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Desempenho na disciplina de cálculo diferencial: dois retratos sociológicos à luz da teoria de Bernard Lahire  

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

FREITAS, Telma Cristina Pimenta de [1], NOGUEIRA, Cláudio Marques Martins [2]

FREITAS, Telma Cristina Pimenta de. NOGUEIRA, Cláudio Marques Martins. Desempenho na disciplina de cálculo diferencial: dois retratos sociológicos à luz da teoria de Bernard Lahire.  Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano: 06, Ed. 08, Vol. 01, pp. 05-25. Agosto 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/sem-categoria/bernard-lahire

RESUMO

As disciplinas de Cálculo Diferencial e Integral apresentam inúmeros problemas no seu processo de ensino aprendizagem, com elevadas taxas de evasão e reprovação. A falta de linguagem matemática prévia tem sido apontada por diversos autores como uma das razões desses problemas. A questão principal deste artigo é delimitar o peso dessa linguagem matemática prévia no desempenho dos alunos nas disciplinas de Cálculo e o objetivo é analisar esse problema no caso de alunos de engenharia da UFMG. Utilizou-se uma metodologia definida pelo sociólogo Bernard Lahire de sociologia em nível individual, efetivada através de retratos sociológicos. A análise de dois retratos permitiu relativizar essa falta como definidora do desempenho dos estudantes e permitiu perceber que existem outras instâncias sociais, que não somente a escola, capaz de engendrar o sucesso e ou o fracasso.

Palavras-chave: Cálculo Diferencial e Integral, Sociologia da Educação, Desempenho acadêmico.

1. INTRODUÇÃO

As disciplinas de Cálculo Diferencial e Integral, que integram os cursos de graduação nas áreas de Ciências Exatas e mesmo de áreas não estritamente exatas, apresentam problemas no processo de ensino aprendizagem, (REIS, 2001), (VIEIRA, 2013), (REZENDE, 2003) com elevadas taxas de evasão e reprovação.

Este cenário adverso tem originado muitos trabalhos sobre o ensino-aprendizagem do Cálculo (CARNEIRO, 2017), (ROCHA, 2016), (DONEL, 2015), de modo que as dificuldades nessas disciplinas tem sido, portanto, reconhecidas e investigadas abundantemente pela literatura. Falta, no entanto, um consenso sobre as razões por trás dos problemas enfrentados.

Muitos autores acreditam que a falta de conhecimento da linguagem matemática, a conhecida “falta de base”, é condição para o insucesso. O fracasso, contudo, também é creditado a outras causas, como procedimentos metodológicos inadequados, problemas de natureza epistemológica e problemas de natureza cognitiva.

Neste artigo se atenta para a relação entre a linguagem matemática prévia adquirida pelo estudante e o desempenho na disciplina, através da análise de dois retratos sociológicos de estudantes de classes populares, à luz da teoria de Bernard Lahire. Com base nos retratos, refletir sobre a possibilidade de resgate e fortalecimento dos conhecimentos matemáticos prévios do aluno em paralelo com a disciplina de Cálculo. Busca-se ainda entender as origens sociais das atitudes de resiliência observadas nos percursos dos dois estudantes, face aos desafios sociais e acadêmicos que encontraram.

Bernard Lahire (1997) é um sociólogo francês contemporâneo que se inscreve na tradição disposicionalista de Bourdieu (2005) e que se notabiliza por propor uma sociologia em escala individual. Para ele, é possível analisar sociologicamente as maneiras de pensar e agir de um indivíduo específico, investigando os múltiplos e geralmente heterogêneos processos de socialização a que ele foi submetido. Esses processos de socialização deixariam suas marcas na subjetividade individual, gerando um patrimônio de disposições – mais ou menos fortes, heterogêneas, contraditórias – que orientariam os pensamentos e as ações do indivíduo em múltiplos contextos.

Lahire adverte sobre a insuficiência de uma análise macrossociológica e do critério de classe social para explicar diferenças nas práticas e nas trajetórias escolares individuais (LAHIRE, 2002). Quando se quer entender o percurso social e escolar de um indivíduo específico seria importante considerar não apenas sua classe social, ou outras categorias sociais como raça e gênero, mas as inúmeras matrizes de socialização presentes no mundo contemporâneo e os múltiplos contextos de ação, que podem ter forjado suas disposições e que indiretamente, ajudam a entender suas atitudes e comportamentos.

Os dois retratos aqui apresentados, de estudantes de engenharia, mostram como o sucesso relativo (considerando a resiliência dos estudantes) está ligado não à classe de pertencimento, mas à natureza das relações estabelecidas no seio familiar, esta grande matriz de socialização. Se as dificuldades na obtenção e conhecimento da linguagem matemática prévia está ligada ao pertencimento de classe (devido ao fato de os estudantes terem cursado escolas pouco prestigiadas, com formação lacunar em matemática), a resiliência e a atitude dos sujeitos perante as dificuldades podem ser encontradas nas relações sociais (notadamente os familiares) tecidas pelos agentes.

Na próxima seção, será retornado ao problema do aprendizado em cálculo e justifica-se a opção de abordá-lo por meio de uma sociologia em escala individual. Ainda nessa parte será apresentado o desenho metodológico da pesquisa, inspirado no que Lahire (2005) chama de retratos sociológicos. Na seção seguinte serão apresentados e analisados, com base na sociologia de Bernard Lahire (1997, 2002, 2005), os percursos dos dois estudantes na disciplina de cálculo. Nas configurações finais, refletiu-se sobre os resultados da pesquisa e seus limites.

2. DESEMPENHO EM CÁLCULO: UMA ABORDAGEM SOCIOLÓGICA EM ESCALA INDIVIDUAL

As disciplinas de Cálculo Diferencial e Integral são consideradas “difíceis” e apresentam altos índices de reprovação. Esses índices de reprovação elevados são conhecidos por todos e ocorrem nas mais diversas instituições. É verdade que os problemas no ensino-aprendizagem da matemática são muitos e variados, mas todos os problemas parecem recrudescer quando o assunto é o Cálculo Diferencial e Integral.

O que torna a disciplina tão problemática? Não obstante sejam várias as razões estas podem ser agrupadas em duas grandes categorias: problemas específicos da disciplina, como o fato de trabalhar conceitos escorregadios e contra intuitivos, como o conceito de infinito, por exemplo; e problemas não específicos, que dizem respeito ao ensino da matemática ou mesmo ao ensino como um todo, como a relação entre intuição e rigor (problema que se coloca sobretudo na matemática universitária), relação professor-aluno, pertencimento do aluno à Instituição, etc.

Não obstante sejam muitos os autores que se dedicam ao tema, cada qual se debruçando sobre um ou mais aspectos, pode-se perceber que o problema da falta da linguagem matemática prévia ou falta de desenvoltura algébrica como um empecilho para o ensino aprendizagem do cálculo (CARNEIRO, 2017), (MENDES, 2014) (RAFAEL, 2017) é consensual. Embora nem todos acreditem que o domínio dessa linguagem seja suficiente para o sucesso na disciplina, trata-se certamente de condição necessária para um bom desempenho.

O problema da aquisição dessa linguagem se dá sobretudo no ensino fundamental e médio. Alunos de classes populares possuem geralmente uma formação lacunar, seja pelas injunções econômicas, seja por acessarem escolas de formação básica e média menos privilegiadas. Assim, se ressentem da falta de desenvoltura algébrica.

É possível pensar o conhecimento da linguagem matemática prévia como capital cultural, no sentido Bourdieusiano. Esse capital será exigido de todos os estudantes nas disciplinas de cálculo como se fosse um recurso natural, que todos deveriam possuir, mas, na verdade, apenas alguns tiveram as oportunidades necessárias para adquiri-lo plenamente.

Bourdieu (2005) mostrou como as instituições de ensino legitimam e reproduzem privilégios sociais ao cobrarem igualmente de todos uma formação cultural prévia (que inclui o domínio de certas linguagens, informações e conhecimentos básicos em diversas áreas, maneiras de se comportar etc.) que só alguns herdaram no seu meio social. A posse ou não do capital cultural, ou seja, a capacidade maior ou menor do indivíduo de responder em função de sua formação prévia, a essas exigências seria o fato decisivo para a definição do destino escolar.

Contudo, de acordo com seus críticos, embora Bourdieu tenha tentado mostrar não só a efetividade do capital cultural, mas também sua incorporação, suas análises de caráter macrossociológico ficam demasiadamente atreladas ao critério de classe para explicar as trajetórias escolares. Bernard Lahire, discípulo e ao mesmo tempo crítico de Bourdieu, abandona em certa medida o modo de operacionalização dos conceitos de Bourdieu e propõe uma nova escala de leitura: uma sociologia em nível individual. A possibilidade de uma sociologia à escala individual permite matizar os resultados oriundos de análises macrossociológicas. Assim, as disposições (maneiras de ver, de pensar e agir configuradas nos sujeitos através da incorporação do social), seriam oriundas não só de critérios de classe, mas sim de várias matrizes de socialização, dentre elas a família e a escola (BOURDIEU, 2005).

Essa mudança de foco, do macrossocial para o microssocial, permitiria complexificar a realidade. Mas, a mudança de foco exige uma mudança de lente. Não se pode utilizar, adverte Lahire (2002), os mesmos instrumentos metodológicos priorizados na análise macro para uma análise em escala individual. O problema de uma sociologia em nível individual exige, portanto, outra metodologia. O autor propõe a confecção dos retratos sociológicos.

Retratos sociológicos são levantamentos detalhados sobre os diferentes processos de socialização vividos por indivíduos específicos e sobre suas maneiras de pensar, sentir e agir em diferentes contextos sociais. A análise desse material permite identificar o que é mais recorrente no comportamento do indivíduo e propor hipóteses sobre as origens dessas características. Supostamente, as vivências dos indivíduos os levam a incorporar disposições específicas que passam a conduzi-los ao longo da vida. Os retratos são constituídos por meio de entrevistas em profundidade nas quais são levantados detalhes sobre as experiências de vida e sobre as relações sociais estabelecidas pelo indivíduo ao longo de sua trajetória. Com base na narrativa autobiográfica do sujeito, o pesquisador compõe então seu retrato sociológico.

As duas entrevistas presentes nesse artigo foram extraídas de um total de nove, que compõem uma tese em construção sobre o ensino aprendizagem do Cálculo em uma perspectiva sociológica. As entrevistas apresentadas foram obtidas de forma remota, devido à pandemia do Coronavírus que acometeu o País e o mundo em 2020/2021.

Para a construção dos retratos sociológicos foi selecionado dois temas articulados que foram abordados por meio da realização de duas entrevistas com cada um dos entrevistados, cada uma concentrando-se em um tema, porém não se limitando estritamente a ele.

Os temas são:

  • A obtenção da linguagem matemática prévia e as relações familiares.
  • O domínio da Linguagem matemática prévia e as relações na Instituição de ensino superior

No contexto familiar foi abordado as condições socioeconômicas de origem e atuais e as relações familiares.

No contexto escolar se tentou desvendar a apreensão da linguagem matemática pelo entrevistado, como isso ocorreu na escola pública, a natureza das dificuldades, o percurso do sujeito na disciplina de Cálculo, como a linguagem matemática foi importante ou não no desempenho da disciplina de Cálculo Diferencial e Integral.

Mas porque a escolha de uma sociologia à escala individual? Como são muitas as razões para o insucesso nas disciplinas de cálculo, a complexidade mesma do problema determinou, em grande medida, a metodologia que se deve utilizar. No lugar de captar regularidades e invariâncias, como se procede em qualquer análise macrossocial, optou-se por trabalhar exatamente essa complexidade, levando-a às últimas consequências.

A análise em escala individual, feita por meio dos retratos, permite reconhecer plenamente que a experiência social dos indivíduos não se reduz a sua classe, raça, gênero etc. Cada indivíduo tem um percurso de vida único, que se reflete em suas formas de agir, pensar e sentir atuais, inclusive no interior das instituições de ensino.

No caso deste trabalho, a análise sociológica de trajetórias singulares e a investigação sobre como elas repercutem sobre as relações do estudante com a disciplina de cálculo joga nova luz sobre o velho tema das dificuldades de aprendizado nessa área. Conhecer de perto o modo como estudantes específicos lidam com a disciplina, enfrentam os obstáculos, sofrem e no final, de algum modo, sobrevivem ajuda a entender as bases sociais do sucesso e do fracasso. Cada indivíduo utiliza as armas que tem e essas armas foram adquiridas ao longo de sua trajetória social e escolar.

3. DUAS EXPERIÊNCIAS COM A DISCIPLINA DE CÁLCULO: ANÁLISE DOS RETRATOS SOCIOLÓGICOS

Foi dado aos entrevistados os nomes de personagens da literatura. Não se objetiva com isso estabelecer uma identidade total e fixa entre os indivíduos e essas figuras, mas apenas realçar alguma característica central que os une e que ajuda a entender sua vivência na disciplina de Cálculo.

Macbeth

Macbeth é uma das grandes tragédias escritas por Shakespeare nos anos de 1600. Nela, o protagonista e sua mulher, Lady Macbeth, provocam inúmeras mortes e disseminam o mal para conquistar e manter o trono da Escócia.

Contudo, dificilmente se pode classificar Macbeth, o mais sanguinário dos reis shakespearianos, como um dos grandes vilões do dramaturgo inglês. Para Bloom (2001, p. 633) vilões são Ricardo III, Iago e Edmundo, personagens para os quais perversidade é motivo de prazer, enquanto Macbeth sofre intensamente ao constatar que causou – ou que está fadado a causar – o mal. Assim, não é a feitura do mal que caracteriza Macbeth, mas a busca do seu destino, mesmo quando esse destino anunciado por uma bruxaria ubíqua é contra a tradição.

No caso do sujeito, apenas na segunda entrevista atribuímos-lhe o nome de Macbeth, por perceber que como o herói shakespeariano ele tudo fazia para cumprir seu destino. Como o rei que usurpa o trono escocês, ele também teria que usurpar um trono a ele prometido pela constelação familiar, mas não dado por condições reais.

No momento da entrevista o entrevistado tem 21 anos e cursa terceiro período de Engenharia Elétrica na UFMG. Mora em Belo Horizonte, em um bairro considerado periférico e ingressou na Universidade por livre concorrência, embora pudesse ter sido beneficiário do sistema de cotas. Desde o início mostrou-se solícito e interessado em participar da pesquisa que julgou “muito importante”.

Seus pais são de uma cidade da região metropolitana e deslocaram-se para a capital de Minas em busca de melhores condições de trabalho. Ele nasceu em Belo Horizonte, quando sua mãe tinha cerca de 40 anos. A mãe morava na região rural de Vespasiano e cuidou do pai e de 4 irmãos menores por ocasião da morte da avó de Macbeth. Desde muito jovem, teve sob seus cuidados as responsabilidades e atribuições de uma mãe de família. Com ensino fundamental incompleto, aprendeu as primeiras letras com o pai, que era professor na região rural. Macbeth fala do avô com orgulho e conta que na “roça” não existe professor de carreira, e quem sabe um pouco acaba por ensinar. Seu avô, além de saber ler e escrever era bom em matemática e era ele que iniciava as crianças na escola, antes de irem estudar “na cidade”. À mãe não coube ir estudar na cidade, pois os cuidados despendidos com o pai e os irmãos não permitiram dedicar-se a si mesma. Contudo, ela se orgulha de ter colaborado para que os irmãos terminassem o ensino médio.

O pai do entrevistado é pedreiro, tem ensino fundamental completo e trabalha em uma empreiteira, mas sem registro formal. Um pouco mais velho que a mãe de Macbeth é o mantenedor, embora a mulher, costureira, ajude nas despesas da casa. Filho desejado e único, o entrevistado afirma que sempre teve suas demandas atendidas, não obstante a difícil situação econômica. Teve uma infância protegida, cercada de cuidados e atenções.

Atualmente os pais estão tentando se aposentar. A situação é complexa, pois o pai não contribuiu direito com a Previdência e a mãe tenta se aposentar pelo Fundo Rural. Parece ser, no momento, a grande preocupação da casa, pois os dois já são idosos e estão vendo diminuída sua força de trabalho.

O filho para eles foi um presente, e ao menino dedicaram à vida. Macbeth comenta que os pais têm grande orgulho de seus estudos, e tudo fizeram para que ele pudesse seguir os estudos superiores. Comenta que possui uma relação muito próxima aos pais, sobretudo à mãe, que em muitos momentos é sua confidente.

A trajetória escolar do sujeito apresenta certa linearidade: Cursou escola pública no ensino primário e escola particular no ensino médio, como bolsista. Conta entusiasmado que sempre gostou de estudar, especialmente matemática, mas no ensino fundamental a escola era muito fraca, o professor gastava enorme tempo na aula chamando a atenção, os colegas não tinham interesse etc. Pelo seu relato observa-se que sua formação, apesar de linear em um primeiro momento, foi lacunar. Seja em virtude de greves, de troca de professores, de falta de condições materiais da escola. Ele afirma que as coisas ficaram complicadas em 2010, quando houve uma greve e eles tiveram apenas 4 meses de aula. Existia também em sua escola uma falta de recursos: os alunos eram solicitados a ajudar na compra do toner para reproduzir uma prova bimestral, que chamavam simulado. Uma vez, sem o toner, um simulado valeu por dois. Data desta época as lacunas em conteúdos de matemática, os quais Macbeth se ressentiria depois.

No ensino médio, fez escola técnica. O ensino era mais técnico e instrumental, e ele ficou sem estudar muitos tópicos de matemática. Ele compara a escola pública com a particular, por ter transitado por ambas, e mostra a fragilidade da primeira, ao menos no seu caso. Na escola particular tinha uma prova a cada duas semanas de maneira que ele tinha que “pôr-se em forma” nesse período, além do interesse dos colegas ser maior que o interesse dos alunos da escola pública.

Macbeth nunca tinha sido reprovado, sempre estudou e conseguiu aprovação com relativa facilidade. Mas foi reprovado na Universidade, em Cálculo I.

Seu primeiro pronunciamento a respeito de sua experiência com o ensino dessa disciplina foi o seguinte:

E aí eu comecei a fazer cálculo no primeiro semestre. Aí, de primeira, foi horrível. Assim, a primeira experiência, porque o principal problema era que a maior parte das coisas que a gente precisava saber para começar cálculo, a gente não tinha aprendido no ensino médio. (Primeira entrevista de Macbeth)

O entrevistado passa a enumerar as “coisas que se têm de saber” e verifica prontamente tratar-se, muitas vezes, de “coisas” do ensino fundamental, e não do ensino médio.

A gente precisava saber fração, fatoração e eu não sabia porque eu estudei em escola particular, só que era uma escola técnica.” Então tipo assim, não foi ensinado, entendeu? E aí eu tive dificuldades, tive que aprender tudo primeiro e eu também trabalho, né?

Macbeth trabalha. Trabalha desde os quinze anos em um mesmo escritório de locação de imóveis. Trabalha meio período dedicando todo o resto do tempo aos estudos. Diz não ter que ajudar a família, mas se haver com os próprios gastos. Assim, por exemplo, no início de cada semestre é ele que arca com o custo do xerox dos livros (não compra os livros, os xeroca) e precisou comprar memória para seu computador, pois está fazendo Iniciação Científica em redes neurais. Sim, o entrevistado fazia Iniciação Científica no terceiro período, embora tenha sido reprovado em Cálculo I. Isso mostra como seu processo de afiliação[3] à vida acadêmica tem sido bem-sucedido, não obstante a reprovação.

Em suas declarações insiste muito na distância entre os professores e os alunos, “os alunos se sentem intimidados e não perguntam”, tal o abismo entre o professor que sabe muito, e o aluno, que nada sabe.

Menciona ter tido um professor russo que não falava bem o português: “Foi horrível, horrível. E eles são muito arrogantes”.

Na tentativa de se explicar e não parecer injusto, ele diz ter muito respeito pelo trabalho e formação dos professores. Esse professor, por exemplo (diz sempre olhar o currículo Lattes dos professores, para conhecê-los) tem uma formação maravilhosa. “Mas não é o meu caso”, insiste. “O que era trivial para ele era absolutamente difícil para mim”, completa ainda.

Falando com desenvoltura e sem mágoa, conta que a reprovação em Cálculo I foi a primeira reprovação de sua vida. Ficou muito triste, pois quase passou, mas jamais pensou em desistir. Contou sobre a reprovação para a mãe e ela ficou triste também. Macbeth diz que ficou pesaroso com a tristeza dela e prometeu a si mesmo que tudo faria para um bom resultado futuro.

Após a reprovação, tinha consciência que deveria empreender esforços para aprender direito e lograr aprovação. Não bastava repetir a matéria: tinha que refazer a base perdida em matemática básica. Junto com um colega empreendeu um programa de estudos. Fizeram o “Responde ai”. “Responde aí” é um site de matemática com muitos exemplos, exercícios e aulas. Ele considera que nesse site faz-se o que o professor deveria fazer: um monte de exemplos e muitos exercícios. Tem tópicos com 40 exercícios e todos muito explicados, em todos os detalhes. Segundo averiguei, os exercícios têm toda sua álgebra explicitada, o que provavelmente não acontece com os exercícios feitos em aula pelo professor.

Assim, em paralelo com o curso de Cálculo, ele empreendeu uma “revisão” de conceitos fundamentais. Supõe-se aqui que não foi a revisão em si que o capacitou a compreender e a conseguir ser bem-sucedido na disciplina nessa segunda empreitada, mas o fato de empreender a revisão junto com a disciplina. Assim, ao mesmo tempo que aprendia o conceito de limite, aprendia também a álgebra necessária para a realização dos cálculos desse escorregadio conceito. O processo procedimental deve ter permitido que o conceito se “assentasse” e ao mesmo tempo, o conceito revestiu de sentido o processo procedimental.

Como compreender que ele tenha conseguido suprir suas dificuldades, seu desconhecimento da linguagem matemática e conseguido, embora em um segundo momento, se apropriar da linguagem elementar necessária (embora não suficiente) para a aprendizagem do Cálculo? Perguntei ao entrevistado o seu trajeto e ele disse que, enquanto os colegas estudavam limite, ele estudava fatoração, quando os colegas estudavam derivada, ele aprendia funções, trigonometria e logaritmo.

Como professora de cálculo, conheço casos como o de Macbeth. Alunos que empreendem um trabalho semelhante, de refazer “a base matemática” concomitante ao ensino do Cálculo. O problema é que esse empreendimento exige trabalho e dedicação, típicos de alunos prontos a vencer os obstáculos, desbravar o desconhecido e conquistar o seu “reino”.

A disciplina de Cálculo I possui, via de regra, uma carga horária muito diminuta para muito conteúdo. Como os conceitos do cálculo Diferencial e Integral são complexos, é difícil aprendê-los em sua complexidade e ao mesmo tempo preencher lacunas de formação anterior. Talvez seja necessário que se entenda que não se trata de duas tarefas separadas, mas de dois lados de uma mesma tarefa que se completa. De qualquer forma, é um empreendimento de envergadura, e o aluno – se possível, com a colaboração dos professores – tem que estar disposto a enfrentá-lo, tem que ver sentido no empreendimento.

O que leva Macbeth a não esmorecer? Viu-se que não possuindo o capital cultural (no sentido bourdieusiano) da linguagem matemática necessária ao prosseguimento da disciplina, foi buscá-la. Não mediu esforços na conquista de seus intentos, à exemplo do rei escocês.

Como espera-se ser possível perceber, Macbeth tem o carinho dos pais. Como a mãe trabalhava em casa como costureira e tinham pelo menos o básico em termos financeiros, nunca faltou material (de primeira qualidade, enfatiza), livros (a mãe comprava muitos livros infantis) e a leitura de histórias. A mãe contava-lhe histórias à noite, acompanhava as tarefas escolares e estava sempre presente na escola, em todas as reuniões.

Uma brincadeira chamou a atenção pela sua singularidade, porque ele se lembrou dela com vivacidade e porque revela a proximidade e o pacto tácito que Macbeth parece ter desenvolvido com a mãe: A mãe pedia ao pai para dizer resultados de tabuada, que ela arguia. Eles combinavam que o pai erraria propositalmente, para que o garoto acertasse e julgasse engraçado. Ele adorava essa brincadeira. Com extremo zelo em relação à escola, desde pequeno seus pais diziam ao garoto que é necessário estudar, que estudar é o único caminho para uma vida melhor, menos árdua que a vida que sempre levaram. Considera-se que se pode creditar a esse contexto favorável boa parte da resiliência, do esforço e do consequente sucesso de Macbeth.

O entrevistado saiu-se muito bem no processo de afiliação à vida universitária. Não obstante trabalhar, conseguiu tempo para se relacionar com os colegas. Ele atribui ao D.A (Diretório Acadêmico) o mérito por ter promovido uma confraternização de imediato entre as turmas de engenharia, tornando possível então que os alunos se conhecessem e passassem a interagir entre si.

Macbeth fez amigos. Segundo seus relatos, ele ajudava os colegas em computação, posto já haver feito essa matéria no ensino secundário técnico e, por outro lado, pedia ajuda em Cálculo. A capacidade do sujeito em converter um capital cultural em outro. Essa troca foi muito importante, e parece ter sido um dos fatores que ajudou Macbeth a filiar-se. Segundo ele, não existiam alunos desinteressados, o que mais o fez se apaixonar pelo curso e pela UFMG:

Sabe, eu consigo contar nos dedos os alunos desinteressados, ao passo que na escola pública no fundamental eu conseguia contar nos dedos os interessados, quando não era só eu. Todo mundo sonha alto, todo mundo quer aprender, e isso é muito bom.

Pediu-se que descrevesse os conceitos de derivada e integral. Fiz essa pergunta a todos os entrevistados com o propósito de averiguar até onde eles conseguiam verbalizar os conceitos. Macbeth diz de imediato que derivada é uma reta tangente ao gráfico. Bom, na verdade derivada é a inclinação da reta tangente ao gráfico, em um ponto considerado. Mas o erro parece ser mais decorrente da oralidade em descrever o processo e menos de compreensão, pois ele acrescenta que de forma “mais matemática” (na verdade, seria mais analítica e menos geométrica) derivada estaria relacionado a encontrar a variação instantânea da função. Trata-se de uma visão completamente correta.

Já em relação ao conceito de integral, a associou à área sob a curva, o que é uma aplicação e não o conceito de integral. Quase todos os alunos entrevistados fazem essa associação. Isso demonstra que existe um problema. O fato de todos os alunos terem cometido o mesmo equívoco leva a considerar algumas possibilidades, como uma metodologia que enfatiza em demasiado essa aplicação ou uma falta de ênfase dada ao conceito e ao processo histórico de construção do Cálculo, por parte dos professores, por exemplo.

Após ter refeito e sido aprovado em Cálculo I, o entrevistado foi muito bem em Cálculo II. Ele reflete e diz que, se tivesse passado na primeira vez com 60 pontos talvez não estivesse tão bem agora no curso. A reflexão é pertinente, mas cabe pensar também se melhores condições na disciplina, com um olhar mais endereçado ao aluno na sua aparente peculiaridade não teria o poupado de tanto sofrimento e oportunizado um caminho mais curto. Seria mesmo necessário uma reprovação e tudo que ela acarreta, para o posterior sucesso de Macbeth?

O Macbeth Shakespeariano ouve de três bruxas a profecia de que será rei. Sua linhagem não lhe outorgaria a realeza, mas Macbeth ao “perceber que o sangue que lhe faz oposição”, irá derramar sangue (BLOOM, 2001, p. 637). Se ler sangue como origem social,  Macbeth tem também seus empecilhos: seu sangue, sua tradição, em nada corrobora o futuro real predito por sua família. Mas como o rei escocês, ele tudo fará para cumprir seu destino.

É preciso saber, ou tentar saber, qual o outro ao qual o sucesso escolar se destina no caso do Macbeth Shakespeariano ele anseia pela coroa, segundo Bloom (2001, p. 638), não por maquiavelismo, sadismo ou por ser tão somente obcecado pelo poder. Seu desejo está relacionado ao pacto que teve com Lady Macbeth, desejo que segundo Bloom consistiria em uma vingança contra o tempo, contra o sangue, contra a tradição. No caso do Macbeth, sua lady Macbeth é a mãe, com quem ele parece tecer um pacto tácito de sucesso. Um sucesso que passa, irrevogavelmente, pelo sucesso escolar.

É altamente sugestivo que Bloom (2001, p. 639) mencione que Lady Macbeth parece não somente esposa, mas mãe de Macbeth. O entrevistado tem também sua lady Macbeth. Sua vontade, sua resiliência, sua força vêm decerto, não o de sua mãe, mas do pacto que estabeleceram juntos.

Entrevista 2

Electra

A tragédia de Electra, que comete matricídio junto com seu irmão Orestes, foi explorada por três dramaturgos gregos da Antiguidade: Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Agamenon, pai de Electra e Orestes, é morto por sua esposa Clitemnestra e o amante desta, Egisto. A vingança efetivada pelos filhos de Agamenon e Clitemnestra que matam Egisto e cometem matricídio, é contada através dos mesmos fatos capitais, com diferentes nuances pelos três autores.

Será em Eurípedes, cuja obra leva o nome da personagem, que Electra terá papel mais incisivo. Orestes hesita ante o matricídio e só o consumará instigado pela irmã.

A entrevistada, tenta tornar opaca a herança materna tanto para si quanto para o irmão. Nesse sentido atribuímos-lhe o nome Electra.

Electra tinha 26 anos à época das entrevistas e cursava Engenharia Ambiental na UFMG. É a segunda filha de um total de 4 irmãos. Sua mãe teve a filha mais velha e Electra ainda solteira e não se casou com o pai das meninas. Casou-se mais tarde, quando Electra tinha cerca de 5 anos, com o pai de seus dois irmãos mais jovens.

A irmã mais velha de Electra nasceu quando a mãe tinha dezesseis anos e Electra nasceu dois anos depois. Muito jovem, solteira, a mãe não se incumbiu das meninas, que foram criadas em grande medida pela avó materna, que se desdobrava entre cuidar da casa, das crianças e fazer doces para vender.

Eles são de uma cidade do interior próxima a Belo Horizonte, onde ficou o pai de Electra quando a família materna se mudou para a capital. O pai tem ensino fundamental incompleto e é trabalhador rural. Electra o vê muito esporadicamente e diz ter com ele uma relação mais fácil que sua irmã mais velha, que nunca o vê. A mãe tem ensino fundamental completo e é dona de casa. O padrasto é o mantenedor e trabalha em uma grande loja de material de construção.

Electra mostrou-se receptiva, alegre e simpática durante as entrevistas. Contou que cursou escola pública no ensino fundamental e médio e ingressou na Universidade pelo sistema de Cotas – Grupo 1[4]. Considera o ensino nas escolas em que estudou muito fraco e afirma ter estudado pouco de trigonometria, e nada de logaritmo e exponencial, por exemplo.

Afirma ainda que não tinha conhecimentos prévios suficientes para “enfrentar” uma disciplina de Cálculo e credita a esse desconhecimento de matemática básica o insucesso na disciplina. Repetiu o Cálculo Diferencial e Integral 3 vezes e foi aprovada à época da entrevista, na terceira tentativa. Assim afirma, categoricamente que se tivesse que eleger uma variável, a única razão que seria decisiva para explicar sua dificuldade seria a falta de desenvoltura algébrica, de conhecimento de matemática básica.

Ela afirma que a primeira experiência com o Cálculo foi assustadora:

Foi assustador….um impacto assim muito grande, a matéria caiu assim é…e foi muito assustador porque eu venho de escola pública, eu sou aluna de escola pública e…é…a matemática que foi dada na escola pública ela não deu base suficiente para que eu tivesse…que eu chegasse na Faculdade com conhecimento, com uma bagagem de conhecimento que me fizesse ter êxito e sucesso na matéria.

Diz não achar Cálculo uma matéria difícil (e ri, pois, está repetindo pela terceira vez) e menciona:

Eu não acho o Cálculo uma matéria difícil, eu acho o Cálculo uma matéria muito técnica que tem que usar as técnicas lá específicas para poder aplicar, porém essa bagagem de ensino médio, esse conhecimento de matemática básica do ensino médio é fundamental para a gente ter sucesso na matéria, sem isso não dá para passar. Então assim, o que agarra para os alunos, para a maioria dos alunos em Cálculo, na minha humilde opinião é o fato de ter um conhecimento de matemática básica muito raso.

Pergunto o que a fez ser aprovada da terceira vez e ela afirma que uma proximidade maior com o professor e com os colegas foi fundamental. Nunca teve dificuldades com os colegas, mas os professores anteriores eram muito distantes da turma e as experiências não foram muito boas.

Nas palavras dela: “O professor não tinha paciência para explicar coisas que ele entendia que a gente deveria saber”.

Na opinião de Electra o professor da Universidade Federal não tem que ser necessariamente bom professor para ser professor na Universidade. O professor precisa ser ótimo em pesquisa, publicar muito, mas não precisa ser bom professor. Ela diz que isso parece acontecer sobretudo no ICEX (Instituto de Ciências Exatas) pois sentiu isso também com alguns professores de física. Parece existir uma distância entre o trabalho do professor e aquilo que ele ensina em sala de aula. E ele não está interessado na aula, comenta. Muitos professores não sabem “passar a matéria” e não tem a didática necessária.

Na escola pública, no ensino médio, fez escola profissionalizante: técnico em enfermagem. Mas nunca trabalhou. Inicialmente pensou em fazer algo na área de saúde, pensou inicialmente em Medicina, mas descartou por julgar que nunca conseguiria ser aprovada, e pensou em fisioterapia. Mas no cursinho (fez cursinho durante dois anos) encontrou um professor de matemática que, nas suas palavras “explicava tão lindamente a matéria” que ela resolveu fazer alguma coisa na área de exatas. Escolheu Engenharia Ambiental pois sempre gostou muito também de Geografia e julga que essas disciplinas estejam relacionadas com a área que escolheu.

Neste semestre, assim como nos semestres passados, estudava com os colegas, que a ajudaram muito. Faziam muitos exercícios e refaziam provas de semestres anteriores, o que foi instrumentalizando Electra na matéria de Cálculo e possibilitando certo resgate das matérias de ensino fundamental e médio.

Outro aspecto que parece ter ajudado Electra a obter um desempenho razoável na Faculdade, não obstante as reprovações em Cálculo, é o fato de passar grande parte do dia na Universidade. Electra não trabalha e é assistida pela FUMP (Fundação Mendes Pimentel), Fundação Universitária que ajuda estudantes carentes. Diz ter conseguido todos os benefícios possíveis e imagináveis concedidos pela Fundação e com isso passa o dia na UFMG.

Quando não está em aula, está estudando junto com colegas nas mais variadas dependências da Universidade.

Contudo, a posição de Electra, de julgar o Cálculo fácil, parece mostrar que ela não percebeu a disciplina na sua inteireza. Não que o Cálculo tenha que ser necessariamente difícil, mas é necessário que o aluno perceba a delicadeza dos conceitos, construídos ao longo de séculos. Além disso, chama a atenção o fato de considerar a matéria eminentemente técnica. O fato de ser aprovada na terceira tentativa sem, ao que parece, se apropriar dos conceitos, revela que ela se familiarizou com as técnicas, aprendeu a aplicar alguns algoritmos, algumas “formas de fazer”, mas não necessariamente a lógica por trás dos cálculos.

Parece-nos aqui importante um problema levantado por Coulon (2008, p. 38) a partir de uma pesquisa de Howard Becker. Ele estudou a vida cotidiana dos estudantes de medicina da Universidade do Kansas. Um dos grandes problemas, sobretudo dos calouros, é a quantidade de trabalho que devem realizar. Mesmo trabalhando exaustivamente, como sabem que é necessário, logo sentem-se sobrecarregados. Segundo os autores, os estudantes devem aprender também a natureza do trabalho a ser realizado. Os estudantes descobrem que trabalhar o suficiente para aprender tudo é impossível, e que se faz necessário recorte e seleções. Na universidade, os estudantes compreendem que precisam selecionar o que precisam aprender. A grande maioria toma como itens a serem trabalhados aquilo que os professores querem que eles aprendam e que, provavelmente, será solicitado nas provas. (BECKER apud COULON, 2008)

Cabe perguntar se repetir a disciplina, muito mais que possibilitar ao aluno apreender de fato os conceitos, o propósito dos conteúdos, articulá-los com todo os conhecimentos prévios, não proporcionaria ao contrário um refazer de tarefas. Essas tarefas, mecanizadas através de listas de exercícios e banco de provas (Electra conta que estudava refazendo provas de períodos anteriores), instrumentaliza o aluno em um número de técnicas necessárias e por vezes suficientes para lograr aprovação.

Electra repetiu três vezes e logrou aprovação por ocasião da entrevista. Diz que vai passar “raspando”, ou seja, com a nota mínima necessária. Pergunto sobre os conceitos de derivada e integral, e ela responde um pouco titubeante, que derivada está relacionada com variação e integral com área. Mas não sabe precisar os conceitos, demonstrando ter uma apreensão confusa dos mesmos.

Pergunto seus métodos de estudo, e ela diz que estuda muito, e que os colegas foram cruciais ao ajudá-la na resolução de exercícios, que não saberia fazer sozinha. Diz que faz muitos exercícios, dedicou-se muito, e que foi assim que conseguiu aprender algo sobre trigonometria e logaritmo, por exemplo, e construir alguma desenvoltura algébrica.

Foi perguntado a Electra sobre outras influências, mais precoces: uma tia, uma professora do primário, um primo ou prima, alguém que pudesse ter servido como exemplo para o gosto pelos estudos, que ela diz ter cultivado desde muito cedo. Ela pensa…pensa… e diz não se recordar de ninguém em especial. Diz que sempre gostou de estudar, que aprendeu a ler muito jovem e lia tudo, até papel de bala. Mas nunca teve um incentivo forte em casa nesse sentido, nem dos pais, nem do padrasto, nem dos avós. O que se lembra desde muito cedo é a irmã não querendo ir para a escola, com a aquiescência da mãe, que não se importava. Electra diz que desde então, sempre quis fazer diferente.

A irmã de Electra casou-se muito cedo, a exemplo da mãe teve filho com dezesseis anos. Assim, parou de estudar para cuidar do bebê e da família. Electra afirma que é a única da família a fazer curso superior e a ter vontade de estudar, junto com seu irmãozinho mais jovem. A irmã conseguiu concluir o ensino médio e o irmão mais velho, com dezoito anos, está no ensino médio técnico, mas sem projetos de prosseguir os estudos. Apenas o mais jovem, com 15 anos, gosta da escola e tem ambições de cursar a Universidade. Diz que estudará na Federal. Esse desejo do irmão, e o gosto pelos estudos, aproxima-o de Electra, que fala dele com muito carinho.

Electra, cerca de dez anos mais velha que o irmão mais jovem, diz ter ajudado a cuidar dele desde bebê. Como ela, e ao contrário de todo o resto da família, ele adora a escola e se esmera para obter bons resultados. Electra dá aula de matemática para ele, pois não quer que ele sofra o que ela sofreu pela falta de base matemática.

Fica claro que Electra não quer o destino da irmã, de outras moças do interior e sobretudo o destino da mãe:

Eu sempre fui muito aplicada na escola, eu nunca precisei de motivação para isso, nunca precisei da cobrança dela (da mãe). Nunca existiu um interesse grande dela nesse sentido, ela sempre me deixou muito livre para eu decidir o que queria fazer, então se eu quisesse parar de estudar ela não se importaria.

E completa: “Então, é… foi um….uma negligência dela mesmo. Mas eu não a culpo, mas também não acho que ela foi a melhor mãe do mundo.”

Electra traz consigo, claramente, senão mágoa da mãe, pelo menos o desejo de tecer uma vida diferente da dela, e essa conquista de uma outra vida passa pela conquista de um curso superior, de sucesso nos estudos. Dessa maneira, ela abre caminho para o irmão mais jovem, quando tenta desvanecer a figura da mãe e instaurar seu exemplo.

Como Electra de Eurípides, nossa Electra, em pacto com o irmão mais novo, tudo fará para ultrapassar a mãe e apagar os caminhos que ela deixou como legado. Mas mais do que isso, chama a atenção o fato de Electra não ter uma referência explícita positiva: um tio, uma prima, algum professor, que só veio aparecer muito tardiamente, quando seu gosto pelos estudos já estava consolidado. Parece-nos que sua referência é a referência negativa da mãe, que ela, com todas as forças, procura contrapor. É o fato de nossa entrevistada tecer seu destino em contraposição ao da mãe, tentando em certo sentido anulá-la, junto com o irmão que lhe deu o codinome Electra.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As grandes obras literárias trazem todas a um só tempo as marcas do mundo social e os grandes dramas humanos. Foram nomeados os entrevistados como Macbeth e Electra certos de que por detrás de um personagem literário existe toda uma constelação histórica, o entrelaçamento de suas condições sociais e suas disposições, inclinações, aspirações, que poderiam lançar luz às disposições dos sujeitos.

Não se pretende, ao nomear os entrevistados pelos nomes de personagens literários, fixar uma caricatura imaginando o indivíduo como figura típica, imutável. Acredita-se que o cotejo entre uma característica típica do entrevistado e um grande personagem literário, ao contrário, abre portas para um trabalho amplo e complexo de interpretação.

Distanciando de uma visão macrossocial, os sujeitos são instados a perceber que a herança e a reprodutibilidade das condições de origem – ocasionando uma vida escolar curta ou maculada, no caso das classes populares – nem sempre se dão de forma determinista. A apropriação da herança cultural, ou da falta dela, depende das matrizes de socialização como a escola, a família e todas as relações tecidas no âmbito social.

Os entrevistados, sobretudo Electra, sofrem com a falta de capital cultural necessário ao bom prosseguimento da disciplina. O conhecimento prévio da linguagem matemática é algo adquirido basicamente na escola. Esses estudantes são oriundos da escola pública no ensino fundamental e escola técnica no ensino médio. As escolas públicas no Brasil são acessadas predominantemente pelas classes desprivilegiadas econômica e culturalmente e apresentam, via de regra, vários problemas. Mesmo as escolas técnicas, muitas vezes frequentadas por indivíduos de classes populares, nem sempre fornece a formação necessária ao ensino superior. Vê-se, portanto, como em um primeiro momento, o pertencimento de classe já marca as trajetórias desses indivíduos e contribui para perpetuar o ciclo de privilégios e exclusão.

Não se trata apenas da posse ou não do capital cultural necessário para o sucesso acadêmico. A educação superior, notadamente no universo das Instituições Federais, exige dos estudantes uma autonomia e excelência para as quais muitos não foram preparados. De um modo geral, os estudantes de classes populares adquirem com maior esforço que seus pares de classes médias e altas, a autonomia e o acesso ao conhecimento de forma exitosa. Contudo, ancorados nas relações que tecem no âmbito familiar, os entrevistados traçam seus destinos de permanência na Universidade, não obstante suas condições de origem.

Carneiro (2017) estuda os problemas relativos ao ensino do Cálculo, relatando as dificuldades algébricas e conceituais dos alunos. A autora reflete sobre a impossibilidade de introduzir conceitos complexos como limites e derivadas que, além de uma conceptualização de funções requerem maturidade em processo algébricos e intuição matemática, condições as quais os alunos prescindem. Nesse sentido, quase todas as propostas para melhoria do ensino de Cálculo passam por um curso de nivelamento: Cálculo zero, Matemática básica, Pré-Cálculo. Qualquer que seja a designação, esta é uma proposta bastante recorrente, que pretende instrumentalizar os alunos nos conhecimentos básicos de matemática.

Contudo, Rocha (2016), Dor (2017) Muller (2015) dentre outros autores, argumentam que esses cursos não apresentam o resultado esperado, que não existe uma aprendizagem efetiva, que será utilizada na apreensão dos conceitos do Cálculo Diferencial e Integral.

Nesse sentido propõe-se que o resgate da linguagem matemática deve ser realizado junto com o Cálculo, como fez Macbeth. No caso de Electra, ela não faz propriamente um resgate, mas se instrumentaliza a cada exercício aprendendo “como fazer” num sentido que parece um tanto pragmático. Nesse caminho seria importante que o empreendimento de resgate da matemática básica fosse monitorado, de modo a permitir que alunos com formação lacunar se apropriassem desse conhecimento ao mesmo tempo que aprendem a disciplina.

O abismo entre a escola no ensino fundamental e médio e a educação superior, com seus pressupostos e exigências tácitas, com seus professores inalcançáveis e distantes, o desconhecimento da linguagem matemática prévia e de uma matemática revestida de significados, o conhecimento de conceitos contra intuitivos como infinito, nunca dantes apresentados, as exigências de autonomia e independência dos estudos, são distâncias abismais aprofundadas e dilatadas nessa disciplina.

Assim, no ensino do Cálculo Diferencial e Integral, aprende-se que o insucesso e o fracasso estão ligados a inúmeras razões e variáveis, que são múltiplas, mas possuem sim um denominador em comum: distâncias e abismos. Detectar parte dessas distâncias no sentido de minorá-las foi o propósito deste artigo.

Com a mudança de foco, percebe-se a existência de razões de princípio, tecidas fora do âmago escolar, mas experimentadas nele, que acarretam a resiliência de Macbeth e Electra. De novo, mais que fixar monoliticamente uma característica dos entrevistados e tentar tudo explicar a partir da luz proveniente dessa característica, o que seria empiricamente inócuo, procurou-se mostrar como um traço constitutivo jorra luz capaz de iluminar todo um modo de comportamento, que devidamente iluminado permite afirmar sobre a prodigalidade das relações sociais e delicadeza dos movimentos perpetrados na família e na escola.

REFERÊNCIAS

BLOOM, H. Shakespeare: A invenção do humano. Tradução de José Roberto Oshea. Rio de Janeiro: Objetiva, 896 p. 2001. ISBN 85-7302-297-3.

BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 361 p. 2005. ISBN 8527301407.

CARNEIRO, R. D. Análises de Aprendizagem em Cálculo Diferencial e Integral: Um estudo de caso de desenvolvimento de conceitos e procedimentos algébricos em uma universidade pública brasileira. 237 p. Universidade de Brasília, 2017.

COULON, A. A condição de estudante: a entrada na vida universitária. Salvador: EDUFBA, 268 p. 2008. ISBN 978-85-232-0527-0.

DONEL, M. L. H. Dificuldades de aprendizagem em Cálculo e a relação com o raciocínio lógico formal: Uma análise do ensino superior. Marília, 182f. Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade estadual Paulista. SP, 2015.

LAHIRE, B. Patrimônios individuais de disposições. Revista Sociologia, Problemas e Práticas, n. 49, p. 11-42, Portugal. 2005.

LAHIRE, B. Reprodução ou prolongamentos críticos? Revista Educação & Sociedade, São Paulo, v. 78, p. 37-55, Abril. 2002.

LAHIRE, B. Sucesso escolar em meios populares: As razões do improvável. São Paulo, Editora Ática, 1997. ISBN 85 08 06601 5.

MENDES, M. T. Utilização da prova em fases como recurso para regulação da aprendizagem em aulas de Cálculo. 274f. Universidade estadual de Londrina. Paraná, 2014.

RAFAEL, R. C.; ESCHER, M. A. Evasão, baixo rendimento e reprovações em Cálculo Diferencial e Integral: uma questão a ser discutida. In: VII Encontro mineiro de educação matemática. out. 2015. Anais 2015.

REIS, F. S. A. A tensão entre rigor e intuição no ensino de cálculo e análise: a visão de professores-pesquisadores e autores de livros didáticos. 302f. Departamento de Faculdade de Educação, Unicamp, Campinas, 2001.

REZENDE, W. M. O ensino de cálculo: dificuldades de natureza epistemológica. 2003.468f. Faculdade de Educação. USP, SP,2003.

ROCHA, M. M. Releitura do processo de aprendizagem de estudantes repetentes de Cálculo I. 246f. Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Educação. 2016.

APÊNDICE- REFERÊNCIA DE NOTA DE RODAPÉ

3. Coulon (xxx) analisa a importância do processo de integração/afiliação à vida universitária para o sucesso e a permanência dos estudantes no ensino superior.

4. Autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salários-mínimos, proveniente do ensino médio de escolas públicas.

[1] Doutoranda em Educação pela UFMG, com mestrado em Engenharia e licenciatura em Física, também pela Universidade Federal de Minas Gerais.

[2] Doutor em Educação, Mestrado em Sociologia e graduação em Ciências Sociais, toda a titulação obtida pela UFMG.

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Telma Cristina Pimenta de Freitas

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