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Formação de professores da EJA que atuam na socioeducação com privação de liberdade

RC: 58315
201
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/privacao-de-liberdade

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SOUZA, Eliane Silva [1], SANTOS, Maria Margarete Cerqueira dos [2]

SOUZA, Eliane Silva. SANTOS, Maria Margarete Cerqueira dos. Formação de professores da EJA que atuam na socioeducação com privação de liberdade. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 08, Vol. 08, pp. 103-124. Agosto de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/privacao-de-liberdade, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/privacao-de-liberdade

RESUMO

Este artigo analisa a temática da formação de professores da Educação de Jovens e Adultos (EJA)  que atuam no contexto das medidas socioeducativas com privação de liberdade. Visando discutir acerca da formação de professores da EJA do referido contexto educacional, o estudo, de abordagem qualitativa, envolveu a pesquisa bibliográfica, questionário e observação participante na produção das informações. O estudo foi desenvolvido em uma escola de EJA, vinculada ao contexto da socioeducação com privação de liberdade, da Rede Municipal de Ensino de Salvador, Bahia, e o resultado da investigação evidencia que há iniciativas fecundas com formações que emergem a partir das necessidades do campo educacional. Além da formação continuada, os professores tecem a construção de redes formativas, buscando soluções por meio da discussão entre pares, onde experiências são divididas, conhecimentos são ressignificados e possibilidades são construídas, gerando um processo de co-formação, colaborando com a ruptura em relação à fragilização da EJA promovida pela precarização na formação inicial.

Palavras-chave: Formação de Professores, Educação de Jovens e Adultos, socioeducação, educação enquanto direito.

1. INTRODUÇÃO

Neste artigo analisamos a temática da formação de professores da Educação de Jovens e Adultos (EJA) que atuam no contexto das medidas socioeducativas com privação de liberdade, onde concretizamos uma discussão a respeito de conceitos elementares ao entendimento da formação de professores na perspectiva de formação à consolidação de uma educação enquanto direito. A discussão dilata a temática da formação de professores, possibilitando reflexões acerca da consolidação de uma educação que rompe com a perspectiva onde se convenciona a imutabilidade da lógica que norteia o mundo estruturado no modelo de produção capitalista.

Para tratar da temática na perspectiva apresentada colocamos a seguinte problemática: em que medida a formação de professores da EJA, que atuam no contexto das medidas socioeducativas com privação de liberdade, contribui para a consolidação de uma educação enquanto direito? Essa é uma questão que precisa ser estudada na direção de problematização, discussão, reflexão e possibilidade de instituição de novos entendimentos acerca da formação de professores.

A concretização do estudo  dessa problemática promove a formulação do seguinte objetivo geral: discutir acerca da formação de professores da EJA que atuam no contexto das medidas socioeducativas com privação de liberdade. A partir deste objetivo procuramos trazer ao campo de discussão os sujeitos da EJA, a precarização na formação de professores e a urgência de uma formação na perspectiva de instituição de mudanças no campo da EJA considerando sua especificidade.

O aprofundamento da discussão à qual este estudo se dedica requer a definição dos seguintes objetivos específicos: refletir sobre a concepção da EJA, os sujeitos e a formação de professores que atuam no contexto das medidas socioeducativas com privação de liberdade e discutir sobre a formação de professores da EJA na perspectiva da consolidação da educação enquanto direito. Trata-se de uma discussão significativa, pois proporciona reflexões sobre a formação dos professores que atuam em um contexto educacional com sujeitos que tem sua trajetória marcada pelos processos de exclusão de direitos, incluindo o direito à educação, onde a formação do professor de EJA pode se constituir um elemento potencializador  do processo de ruptura dessa exclusão.

Desta forma, este artigo está estruturado por esta introdução, onde destacamos a temática, problemática, objetivos geral e específicos. Apresentamos, na sequência, os procedimentos metodológicos envolvendo a abordagem da pesquisa e os dispositivos utilizados na produção das informações; os pressupostos teóricos e a discussão de elementos relacionados à temática; as considerações resultantes da discussão e reflexão propiciadas pelo estudo; e, por fim, as referências utilizadas.

2. PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS

A tessitura do artigo resulta de um estudo de natureza qualitativa desenvolvido a partir de questões “[…] relacionadas a interesses e circunstâncias socialmente condicionadas […] frutos de determinada inserção no real, nele encontrando suas razões e seus objetivos” (MINAYO, 2002, p. 18). Considerando Chizzotti (2003), vemos na pesquisa qualitativa a possibilidade de

investigação dos fenômenos humanos, sempre saturados de razão, liberdade e vontade, estão possuídos de características específicas: criam e atribuem significados às coisas e às pessoas nas interações sociais e estas podem ser descritas e analisadas, prescindindo de quantificações estatísticas. (CHIZZOTTI, 2003, p. 222).

A efetivação do estudo envolveu a pesquisa bibliográfica, a aplicação de questionário e a observação participante. Por meio da pesquisa bibliográfica, levantamos referências teóricas analisadas e publicadas, possibilitando acessar  conhecimentos já estruturados sobre a temática estudada (SILVEIRA; CÓRDOVA, 2009). O levantamento bibliográfico propiciou a discussão envolvendo as informações produzidas sobre os professores através do questionário, dispositivo que favorece o acesso a conhecimentos de um grupo amplo de sujeitos (GIL, 2019), por meio da observação participante, forma eficiente de acessar sentidos vinculados à ação dos sujeitos (HAGUETTE, 2013), e as informações referentes aos estudantes da EJA do contexto pesquisado, ligados às medidas socioeducativas com privação de liberdade.

Quanto ao contexto onde produzimos as informações referentes aos sujeitos da EJA, professores e estudantes, trata-se de uma escola da Rede Municipal de Ensino de Salvador, Bahia, que atende exclusivamente a adolescentes e jovens vinculados às medidas socioeducativas com privação de liberdade, em virtude do que está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em seu artigo 124 (BRASIL, 1990), tendo a Lei nº 12.594/2012, de 18 de janeiro de 2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), definido em seu artigo 15 a exigência de que, para a inscrição dos programas de privação de liberdade, é preciso garantir a existência de estabelecimento educacional com instalações adequadas e em conformidade com as normas de referência (BRASIL, 2012).

3. TECENDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A EJA

Podemos iniciar considerando a EJA enquanto uma modalidade constituída à reparação de uma brecha deixada pela concepção de direito à educação enquanto privilégios de alguns. Nesta definição compreende-se a modalidade enquanto espaço para a superação do hiato constituído pela negação de direito do acesso e permanência na escola, espaço para o debate político, para a formação humana, para a emancipação social e para pensar outras possibilidades de organização de nossa sociedade a partir da educação para ‘outros mundos possíveis’ (GADOTTI, 2011).

A ideia de educar para ‘outros mundos possíveis’ consiste, conforme apresentado por Gadotti (2011), em educar para a vida, para a qualidade humana, superando a lógica do capitalismo, no sentido de desenvolver uma educação pautada na criticidade em lugar de formar mão de obra para mover as engrenagens do mercado. Essa é uma perspectiva de educação que objetiva problematizar a maneira de produção e, consequentemente, a maneira de produzir a existência humana. Parte do princípio de que as mudanças no mundo não podem prescindir da mudança das pessoas e da mudança da mentalidade destas. Desta maneira, “educar para outros mundos possíveis é educar para superar a lógica desumanizadora do capital que tem no individualismo e no lucro seus fundamentos, é educar para transformar radicalmente o modelo econômico e político atual” (GADOTTI, 2011, p. 98).

Assim, a EJA passa a ser compreendida enquanto um espaço de luta e enfrentamento em relação às discrepâncias produzidas por um mundo que opera pautado na lógica da produção e do consumo, onde a produção da coletividade é expropriada daqueles que produzem para o usufruto de um pequeno grupo. Em relação a esse grupo, não lhe interessa desvelar o fato de que toda sorte de adversidades resultantes da exclusão de direitos básicos decorre da lógica perversa desse modelo de produção para o consumo, movido pela incessante produção de necessidades sintéticas.

Esse processo de luta e enfrentamento equivale ao questionamento do modelo de produção capitalista enquanto único viável, equivale ao questionamento de uma lógica de produção que não tem compromisso com a produção do que é verdadeiramente necessário, não respeitando a vida e os limites dos recursos do planeta. A partir desta lógica “o neoliberalismo concebe a educação como uma mercadoria, reduzindo nossas identidades às de meros consumidores, desprezando o espaço público e a dimensão humanista da educação” (GADOTTI, 2009, p. 18).

Nos termos que estamos discutindo, a EJA é um espaço de problematização voltado à criticidade e ao desvelamento de elementos artificiais naturalizados intencionalmente conforme as diretrizes fatalistas do mercado. Considerando as ideias de Beltrán e Montané (2011), temos nesse campo da educação uma possibilidade de alfabetização política, baseada em um amplo projeto de caráter emancipatório, uma perspectiva de mudança de mentalidade, superando a coisificação humana e a forma de nos relacionarmos com o mundo e com as pessoas. Trata-se, portanto, da constituição de um espaço comprometido com o desenvolvimento de uma nova consciência, visando a superação das nossas fronteiras mentais à constituição de redes para a ‘vinculação social’.

A partir do diálogo com Marques (2018), bem como a leitura de Jardilino e Araujo (2015), percebemos que por meio dos eventos internacionais, onde se discute a educação de adultos, é possível reconstituir o delineamento da concepção que esse campo vai tendo ao longo do tempo. As Conferências Internacionais de Educação de Adultos (Confinteas), ao longo de suas seis edições, é uma oportunidade para esta reconstituição com as discussões iniciadas no contexto pós-guerra, ocasião em que se buscava empreender uma organização mundial voltada ao progresso e ao restabelecimento da paz entre as nações.

O desenvolvimento da primeira conferência contou com a participação de vinte e sete países e vinte e uma organizações internacionais, aconteceu na Dinamarca, em 1949, onde o Brasil não teve participação. Os resultados dos trabalhos indicaram que a Educação de Adultos deveria ser desenvolvida adequando as especificidades e funcionalidades do atendimento aos sujeitos, bem como os métodos e técnicas.  Apontou para a necessidade de discutir os problemas relacionados à condição de vida das populações visando a produção de uma cultura de tolerância e de paz e recomendou a continuidade da atividade em função da evidência de que a educação de adultos era um tema emergente e de abrangência mundial.

Em 1960, onze anos após a primeira conferência, ocorreu a II Confintea em Montreal, no Canadá, onde participaram quarenta e sete países, quarenta e seis organizações não governamentais e dois países como observadores. Nesta edição foi reforçada a importância do papel da Educação de Adultos que deveria ser compreendida como a tarefa de todas as nações em desenvolvimento com o apoio dos países desenvolvidos. A Educação de Adultos teve dois enfoques distintos nesta conferência: o primeiro, concebendo-a enquanto continuação da educação formal, compreendendo-a enquanto educação permanente e o segundo, compreendendo-a enquanto educação de base ou educação comunitária.

A III Confintea aconteceu em 1972, em Tóquio no Japão, com a participação de oitenta e dois países, com três na categoria de observadores, trinta e sete organizações internacionais e três organizações vinculadas às Nações Unidas. O tema dessa conferência foi a Educação de Adultos no contexto da educação ao longo da vida. Nas discussões evidenciou-se a perspectiva de Educação de Adultos enquanto suplência da educação formal a partir da ideia de reintroduzir os sujeitos, especialmente os analfabetos, no sistema formal de educação.

A criação do Conselho Internacional de Educação de Adultos e o Relatório Faure contribuíram para as discussões naquele momento e influenciaram as diretrizes desta edição da conferência. Nesta mesma década, a Conferência Geral da Unesco, ocorrida no Quênia em 1976, definiu que cada país deveria reconhecer a Educação de Adultos como um elemento basilar e de ação permanente na construção das políticas públicas, ampliando as ações educativas visando garantir o direito fundamental à educação.

Em 1985, em Paris, França, aconteceu a IV Confintea. Essa conferência teve como tema ‘aprender é a chave do mundo’ e contou com a participação de cento e doze países, além das agências das Nações Unidas e de organizações não governamentais. Na ocasião se discutiu a Educação de Adultos como direito e em uma perspectiva de educação permanente ou de aprendizagem ao longo da vida. A partir da perspectiva de Gadotti (2009) esta foi uma conferência marcada pela pluralidade de conceitos uma vez que “[…] foram apresentados muitos temas, entre eles: alfabetização de adultos, pós-alfabetização, educação rural, educação familiar, educação da mulher, educação em saúde e nutrição, educação cooperativa, educação vocacional, educação técnica.” (GADOTTI, 2009, p. 9).

Na década de 1990 aconteceram muitos eventos, a exemplo da Conferência Mundial sobre Educação Para Todos, em Jomtien, na Tailândia, onde o conceito de Educação de Adultos continuou contando com uma diversidade de interpretações. Nesta conferência se defendeu que a alfabetização de adultos corresponderia à primeira etapa da educação básica, firmando a compreensão de que alfabetização não pode ser desvinculada de pós-alfabetização. Os países participantes desta conferência assumiram o compromisso proposto na Declaração Mundial sobre Educação Para Todos.

Em 1993 aconteceu a Conferência de Nova Délhi onde foi reafirmado o compromisso assumido em Jomtien e se firmou compromissos e definições de metas para atender as necessidades básicas de aprendizagem de crianças, jovens e adultos. A partir das definições destas conferências vários países fizeram reformas educacionais. No Brasil esse movimento repercutiu nas políticas públicas educacionais com a elaboração de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394/96, onde a Educação de Jovens e Adultos ganhou um capítulo especial (COSTA; MACHADO, 2017).

A V Confintea foi realizada em 1997, em Hamburgo, Alemanha. Esta edição foi compreendida como um marco no entendimento do que seja a educação da pessoa adulta. O tema da conferência envolveu a discussão sobre a aprendizagem de adultos como ferramenta, direito, prazer e responsabilidade. A conferência foi um espaço em que se buscou ampliar o papel da educação popular nas diretrizes políticas dos governos participantes. Nesta edição participaram cento e setenta países, quinhentas organizações não governamentais e cerca de um mil e trezentos participantes. Essa conferência foi muito significativa para o Brasil em virtude das ocorrências que culminaram na constituição dos Fóruns de EJA (COSTA; MACHADO, 2017).

De acordo com Costa e Machado (2017) o Ministério da Educação (MEC) promoveu diversos encontros pelo Brasil em 1996 envolvendo secretarias estaduais e municipais de educação, organizações não governamentais, sindicatos, universidades, representantes de empresas e movimentos populares, em suma, diversos segmentos que atuavam com a EJA, com o objetivo de construir um diagnóstico da realidade da EJA no Brasil. Todos os segmentos se envolveram na proposição do MEC e elaboraram um relatório que seria apresentado no Encontro Regional Latino-Americano e Caribe, encontro preparatório à V Confintea.

O documento “demonstrava a baixa escolaridade da população jovem e adulta no País e a ineficiência de várias ações descontínuas dos governos, que dificultavam a consolidação da  EJA como política pública” (COSTA; MACHADO, 2017, p. 106). Em janeiro de 1997 os delegados que haviam sido eleitos nos encontros brasileiros foram surpreendidos, no Encontro Regional Latino-Americano e Caribe, com um documento entregue pelos representantes do MEC que não correspondia àquele resultante do processo de elaboração coletiva que havia ocorrido em todo o País.

Embora estes fatos evidenciem que a relação entre Estado e sociedade civil estava marcada por tensionamentos

[…] a estratégia política de mobilizar os segmentos acabou por representar um momento importante na consolidação de uma rede de instituições, entidades e pessoas que, ao se perceberem juntas, viram a condição de uma intervenção mais orgânica na tentativa da construção da política de EJA, o que resultou no surgimento dos fóruns de EJA do Brasil […]. (COSTA; MACHADO, 2017, p. 107).

Esta ocorrência resultou na reconfiguração na relação entre o Estado e a sociedade civil, criando as condições necessárias para que o Brasil pudesse se candidatar e sediar a VI Confintea, que aconteceu em Belém, em 2009. Contou com a participação de cento e quarenta e quatro países, além de representações das organizações da sociedade civil, parceiros sociais, agência das nações unidas, organismos intergovernamentais e do setor privado. O Brasil se preparou através da mobilização dos fóruns Estaduais de Educação de Jovens e Adultos, encontros regionais e nacionais, com encontros visando reunir as pessoas para descrever o estado da arte referente à educação das pessoas jovens e adultas no Brasil. O documento produzido nesses encontros foi incorporado ao documento base da conferência e entregue à UNESCO.

O tema da conferência foi ‘Vivendo e aprendendo para um futuro viável: o poder da aprendizagem e da educação de adultos’. Nesta edição foi reafirmado o direito à educação como elemento essencial que precisa ser estendido a todos os jovens e adultos. Ficou estabelecido como prioridade a educação de mulheres, das populações vulneráveis como indígenas, pessoas privadas de liberdade e populações rurais. Foi enfatizado, nos documentos elaborados, a prioridade que deve ser dada à alfabetização no contexto da educação continuada e da formação profissional de todos que buscam continuidade dos seus estudos.

Marques (2018) pontua que nesta última edição aparece a ideia de construção de um futuro viável, presente na discussão de Paulo Freire, bem como a ideia de educação enquanto direito, alicerçando a concepção de educação de adultos de forma que até então não havia se consolidado nas demais edições da conferência. Marques (2018) aponta que no caminho percorrido até o estabelecimento deste entendimento a concepção de Educação de Jovens e Adultos foi vinculada às concepções de uma educação desenvolvida para atender as demandas do modelo econômico capitalista, refletindo nas discussões e nos encaminhamentos das conferências.

4. OS SUJEITOS DA EJA

Os sujeitos da EJA, fazendo referência aos sujeitos que demandam o desenvolvimento e oferta da modalidade, são sujeitos aos quais foram negados direitos básicos, dentre eles o direito de acesso e permanência na escola na idade idealizada como “adequada”. Embora tenham passado por tal negação do direito à educação os estudantes da EJA vivenciaram, experienciaram, produziram, estabeleceram trocas, etc., foram participantes e produtivos socialmente, politicamente e economicamente, dentro dos limites excludentes impostos pela organização da nossa sociedade. Tais sujeitos chegam às salas de aula com uma gama imensa de conhecimentos que podem render compartilhamentos e se constituir como pontos de partida e problematizações, base à constituição das ações e práticas que serão desenvolvidas pelos docentes.

Ao dialogar com Arroyo (2005) percebemos a necessidade da configuração da Educação de Jovens e Adultos enquanto um campo específico de responsabilidade pública do Estado, compreendendo /identificando a necessidade de as políticas de EJA voltarem-se à garantia de direitos específicos dos sujeitos, respeitando as especificidades do seu tempo de vida, juventude e vida adulta, em lugar de suprir insuficiências das experiências de escolarização.

É necessário compreender quem são esses sujeitos e reconhecer o seu protagonismo, pois são jovens e adultos que seguem uma trajetória humana marcada pela luta diante da perversidade da exclusão social e da negação de direitos básicos. Além disso, é necessário relacionarmos essa trajetória de negação vivenciada em seus percursos humanos com as trajetórias escolares, compreendendo a dimensão perversa dessa relação. Tal situação demonstra a vulnerabilidade nas trajetórias de vida e no direito à educação. De acordo com Gadotti (2009), os sujeitos da EJA “[…] tiveram uma experiência negativa da escola e reincluí-los nela exige a adoção de metodologias e práticas educacionais e culturais que não reproduzam os erros cometidos antes, na escola que frequentaram e da qual foram expulsos” (GADOTTI, 2009, p. 16).

Os sujeitos da EJA são protagonistas nos movimentos sociais, na cultura, na luta por uma outra organização social e na luta por seus direitos. Esse aspecto merece atenção daqueles que formulam as políticas educativas, sendo compreendido na sua real dimensão de movimentos de jovens e adultos populares em torno dos seus direitos, da necessidade de políticas respeitando o tempo de vida e as suas necessidades, especialmente o direito à educação, evitando-se a concepção de um protagonismo ameaçador e violento, que desencadeia em configurações de políticas educativas preventivas (ARROYO, 2005).

A configuração da EJA enquanto política pública e dever do Estado deve ocorrer a partir do reconhecimento de jovens e adultos populares enquanto sujeitos de direitos, carecendo olhar esses sujeitos a partir de uma perspectiva positiva. “O direito à educação não pode ser desvinculado dos direitos sociais. Os direitos humanos são todos interdependentes. Não podemos defender o direito à educação sem associá-lo aos outros direitos” (GADOTTI, 2009, p. 16). Essa consciência em relação aos direitos precisa, também, ser desenvolvida pelos próprios sujeitos e isso pode ser observado a partir da participação dos jovens e adultos nos movimentos sociais e na luta pela sua educação.

Em relação aos jovens e adultos da EJA, é fundamental a percepção de que ao longo da história eles são sempre sujeitos pobres, que vivenciam o desemprego e atuam na economia informal, experimentando os limites da sobrevivência. Trata-se de jovens e adultos populares vinculados a um certo coletivo social, racial, étnico e cultural que se mantém historicamente (ARROYO, 2005). Tal percepção evita a diluição desses coletivos em uma definição genérica de sujeito da EJA interrompendo a perpetuação da negação de direitos. É preciso evidenciar ainda que,

Ao estabelecermos como prioridade de atendimento do direito à educação os grupos sociais mais vulneráveis, devemos incluir aí as pessoas analfabetas e também as privadas de liberdade. […] A educação das pessoas privadas de liberdade deve ser integrada à campanha mundial pelo direito à educação. (GADOTTI, 2009, p. 19).

A constância notada no perfil dos sujeitos da EJA ao longo da história merece atenção, pois denuncia o fato de que a educação não tem sido desenvolvida enquanto direitos de todos e, coincidentemente, vem excluindo os mesmos coletivos. Arroyo (2005) sinaliza seis aspectos da história da EJA ligados ao Movimento de Educação Popular com os quais podemos aprender: necessidade de partir de uma visão real do sujeito considerando suas trajetórias e concepções; qualquer proposta de EJA precisa considerar os saberes populares e dialogar com eles; há especificidades nas trajetórias dos sujeitos da EJA, as quais não são lineares, fato que precisa ser considerado em qualquer proposta; foco na educação popular enquanto processo de humanização; existência de tensão entre os saberes escolares e os sujeitos da EJA; e necessidade de interpretação política das trajetórias dos sujeitos da EJA.

No que diz respeito à EJA e os sistemas escolares, é preciso que se compreenda que no engessamento do segundo nunca coube as trajetórias e conhecimentos dos sujeitos do primeiro. A imprevisibilidade presente nas trajetórias de vida dos sujeitos exige uma reconfiguração da especificidade da EJA para que ocorra a garantia do direito à educação dos setores populares. Dessa forma cabe uma configuração de EJA enquanto campo de direito de sujeitos dos setores populares.

A análise de informações[3] referentes ao perfil dos estudantes da EJA do contexto estudado evidência que do universo de sessenta e um estudantes matriculados, 2% é da Região Metropolitana de Salvador, 36%  de Salvador e 62 % oriundos de vinte e cinco diferentes cidades do interior da Bahia. Trata-se de um coletivo de sujeitos que, em sua maioria, não pode contar com a colaboração e apoio sistemático das suas famílias e, por serem originários de diversos pontos do estado, compõe um universo extremamente diverso na sala de aula, além da diversidade normalmente encontrada nas escolas.

Este é um contexto de EJA onde predomina o sujeito negro, oriundo de comunidades periféricas, que está circunscrito nos coletivos da EJA que Arroyo (2005) evidência, com histórias de vida marcada pela privação do direito à educação, bem como de outros direitos básicos. Considerando as informações da matrícula atual da escola onde o levantamento foi realizado, evidencia-se que os sujeitos apresentam uma faixa etária de treze a vinte anos. Neste coletivo, 1% tem treze anos, 49% tem entre quinze e dezessete anos e 49% tem entre dezoito e vinte anos. Neste grupo de estudantes 8% cursam turmas de Tempo de Aprendizagem (TAP) I, que tem equivalência ao 1º ano, 36% cursam turmas de TAP-II, equivalente aos 2º e 3º anos e 56% cursam o TAP-III, equivalente aos 4º e 5º anos de escolarização do Ensino Fundamental.

Com base nas informações que apresentamos, observamos que na Educação de Jovens e Adultos para adolescentes e jovens privados de liberdade, no contexto investigado, existe um importante desafio a ser enfrentado, que se insere em um campo de luta e resistência e de busca de ruptura com entendimentos utilitaristas da EJA que a limita a um espaço de formação de massas para a engrenagem do sistema de produção capitalista.

O sujeitos da EJA vinculados à socioeducação com privação de liberdade são responsabilizados pelo rompimento com as definições constantes nos dispositivos legais que regulam a vida em sociedade. No entanto é preciso considerar todos os elementos, sociais, econômicos e políticos, condicionantes das trajetórias desses sujeitos para que não incorramos em uma leitura minimalista dos fatos que os levaram à privação de liberdade. Essa perspectiva ampliada nos coloca diante da produção incessante de exclusões de direitos promovida pelo modelo de produção capitalista a partir da qual é possível evidenciar que estes sujeitos constituem a denúncia da desumanização acirrada desse modelo de produção.

5. A FORMAÇÃO INICIAL E CONTINUADA DO PROFESSOR DA EJA QUE ATUA NA SOCIOEDUCAÇÃO COM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

A Rede Municipal de Ensino de Salvador, Bahia, tem duas escolas que atendem exclusivamente a adolescentes e  jovens em cumprimento de medidas socioeducativas com privação de liberdade. Analisando informações referentes à escola lócus da pesquisa, temos um grupo constituído por onze professoras que atuam como primeira ou segunda pedagoga em turmas de TAP-I, TAP-II e TAP-III, que equivalem à primeira fase do Ensino Fundamental. Obtivemos informações  de parte desse grupo, 73% das professoras da escola, compondo o grupo cujas informações apresentamos a seguir para auxiliar a discussão.

Do grupo de professoras, 62% tem vínculo temporário com a escola, enquanto 38% são funcionárias públicas efetivas. Nesse grupo 63% das professoras atuam exclusivamente na escola, enquanto 37% também atuam em outras instituições. Considerando o tempo de atuação na EJA no contexto das medidas socioeducativas com privação de liberdade verificamos que 50% tem de um a dois anos, 25% tem menos de um ano de atuação, enquanto 25% atua na escola entre cinco e dez anos. Em relação ao tempo de atuação no magistério, 38% tem entre seis e dez anos, 26% tem entre dezesseis e vinte anos, 12% tem até cinco anos de atuação, 12% tem entre onze e quinze anos e 12% tem vinte e um ano ou mais de atuação no magistério.

Ao considerar a formação inicial, todas tem licenciatura em Pedagogia, sendo que 75% tem curso de especialização, enquanto 25% do grupo tem apenas a graduação. Em relação às áreas nas quais as professoras desse grupo têm especialização identificamos as seguintes: especialização em psicomotricidade; produção de mídias para educação online; Pedagogia para as Séries Iniciais; educação, processos tecnológicos e práticas inovadoras; gestão e coordenação escolar; alfabetização e letramento; medida socioeducativa; e deficiências visuais nas Séries Iniciais. Evidencia-se, portanto, que não há formação específica em EJA. Apenas uma professora tem especialização que dialoga com o contexto da socioeducação, mas com foco restrito ao contexto da medida socioeducativa sem qualquer recorte na EJA. As professoras afirmam que não tiveram acesso às discussões sobre a EJA em sua formação inicial.

As informações que apresentamos referente as professoras que atuam na EJA no contexto da socioeducação com privação de liberdade nos remete à Faria (2012), autora que desenvolve um debate contemporâneo acerca da formação inicial e continuada dos docentes que atuam com pessoas jovens e adultas. As suas ideias nos possibilita uma compreensão ancorada nos desafios decorrentes de um processo educacional desenvolvido em um contexto capitalista.

Neste contexto capitalista há o esvaziamento do Estado da sua responsabilidade de prover uma educação humanizadora, que considere todas as potencialidades dos sujeitos. Assim, o Estado exime-se da garantia do direito à educação para todos, atuando na produção da naturalização da ideia equivocada de que o distanciamento da escola e a dificuldade de permanência na mesma é decorrente da ação dos próprios sujeitos. Certamente a ausência de formação específica para a EJA corrobora com tais ideias equivocadas. Além disso, boa parte das professoras tem um pequeno tempo de imersão no contexto educacional, além de 62% do grupo ter vínculo temporário, elementos que dificultam a busca por formação continuada voltada à especificidade com a qual atuam.

O quantitativo elevado de professoras com vínculo temporário certamente impactará na consolidação de um grupo que possa construir e compartilhar saberes acerca da experiência desenvolvida no contexto educacional, movimento que poderia colaborar para reduzir os efeitos da ausência de formação que discute as especificidades da EJA. Considerando esse cenário percebemos um processo duplo de descaso: o primeiro à medida que não há na formação inicial oportunidade de discussão acerca da especificidade da EJA, o segundo quando o grupo de professores não terá continuidade na sua experiência no contexto educacional, a qual se encerrará com o fim do contrato temporário, impedindo a problematização das experiências e a ressignificação dos saberes da docência específicos do campo educacional.

Estes elementos podem ser entendidos como condicionantes / produtores de uma educação brasileira excludente, conforme afirma Faria (2012), mesmo se tendo legalmente constituído o direito à educação para todos, inclusive aos que não puderam acessá-la em idade idealizada como “própria”. Para que possamos dimensionar adequadamente a responsabilidade pela negação do direito aos sujeitos da EJA, é possível considerar ainda que eles

[…] são pertencentes, quase sempre, a grupos minoritários, como de negros, principalmente as mulheres negras, sujeitos de localidades populares, trabalhadores e trabalhadoras informais e também desempregados. São, ainda, indivíduos que carregam consigo duas marcas principais, uma, a de que nunca frequentaram a escola e a outra que já tiveram acesso a educação formal, mas que, por conta do trabalho e da luta pela própria sobrevivência, não deram continuidade ao processo de escolarização. (FARIA, 2012, p. 7).

Desta forma compreende-se que o anseio e demanda de formação dos docentes pode constituir o ponto de partida, pois a formação destes sujeitos deve ser compreendida como um “[…] campo de luta e reconfiguração” (FARIA, 2012, p. 2), potencializadora da seguridade dos direitos educativos de jovens e adultos. De acordo com Faria (2012), há um baixo número de investigações das experiências e saberes especializados dos docentes da EJA, necessitando que a Universidade legitime a EJA enquanto campo de investigação e possa assumir o desenvolvimento de uma formação docente potencializadora à constituição da EJA enquanto direito, superando as práticas equivocadas de educação supletiva e aligeirada àqueles que tiveram processos educativos interrompidos, ou que não puderam acessar a escola.

O processo histórico da Educação no Brasil, com a subvalorização da formação docente, falta de investimentos em formação específica dos professores da EJA e concepções pautadas no “[…] discurso neoliberal expresso nas políticas da EJA no final da década de 90” (FARIA, 2012, p. 8), que orientava o fazer docente com propostas negadoras de possibilidades educacionais adequadamente qualificadas para o desenvolvimento dos sujeitos da EJA considerando suas potencialidades, resultou na elaboração de concepções equivocadas desses sujeitos discentes, que passaram a ser identificados como oriundos do “fracasso escolar”.

Essa subvalorização da formação docente do professor da EJA fica evidente na invisibilidade que a modalidade tem nos cursos de formação inicial de professores. Certamente essa lacuna no processo de formação inicial de professores ajuda a fortalecer as concepções equivocadas a respeito da EJA e dos sujeitos. Essa percepção é compartilhada por Dantas, Nunes e Laffin (2017) quando afirmam que:

[…] a educação de jovens e adultos é marginalizada ou colocada em segundo plano na maioria dos currículos dos cursos de pedagogia e nas licenciaturas de formação de professores para as diversas áreas do conhecimento, provocando uma importante lacuna na formação inicial de professores que poderão atuar (e às vezes já atuam) na modalidade da EJA. (DANTAS; NUNES; LAFFIN, 2017, p. 185).

Faria (2012) estabelece uma reflexão acerca da formação inicial e continuada do professor da EJA apontando algumas necessidades: a necessidade de superação das concepções equivocadas sobre os jovens e adultos e sobre as verdadeiras razões que os mantiveram longe da escola ou que levaram à interrupção do seu processo educacional; a necessidade de reconhecer o respeito à garantia do direito à educação para todos; a necessidade de desenvolvimento de pesquisas específicas acerca da formação dos professores da EJA; a necessidade de um diálogo permanente em torno de uma educação inovadora, que busque soluções e respostas em favor da melhoria da qualidade de vida dos sujeitos; a necessidade de uma educação estruturada com base nas práticas sociais constitutiva dos sujeitos; e a necessidade de mobilização e comprometimento dos professores em favor do protagonismo, libertação, emancipação e promoção da luta e resistência dos sujeitos discentes da EJA em relação à expropriação dos seus saberes e fazeres no contexto capitalista.

Tais elementos apontados pela autora nos provoca à reflexão acerca da formação dos professores que atuam com a EJA no contexto da socioeducação com privação de liberdade, voltada aos adolescentes e jovens que cumprem medidas socioeducativas, bem como sobre esses sujeitos discentes e sobre a repetição de histórias de abandonos e dificuldade de permanência na escola. Tais reflexões evidenciam a urgência de discussão da especificidade da EJA na formação inicial de professores, a necessidade de desenvolvimento de formação continuada para aqueles que já atuam no contexto e uma política de valorização que possibilite a composição de um grupo de professores que possa imergir no contexto educacional a longo prazo, em vez de contratos temporários.

Ainda considerando informações do grupo de professoras que atuam na EJA na socioeducação com privação de liberdade, percebemos latente a busca pela consolidação da formação continuada à constituição de entendimentos mais aprofundados sobre a EJA no contexto educacional. Esta busca tem ocorrido a partir de diversas frentes. A primeira envolveu o engajamento do grupo para estudos e discussão do currículo da EJA desenvolvida no contexto educacional.  Os estudos desenvolvidos entre 2015 e 2016 resultaram no delineamento de uma matriz curricular, conforme Santos, Lago e Souza (2018), que impulsionou a criação da Resolução CME 001/2018, que trata da regulamentação das diretrizes pedagógicas voltadas ao atendimento escolar de adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas matriculados na Rede Municipal de Ensino de Salvador.

A segunda envolveu a reativação, em 2017, dos grupos de trabalhos e de discussão, constituídos anteriormente para desenvolvimento dos estudos e discussão do currículo, para retomar os estudos visando o desenvolvimento de um Projeto Político Pedagógico para a EJA vinculada ao contexto da socioeducação com privação de liberdade na Rede Municipal de Ensino de Salvador. Essa ação se encontra em andamento, envolve estudos, discussão, produção escrita, elaboração de seminários e já tem caminhado, inclusive, com a divulgação das experiências em eventos científicos conforme observamos em Reis, Santos e Nascimento (2018).

Esses processos formativos que emergem no chão da escola são extremamente significativos. De acordo com Dantas, Nunes e Laffin (2017) a escola é uma importante lócus de formação e “[…] assumir a escola no seu cotidiano como lugar privilegiado para a formação torna-se mais que uma provável escolha, é uma exigência pedagógica fundamental para a troca de experiências, descobertas, aprendizagens […]” (DANTAS; NUNES; LAFFIN, 2017, p. 184). Coaduna com tais ideias o fato de que as duas experiências formativas, descritas anteriormente, propiciou aprendizagens, descobertas, ressignificações de questões específicas da EJA desenvolvida na socioeducação com privação de liberdade com um sentido que dificilmente seria alcançado em um tipo de proposta distante da escola e das suas questões.

Uma terceira frente na busca de formação continuada envolve o ingresso de professores em programas de mestrado com pesquisas ligadas à EJA vinculada à socioeducação com privação de liberdade. No Programa de Mestrado Profissional em Educação de Jovens e Adultos (MPEJA) e no Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC), ambos da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), há duas pesquisas em curso desenvolvidas por professoras da escola estudada.

Em uma das pesquisas é focalizada a formação continuada de professores possibilitando, ao longo do percurso formativo, a pesquisa e a produção de conhecimentos, que corrobore com uma compreensão mais aprofundada acerca da especificidade da EJA no contexto da socioeducação com privação de liberdade, bem como com a configuração da EJA enquanto um campo específico voltado à garantia do direito à educação àqueles que tiveram esse direito negado em função de uma educação marcada pelas características de uma organização social, política e econômica excludente e perversa. A outra pesquisa envolve a investigação acerca de uma metodologia gamificada, visando a instituição de práticas pedagógicas significativas, propiciando condição à efetivação da ação educativa escolar aos sujeitos da EJA em contexto de socioeducação com privação de liberdade.

As discussões propiciadas por estas investigações e pela aproximação entre o contexto educacional estudado e a universidade tem propiciado outras oportunidades formativas, alcançando a totalidade dos professores e gestores da escola. Desta forma, emerge uma quarta frente em favor da formação de professores que ganhou concretude com a parceria entre a escola e o Grupo de Pesquisa Formação, Tecnologias, Educação à Distância e Currículo (ForTEC/UNEB) através de um curso de aperfeiçoamento intitulado “Currículo e espaços escolares socioeducativos do município de Salvador: práticas curriculares socializadoras como inovação pedagógica”, por meio do qual se pretende desenvolver uma ação de formação continuada baseada em princípios colaborativos para subsidiar, tanto nos aspectos teóricos, quanto nos aspectos metodológicos, o trabalho pedagógico dos professores, buscando validar as práticas curriculares em uma perspectiva inovadora, emancipatória e cidadã.

6. DIÁLOGO NECESSÁRIO COM O CONHECIMENTO DOS SUJEITOS DA EJA

As experiências formativas quem tem sido vivenciadas pelos professores da Educação de Jovens e Adultos vinculada às medidas socioeducativas com privação de liberdade precisa dialogar com o conhecimento dos sujeitos, uma vez que, em busca de uma proposta humanizada de educação, pautada em um projeto emancipatório, não se pode prescindir do diálogo com a diversidade e com as especificidades, bem como com a condição de o sujeito dizer “a sua palavra”.

Temos em Freire (2018) a denúncia de uma educação que coisifica os sujeitos e o anúncio da possibilidade de uma educação humanizadora e libertadora. Esses extremos são visualizados a partir da Pedagogia do Oprimido. De um projeto para poucos à ideia de educação para todos, a História da Educação no Brasil evidencia o processo de desumanização operacionalizado a partir de dispositivos como currículo, organização da escola e as micropolíticas que permeiam as relações. Essa percepção assegura a importância do legado freireano à potencialização de sonhos, à efetivação da luta e à consolidação de um outro projeto de educação.

Se a educação bancária, subtraindo a voz dos educandos e a concretização da relação dialógica no processo educativo, cerceia as possibilidades das pessoas se educarem mutuamente, na EJA esse modelo, que amputou inicialmente o acesso e permanência na escola, consegue, posteriormente, produzir, por meio de sua natureza perversa, a ideia de que a culpa dos descaminhos na escola é dos próprios sujeitos. Por fim, a produção de uma massa à margem da organização social, onde sequer a sua força de trabalho lhes assegura a participação como pessoas produtivas à garantia da sua subsistência, denuncia o rigor da perversidade desse modelo educacional.

Mulheres, homens, pobres, negros, brancos, índios, trabalhadores braçal, do mercado informal, periféricos, de origem simples, apenados, adolescentes e jovens privados de liberdade, um mesmo coletivo ao qual a EJA se dedica ao longo da sua história. Na busca pela superação da educação compensatória, pautada em um ideal de “idade certa”, professoras e professores, junto a outros sujeitos vinculados a movimentos sociais que têm a educação popular em sua pauta de luta, tentam reorganizar o campo da EJA, instituindo-a enquanto Direito à Educação, garantindo o reconhecimento da especificidade enquanto um campo de responsabilidade pública para com os sujeitos para o qual é instituída, respeitando os seus conhecimentos, a sua voz e a sua trajetória.

Não basta ler, escrever e calcular ao sujeito da EJA. É preciso se expressar, problematizar e refletir acerca das relações e contradições presentes em nossa sociedade. O educando da EJA vinculada ao contexto das medidas socioeducativas com privação de liberdade tem uma trajetória de vida na sociedade e nas suas relações e experiências desenvolveu conhecimentos que precisam ser considerados. Não há como alcançar uma educação propulsora de mudanças se tomarmos cenários para contextualização do processo educativo descolados da realidade dos sujeitos.

O universo temático da vida das pessoas precisa ser o ponto de partida para o desenvolvimento de uma educação com sentido. Esse reconhecimento é uma atitude de contraposição à educação bancária. Nos tempos e espaços em que sua história de vida ocorre, os sujeitos da EJA são protagonistas de lutas impulsionadas e fortalecidas pelo sonho de uma vida melhor, mais justa e mais digna. Projetos educativos construídos com os educandos são potencialmente férteis ao desenvolvimento de uma consciência crítica sobre as contradições da nossa sociedade, na qual se substitui a ideia de direitos para todos, pela prática de direitos enquanto privilégios para poucos, impactando a vida das pessoas.

À medida que estabelece a crítica à educação que corrobora com a reprodução de um mundo desigual e perverso Freire (2018) provoca e fortalece a inquietação, desejo e esperança de se instituir propostas no campo da EJA à constituição de um olhar que fortalece o entendimento de que, na construção de uma educação humanizada e libertadora e na ideia da construção de um projeto de sociedade mais justa, somos todos sujeitos de possibilidades. Tais entendimentos têm sido estruturantes para a concretude das experiências formativas envolvendo os sujeitos no lócus da pesquisa.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão que estabelecemos é bastante significativa para o processo de formação dos professores da EJA que atuam no contexto da socioeducação com privação de liberdade. O percurso formativo construído através das pesquisas em andamento que foram identificadas no contexto investigado e os processos de co-formação que são tecidos têm legitimado a importância de considerarmos a EJA e os seus sujeitos respeitando e valorizando as suas especificidades. Estes elementos são oportunidades para a compreensão desse campo da educação de forma crítica, analisando-o enquanto campo condicionado pela lógica do modelo de produção capitalista, mas que, também, carrega o potencial de provocar o desvelamento das falsas concepções naturalizadas como verdades para manter a opressão dos sujeitos.

O processo reflexivo que temos construído, e que tentamos revelar de alguma forma na tessitura deste artigo, implica na compreensão de que as mudança necessárias à EJA passam por uma formação construída na perceptiva de contraposição da fatalidade de que o modelo de produção capitalista, baseado na produção e o consumo desenfreado, é o único viável. Aceitar essa fatalidade corresponde a aceitar a naturalização da exclusão, da privação de direitos e da desumanização do sujeitos em um mundo que tem alargado o abismo entre ricos e pobres.

A formação de professores precisa ser desenvolvida em uma perspectiva crítica para que se desvele as verdades enganosas, fortalecendo a luta e enfrentamento para consolidar a EJA enquanto um campo de responsabilidade pública de Estado para com os sujeitos, precisa ser potencializadora de sonhos de mudança e agregadora de conhecimentos para fortalecer a prática no campo de ação na escola da EJA, consolidando o espaço da ação enquanto lugar de ressignificação do conhecimento.

Essa concepção de formação de professores é fecunda, tem vida e se faz pensando em vidas que precisam ser consideradas, respeitadas, que precisam ser fortalecidas para serem vividas da melhor maneira possível. A escola de EJA é um lugar cheio de vida, de diversidade, de sonhos e de muita luta daqueles que teimam em não sucumbir às vicissitudes. Dessa forma, o professor precisa de uma boa formação, que potencialize as possibilidades das vidas com as quais irá conviver e aprender mutuamente.

Essa é uma perspectiva de formação que tem rigor, mas que não é mecanicista. O rigor reside naquilo que é essencial ao exercício da docência com consciência e com responsabilidade. Uma docência implicada com o questionamento e buscas, inerentes ao espírito investigativo, por um conhecimento que não é estático, mas dinâmico e vivo, pois pode ser sempre ressignificado. Nessa perspectiva cabe a nossa crença de que a formação de professores é uma oportunidade para ressignificar o nosso olhar sobre a EJA e vicejar a possibilidade de efetivá-la enquanto direito, ressignificando o nosso entendimento sobre o sentido de educar para mudanças substanciais na sociedade.

Ao considerar as informações que trouxemos à discussão nas seções deste artigo evidencia-se o distanciamento da formação inicial de professores da EJA, que atua no contexto de medidas socioeducativas com privação de liberdade, enquanto base para a consolidação da EJA enquanto direito, uma vez que os professores passaram por um processo de formação que negligenciou as discussões referentes às especificidades da EJA. Outro elemento que não colabora com esta perspectiva de educação é a desvalorização do professor e o impedimento de vínculos a longo prazo no campo educacional em virtude dos contratos temporários.

No entanto, evidenciam-se iniciativas fecundas com as formações que emergem a partir das necessidades do campo educacional identificadas pelos professores. Estas experiências propiciam a construção de redes envolvendo sujeitos que se inquietam e buscam soluções por meio da discussão entre pares, onde experiências são divididas, conhecimentos são ressignificados e possibilidades são construídas, gerando, ainda, um processo de co-formação. Estas iniciativas podem ser entendidas como um movimento de ruptura com a fragilização da EJA promovida pela precarização na formação.

REFERÊNCIAS

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APÊNDICE – REFERÊNCIA DE NOTA DE RODAPÉ

3. Informações referentes aos estudantes matriculados em 23 de novembro de 2018.

[1] Mestranda do Programa de Educação de Jovens e Adultos (MPEJA) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Especialista em Metodologia do Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação (UNEB); Especialista em Educação, Processos Tecnológicos e Práticas Inovadoras (UNEB); Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Membro do Grupo de Pesquisa Interface: Investigação Interdisciplinar sobre a Formação do Educador; Professora e vice-diretora na Rede Municipal de Ensino de Salvador/BA.

[2] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduc) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Especialista em Educação, Processos Tecnológicos e Práticas Inovadoras (UNEB); Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); Membro do Grupo de Pesquisa Formação, Tecnologias, Educação à Distância e Currículo. Professora na Rede Municipal de Ensino de Salvador/BA.

Enviado: Abril, 2020.

Aprovado: Agosto, 2020.

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Eliane Silva Souza

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