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A Decadência Da Relação Ética-Economia Como Fundamento Da Crise Econômica E Social Em Angola

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

CAPITA, Flaviano Luemba [1]

CAPITA, Flaviano Luemba. A Decadência Da Relação Ética-Economia Como Fundamento Da Crise Econômica E Social Em Angola. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 03, Vol. 10, pp. 100-122. Março de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/administracao/etica-economia

RESUMO

O crescimento económico que se assistiu nos anos que sucederam o fim da guerra em Angola teve pouco impacto na melhoria da qualidade de vida da população, pois o coeficiente de concentração era muito elevado. Em 2014 o país mergulhou numa crise econômica cujos contornos se refletem na progressiva degradação dos indicadores sociais. A queda do preço de petróleo no mercado internacional é apontada como a causa da referida crise, tendo em conta a dependência excessiva da economia ao sector petrolífero. Porém, as contínuas revelações de escândalos financeiros ocorridos durante as últimas décadas permitiram supor, por outro lado, que a exclusão de considerações éticas na economia fosse a razão capital que está na base desta crise. O objetivo da reflexão é demonstrar os motivos que sustentam esta hipótese e, para o efeito, recorreu-se às pesquisas documental e bibliográfica que facilitaram o acesso aos dados económicos e ao levantamento da bibliografia. As análises efetuadas permitiram verificar a existência de uma complementaridade entre a atividade econômica e o comportamento ético e compreender que a essência da ética é a conquista da felicidade e, por isso, todo o comportamento humano que não concorre para este fim não é ético. Concluiu-se, por isso, que a crise econômica e social em Angola tem a sua génese na exclusão de considerações de natureza ética na esfera econômica, por ter sido gerada pelos fenómenos da corrupção e do desvio desenfreado de fundos públicos, que não permitiram a criação de um ambiente favorável para um crescimento económico sustentado durante o período da bonança. A inversão do quadro exige, por isso, um investimento na formação de valores éticos, na expansão de liberdades substanciais, na consciencialização sobre a finalidade do poder político e na promoção da justiça social.

Palavras-chave: Ética, Economia, Justiça social, Desenvolvimento Integral.

1. INTRODUÇÃO

Os anos que sucederam o fim do conflito armado em Angola foram marcados por um considerável crescimento económico sustentado pelo incremento das receitas petrolíferas e por uma substancial retoma dos sectores não petrolíferos, apesar de se ter verificado uma desaceleração em 2009, na sequência da crise financeira mundial. Em 2014, inaugurou-se uma era de forte instabilidade económica, tendo-se registrado taxas de crescimento negativas nos últimos anos, um aumento do nível geral de preços que atingiu cerca de 17% em 2019 e uma taxa de desemprego superior a 30%, conforme rezam os dados do Instituto Nacional de Estatística. Este comportamento agudizou a devastadora crise social cujos contornos se manifestam na degradação contínua da qualidade de vida da população.

A queda do preço de petróleo no mercado internacional em 2014 é frequentemente apontada como a principal razão que originou a referida crise. É uma hipótese que, à primeira vista, parecia irrefutável, se se considerar a excessiva dependência da economia angolana ao sector petrolífero. Porém, partindo do pressuposto de que a maior parte das crises económicas e políticas é sempre acompanhada por uma ruptura de princípios e dos sucessivos discursos proferidos por titulares de cargos políticos e pela sociedade civil, particularmente pelo Presidente da República, pelos partidos da oposição, pela Conferência Episcopal de Angola e S. Tomé, bem como das contínuas revelações de fenómenos de natureza “crematística”,[2] isto é, os escândalos financeiros ocorridos durante as últimas décadas, pode-se, por outro lado, supor que a exclusão de considerações éticas na vida económica constitui uma das razões fundamentais, se não mesmo a primária, que determinou o emergir de comportamentos perversos cujas consequências se refletem no atual contexto económico e social do país.

De fato, enquanto se assistia a uma notável prosperidade económica, sobretudo no período pós-guerra, em que o crescimento do PIB atingiu taxas superiores a 15%, com o barril de petróleo no mercado internacional a ser transacionado a preços superiores a 100 dólares americanos em 2008, constatou-se um declínio da importância de considerações éticas na vida económica, tendo suscitado comportamentos negativos que condicionaram a possibilidade de criação de um ambiente favorável para a sustentabilidade do crescimento económico e do desenvolvimento do país.

Não se pretende, aqui, afirmar que a dissociação entre a ética e a economia seja a única razão que esteve na base da devastadora crise económica e social que se vive em Angola desde 2014. O que se pretende é, de facto, mostrar que o facto de se ter ignorado as considerações de natureza ética determinou o comportamento efetivo dos indivíduos, sobretudo daqueles que tinham o poder de influenciar a conjuntura económica com as próprias decisões, sendo elas para o benefício do coletivo ou em benefício pessoal.

Com esta reflexão, pretende-se, portanto, espelhar à luz dos fundamentos das teorias éticas e da Doutrina Social da Igreja (DSI), as motivações pelas quais se assume que a decadência da relação ética-economia é a causa primordial da crise económica e social em Angola e refletir sobre alguns desafios que visam transformar os benefícios da atividade económica num verdadeiro instrumento para o alcance de um desenvolvimento humano e integral. Para o efeito, procurar-se-á, antes de tudo, compreender a essência de algumas teorias éticas e do objeto de estudo da ciência económica, bem como a importância da compenetração entre eles, para, em seguida, se determinar os comportamentos resultantes da ausência de considerações éticas na esfera económica e suas consequências no desenvolvimento do país.

Estamos cientes de que as vias de solução do problema aqui avançadas não são mágicas. Todavia, espera-se que o conteúdo deste texto contribua na interpelação das consciências, pois como afirmou Fidel Castro (1984, p. 15), “nenhum problema foi jamais resolvido na história enquanto não se tornou realidade tangível na consciência de todos”.

2. ÉTICA E ECONOMIA: FUNDAMENTOS TEÓRICOS

As primeiras indagações a respeito da ética são atribuídas a Sócrates, por se ter notabilizado como pioneiro na análise dos factos políticos negativos que marcaram o seu tempo. Partindo das ideias políticas de Sócrates, seguiram-se numerosos aprofundamentos de teorias éticas que vão desde a ética da transcendência até às teorias da bioética. Tendo em conta os objetivos preconizados, procurar-se-á explorar de forma sintética as principais teses defendidas pelos filósofos da Grécia (especialmente Platão e Aristóteles) e da corrente do cristianismo (Santo Agostinho), por reunirem os pressupostos que servem de sustento teórico a esta reflexão.

Por outro lado, a economia, depois de se destacar da filosofia moral, ganhou um método e um objeto de estudo. Sendo uma ciência social, preocupa-se com o estudo do comportamento humano, com o foco na problemática da racionalização dos recursos escassos, disponíveis para a produção da riqueza.

2.1 ÉTICA COMO DETERMINANTE DO COMPORTAMENTO HUMANO

A concepção da ética na perspectiva platónica está enraizada em três eixos fundamentais: a justiça na ordem individual e social, a transcendência do bem e as virtudes humanas e a ordem política presidida pela justiça (PEGORARO, 2013, p. 25-26). Embora não tenha elaborado uma teoria ética propriamente dita, a filosofia de Platão centra-se na busca pela verdadeira virtude do homem e pelo verdadeiro significado do bem. As noções do bem, de virtude e da comunidade são, por isso, as ideias centrais constantes na perspectiva de Platão sobre a ética. Platão defende que a verdadeira moral tem como finalidade a conquista da felicidade (sumo bem). Por isso, “o bem e o justo para o indivíduo não pode ser algo diferente daquilo que é bem e justo para a comunidade” (VALLE, 2009, p. 20).

Relativamente à virtude, Platão refere que “é pela prática da virtude que o homem sábio se eleva do bem que pratica ao sumo bem transcendente”. É nesta ordem de ideias que a virtude é tida como a via áurea da ética de Platão, definida como atividade da alma que consiste num hábito, num comportamento permanente da alma (PEGORARO, 2013, p. 28). A filosofia platónica considera, para além da justiça, as virtudes cardeais como a temperança, a coragem e a prudência. Porém, a justiça é tida como a fundamental, que rege todas outras, tendo em conta o seu impacto na harmonização da cidade.

Seguindo as pegadas de Platão, Aristóteles, com o seu tratado sobre a ética desfilado em Ética a Nicômaco, considerou, igualmente, a conquista da felicidade (bem comum) como o objeto central da ética, identificada como o fim do desejo humano (BRÜLLMANN, 2013, p. 13), alcançada por via da virtude. Aristóteles considera três virtudes humanas: a sabedoria, a prudência e a justiça, sendo esta última a fundamental, por ser aquela que ordena que o bem seja extensivo a todos os cidadãos, pois o bem que promove a autorrealização do ser humano “não é um bem que atende somente ao desejo particular do indivíduo, mas um bem que corresponde à coletividade” (DA CUMBA, 2009, p. 31).

Percorrendo as visões de Platão e de Aristóteles, constata-se que ambos convergem na ideia segundo a qual a finalidade da ética é a conquista da felicidade, não como um bem individual, mas como um bem coletivo. Portanto, na visão destes autores, todo o comportamento humano que não concorre para a felicidade do coletivo não é ético. Nota-se aqui que na perspectiva da filosofia grega se atribuiu uma atenção particular às considerações éticas, pois delas podem resultar objetivos que transcendem o mero desejo de maximizar o próprio bem-estar, apresentando-se a prática da virtude (sobretudo a justiça) como a via para o alcance do referido bem supremo.

Por outro lado, numa linguagem mais teológica, Santo Agostinho, pai da igreja, embora não tenha escritos sobre tratado de ética, encontra o fundamento do princípio ético no amor. Na tentativa de delinear os fundamentos da ética agostiniana, Iskandar e Oliveira (2009, p. 45) afirmam que

para Agostinho, os padrões éticos estão ligados a um uso correto dos bens terrenos em busca da fruição (do gozo) das coisas celestes. Em outras palavras, devemos utilizar (uti) os bens materiais, na medida em que nos alimentam na caminhada rumo à suprema felicidade que está em Deus e a qual devemos gozar (frui) plenamente.

Não é difícil constatar que nesta perspectiva em que o amor é considerado uma virtude ética, sobressai a preocupação pela realização plena de todos os homens e de todo o homem, sendo criatura de Deus, feita à sua imagem e semelhança.

Fazendo um corte transversal das três perspectivas afloradas, embora de forma muito sintética, não parece difícil deduzir que a totalidade de visões sobre a ética tem como centro, ou seja, converge nos princípios da justiça e do amor que, segundo a doutrina social e a tradição da igreja, constituem os sustentáculos do edifício da convivência humana, sendo que a justiça, é a virtude que torna o indivíduo cidadão, assumindo livremente ações com impacto positivo sobre os outros, e o amor, o maior de todos os mandamentos da lei de Deus (Mt. 22, 36-40; Mc. 12, 29-31) e, por isso, considerado como a virtude social por excelência.

2.2 ECONOMIA COMO CIÊNCIA DO ESTUDO DO COMPORTAMENTO HUMANO

Ao longo do tempo foram apresentadas muitas definições de economia. Pode-se aqui destacar aquelas apresentadas por Alfred Marshall em 1920, no Principle of Economics, em que sobressai a ideia de que a economia estuda a vida corrente das pessoas, e a sustentada por Paul Samuelson em 1948, na sua obra Economics cujos elementos representam a espinha dorsal da definição mais usual até os nossos dias.

Para Samuelson, a economia é

o estudo de como as pessoas e a sociedade escolhem o emprego de recursos escassos, que podem ter usos alternativos, de forma a produzir vários bens e a distribuí-los para consumo, agora e no futuro, entre as várias pessoas e grupo de sociedades (NEVES, 1992, p. 38-40).

Partindo desta definição, pode-se entender que a essência da ciência económica é compreender a realidade da escassez e, em seguida, prescrever como deve a sociedade organizar-se de modo que corresponda ao uso mais eficiente dos recursos (SAMUELSON; NORDHAUS, 2005, p. 4).

Portanto, conforme sustenta Rossetti (2009, p. 205-207), a escassez de recursos e as ilimitáveis necessidades e aspirações humanas são os fundamentos das duas primeiras questões-chave da economia. Diante destas duas realidades antagónicas (recursos escassos e necessidades ilimitadas), o comportamento a ser assumido pelos agentes económicos quanto ao seu uso no processo de produção de bens destinados para a satisfação das necessidades humanas ilimitadas torna-se o âmago da investigação da economia.

2.3 COMPLEMENTARIDADE ENTRE COMPORTAMENTO ÉTICO E ATIVIDADE ECONÓMICA

Através da história do pensamento económico, pode-se perceber que, até antes da célebre obra de Adam Smith “a Riqueza das Nações”, publicada em 1776, a economia era uma disciplina estudada no âmbito do curso de filosofia moral, o que proporcionava um carácter ético às decisões económicas cujo fim consistia na garantia do bem-estar do ser humano. Com a referida obra em que foram sistematizadas as principais questões económicas da época, a economia ganhou um método de estudo, convertendo-se em uma ciência, o que determinou a separação da economia da filosofia moral. Porém, com o passar do tempo, o mundo começou a enfrentar crises económicas, algumas delas com consequências nefastas na qualidade de vida da população.

Na tentativa de buscar as razões confluentes dos referidos desequilíbrios, o economista Amartya Sen (2006, p. 14), no seu tratado sobre Etica ed Economia, apontou o distanciamento entre a ética e a economia como a causa que determinou o empobrecimento da economia moderna, embora tenha reconhecido a existência de outros fatores que concorrem para o referido enfraquecimento. Amartya Sen fez esta constatação por reconhecer que, embora a produção da riqueza seja o objetivo imediato do estudo da economia, ela está ligada a objetivos mais profundos, sendo a produção da riqueza um meio para o alcance do bem desejado, isto é, o bem comum.

O Papa João Paulo II, ao referir-se sobre a relação ética e economia, afirmou que quando a economia observa os princípios morais, torna-se uma forma de prestação de serviço que visa a produção de bens e serviços destinados ao crescimento de cada um, tornando-se assim numa oportunidade para que cada homem viva a solidariedade e a vocação à comunhão com os outros (COMPÊNDIO DA DSI, n.˚ 333). Esta visão converge com a perspectiva defendida por Amartya Sen, pois quer numa, quer noutra se atesta que quando a economia observa os princípios éticos torna-se um meio que visa um fim que transcende a produção de bens e serviços.

Seguindo a mesma linha de pensamento, o Papa Emérito Bento XVI, numa carta dirigida ao primeiro-ministro Britânico Gordon Brown na véspera do G20 em Londres, escreveu: “Esta crise nos ensina que a ética não está fora da economia e a economia não funciona se não agregar o elemento ético” (VEDOVATO, 2009, p. 41), demostrando, deste modo, a existência de uma compenetração entre os dois âmbitos. Por isso, no Compêndio da Doutrina Social da Igreja (n.˚ 331), defende-se que “a relação entre moral e economia é necessária e intrínseca: atividade económica e comportamento moral se compenetram intimamente. A distinção entre moral e economia não implica uma separação entre os dois âmbitos, mas, ao contrário, uma importante reciprocidade”.

Por outro lado, Hans Küng (2002, p. 405-407) defendeu que sustentar dogmaticamente concepções económicas isentas de quaisquer normas éticas não é economia, mas sim reducionismo económico, economicismo, visto que, no período pós-moderno, uma atividade económica responsável consiste em conjugar de forma consciente as estratégias económicas com comportamento ético.

Constata-se, de facto, uma reciprocidade entre os dois ramos, pois a teoria ética conduz à construção de concepções económicas inovadas, enquanto a teoria económica solicita à teoria política a projeção de novos tipos de sistemas decisórios que conduzem às transformações sociais requeridas (VALLEGA, 1994, p. 13). Estas constatações permitem confirmar a impossibilidade de dissociar a ética da economia e da política, pois a eficácia da atividade económica depende do conjunto de valores considerados no processo de tomada de decisões económicas, ao passo que o comportamento ético é influenciado pelos resultados obtidos na esfera económica.

3. CONSEQUÊNCIAS DA AUSÊNCIA DE COMPORTAMENTOS ÉTICOS NA ECONOMIA

Por mais que se queira ignorar a necessidade cada vez imperiosa de submeter a atividade económica a uma sólida base ética, não restam dúvidas de que as consequências deste distanciamento comprometem a própria racionalidade económica.

Neste parágrafo, procurar-se-á refletir sobre alguns fenómenos que se julga resultar da inobservância de considerações éticas na esfera económica, tendo, por sua vez, determinado o atual contexto económico e social do país. Sobressaem aqui, pela sua relação com a temática em abordagem, os fenómenos da corrupção e da apropriação indevida do erário público, evidenciando as suas repercussões na promoção do bem comum e no desenvolvimento humano e integral.

3.1 CORRUPÇÃO

O termo corrupção deriva do latim corruptione, que significa ato ou efeito de corromper ou corromper-se; estado do que se vai corrompendo; decomposição; putrefação; ato de corromper moralmente; perversão; adulteração; estado do que é corrompido; uso de meios ilícitos para obter algo de alguém; suborno.[3] Nota-se que o termo assume uma conotação negativa, porquanto as consequências que dele derivam destroem a ordem social, comprometendo a dignidade da pessoa humana. Foi por esta razão que no Compêndio da Doutrina Social da Igreja (n.˚ 411) se afirmou que

entre as deformações do sistema democrático, a corrupção política é uma das mais graves porque trai, ao mesmo tempo, os princípios da moral e as normas da justiça social; […] A corrupção política distorce na raiz a função das instituições representativas, porque as usa como terreno de barganha política entre solicitações clientelares e favores dos governantes.

A corrupção é um dos meios ilícitos aos quais homens e mulheres, esvaziados de valores morais, recorrem para buscar a própria satisfação material ou ainda para a maximização da própria utilidade, independentemente dos danos que possa causar ao coletivo. Trata-se de uma expressão de comportamento antiético, porquanto o objetivo mira apenas fins pessoais, mesmo que tal atitude represente para os protagonistas uma manifestação de perda de virtudes sociais e humanos que concorrem para a dignidade da pessoa humana e para o bem comum. Por isso, o Papa Francisco, na sua homilia do dia 30 de março de 2020, na capela da casa Santa Marta, no Vaticano, caracterizou o corrupto como um indivíduo incapaz de se envergonhar e ir ao encontro do perdão pelos próprios atos.

Por outro lado, o docente universitário Raúl Tati (2014, p. 72), na sua acepção sobre o ser corrupto, afirmou que “quando a pessoa vai praticar atos dessa natureza supõe-se que a sua forma mentis e a sua vontade estão já plasmados numa dinâmica de degeneração de princípios e valores morais”. Em Angola, este fenómeno não lesou apenas a justiça social distributiva, gerando uma estrutura social de alto risco, mas também, e num sentido mais lato, figurou-se entre os bloqueamentos institucionais que condicionaram grandemente as possibilidades de construção de um ambiente propício para um crescimento económico diversificado e o desenvolvimento sustentável do país.

Referindo-se a este propósito, Alves da Rocha (2014, p. 83-85), socorrendo-se de experiências internacionais, não teve dúvidas em considerar a corrupção como “um fator de grande perversidade e malefício para o desenvolvimento económico”. O autor entende que a grande consequência da corrupção em Angola manifesta-se ao nível da distorção do papel distributivo dos seus resultados, através de fugas ao pagamento de impostos, por meio da aplicação arbitrária de regras, pelo crescimento da economia informal, pela imposição de impostos regressivos às pequenas empresas, pela via de contratações e promoções arbitrárias de quadros.

A generalização do fenómeno em quase todos os extratos da sociedade, particularmente na economia, na política, na administração pública, na saúde e no ensino, permite classificá-lo como um fenómeno social enraizado no desejo desnaturado e desmedido de enriquecimento pessoal a despeito daqueles que vivem em extrema pobreza cujo clamor só chegava aos ouvidos do Criador da humanidade.

3.2 APROPRIAÇÃO INDEVIDA DO ERÁRIO PÚBLICO

A apropriação indevida dos recursos públicos, qualquer que seja a sua aplicação, considera-se um comportamento desviante, porque se contrapõe ao princípio da destinação universal dos bens, segundo o qual “Deus destinou a terra, com tudo que ela contém, para o uso de todos os homens e de todos os povos, de modo que os bens criados devem bastar a todos, com equidade, segundo a regra da justiça, inseparável da caridade” (COMPÊNDIO DA DSI, n.˚ 171). Partindo deste princípio universalmente aceite, não restam dúvidas de que todo o comportamento humano que visa prejudicar o acesso aos bens da terra a uma pessoa ou a um grupo de pessoas deve considerar-se adverso à moral e, por isso, condenável pela sociedade e pelo direito.

No discurso de abertura do VIII Congresso Ordinário da JMPLA, realizado em Luanda, nos dias 10 a 12 de outubro de 2019, o Presidente do MPLA, João Lourenço, reconheceu a existência de um pequeno grupo de angolanos que se apoderou de forma indevida de uma grande parte dos recursos públicos, parte dos quais estava a ser usada para influenciar alguns jovens pouco sérios a fim de desencadearem ações, visando a desestabilização do país. Já na abertura da terceira reunião ordinária do Comité Central do MPLA, realizada no dia 13 de Março de 2020, o governante, dirigindo-se aos que se apoderaram injustamente dos recursos do Estado, disse que os prevaricadores deveriam agradecer o facto de se estar a levar a cabo uma luta cerrada contra este mal, pois “se deixássemos a festa continuar, talvez viessem a morrer de congestão de tanto comer”, confirmando, mais uma vez, a presença do fenómeno desencadeado por alguns elementos que detinham o poder nas diferentes instituições do aparelho do Estado.

Embora o Presidente da República, João Lourenço, tenha admitido numa entrevista ao Wall Stret Journal que o Estado angolano terá perdido cerca de 24 mil milhões de dólares americanos, que beneficiaram apenas uma elite muito restrita,[4] reconhece-se não ser possível determinar a quota de recursos públicos empregues para fins pessoais em Angola durante as últimas décadas. Porém, pelas evidências, é solícito afirmar que se as riquezas produzidas durante o período pós-guerra fossem devidamente canalizadas para fins públicos, o país não estaria hoje no estágio de desenvolvimento em que predominam maioritariamente as características da economia e sociedade tradicional, isto é, (i) situação económica estagnante; (ii) maior parte da população é pobre, sendo que apenas alguns grupos gozam de bem-estar e segurança económica; (iii) a atividade económica prevalente é a agricultura de subsistência.[5] A oferta dos serviços básicos à população, que constituí o objetivo central do processo de desenvolvimento, continua, até hoje, um sonho, na medida em que se verifica um elevado défice no fornecimento de energia e água, condições de saneamento básico precárias, prestação de serviços de saúde sem a qualidade desejada e um sistema de educação incompatível às aspirações de um desenvolvimento sustentável.

Ao apropriar-se indevidamente dos recursos públicos para fins particulares, o homem priva os outros do direito natural de satisfazer as suas necessidades primárias indispensáveis para a vida. Por isso, todo aquele que, parcial ou integralmente se aproprie de um bem coletivo, não só viola o primeiro princípio de toda a ordem ético-social que estabelece o uso comum dos bens (COMPÊNDIO DA DSI, n.˚ 172), mas também compromete as possibilidades de construção de um desenvolvimento humano e integral.

A corrupção e a apropriação indevida dos recursos públicos são, portanto, evidências que atestam o carácter “não ético” dos princípios que nortearam a gestão da economia angolana, tendo resultado numa clara contraposição entre a riqueza produzida e o bem-estar social, visto que não foram operacionalizadas as necessárias transformações estruturais e institucionais que permitiriam levar os frutos do crescimento económico a toda a população de modo mais eficiente, agudizando a disparidade entre uma minoria ultra rica e uma multidão inumerável, excessivamente pobre.

4. POR UMA ECONOMIA ORIENTADA PARA O DESENVOLVIMENTO INTEGRAL

Ao satisfazer as exigências de produção e distribuição de bens e serviços de que o homem necessita para a satisfação das suas ilimitadas necessidades, a economia cumpre parcialmente com o seu objetivo, visto que o seu fim último deve ser o de consentir a “realização do homem e da convivência humana”, promovendo um desenvolvimento solidário da humanidade, pois não é aceitável um crescimento económico obtido em detrimento dos seres humanos, de povos inteiros e de grupos sociais condenados à indigência e à exclusão” (COMPÊNDIO DA DSI, n.˚ 331-332).

Na perspectiva do Papa Paulo VI (n. º 14), o desenvolvimento não pode reduzir-se a um simples crescimento económico. Para que ele seja autêntico, “deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo”. Deste modo, a plenitude do verdadeiro desenvolvimento realiza-se com a passagem de condições menos humanas para condições mais humanas (idem, n. º 20). A questão é, portanto, a seguinte: quais são os desafios para que os benefícios da atividade económica se transformem num instrumento para a promoção de um desenvolvimento integral em Angola?

4.1 FORMAÇÃO DE VALORES ÉTICOS E DE NORMAS DE CONDUTA ECONÓMICA

Na Teoria dos sentimentos morais, Adam Smith admite existir uma influência crucial dos valores que regulam o comportamento dos indivíduos no alcance de resultados económicos satisfatórios.[6] Com este posicionamento, o fundador da economia moderna reconhece a importância da dimensão ética na esfera económica. Em consequência, o economista e filósofo Amartya Sen (2003, p. 120) considera a necessidade de desenvolver uma ética económica como um dos desafios mais importantes que os países em via do desenvolvimento devem enfrentar nas fases iniciais de industrialização para o êxito das suas atividades económicas.

Portanto, as normas de conduta económica são importantes instrumentos que visam prevenir os fenómenos que afetam o bom funcionamento global da atividade económica e o êxito das iniciativas tendentes a promover o desenvolvimento humano e integral, pois como se afirma na Constituição Pastoral Gaudium et Spes (n.˚ 63), “o ser humano é o autor, o centro e o fim de toda a vida económico-social”. Pode-se com isso afirmar que a realização do carácter moral de uma atividade económica exige ter como sujeitos todos os homens e todos os povos, na medida em que a formação da riqueza e o seu incremento progressivo só serão moralmente corretos quando forem orientados “para o desenvolvimento global e solidário do homem e da sociedade em que ele vive e atua”. A economia não deve, portanto, limitar-se à acumulação de bens e serviços, mas sim, preocupar-se com a “realização da autêntica felicidade humana” (COMPÊNDIO DA DSI, n.˚ 333-334).

Tal como se afirma na introdução, as crises económicas são normalmente acompanhadas por ruptura de princípios éticos. Efetivamente, a crise que se vive em Angola não foge a esta regra. Por isso, a formação de um conjunto de valores éticos enraizados na cultura constitui o desafio para a moralização da atividade económica no país, pois como afirmou Gianfranco Ghirlanda, os valores éticos representam uma questão concreta, existencial e profundamente humano, e constituem o conteúdo dos princípios e regras de que o homem se apropria e se nutre para adquirir a capacidade de operar para o bem comum.[7] Não se trata, portanto, de uma contradição entre as normas morais e a liberdade, pois a moral é “um instrumento ao serviço da liberdade” e as normas orientam o agir humano para decisões autenticamente humanas que não prejudiquem os outros (CHENU, 1991, p. 315).

A natureza dos problemas derivados da ausência de comportamentos éticos na economia angolana exige a formação de valores éticos inerentes à dignidade da pessoa humana, essencialmente os referenciados na Constituição Pastoral Gaudium et Spes (n.˚ 26), isto é, a verdade, a justiça, o amor e a liberdade, o que exige da sociedade, uma mudança de mentalidade e profundas transformações sociais, bem como a observância escrupulosa das boas práticas de Corporate Governance propostas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), que pressupõem a aplicação dos princípios de justiça, transparência, responsabilização e responsabilidade.

4.2 EXERCÍCIO CORRETO DO PODER POLÍTICO

As várias formas de comunidade política, conforme se afirma na Constituição pastoral Gaudium et Spes (n.˚ 74), encontram fundamento na garantia do bem comum, tido como virtude dinâmica e concreta que se resume no “conjunto das condições sociais de vida que permitem às pessoas, famílias e aos grupos humanos se realizarem amplamente, da maneira mais perfeita possível”. Por isso, D’Ambrosio (2008, p. 57) refere que toda a pessoa que detém o poder político deve exercitá-lo com o intuito de promover o bem comum, sendo que qualquer outro objetivo como dinheiro, prestígio, bem individual ou de um grupo, desnatura o poder. Esta finalidade só se alcança quando o exercício da autoridade política for feito dentro dos limites da ordem moral, ou seja, “pela força moral, que se apoia na consciência da liberdade e do dever assumido” (GAUDIUM ET SPES, n.˚ 74).

O Arcebispo de Lubango, Dom Gabriel Mbilingi, numa das suas alocuções durante o tríduo pascal, em abril de 2020, afirmou que “todo o poder, quer religioso quer político, se não for compreendido como uma delegação de Deus ao serviço dos irmãos, torna-se arrogância, dominação”. Efetivamente, um poder político mal exercido, isto é, que não mira o bem comum, torna-se fonte de descalabro, porque gera miséria, desigualdades, desrespeito pelos direitos fundamentais do homem, violência, exclusão social e outras situações que ferem a dignidade da pessoa humana.

As evidências não deixam espaço a dúvidas de que as maiores atrocidades que conduziram o país para o atual cenário económico e social foram perpetradas por alguns indivíduos que, em pleno exercício do poder, privilegiaram atitudes incompatíveis com a promoção do bem comum. Não foi por uma mera coincidência que o presidente João Lourenço reconheceu a existência de alguns militantes do MPLA que, “a coberto do nome do partido ou da sua condição de dirigentes, lesam gravemente o interesse público, cometem desmandos, arbitrariedades e abuso de poder, em detrimento de pacatos cidadãos…”,[8] desvirtuando as instituições do Estado cuja missão original é a defesa da vida e da dignidade da pessoa humana. Por isso, o governante, no discurso proferido na cerimónia de investidura no dia 26 de setembro de 2017, advertiu que “quem quer que venha a exercer funções no executivo deve preocupar-se com os problemas da nação, colocando o interesse nacional acima dos interesses particulares ou de grupos, para a defesa do bem comum”.

Efetivamente, para que o poder político em Angola esteja ao serviço do bem comum, deve, tal como sustenta D’Ambrosio (2008, p. 51), satisfazer duas condições principais cuja realização passa por uma sucessiva reflexão filosófica, um discernimento constante e uma contínua avaliação do percurso realizado. Em primeiro lugar, que os cidadãos e os políticos sejam educados para viver virtuosamente, a partir da virtude da justiça e da amizade social; Em segundo lugar, que sejam autuados mecanismos administrativos com a melhor legislação possível que garanta o controlo efetivo dos comportamentos e das ações dos indivíduos que detêm o poder nas diferentes instituições e nos órgãos do Estado.

Não sendo uma ciência exata, a essência da política pode atuar apenas de forma aproximativa, devendo, para o efeito, os detentores do poder reunirem alguns requisitos que descrevem a sua grandeza humana, como a exemplaridade, a formação, a competência, a responsabilidade, o espírito de serviço. Angola precisa de políticos com este perfil e não daqueles que, dominados pela autorreferencialidade, pela sede do poder e pelo desejo de lucro, fazem do poder um instrumento para a realização pessoal, dando origem às mais variadas formas de degeneração do poder referenciadas por William Shakespeare: dor, abuso do poder, ódio, inveja, assassinatos, torturas, traições, ambição patológica, falta de senso de responsabilidade, mentiras, entre outras.[9] Quer na visão de Aristóteles onde o poder político tem origem na natureza humana, quer na visão de Tomás de Aquino onde se defende que todo o poder provém de Deus, converge-se na ideia de que o poder deve ser exercido para o bem de todos, ou seja, para o bem comum.

As reformas em curso no país nas dimensões económica, social, política e institucional, são dignas de realce pelo seu impacto positivo, tanto na melhoria da gestão da coisa pública quanto no abrandamento da expansão da corrupção. Por isso, abriram-se as portas para a esperança de um futuro melhor. Quem dera um dia pudesse testemunhar a efetivação das palavras de Cristo:

sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores, e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo; e quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo. Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para resgatar a multidão (Mt. 20, 25-28; Mc. 10, 42-45).

Conclui-se que um poder bem exercido é um serviço para os outros e não uma ocasião para angariar bens materiais.

4.3 EXPANSÃO DE LIBERDADES INDIVIDUAIS

A Constituição da República de Angola de 2010 reserva uma particular atenção aos direitos fundamentais do cidadão, entre os quais, o direito às diferentes formas de liberdades. Numerosos estudos foram já realizados no sentido de validar a relação positiva entre a expansão de liberdades e as mudanças nas estruturas económicas e sociais.[10] Apesar destes contributos, foi o economista Amartya Sen que, não querendo contrariar as perspectivas que consideram o desenvolvimento como crescimento do PIB, progresso tecnológico, modernização ou aumento dos rendimentos individuais, defendeu que o desenvolvimento fosse definido como um processo de expansão de liberdades reais de que os seres humanos gozam, isto é, a participação política, o acesso à instrução de base, o acesso à assistência sanitária, o acesso ao sistema de informação e o acesso ao mercado.[11] O autor sustenta que a eliminação dos principais problemas que afetam grande parte da população nos países do terceiro mundo, isto é, a pobreza persistente, a insatisfação das necessidades primárias, as carestias, a fome de massa, a violação dos direitos políticos elementares e das liberdades fundamentais, constitui o aspecto central do desenvolvimento.

Não se trata apenas da liberdade política concebida como “ausência de prepotência ou de dominação” que, na visão de Hannah Arendt é um atributo do “eu posso”. Trata-se, sobretudo, da liberdade filosófica considerada por Emmanuel Lévinas, como um atributo do “eu quero” que, desde o idealismo é interpretado como a capacidade de ser e de expandir-se (LISSA, 2003, p. 90). É nesta capacidade de ser e de abrir-se ao outro que o “eu quero” como atributo da liberdade filosófica se traduz em responsabilidade.[12]

Em Angola, o exercício das liberdades era muitas vezes colocado em causa, desestimulando as capacidades de cada membro da sociedade de se responsabilizar pelos próprios interesses, contrariando, deste modo, os pressupostos do princípio de subsidiariedade. Estas privações exigiam uma maior intervenção do Estado através de instrumentos corretivos, provocando “a perda de energias humanas e o aumento exagerado do sector estatal, dominado mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de servir os usuários com um acréscimo enorme das despesas” (JOÃO PAULO II, n.˚ 48).

É, portanto, imperioso que todas as entidades e instituições nacionais como o Governo, as Universidades, as diferentes formas de associativismo, os partidos políticos e as próprias comunidades se empenhem na busca de estratégias que visam promover as liberdades individuais necessárias para que cada indivíduo seja capaz de conduzir a própria vida de forma responsável. Isto não só estimularia a motivação e a confiança de si mesmo, mas também provocaria rápidas mudanças, quer na esfera económica quer na esfera social, pois, conforme sustenta Amartya Sen (2011, p. 238), a liberdade capacita o indivíduo, conferindo-lhe maiores possibilidades de alcançar os seus objetivos, tendo em conta aquilo que mais valoriza.

Para o efeito, requer-se uma transição do paradigma de desenvolvimento do tipo top-down, baseado na “centralização, burocratização e assistencialismo”, para o paradigma de planeamento do desenvolvimento do tipo buttom-up, que tem o fundamento na “participação, aprendizagem, negociação e na mobilização local”. Ao contrário do primeiro modelo que promove a irresponsabilidade da sociedade, o segundo modelo, tendo em conta as suas peculiaridades, garante uma maior responsabilidade e liberdade dos indivíduos de forma singular ou em grupos, cabendo às instâncias superiores apoiar as suas iniciativas.

4.4 PROMOÇÃO DA JUSTIÇA SOCIAL

Angola é um país provido de uma potencialidade em recursos naturais, fazendo dele um dos mais ricos de África. Infelizmente, tendo em conta as expressivas assimetrias na repartição da riqueza produzida, o coeficiente de concentração é muito elevado, deixando a maior frange da população numa situação de incapacidade, porquanto se observa a persistência de elevado índice de pobreza rural e urbana, altas taxas de desemprego, elevado índice de mortalidade materna e infantil, baixo grau de instrução da população e outras situações pouco abonatórias à dignidade da pessoa humana. Eis a razão por que Le Billon descreve o país como “uma terra maldita pelas suas riquezas”, ao passo que Munslow defende que o petróleo e os diamantes são os pilares da riqueza de Angola e, ao mesmo tempo, a razão da miséria do seu povo (HODGES, 2002, p. 19).

Esta triste realidade espelha incontestavelmente que a repartição dos resultados da atividade económica em Angola baseava-se em critérios de parcialidade, favorecendo alguns em detrimento dos outros em função da condição social, das relações pessoais ou da identidade, comprometendo, deste modo, a realização do bem comum e a correta interpretação do princípio de subsidiariedade.

Estamos, sem dúvida, diante de uma sociedade em que o valor da pessoa humana, dos seus direitos e da sua dignidade estão a ser fortemente ameaçados “pela generalizada tendência a recorrer exclusivamente aos critérios da utilidade e do ter” (COMPÊNDIO DA DSI, n.˚ 202). A esta propensão utilitarista advertiu John Rawls, quando nas primeiras páginas da sua teoria da justiça afirma que

cada pessoa tem a sua inviolabilidade fundada na justiça que, mesmo em nome do bem-estar do conjunto da sociedade, não pode ser violada. Por este motivo, a justiça proíbe que a perda da liberdade de alguns possa ser justificada pela obtenção de um maior bem para todos os outros (PEGORARO, 2013, p. 124).

Por isso, necessita-se de uma tomada de consciência por parte de todos, no sentido de ativar mecanismos que visam impor regras que promovam a justiça nas suas mais variadas formas, particularmente no âmbito social, uma vez que a justiça social, segundo o uso do termo consagrado pelo Papa Pio XI, refere-se à exigência de conceder a todas as partes e a todos os membros a possibilidade de alcançar tudo quanto necessitam para exercitar as suas funções sociais (D’AMBROSIO, 2011, p. 102). Neste sentido, a justiça social pode tornar-se num instrumento para o crescimento de todos e não instrumentalizada para interesses particulares, apenas com uma ética pública fundada em regras que favorecem o interesse de todos (TOSO, 2006, p. 132).

A justiça social, nos seus aspectos de ordem social, político e económico supõe, na visão de Aristóteles, a participação de todos nas obrigações da vida social, cabendo a autoridade política subsidiá-la ativamente (D’AMBROSIO, 2002, p. 70). Esta perspectiva mostra que a justiça social é concretizada através dos princípios da participação e de subsidiariedade com os quais está intimamente ligada numa relação indissolúvel que visa a realização do bem comum e do desenvolvimento integral. O desafio é, portanto, o de construção de uma sociedade justa, o que pressupõe, antes de tudo, a busca de consenso a respeito dos princípios da justiça que deverão servir de regras para a edificação de uma sociedade bem ordenada.

Na sua teoria da justiça, John Rawls apresenta dois princípios da justiça para uma sociedade bem ordenada: o primeiro é o princípio da igualdade, que confere às pessoas os direitos humanos fundamentais; e o segundo é o princípio da desigualdade, que se refere às diferenças na distribuição dos bens materiais, na repartição equilibrada dos bens primários, dos encargos públicos, dos deveres e das vantagens sociais. As desigualdades aqui referidas são aceitáveis apenas quando beneficiam, em primeiro lugar, os mais desfavorecidos na escala social, isto é, quando visam a igualdade (PEGORARO, 2013, p. 126). Portanto, a justiça social distributiva permite “um tratamento desigual das pessoas para se conseguir caminhar progressivamente no sentido da sua igualdade [ou seja], uma aproximação da igualdade pelo caminho da desigualdade” (COELHO, 2007, p. 83).

A promoção da justiça social é, portanto, uma condição necessária para a redução das gritantes assimetrias existentes no país entre uma minoria com um poderio económico imensurável e uma maioria abandonada na miséria e na exclusão. Esta nobre missão exige uma reflexão profunda sobre os modus operandi que visam colocar o homem na posição de preeminência em relação aos ganhos económicos e a dignidade da pessoa humana em relação à produção e o consumo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta reflexão procurou-se demostrar que a exclusão de comportamentos éticos na economia condicionou a evolução global da atividade económica, tendo em conta a relação intrínseca entre elas. À luz das evidências aqui referenciadas, não parece difícil concluir que a dissociação entre a ética e a economia enfraqueceu o complexo do sistema económico angolano, gerando instabilidade social.

Embora o regime não tenha facilitado a expansão das liberdades que proporcionariam a cada um as possibilidades de aumentar as capacidades necessárias para perseguir com eficácia os seus planos de vida e desenvolver as próprias funções, reconhece-se que não faltaram políticas económicas que garantiriam um crescimento económico diversificado e, consequentemente, a sustentabilidade do desenvolvimento do país. Entretanto, ao excluírem as considerações de natureza ética na vida económica, não foi possível criar um ambiente favorável que permitisse concretizar as referidas políticas conjunturais. Por isso, são necessárias ações que visam a consciencialização das pessoas sobre a finalidade da comunidade política, a importância da expansão das liberdades individuais, a necessidade de formulação de normas de conduta económica e da promoção da justiça social.

Reconhece-se que num contexto dominado pelo desejo de maximização da própria função de utilidade não seja uma tarefa fácil a aproximação da economia à ética, embora os resultados esperados sejam bastante vantajosos para a própria atividade económica em particular e para o desenvolvimento do país em geral. Porém, tendo em conta as consequências sociais causadas por uma economia conduzida com critérios incompatíveis com as aspirações das sociedades modernas, exige-se que o comportamento humano se fundamente sob princípios de responsabilidade, responsabilização, transparência e justiça, o que pressupõe a consideração de princípios éticos.

Para concluir este artigo, formulam-se duas questões para reflexão: como seríamos julgados pelas futuras gerações se continuássemos indiferentes diante do nosso agir perverso em relação à destinação dos recursos públicos? Como seríamos julgados pelas futuras gerações se a nossa atitude em relação ao uso de recursos públicos assumisse um novo paradigma que respeitasse os critérios da justiça?

A primeira corresponde ao cenário de contraste que coincide com o tendencial, em que as futuras gerações encontrariam uma pesada dívida pública, dificultando a execução de investimentos públicos e, consequentemente, o seu bem-estar económico e social; a segunda diz respeito ao cenário desejável, em que as próximas gerações herdariam uma situação que lhes garantiria as possibilidades de uma vida digna e feliz. Portanto, se não queremos ser severamente julgados pelas gerações vindouras cujo rosto nunca conheceremos, então procuremos agir com retidão.

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APÊNDICE – REFERÊNCIAS DE NOTA DE RODAPÉ

2. Crematística (crematistik) é um conceito usado por Aristóteles que visa o estudo dos mecanismos não naturais ou artificiais de aquisição de riqueza que condicionam o alcance da verdadeira felicidade.

3. Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 2013.

4. O conteúdo da entrevista foi tornado público pelo Wall Stret Journal no dia 11 de outubro de 2020. Na ocasião, o governante fez saber que 13 mil e 515 milhões foram desviados através de contratos fraudulentos com a petrolífera nacional Sonangol, 5mil milhões foram retirados através das empresas de diamantes (Endiama e Sodiam) e os restantes 5 mil milhões através de outros sectores e empresas públicas.

5. Na sua obra The process of Economic Growth publicada em 1953, W. Rostow considerou cinco estágios de desenvolvimento económico pelos quais todos países deveriam passar para se chegar à maturidade ou consumo de massas: (i) economia e sociedade tradicional; (ii) criação de precondições para o arranque (pré take off); (iii) arranque (take off); (iv) auto sustento do desenvolvimento e (v) maturidade ou consumo de massas.

6. O filósofo e economista referiu-se aos valores como a confiança nas relações económicas, o interesse pelos outros manifestado através da compreensão, da generosidade e do senso cívico (Cf. SEN, A., 2011, p. 120).

7. O então Magnífico Reitor da Pontifícia Universidade Gregoriana, proferiu estas palavras na abertura do Congresso internacional sobre Valores éticos e desenvolvimento da pessoa humana em tempo da globalização, realizado em Roma, de 23 á 24 de abril de 2009.

8. Extrato do discurso do Presidente do MPLA, João Lourenço, proferido na abertura da 6ª sessão ordinária do Comité Central do partido, realizada em Luanda, no dia 30 de novembro de 2018.

9. Para maiores aprofundamentos sobre as características que descrevem a grandeza humana e as adversidades daqueles que exercem um poder, recomenda-se a leitura do segundo capítulo de D’AMBROSIO, R., Il potere e chi lo detiene, Ed. Dehoniano, Bologna, 2008, p. 83-143.

10. Pode-se citar aqui os estudos de Adam Smith, 1776; Karl Marx, 1846; John Stuart Mill, 1859; Friedrich Hayek, 1960; Peter Bauer, 1957; Arthur Lewis, 1963 (cf. SEN, A., 2001: p. 289-290).

11. Para maiores aprofundamentos, SEN, Amartya. Lo sviluppo è libertà: perché non c’è crescita senza democrazia, Milano: Editora Oscar Mondadori, 2001.

12. Para maiores aprofundamentos sobre liberdade e responsabilidade em Emmanuel Lévinas, recomenda-se LISSA, Giuseppe. Emmanuel Lévinas: Dalla libertà alla responsabilità, in DOVOLICH, Claudia (ed.). “Etica como responsabilità: Prospettive a confronto”, Milano: Editora Mimesis, 2003, p. 85-156.

[1] Doutor – Universidade 11 de Novembro

Enviado: Fevereiro, 2021.

Aprovado: Março, 2021.

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