando palavras em inglês. Observamos também que algumas crianças se recusam a utilizar o inglês com os pais, tendo os professores como referência da língua inglesa. Atuar durante alguns anos neste universo, permite trazer exemplos concretos que podem guiar nossa investigação de modo a tornar mais concreta esta reflexão para os diversos públicos que compõem este universo. Ao pesquisar sobre como acontece a aquisição de linguagem de duas línguas simultaneamente pretendemos identificar como o cérebro processa a aquisição de duas línguas ao mesmo tempo, e analisar quais são os processos cerebrais durante a aquisição de linguagem.

Para esse trabalho optamos por utilizar a pesquisa bibliográfica de literatura estrangeira, pois não foram encontrados materiais suficientes no português que abrangessem as áreas de estudos contempladas. Acreditamos que essa será uma contribuição para a comunidade científica, por trazer informações ainda não disponíveis abrangentemente no português.

Este estudo será dividido em quatro capítulos. O primeiro será uma breve descrição das teorias de aquisição de linguagem. O foco do segundo capítulo será apresentar os processos cerebrais de aquisição de linguagem, como reconhecimento de fonemas e fala,  para posteriormente abordarmos os aspectos de aquisição de linguagem e o bilinguismo, que será o tema do terceiro capítulo. O objetivo do quarto capítulo é apresentar como a aquisição de linguagem está conectada aos aspectos sociais.

1. TEORIAS DE AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM

Segundo Campbell e Wales (1970), aquisição de linguagem é o processo em que crianças alcançam um controle fluente da sua língua nativa. Os autores afirmam que a primeira tentativa de documentar o desenvolvimento linguístico de uma criança se deu pelo biólogo alemão Tiedermann (1787), que focava em dar início a uma seleção de dados normativos sobre o desenvolvimento infantil. Campbell e Wales (1970) também apontam que o maior estímulo para o estudo de aquisição de linguagem provém da teoria da evolução de Darwin, mas que o autor que mais contribuiu para que o assunto começasse a ser estudado mais detalhadamente, foi o psicólogo alemão Preyer (1882), que estudou o desenvolvimento de seu filho durante os seus três primeiros anos de vida, fazendo anotações minuciosas de seu desenvolvimento linguístico.

De acordo com Brown (2000), existem várias perguntas acerca do desenvolvimento linguístico no que se refere ao tempo de aquisição de linguagem, e de que forma sua complexidade e sua função social são compreendidas e empregadas. O autor afirma que, ao longo dos anos, várias teorias de aquisição de linguagem tentaram respondê-las, e, apesar de explorarem alguns aspectos contraditórios, apresentam possíveis relações entre elas.

Neste capítulo pretendemos expor as principais teorias apresentadas por Brown (2000), bem como a teoria do período crítico de aprendizagem, para que posteriormente possamos falar sobre os processos cerebrais durante a aquisição de linguagem.

1.2  ABORDAGEM BEHAVIORISTA

Segundo Brown (2000), a abordagem behaviorista tem foco nos aspectos linguísticos imediatamente perceptíveis, ou seja, nas respostas (observáveis) aos estímulos. Demirezen (1998) complementa que o maior princípio da teoria behaviorista é a análise do comportamento humano, observando a interação estímulo-resposta e a associação entre elas. O autor aponta que através de um processo de tentativa e erro, em que os discursos aceitáveis são compreendidos e reforçados, e os inaceitáveis são inibidos pela falta de recompensa, a criança começa a fazer discriminações mais finas, até que seu discurso se aproxime mais e mais à fala da comunidade em que está inserida. Segundo o autor, para o behaviorismo, todo o aprendizado é o estabelecimento de hábitos, como resultado de reforço e recompensa. De acordo com ele, os teóricos behavioristas apontam que: O aprendizado de línguas é um processo mecânico que leva o aprendiz à formação de hábito, cujo esquema subjacente é o condicionamento do reflexo. (DEMIREZEN, 1998, p. 137) (tradução própria).

Brown (2000) afirma que o modelo behaviorista mais conhecido é o incorporado por Skinner, em seu clássico O Comportamento Verbal (1957). Brown aponta que a teoria do comportamento verbal de Skinner foi uma extensão de sua teoria de aprendizado por condicionamento operante. No modelo de Skinner, o comportamento verbal (como todo comportamento) é controlado por suas consequências. Quando as consequências são recompensadoras, o comportamento é mantido, e reforçado. Quando as consequências são negativas, ou inexistentes, o comportamento é enfraquecido até ser extinto.

Argumentando sobre a aquisição de linguagem e a abordagem behaviorista, Brown (2000) afirma que uma teoria baseada apenas em estímulo-resposta, condicionamento e reforço, não é suficiente para explicar aspectos mais complexos, como a capacidade de adquirir linguagem, bem como compreender seu desenvolvimento, e sua natureza abstrata. Segundo ele, a teoria de Skinner recebeu muitas críticas, entre elas, a de Chomsky (1959), de quem falaremos mais a seguir.

1.3 ABORDAGEM NATIVISTA

De acordo com Brown (2000), a abordagem nativista, ou inatista, deu ênfase justamente em tentar compreender os aspectos mais complexos da linguagem, tais como a capacidade das crianças de adquirir linguagem, de entender como ela se desenvolve, e como os aspectos abstratos da língua são abordados. Para os teóricos nativistas, a aquisição de linguagem é inata, ou seja, nascemos com uma capacidade genética que nos predispõe a uma percepção sistemática sobre a linguagem ao nosso redor, resultando na construção de um sistema de linguagem internalizado.

Segundo Brown (2000), as hipóteses nativistas tiveram apoios consideráveis, como o de Lenneberg (1967) e Chomsky (1965). O autor coloca que as propostas de Lenneberg (1967) indicam que a linguagem é específica à espécie e que certos modos de percepção e habilidade de categorizar, com outros mecanismos relacionados à linguagem, são determinados biologicamente. Chomsky (1965) também complementa afirmando que existem propriedades de linguagem inatas, que explicam como uma criança pode, em tão pouco tempo, ter domínio de sua língua materna.

Campbell e Wales (1970), apontam que para Chomsky (1968), a velocidade em que as crianças são capazes de inferir regras gramaticais subjacentes à fala a que são expostas, e poder posteriormente aplicar essas regras na construção do discurso que nunca ouviram antes, sugere que as crianças nascem com um conhecimento de princípios formais – tidos por Chomsky como universais – que determinam a estrutura gramatical de sua linguagem. Ou seja, o fato de crianças conseguirem aprender estruturas gramaticais através do que escutam, e aplicar a novos contextos, fomenta a hipótese nativista.

Para Brown (2000), a abordagem nativista trata de forma mais adequada os aspectos de aquisição de linguagem mais profundos, como significado, abstração e criatividade, especialmente em contraste quanto à abordagem behaviorista. Ele afirma ainda que as pesquisas têm mostrado que a linguagem da criança, dado um certo tempo, se torna um sistema legítimo. Ao comparar as abordagens behaviorista e nativista, o autor explica que:

O sistema de desenvolvimento linguístico da criança não é um processo de desenvolvimento de cada vez menos estruturas “incorretas”, não é uma linguagem em que estágios inferiores tem mais “erros” do que estágios posteriores. Em vez disso, a linguagem da criança, em qualquer estágio, é sistemática, sendo que a criança está constantemente formulando hipóteses com base no conteúdo recebido, e então testando tais hipóteses na fala (e compreensão). Com o desenvolver da linguagem, essas hipóteses são continuadamente revisadas, reformadas, ou às vezes, abandonadas. (BROWN, 2000, p. 25 – tradução própria).

Brown também apresenta em seu trabalho as contribuições de Berko (1958), que demonstrou que as crianças não aprendem a língua como uma série de itens separados, mas como um sistema integrado. Ela descobriu com um simples teste com palavras inventadas, que crianças de apenas quatro anos, cuja língua materna era o inglês, aplicaram regras gramaticais, já conhecidas – como as de formação de plural, de gerúndio, de passado, de terceira pessoa no singular (em inglês) e de possessivos –  à contextos novos.

Brown (2000) aponta que os estudos nativistas eram livres para construir gramáticas hipotéticas sobre a linguagem da criança, e que essas gramáticas, que consistiam na descrição dos sistemas de linguagem, foram amplas representações formais da estrutura profunda – as regras abstratas subjacentes à produção superficial – a estrutura que nem sempre é abertamente manifestada na fala. Segundo o autor, esse modelo gerativo foi uma separação da metodologia estrutural, e permitiu que pesquisadores dessem passos enormes em direção ao entendimento do processo de aquisição de linguagem.

Em seu estudo, Brown também apresenta o conceito de palavra pivô. Ele aponta que os nativistas analisaram que as primeiras “frases” das crianças eram compostas por duas palavras, sendo que elas pertenciam a classes de palavras diferentes, escolhidas com propósito, e não randomicamente. O autor coloca que a primeira classe de palavras era chamada de palavra pivô, por possibilitar inúmeras combinações com a segunda ordem de palavras, apresentando o modelo de frase como: palavra pivô + palavra, como, por exemplo, no modelo traduzido: “Meu boné”.

De acordo com Brown (2000), nos anos subsequentes, o modelo de Chomsky, e a suposição de que as regras gerativas, ou “itens” linguísticos, são conectados serialmente – com uma conexão para cada par de neurônios no cérebro, começaram a ser \ contestadas. Segundo ele, surgiu um novo modelo que apontava que a desempenho linguística deveria ser a consequência de vários níveis de interconexões neurais acontecendo simultaneamente (Processamento Distribuído Paralelo – PDP), e não um processo em série, tendo uma regra sendo aplicada após a outra.

Brown afirma citando Ney e Pearson (1990), e Sokolik (1990) que, de acordo com o modelo apresentado pelo Processamento Distribuído Paralelo (PDP) – que apresenta propriedades fonológicas, morfológicas, de sintaxe, lexicais, semânticas, discursivas, sociolinguísticas e estratégicas – uma frase não é “gerada” por uma série de regras, mas é, na verdade, o resultado de interconexões simultâneas de uma multidão de células cerebrais, propondo assim, uma visão diferente da apresentada pela abordagem nativista.

1.4 ABORDAGEM FUNCIONALISTA

Segundo Brown (2000), com o aumento dos estudos sobre a abordagem construtivista, os padrões de pesquisa começaram a mudar. Primeiramente, os pesquisadores começaram a perceber que a linguagem era uma manifestação da habilidade cognitiva e afetiva de lidar com o mundo, com os outros, e consigo mesmo. Em segundo, as regras gerativas, que foram propostas pelos teóricos nativistas, eram abstratas, formais, explícitas, e bastante lógicas, porém lidavam especificamente com as formas da linguagem, e não com o seu lado mais profundo, como os níveis funcionais de significado construído nas interações sociais. O funcionalismo deu ênfase justamente nas funções de linguagem, que são definidas pelo autor, como funções de usar as formas linguísticas de modo significativo e interativo, dentro de um contexto social. Em outras palavras, o funcionalismo foca na função da língua, no significado das palavras e construções gramaticais empregados durante as interações sociais.

De acordo com o autor, o funcionalismo veio questionar a gramática proposta pelos nativistas, que propunha a ideia de frase como: palavra pivô + palavra. Ele cita que Bloom (1971), após analisar dados dentro de contextos, concluiu que as crianças aprendem as estruturas subjacentes das frases, e não somente as superficiais como ordem de palavras, e que a ideia de frase como palavra pivô + palavra, falhava em capturar os vários significados que a criança poderia atribuir ao seu discurso. Brown coloca que: A pesquisa de Bloom (1971), com as de Jean Piaget, Dan Slobin e outros, abriu caminhos para uma nova onda de estudo sobre a linguagem da criança, desta vez focando na relação do desenvolvimento cognitivo durante a aquisição linguística, Brown (2000) (tradução própria). Brown aponta ainda que, segundo Piaget e Inhelder (1969), o desenvolvimento global da criança é o resultado da sua interação com o ambiente, com uma interação complementar entre suas capacidades cognitivas perceptivas em desenvolvimento, e com sua experiência linguística. Segundo o autor, após o surgimento dessa nova forma de enxergar o aprendizado linguístico, os pesquisadores começaram a formular regras sobre as funções de linguagem, e sua relação com as formas de linguagem, dando mais atenção à função do discurso da criança nas suas interações sociais, porém sem invalidar algumas ideias propostas pelos nativistas, como a de que o aprendizado linguístico é inato ao ser humano.

1.5 PERÍODO CRÍTICO PARA AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM

Após termos apresentado as principais abordagens sobre aquisição de linguagem, precisamos trazer à atenção de que aprender línguas na infância é muito mais fácil do que na fase adulta, o que podemos afirmar a partir de experiências, vivências e observações. Hagen (2008), aponta que a aquisição de língua das crianças é extremamente rápida, sendo que crianças se tornam fluentes em um período de três a quatro anos, enquanto adultos muitas vezes demoram décadas para aprender um novo idioma, e mesmo assim, nem sempre atingem fluência. O autor coloca que para crianças, o aprendizado de um idioma acontece de forma natural, sem esforços, enquanto para adultos pode ser um processo laborioso, difícil, e muitas vezes frustrante. Hagen coloca ainda que, as crianças não precisam aprender regras gramaticais para poderem adquirir uma língua, e que a aquisição do idioma materno acontece de forma universal. Segundo ele, todas as crianças, em todas as culturas, se tornam fluentes em sua língua nativa: Aquisição de linguagem é um processo sensitivo à idade, que resulta de mudanças maturacionais e neuroanatômicas, ainda pobremente compreendidas. (HAGEN, 2008) (tradução própria).

Hagen aponta que os estudos de Lenneberg (1964-1984) sobre perda de linguagem em crianças, contribuíram para a criação da Hipótese do Período Crítico, que afirma que por volta do primeiro ano de vida, até a adolescência, o cérebro humano está preparado para adquirir linguagem sem necessitar de instruções especiais, desde que a criança seja exposta a um ambiente linguístico rico. Sua afirmação se baseia em estudo feito com crianças que sofreram danos no hemisfério esquerdo do cérebro em sua fase pré-verbal, e que não tiveram nenhum prejuízo significante posteriormente.

Segundo o autor, o motivo pelo qual o cérebro humano está melhor preparado para aprender línguas nos primeiros anos de vida é uma questão de evolução física e comportamental. Ele compara as necessidades de um filhote de gnu, a um bebê humano, explicando que um filhote de gnu, por ser presa fácil, precisa aprender a se locomover rapidamente, o que ocorre  quase que imediatamente após o parto. Já um bebê humano, que nasce em um ambiente socialmente acolhedor, depende da linguagem para se socializar e sobreviver, o que justifica o fato de ela estar entre os primeiros traços cognitivos a emergirem na infância.

Hagen (2008) também afirma que o motivo pelo qual adultos tem mais dificuldade em adquirir um novo idioma, remonta ao período paleolítico. O autor coloca que para uma criança aprender uma língua, geralmente demora de três a quatro anos, e se considerarmos a cultura de hominídeos nômades, em primeiro lugar eles não teriam a oportunidade de aprender um novo idioma por conta de não terem tempo suficiente de exposição a uma nova língua, e em segundo lugar, por terem uma expectativa de vida muito curta, de cerca de 35 anos de vida, aprender uma segunda língua na fase adulta seria inútil: Os humanos arcaicos tinham pouca oportunidade de aprender qualquer coisa durante a fase adulta, simplesmente porque a fase adulta não durava muito mais do que a infância e a adolescência. (HAGEN, 2008) (tradução própria).

Para Hagen, em um cenário como o mencionado acima, a capacidade cerebral de aprender um novo idioma durante a fase adulta, com a mesma rapidez e eficiência de uma criança aprendendo sua língua materna, não teria nenhuma utilidade, portanto não foi uma habilidade que evoluiu universalmente no cérebro humano.

Hagen (2008, p.48) apresenta ainda que entre a comunidade de educadores, existem defensores de que a Hipótese do Período Crítico não existe, defendendo que o cérebro não esteja restrito a um período crítico biológico, mas a fatores sociais e comportamentais. Para eles, questões como as crianças serem mais desinibidas que adultos, estarem mais motivadas a aprender e mais abertas a novas interações do que adultos, é o que faz com que elas tenham mais sucesso ao aprender uma nova língua. Hagen contrapõe tais afirmações, colocando que não existem nenhuns estudos empíricos que apoiem essas ideias, bem como dá exemplos de adultos que por mais motivados a aprender, por mais desinibidos, ainda não são páreos para crianças quanto à aquisição de linguagem, da mesma forma que crianças tímidas e introvertidas ainda tem mais sucesso na aquisição de linguagem, mesmo que comparadas a adultos motivados e extrovertidos.

Enquanto a Hipótese do Período Crítico continua, de certa forma, controvérsia em estudos educacionais e sociais, entre a comunidade científica, em geral – e entre a comunidade médica em especial, em que fatos sobre idade e questões de perda e recuperação de linguagem impingem em decisões sobre como lidar com sérias condições médicas – é aceita sem debate. (HAGEN, 2008, p. 49 – tradução própria).

Para Hagen, a necessidade de aprender um idioma durante a fase adulta é  ainda muito recente em nossa história evolucionária para afetar nossa arquitetura cerebral, e visto por essa perspectiva, a aquisição de língua materna por crianças, e aquisição de uma nova língua por adultos, não é mais um mistério, como parecia antigamente, mas, na verdade se encaixa perfeitamente no mosaico da teoria da evolução.

Kuhl (2010) aponta que os estudos recentes de imagens cerebrais indicam que dentro dos processos de aprendizagem linguística existem ainda vários períodos críticos, como por exemplo, o aprendizado fonético se dá um pouco antes do primeiro ano de vida, enquanto o aprendizado sintático acontece entre os 18 e 36 meses. O desenvolvimento de vocabulário tem o seu ápice aos 18 meses, mas esse parece não estar condicionado pela idade, e pode ser aprendido facilmente em qualquer idade. A autora afirma que um dos objetivos futuros dos pesquisadores será de documentar a “abertura” e o “fechamento” desses períodos críticos, para todos os níveis da linguagem, e compreender como eles se sobrepõe e, porque eles diferem.

2. PROCESSOS CEREBRAIS DE AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM

As teorias de aquisição de linguagem, expostas no capítulo anterior, buscavam entender e explicar os complexos processos envolvidos no aprendizado linguístico, porém sem a tecnologia a que temos acesso atualmente, muitas delas se provaram falhas e não foram capazes de responder todas as questões complexas relacionadas à linguagem.

Ramírez e Kuhl (2016), apontam a dificuldade em se conduzir testes comportamentais em bebês como um empecilho encontrado pelas teorias de aquisição de linguagem antigas, e afirmam que os estudos recentes feitos através de exames científicos cerebrais podem nos indicar um novo caminho quanto ao entendimento do aprendizado linguístico.

Neste capítulo pretendemos apresentar brevemente os processos cerebrais durante a aquisição de linguagem, para que posteriormente possamos estabelecer um paralelo com o cérebro bilíngue.

2.1 A LINGUAGEM E SUA ORGANIZAÇÃO CORTICAL

De acordo com Amunts (2008), os conceitos linguísticos e neuropsicológicos da linguagem, em desenvolvimento, com o rápido desenvolvimento de técnicas de imagem, levaram ao aumento do interesse em mecanismos neurais subjacentes à linguagem. A segregação do córtex cerebral em áreas corticais com sua arquitetura específica de citoplasma, receptores e conectividade, fornece princípios organizacionais que podem ser correlacionados com a função cerebral.

As funções motoras e sensoriais ocupam menos de metade do córtex cerebral em humanos. O resto do córtex é ocupado pelas áreas de associação, que coordenam eventos que surgem nos centros motores e sensoriais. Três áreas de associação – o pré-frontal, parietal-temporal-occipital e límbico – estão envolvidos no comportamento cognitivo: falar, pensar, sentir, perceber, planejar, aprender, memória e movimentos habilidosos. (KANDEL et al., 2013, p.1349- tradução própria)

Segundo Ojemann (1991), a linguagem é processada serialmente, desde a sua decodificação no córtex temporal posterior (área de Wernicke) até a sua expressão motora no lobo frontal posterior inferior (área de Broca).

Kuhl (2010), cita que estudos usando exames de fMRI, apresentaram que bebês recém nascidos não demonstraram nenhum sinal de ativação cerebral na área motora da fala (área de Broca), enquanto sua área auditória (área de Wernicke) respondeu robustamente aos estímulos. Os estudos realizados com bebês de 3 meses, já apontaram ativação da área motora, em resposta à frases, e os bebês de 6 e 12 meses apresentaram ativação sincronizada em resposta à fala tanto na área auditória quanto na área motora, o que indica a possibilidade de haver conexão entre a percepção e a ação quanto ao desenvolvimento da fala a partir dos 3 meses de vida, quando os bebês começam a produzir sons semelhantes a vogais, complementando a afirmação de Ojemann (1991) quanto à sequência do processamento de linguagem.

Citando Caramazza (1988); Ojemann (1991) explica que a área cortical dedicada à linguagem não é única, mas compartimentada em sistemas separados que processam os diferentes aspectos da linguagem, e que essa descoberta se deu através de estudos sobre lesões cerebrais. Além disso, o autor aponta que os estudos sobre lesões também indicam que existem áreas separadas para lidar com diferentes línguas. Ele coloca que os estudos de Paradis (1977), apresentam que existem lesões em poliglotas, que deixam apenas uma das línguas intacta, língua que pode nem ser a sua língua mãe, ou a sua mais utilizada. Ojemann (1991) afirma que essa separação de áreas dedicadas à diferentes línguas foi evidente tanto no córtex frontal, como no têmporo-parietal.

Segundo Ojemann (1991), a linguagem é geralmente lateralizada no hemisfério esquerdo do cérebro, com uma variante de 5% de pessoas com áreas corticais bilaterais. O autor coloca ainda que segundo Dennis e Whitaker (1976), após uma lesão no hemisfério esquerdo, ou no lobo parietal, durante a infância, a linguagem irá se desenvolver no hemisfério direito, porém apesar de funcional, não será totalmente normal, sofrendo quanto à sua competência de sintaxe.

Ojemann (1991) coloca que, além de a área cortical dedicada à linguagem não ser única, mas compartimentada em sistemas separados, os vários componentes do sistema cortical de função de linguagem parecem ser ativados paralelamente. Segundo ele, essa ativação em paralelo inclui as áreas essenciais dos lobos frontal e têmporo-parietal, bem como os neurônios mais amplamente dispersos, pertencentes ao sistema de linguagem. Ele aponta que as mudanças na frequência da atividade neuronal cortical também refletem como os sistemas são ativados paralelamente, sendo que cada sistema cortical é ativado de acordo com sua função de linguagem, incluindo as áreas contendo os neurônios mais amplamente dispersos.

Como apresentamos acima, o processo de aquisição de linguagem se dá de forma sequencial, envolvendo várias partes do cérebro, entre elas as mais utilizadas sendo a área de Wernicke, área auditória e a área de Broca, área motora. A seguir veremos como a área auditória responde aos estímulos da fala, a fim de reconhecer os sons dos fonemas e das palavras, para em sequência tentar reproduzir os sons aprendidos, iniciando o processo da fala.

2.2 RECONHECENDO OS SONS DOS FONEMAS E DAS PALAVRAS

Bem antes das crianças produzirem suas primeiras palavras, elas aprendem os padrões sonoros subjacentes às unidades fonéticas, palavras e estrutura de frase da linguagem que eles ouvem. (KANDEL et al., 2013 – tradução própria)

Segundo Kuhl (2010), o recente aumento de pesquisas ligadas à neurociência, examinando o processamento de linguagem em crianças, através de exames cerebrais, tornou possível documentar o efeito do aprendizado sobre o cérebro. A autora coloca que o nível fonético da linguagem – que é o nível da natureza física da produção e da percepção dos sons da fala humana, focado na parte significante do signo linguístico e não no seu conteúdo – é especialmente acessível a estudos experimentais, e que as marcações neurais de aprendizagem sobre o nível fonético, podem ser documentadas surpreendentemente cedo durante o processo de desenvolvimento.

De acordo com Kuhl (2010), os estudos da neurociência, utilizando técnicas de imagem e de fala, consegue examinar se  os sistemas cerebrais envolvidos na produção da fala são ativados quando os bebês escutam alguém falar. A autora apresenta os principais exames cerebrais disponíveis: Eletroencefalograma (EEG), Potenciais relacionados a eventos (PRE), Magnetoencefalografia (MEG), Imagem por ressonância magnética funcional (fMRI), e Espectroscopia no infravermelho próximo (NIRS),  e explica que cada um é usado de acordo com a necessidade do estudo, ou podem ser utilizados em conjunto, sendo que a maior diferença entre eles se dá pela resolução temporal e espacial oferecida, pelo custo do exame, e pela indicação etária.

Kuhl (2010), aponta que a percepção das unidades fonéticas da fala – vogais e consoantes que formam a palavra – é uma das habilidades linguísticas mais estudadas na infância e na fase adulta, e que esses estudos fornecem testes críticos às teorias de desenvolvimento de linguagem e sua evolução. Ela coloca que, pesquisas sobre a percepção fonética no primeiro ano de vida da criança mostram como habilidades computacionais, cognitivas e sociais se reúnem para formar um mecanismo de aprendizado extremamente potente. De acordo com Kuhl, esse mecanismo não se assemelha ao modelo behaviorista de Skinner de condicionamento operante, e nem ao modelo proposto por Chomsky de construção de parâmetros e regras. Segundo ela, os processos de aprendizado, empregados através de exposição à língua, são complexos e multi-modais, e o brincar faz parte desse aprendizado, por proporcionar atenção a itens e eventos no mundo real, como rostos, ações, e vozes das pessoas ao seu redor.

Kuhl (2010, p.716) afirma que cada língua utiliza um conjunto único de 40 elementos distintos, chamados fonemas, que  podem mudar o significado da palavra, como no exemplo em inglês: “cat” e “bat”. Se pensarmos no português, temos também o exemplo “pote” e “bote”, entre outros. Para a autora, as crianças são expostas à mais variantes fonéticas do que elas vão utilizar, portanto, tem de formar o agrupamento apropriado para a sua língua. Ela aponta então, que a tarefa do bebê no seu primeiro ano de vida é tentar descobrir a composição do grupo fonético (composto de 40 categorias distintas de fonemas) de sua língua, antes de aprender as palavras – que vão depender dessas unidades.

Segundo Kuhl (2010), um passo necessário para o desenvolvimento da linguagem da criança, é aprender quais unidades fonéticas são relevantes para as línguas à que são expostas, e ao mesmo tempo, diminuir, ou inibir, sua atenção às unidades fonéticas que não distinguem palavras em sua língua. A autora explica, citando um de seus estudos anteriores Kuhl (2004), que este fato a leva a afirmar que um processo de aprendizado implícito compromete o circuito neural do cérebro com as propriedades da fala da língua nativa, e que esse comprometimento tem efeitos bidirecionais – aumenta o aprendizado de padrões compatíveis com a estrutura fonética aprendida (como o de palavras), enquanto diminui a percepção de padrões que não fazem parte do sistema aprendido.

Quanto ao aprendizado de palavras, Kuhl (2010) pontua que os novos experimentos mostram que antes dos 8 meses, os bebês já conseguem identificar palavras singularmente. A autora explica que através de sua sensibilidade para com as probabilidades transitórias entre as sílabas adjacentes, eles conseguem detectar possíveis candidatos à palavras. Simplificando, os bebês possuem sensibilidade para distinguir, através de probabilidade, as sílabas que podem vir a formar a palavra. Segundo Kuhl, para os bebês, a probabilidade de transição entre sílabas que formam a mesma palavra é maior, ou seja, é mais fácil distinguir as sílabas que formam a mesma palavra, do que distinguir a sílaba que formará a palavra a seguir, por exemplo (adaptado ao português), nas palavras “bebê lindo” é mais fácil distinguir os sons “be” e “bê”, e “lin” e “do”, do que os sons entre as sílabas, “bê” e “lin”.

De acordo com Kuhl (2010), os bebês possuem um mecanismo básico de aprendizado implícito que os permitem, desde seu nascimento, detectar estruturas estatísticas na fala e em outros meios. Ela afirma ainda que, a sensibilidade dos bebês para com essa estrutura estatística pode influenciar o aprendizado de fonemas e palavras.

2.3 APRENDIZAGEM DA FALA

De acordo com Horwitz e Wise (2008), a linguagem falada é o som mais complexo encontrado, e sobre a gama de detalhes espectrais e temporais transmitidos pela fala, podemos detectar fonemas, sílabas, estresse e variações de amplitude e picos tonais.

Segundo Kuhl (2000), os bebês não aprendem somente as características perceptivas da língua, mas se tornam falantes nativos, o que requer imitação dos padrões da fala à que são expostos. Ela afirma que a aprendizagem da fala depende criticamente da escuta da vocalização dos outros e de si próprio. Kuhl coloca que a percepção e a produção são extremamente dependentes entre elas e explica que é por esse motivo que padrões aprendidos no início da vida se tornam difíceis de se alterar posteriormente, dando como exemplo o fato de que pessoas que aprendem uma segunda língua após a puberdade, a produzem com o sotaque da sua língua nativa, mesmo após muito tempo de estudo.

De acordo com a autora, a imitação é responsável por fazer a conexão entre a percepção e a produção da fala. Ela afirma que aos 12 meses de vida, os discursos espontâneos de um bebê refletem sua imitação de padrões de linguagem ambiente. E que essa capacidade fundamental de imitar padrões sonoros é observada até mesmo antes, durante 12, 16 e 20 semanas de vida.

Kuhl (2000) aponta que, as primeiras teorias sobre percepção da fala sustentavam que a fala era percebida com referência à sua produção, porém que os dados de desenvolvimento recentes sugerem uma conclusão diferente, sustentando que no início da vida, as representações perceptivas da fala são armazenadas na memória, e que subsequentemente, essas representações guiarão o desenvolvimento motor da fala.

A autora explica ainda que, em estudos relacionados, foi possível verificar que bebês apresentam habilidade em conectar os movimentos orais aos sons que eles ouvem. Segundo ela, estudos com bebês de 20 semanas apresentaram que eles prestam mais atenção aos rostos de pessoas fazendo o movimento da pronúncia do som de uma vogal compatível ao som que eles estão ouvindo, do que os rostos em que  o som ouvido e o movimento oral são incompatíveis. Kuhl (2000), defende que como resultado desses estudos é possível apontar que as representações polimodais da fala dos bebês provavelmente contêm informações sobre os aspectos visuais, bem como auditivos da fala.

3. ASPECTOS DE AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM E O BILINGUISMO

Na nossa cultura por vezes ouvimos questionamentos acerca dos benefícios do bilinguismo. Apesar de vários estudos já terem apontado que o cérebro bilíngue, por acessar constantemente dois códigos linguísticos, apresenta maior desenvolvimento de funções executivas e maior plasticidade Ramírez e Kuhl (2016) e Abutalebi et al. (2004), algumas pessoas questionam se ele pode trazer possíveis atrasos no desenvolvimento da linguagem.

Segundo Ramírez e Kuhl (2016), enquanto pesquisas comportamentais apontam que crianças expostas a duas línguas simultaneamente apresentam um ligeiro atraso quanto à sua percepção fonética, outros estudos apontam que o trajeto de desenvolvimento linguístico em crianças monolíngues e bilíngues é identicamente igual. Para as autoras, tais resultados ambíguos se dão por conta da quantidade e qualidade da exposição às línguas, ou pela dificuldade em se conduzir pesquisas comportamentais em bebês em fase pré-verbal.

Ramírez e Kuhl (2016) colocam ainda que uma alternativa para pesquisas comportamentais são exames de imagens cerebrais. Segundo as autoras, estudos recentes mostram que o cérebro bilíngue aos 12 meses está dentro do processo esperado de aprendizado de duas línguas, o que indica que está no mesmo grau de desenvolvimento esperado que um cérebro monolíngue, que aos 12 meses se encontra na mesma fase, porém aprendendo apenas um código linguístico. Elas também apontam que a qualidade e a quantidade de exposição à língua tem extrema relevância no processo de aprendizagem, bem como esse processo é criticamente dependente de interações sociais, e da qualidade da fala ouvida pelas crianças. As autoras afirmam que para uma criança bilíngue ter um bom desenvolvimento linguístico em ambas as línguas, ela precisa necessariamente ter sido exposta à ambas de forma igualmente quantitativa, e qualitativa.

Neste capítulo iremos apresentar aspectos do processamento linguístico em cérebros bilíngues como: competência linguística implícita e conhecimento metalinguístico explícito,  aquisição de vocabulário, alternância de códigos linguísticos e mistura de idiomas, bem como as diferenças entre o cérebro bilíngue, comparado ao monolíngue.

3.1 COMPETÊNCIA LINGUÍSTICA IMPLÍCITA E CONHECIMENTO METALINGUÍSTICO EXPLÍCITO

Ao falarmos de bilinguismo, precisamos salientar que existem os bilíngues que nasceram sendo expostos a dois idiomas, e existem os bilíngues que aprenderam o segundo idioma posteriormente. De acordo com Mohades et al. (2011), existem dois tipos de falantes bilíngues: os falantes simultâneos, que foram expostos à duas línguas desde o nascimento, e os falantes sequenciais, que aprenderam o segundo idioma após os 3 anos de idade.

Segundo Paradis (2008), existe grande diferença entre o aprendizado de bilíngues simultâneos e bilíngues consecutivos. Para o autor, os bilíngues simultâneos possuem competência linguística implícita, enquanto os consecutivos possuem conhecimento metalinguístico explícito.

Paradis afirma que a competência linguística implícita é composta pelos componentes da linguagem que podem ser descritos segundo regras, como a fonologia, morfologia, sintaxe e as propriedades morfossintáticas do léxico. E o conhecimento metalinguístico explícito é formado pelos componentes linguísticos aos quais temos consciência de uso, por exemplo, vocabulário.

Paradis (2008) define a competência linguística implícita como sendo adquirida incidentalmente, ou seja, inconscientemente. Ele afirma que ela é armazenada de forma implícita, e usada automaticamente, sendo amparada pela memória procedural, enquanto o conhecimento metalinguístico explícito é aprendido de forma consciente, sendo armazenado de forma explícita pela memória declarativa.

Paradis (2008), coloca ainda que, fluência e acurácia não são indicadores de competência linguística implícita, e que o processamento controlado não é somente mais lento, mas também varia mais, quando comparado ao processamento automático.

Hagen (2008) aponta que o estudo de Paradis (2004), sobre competência linguística implícita e conhecimento metalinguístico explícito, é bastante promissor pois ele explica o porquê de bilíngues sequenciais terem mais dificuldade em aprender uma segunda língua e de possuírem fala mais hesitante e menos fluente.

Neste capítulo daremos ênfase aos processos de aquisição de linguagem por bilíngues simultâneos.

3.2 VOCABULÁRIO E O FALANTE BILÍNGUE

Ramírez e Kuhl (2016) afirmam, citando Hoff et al. (2012), e Hoff e Core (2013), que apesar de vários estudos apontarem que falantes bilíngues possuem vocabulário menor em cada língua do que falantes monolíngues, muitas outras pesquisas apontam que as habilidades linguísticas da criança refletem a quantidade de linguagem a que foram expostas, e visto que falantes bilíngues dividem o seu tempo entre duas linguagens, e consequentemente, acabam ouvindo menos de cada idioma, se comparado a um falante monolíngue, este fato é esperado.

Segundo os autores, é importante salientar que os estudos mostram de forma consistente que falantes bilíngues não ficam atrás de falantes monolíngues, em relação a vocabulário, se considerarmos as duas línguas. Eles afirmam que ao somar a quantidade de vocabulário das duas línguas em conjunto, falantes bilíngues possuem vocabulário igual ou superior ao de falantes monolíngues, e que o mesmo acontece com seu conhecimento gramatical, ou seja, o bilinguismo não faz com que a criança seja prejudicada quanto ao seu repertório, ao contrário, ele amplia suas possibilidades, uma vez que a criança pode utilizar dois idiomas para se expressar.

Ramírez e Kuhl (2016) apontam que em estudos com crianças bilíngues em que foi testada a atividade cerebral em resposta a palavras, foi descoberto que a atividade cerebral é relacionada com a sua experiência com cada língua. E como mencionado anteriormente, Ramírez e Kuhl (2016) afirmam que para uma criança bilíngue ter um bom desenvolvimento linguístico em ambas as línguas, ela precisa necessariamente ter sido exposta à ambas de forma igualmente quantitativa, e qualitativa.

Como visto anteriormente, Kuhl (2010) afirma que, apesar de o desenvolvimento de vocabulário ter o seu ápice aos 18 meses, ele não parece estar condicionado pela idade, e pode ser aprendido facilmente em qualquer faixa etária. Meisel (1989) também aponta uma estratégia utilizada pelos falantes bilíngues: a alternância de códigos linguísticos, que veremos a seguir.

3.3 ALTERNÂNCIA DE CÓDIGOS LINGUÍSTICOS E MISTURA DE IDIOMAS

Segundo Meisel (1989), apesar de muitas vezes serem confundidas, existe diferença entre a alternância de códigos linguísticos e a mistura de idiomas. O autor emprega o termo “alternância de códigos linguísticos” para descrever a habilidade de selecionar o idioma a ser usado, de acordo com o interlocutor e quanto ao contexto. Já a mistura de idiomas é dada pelo autor como uma combinação indiscriminada de elementos de cada língua.

Para o autor, a alternância de códigos linguísticos é um fenômeno comum entre indivíduos bilíngues, geralmente ocorre ao nível lexical, e é muito utilizado como um “fator de alívio” quando o material linguístico está mais facilmente acessível em uma língua do que na outra, por exemplo ao falar de algum assunto em que temos dominância de vocabulário em uma língua, como no exemplo “I went to a restaurant and I ate alcachofra.” (Eu fui a um restaurante e comi alcachofra.), em que o vocabulário sobre comida estava mais acessível no português do que no inglês. De acordo com Mcclure (1977), a alternância de códigos linguísticos também ocorre quando o termo “emprestado” da outra língua é uma expressão idiomática, sem nenhum equivalente preciso e próprio culturalmente.

Segundo Meisel (1989), a alternância de códigos linguísticos é uma competência pragmática de falantes bilíngues, e ocorre de forma consciente. O falante escolhe utilizar as palavras de um ou de outro código linguístico, se corrigindo quando for necessário, com intencionalidade, o que é diferente ao se tratar da mistura de idiomas, que segundo Mcclure (1977, p.7,8) ocorre de forma que as palavras gramaticais, a morfologia e a sintaxe são abruptamente interrompidas, como no exemplo dado pela autora: “I put the forks en las mesas.” (Eu coloquei os garfos nas mesas.) em que metade da frase se encontra em inglês, e a outra metade em espanhol.

Meisel (1989), aponta que a mistura de idiomas é muitas vezes citada da mesma forma do que a alternância de códigos linguísticos, não ficando claro na literatura quando um autor está falando de uma ou de outra. Segundo ele, a mistura pode ocorrer por dois motivos: se a criança possuir maior competência em uma língua do que em outra, ou se os adultos ao seu redor misturam os códigos linguísticos livremente em sua fala. Durante a prática em sala de aula, notamos um caso de uma aluna de três anos cujo pai era holandês, e que também falava português e inglês. Percebemos que a fala da aluna era muito confusa, muitas vezes incompreensível. Ao observar suas interações com o pai, pudemos ouvi-lo se dirigir à filha utilizando os três idiomas intermitentemente em menos de 5 minutos. Essa observação nos faz refletir sobre a mistura de idiomas a que ela era exposta, e o resultado de sua fala confusa. Sem termos conhecimento do idioma holandês, não pudemos afirmar se a aluna estava misturando os três idiomas, ou se possuía algum problema de desenvolvimento de fala, e infelizmente, com a sua mudança para outra escola não pudemos continuar a acompanhar o seu desenvolvimento linguístico.

3.4 AS DIFERENÇAS ENTRE O CÉREBRO BILÍNGUE, COMPARADO AO MONOLÍNGUE

Como mencionamos anteriormente, Ramírez e Kuhl (2016) apontam que, cerca de dois terços da população mundial estimada compreendem ou falam pelo menos dois idiomas. Dado este fato, a autora afirma que o bilinguismo tem se tornado a norma, e não a exceção.

Por acessar constantemente dois códigos linguísticos, o cérebro bilíngue apresenta maior desenvolvimento de funções executivas e maior plasticidade, quando comparado a cérebros monolíngues  Ramírez e Kuhl (2016) e Abutalebi et al. (2004). O nosso objetivo neste subcapítulo é apresentar brevemente algumas das características que diferenciam o cérebro bilíngue do cérebro monolíngue.

Um dos aspectos diferenciados do cérebro bilíngue é a sua consciência fonológica. Ramírez e Kuhl (2016) apontam que crianças bilíngues adquirem dois sistemas fonéticos, o que implica em manipular mais os sons da linguagem, sendo assim, a exposição à duas línguas aumenta a sua consciência fonológica. As autoras colocam que o acesso contínuo à duas línguas ajudam a criança no seu desenvolvimento linguístico e na alfabetização, por facilitar a compreensão da relação entre som e símbolo, a compreensão gramatical e o aprendizado de vocabulário.

Outro ponto em que o cérebro bilíngue se distingue do cérebro monolíngue, é quanto suas habilidades metacognitivas e metalinguísticas. Ramírez e Kuhl (2016), afirmam, citando Bialystok (2007), que a constante necessidade de gerenciar a atenção entre duas línguas faz com que a criança reflita mais sobre a linguagem, o que leva ao aumento de suas habilidades metacognitivas e metalinguísticas.

As autoras também nos chama à atenção para o desenvolvimento das funções executivas em cérebros bilíngues. De acordo com Ramírez e Kuhl (2016), os processos primários do sistema de funções executivas são: mudança de foco de atenção, pensamento flexível (flexibilidade cognitiva), e atualização de informação na memória de trabalho. Segundo as autoras, as pesquisas indicam que a experiência de utilizar duas línguas, e constantemente ter de gerenciar a atenção sobre qual língua utilizar para cada contexto, aumenta as conexões cerebrais, as deixando mais robustas quanto às funções executivas ao longo da vida. Kuhl (2010) também aponta que habilidades cognitivas específicas, como controle de foco de atenção e controle inibitório – que fazem parte das funções executivas – também estão associadas à exposição a mais de uma linguagem.

Mais um diferencial apontado pelo bilinguismo é a neuroplasticidade. Abutalebi et al. (2004), citam estudos realizados por Mechelli et al. (2004), que apontam que foram relatadas alterações plásticas induzidas pelo bilinguismo em adultos jovens no lóbulo parietal inferior esquerdo e em sua contraparte direita. Os autores também afirmam que a idade de aquisição da segunda linguagem e sua proficiência está correlacionada com aumento da massa cinzenta no mesmo local. Abutalebi et al. (2004), apontam ainda que, a plasticidade neural, tanto funcional quanto estrutural, resulta da experiência com duas línguas, e que a neuroplasticidade nessas regiões, depende de quão bem e com que frequência uma segunda língua é usada.

Também é importante salientar que existem diferenças entre o cérebro bilíngue de falantes simultâneos, que foram expostos às duas línguas desde o nascimento, e sequenciais, que aprenderam o segundo idioma após os 3 anos.

Segundo Conboy e Mills (2005), estudos apontam que quando a segunda língua é adquirida após a infância, ela é mediada por sistemas neurais não idênticos ao da língua materna, porém que quando as duas línguas são adquiridas simultaneamente, durante a infância, elas são mediadas pelos mesmos sistemas cerebrais. As autoras também afirmam, citando Paradis (1990) e Vaid e Hall (1991), que estudos com bilíngues adultos tem sugerido que bilíngues simultâneos demonstram maior lateralização da segunda língua no hemisfério direito, do que bilíngues sequenciais, o que aponta que o hemisfério direito deve estar relacionado com o processo de aquisição de linguagem simultânea, mais do que no processo de aquisição de linguagem sequencial ou de falantes monolíngues.

Durante a prática em sala de aula, pudemos observar também, outros exemplos de mistura de linguagem em níveis gramaticais como troca de ordem de palavras e formação de gerúndio. Em um caso observamos um aluno que trouxe um brinquedo e falou: “It’s a car black.”, aplicando a ordem palavra + adjetivo do português, ao montar sua estrutura em inglês, que deveria ser o oposto: adjetivo + palavra (black car). Em outro caso, pedimos que uma aluna dividisse seus brinquedos com a amiga (em inglês, share), sua resposta foi “Já estou sharando.”, utilizando a palavra do inglês “share” (dividir) na estrutura de gerúndio da língua portuguesa.

Apesar de a mistura de línguas mencionadas acima terem ocorrido provavelmente pelo fato de as crianças observadas possuírem maior competência no português do que no inglês, e talvez por essas crianças serem bilíngues sequenciais, e não simultâneos, Meisel (1989) aponta que após vários testes conduzidos com crianças de 12 meses à 4 anos analisando fenômenos de linguagem como ordem de palavras e concordância verbo-nominal, é possível afirmar que um indivíduo, exposto à duas línguas desde cedo, consegue diferenciar dois códigos linguísticos, sem passar por uma fase de confusão entre elas.

4. FATORES SOCIAIS E LINGUAGEM

É evidente que a aquisição de linguagem só existe com um propósito: a socialização. Não haveria necessidade em aprender um código linguístico se não precisássemos nos comunicar com as pessoas ao nosso redor. Como mencionado no início deste estudo, HAGEN (2008) aponta que os bebês humanos, diferentemente de outras espécies, nascem em um ambiente socialmente acolhedor, e dependem da linguagem para se socializar e sobreviver.

A linguagem é a característica que define os seres humanos, e viver sem ela cria um mundo totalmente diferente, como é vivenciado tão dolorosamente por pacientes com afasia após um AVC. (KANDEL, 2013, p. 1354 (tradução própria).

Sendo a linguagem uma ferramenta para a interação social, e para a nossa sobrevivência enquanto humanos, não podemos deixar de analisar a influência dos fatores sociais no aprendizado de linguagens.

Neste capítulo pretendemos apresentar como os fatores sociais têm sido vistos em estudos de aquisição de linguagem, apresentar resumidamente a visão de Vygotsky – grande teórico dos estudos de linguagem e interações sociais – sobre o assunto, e apresentar o que a neurociência tem descoberto a respeito da linguagem e a interação social.

4.1 FATORES SOCIAIS E A AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM

De acordo com Ochs e Schieffelin (1982), os processos sobre aquisição de linguagem e socialização tem sido equivocadamente considerados como domínios separados. Segundo as autoras, processos sobre aquisição de linguagem são geralmente vistos como relativamente não afetados por fatores sociais como a organização social e as crenças do local em que o indivíduo está inserido, sendo que estes fatores são geralmente referidos como “contexto”, ou seja, algo que pode ser separado da linguagem e de seu aprendizado.

Vygotsky, grande teórico que desenvolveu teorias sobre a inter-relação de processos individuais e sociais na aprendizagem e desenvolvimento Mahn e Steiner (2012), possuía uma visão diferente, afirmando que o desenvolvimento do pensamento e da linguagem estão totalmente conectados com a interação social e o meio em que o indivíduo falante está inserido. Shabani (2016) aponta que as teorias de Vygotsky propõem que a origem da construção do conhecimento não deve ser buscada na mente, mas na interação social co-construída entre indivíduos de níveis diferentes de conhecimento. O autor aponta que segundo Vigotsky, a construção do conhecimento é um processo socioculturalmente mediado, afetado pelas ferramentas e artefatos físicos e psicológicos, sendo que a linguagem é a principal ferramenta do pensamento.

Mahn e Steiner (2012) também explicam que para Vygotsky, a maneira que a atividade social se torna internalizada durante o processo de aprendizado ajuda o desenvolvimento da linguagem e de processos de pensamento.

Ochs e Schieffelin (1982) apontam que em estudos realizados, ao observar a interação entre crianças e seus responsáveis, em diversas sociedades, foi possível notar que a maior preocupação dos responsáveis era garantir que as crianças pudessem compreender e apresentar comportamentos apropriados às interações sociais, o que, de acordo com as autoras, é possível em sua maioria, através da linguagem. Elas propõem ainda que os comportamentos pré-linguísticos e linguísticos devem ser examinados, a fim de determinar o modo em que eles são afetados continuada e seletivamente, pelos valores e pelas crenças dos membros de sua sociedade.

As autoras propõem duas perspectivas sobre linguagem e socialização: a primeira aponta que os processos de aquisição de linguagem são profundamente afetados pelo processo de se tornar um membro competente da sociedade. A segunda perspectiva expõe que o processo de se tornar um membro competente da sociedade é realizado pela linguagem, em adquirir conhecimento sobre sua função, sua distribuição social, e de interpretações sobre situações definidas socialmente, através de trocas de linguagem em situações sociais específicas.

Ochs e Schieffelin (1982) concluem, em suas pesquisas observando a interação entre crianças e seus responsáveis, que o processo de aquisição de linguagem e o processo de aquisição de conhecimento sociocultural estão intimamente ligados. Segundo elas, através da participação social, a criança desenvolve uma variedade de habilidades, intuições e conhecimento, a permitindo se comunicar de formas culturalmente preferidas, e elas argumentam ainda, que essas faculdades são partes integrais no processo de se tornar um falante competente.

4.2 FATORES SOCIAIS, LINGUAGEM E A NEUROCIÊNCIA

Segundo Ramírez e Kuhl (2016), o aprendizado de línguas durante a infância é criticamente dependente de interações sociais. Elas apontam que bebês aprendem melhor através de interações sociais frequentes, e de boa qualidade.

Kuhl (2010) também afirma que os sistemas cerebrais sociais estão integralmente envolvidos no processo de aquisição de linguagem, e que na verdade, eles são necessários para se explicar o aprendizado natural de línguas. Citando seus estudos anteriores, Kuhl (2007), propõe que as interações sociais criam uma situação de aprendizado amplamente diferente, em que fatores adicionais, inseridos em um contexto social, influenciam o aprendizado. A autora afirma que as interações sociais podem aumentar a atenção, a captura de informação, o senso de relacionamento e a ativação de mecanismos cerebrais conectando percepção e ação.

Kuhl (2010) apresenta que durante estudos feitos com bebês interagindo com tutores, foi possível notar que as pistas sociais dadas pelo tutor, como olhar fixo e o apontar para um objeto de referência, podem ajudar as crianças a segmentar palavras a partir da fala em andamento, facilitando a aprendizagem fonética dos sons contidos nessas palavras. Em seu estudo Kuhl também comprovou, através de exames de Potenciais relacionados a eventos (PRE), que as crianças que estavam mais engajadas socialmente demonstraram maior aprendizagem tanto de fonemas, quanto de palavras.

Citando Hari e Kujala (2009), a autora afirma que as interações sociais devem ativar mecanismos cerebrais de evocam um senso de relação entre o eu e o próximo, da mesma forma que os sistemas de entendimento social conectam percepção e ação.

CONCLUSÃO

Nas páginas precedentes, procuramos examinar a aquisição de linguagem, apresentar os processos cerebrais envolvidos, e fazer um paralelo entre o cérebro bilíngue e o monolíngue. Com base nas principais teorias de aquisição de linguagem, pudemos expor resumidamente os processos cerebrais envolvidos no processo de aprendizagem linguística, e falar sobre as nuances do bilinguismo, bem como sobre a influência de fatores sociais na aquisição de linguagem.

A partir desse estudo, concluímos que a aquisição de linguagem é mais fácil nos primeiros anos de vida, pois esse é o período crítico em que o cérebro está melhor preparado para aprender os códigos linguísticos, o que se explica por fatores biológicos e evolucionários. Porém, é importante salientar que apesar de ser mais fácil aprender um idioma nos primeiros anos de vida, a capacidade de aprender é inerente ao cérebro em todas as idades.

Também podemos afirmar que quando a criança é exposta à duas ou mais línguas simultaneamente desde o nascimento, ambas serão aprendidas da mesma forma, utilizando os mesmos mecanismos cerebrais, sendo que seu aprendizado ocorrerá de forma natural e implícita, e se o bilinguismo ocorrer de forma sequencial, ou seja, após a língua mãe já ter sido adquirida, a segunda língua será aprendida de forma explícita, e dependerá de conhecimento metalinguístico. Concluímos também que a aquisição de linguagem em bilíngues sequenciais segue os padrões já formados pela língua mãe – o que explica, por exemplo, o fato de adolescentes e adultos possuírem sotaque da língua nativa ao falar a língua estrangeira.

Confirmando as nossas hipóteses, concluímos que, enquanto a alternância de códigos linguísticos é a habilidade de utilizar as línguas de acordo com o público e o contexto, sendo uma estratégia utilizada por falantes bilíngues. Por outro lado, a mistura de linguagem pode ocorrer caso a mesma referência linguística utilize em sua fala, dois ou mais idiomas de forma misturada, o que demonstra como a qualidade da fala de referência é importante para a aquisição de linguagem.

Salientamos ainda que, a aquisição de fala e as interações sociais estão intimamente conectadas, e que uma depende da outra, já que não haveria necessidade de desenvolver a fala se não precisássemos interagir com as pessoas ao nosso redor, e que a interação social sem a fala é bastante comprometida, como é possível verificar em pessoas com afasias.

Pudemos comparar o cérebro bilíngue e monolíngue, e utilizar fundamentação teórica para explicar questões acerca do bilinguismo, como a preocupação dele gerar atraso no desenvolvimento da fala, ou diminuição de vocabulário, derrubando mitos, e mostrando diferenciais do cérebro bilíngue, a fim de dar suporte ao professor e a família, no que diz respeito as dúvidas que surgem sobre esses assuntos.

Com esse estudo, foi possível apresentar de forma bastante resumida, vários aspectos sobre a aquisição de linguagem e do bilinguismo pelo viés da neurociência, porém esse assunto proporciona diversos desafios, e novos estudos podem colaborar para o aprofundamento dos tópicos aqui abordados a fim de melhor compreender o complexo processo de aquisição de linguagem.

Segundo Kuhl (2010), os estudos da neurociência na próxima década irão liderar o trabalho teórico sobre aquisição de linguagem, e esses avanços promoverão a ciência da aprendizagem no domínio de linguagem o que trará esclarecimentos potenciais sobre os mecanismos de aprendizagem humana de maneira mais abrangente.

Esse estudo pretendeu esclarecer como se dá o aprendizado de duas línguas simultaneamente, e trouxe contribuições para a comunidade acadêmica ao buscar os resultados de pesquisas que ainda não estão traduzidas para português. Muitas questões acerca da aquisição de linguagem e do bilinguismo ainda persistem, por se tratar de um assunto relacionado a aspectos sociais e com muitas variantes, porém esperamos que pesquisas futuras continuem a trazer esclarecimentos sobre o tema.

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[1] Pós-graduação em neurociência aplicada a educação.

[2] Orientadora. Mestrado em Comunicação Social. Graduação em Letras – Português e Inglês.

Enviado: Abril, 2020.

Aprovado: Agosto, 2020.

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Rafaela Bepe Gabriotti

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