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O ballet clássico na infância: uma perspectiva artístico-desenvolvimentista

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SANTOS, Renata Tubarão dos [1]

SANTOS, Renata Tubarão dos. O ballet clássico na infância: uma perspectiva artístico-desenvolvimentista. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 04, Ed. 06, Vol. 08, pp. 42-54. Junho de 2019. ISSN: 2448-0959

RESUMO

O presente estudo visa buscar espaços nos quais a criança contemporânea encontre possibilidade de crescer de forma plena, a partir de seu próprio potencial, e reforçando-o. A sobrecarga e pressão nos modos de viver atual torna a infância um tempo de estimulação e padronização, podendo ser a arte um anteparo a ser refletido no desenvolvimento e na saúde física, psíquica e sócio-emocional da criança. O ballet clássico é uma arte com potencial para ocupar este lugar, porém é necessário repensar o seu método de ensino. Para tanto, este estudo de caráter bibliográfico, recorreu aos saberes da psicologia do desenvolvimento, da psicomotricidade e a alguns apontamentos sobre arte, para retomar o norte desta dança. Um aprendizado coerente com o tempo infantil, e que acentue o componente artístico do ballet clássico, oferece uma perspectiva que contribui para o desenvolvimento da criança de forma a conservar suas características artísticas inatas, posicionando-se de modo mais autêntico no mundo, em suas relações, e/ou em uma futura carreira artística.

Palavras-chave: Arte, ballet clássico, infância, desenvolvimento humano.

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo busca apresentar uma leitura do processo ensino-aprendizado do ballet clássico na infância, na qual insere-se a relevância desta arte para o desenvolvimento integral do ser humano, sobretudo na contemporaneidade.

O ballet clássico é uma arte vasta do ponto de vista do potencial humano, com um complexo manejo motriz integrado ao aspecto cênico, o que reforça no desenvolvimento da criança que aprende o ballet a interligação corpo-mente podendo trazer inúmeros benefícios para sua vida atual e futura. Na concepção de Vigotski (1999 apud BARROCO E SUPERTI, 2014), o movimento de superação das emoções contraditórias que a arte suscita, articula as demais funções psicológicas superiores, como a abstração, e por conseguinte, a própria criatividade, utilizando-se de recursos da imaginação. Esta é a contribuição desta arte para a infância, que ao colocar a criança em contato com sua gama de emoções e papéis, preenche esse ser que cresce de forma integral e lúdica, para além do aspecto físico e técnico.

Contudo, nota-se uma desarmonia em relação ao ensino do ballet clássico na infância, reservando-lhe o lugar de uma atividade demasiado rígida. Desta forma, surgem as seguintes questões: o que é ballet clássico? É necessário um ajustamento em seu método de ensino na infância? Como tirar melhor proveito dessa arte desde a infância?

Neste contexto, este estudo de caráter bibliográfico, pretende promover uma reflexão acerca do ensino-aprendizado do ballet clássico, caracterizando-o como uma ferramenta potencializadora do desenvolvimento infantil. Para tanto, serão considerados autores da Psicologia e da Psicomotricidade, bem como reflexões sobre arte-educação. Espera-se construir com o ballet clássico, espaços para a infância em que a criança possa crescer em sua plenitude, venha ela a ser um(a) artista-bailarino(a), ou alguém que encontrou significado nessa forma de expressão artístico-desenvolvimentista, tornando-se um(a) artista da vida.

2. DESENVOLVIMENTO

Pensar em espaços de desenvolvimento humano através da arte é entender a necessidade desta para o indivíduo e seu meio social, pois, concordando com o autor Herbert Read, sem esse mecanismo, a civilização perde seu equilíbrio, mergulhando no caos social e espiritual (READ, 2013, p.15, grifo do autor).

Em nossa sociedade pós-moderna, podemos verificar que as exigências e a pressão pelo desempenho têm sobrecarregado crianças e adultos em um “mundo em disparada”, conforme o sociólogo Anthony Giddens (2002, apud NOVAIS, 2016). Com isto o autor quer dizer que as mudanças sociais são vividas hoje muito mais rapidamente, e além disso, elas afetam as práticas sociais e os comportamentos pré-existentes com maior amplitude e profundidade. Assim, pode-se inferir que atualmente vivemos em um caos, interno e social.

Por isso a arte. Pensando com Ernst Fischer, em seu livro A Necessidade da Arte:

“A arte pode elevar um homem de um estado fragmentário para um estado de ser total e integrado. A arte permite ao homem compreender a realidade; não apenas o ajuda a suportá-la como lhe aumenta a sua determinação de a tornar mais humana e mais digna do gênero humano. A arte é em si mesma uma realidade social” (FISCHER, 1963, p.54 e 55).

O autor afirma ainda que a arte tem a função de “[…] demonstrar que o mundo é transformável e tem de ajudar a transformá-lo” (FISCHER, 1963, p.56).

De acordo com Vigotski (1999, apud BARROCO E SUPERTI, 2014), a arte é capaz de provocar alterações no psiquismo dos sujeitos, propiciando-lhes nova organização psíquica, o que os possibilita elevarem-se à condição de indivíduo particular, organismo até certo ponto simplista e fruto da evolução natural, à de gênero humano universal.

Assim, diante de um “mundo em disparada”, a arte pode configurar-se como uma possibilidade de saúde e despertar do senso crítico. O indivíduo em contato com a arte encontra um ajustamento que o permite refrear as necessidades que o mundo externo lhe impõem, em lugar de seguir determinados padrões sem criticidade, trazendo um sofrimento.

Refletindo sobre o que é arte, para Read (2013), este é um dos conceitos mais indefiníveis da história do pensamento humano pelo fato da arte sempre ter sido tratada como um conceito metafísico, porém em sua tese o autor apresenta um conceito revelador de arte como fundamentalmente um fenômeno orgânico e mensurável, conceituando arte como parte do processo orgânico da evolução humana. Nesse sentido, o autor destaca os elementos rítmicos contidos na respiração, e expressivos contidos na fala.

Dentro desta perspectiva, Laban (1990) pontua que a criança tem o impulso inato de realizar movimentos similares aos da dança. Assim, o movimento pode ser igualmente compreendido, desde cedo, como arte. É orgânico para o homem expressar-se dançando, e em sua história, tem-se em Amaral (2009) que a dança acompanha o homem desde sua aparição e em sua organização social. Era parte viva e funcional das comunidades, uma verdadeira reação e interação com o universo no qual se vivia. É a arte mais antiga que se conhece, e dela surgiram as chamadas representações teatrais.

Scarpato (1999) apresenta os vários conceitos de dança que se tem na atualidade, dentre os quais ressaltam-se aqui: atividade física em várias modalidades (jazz, sapateado, ballet, etc); terapia que oferece benefícios emocionais, psíquicos; profissão; educação e cultura; forma artística de expressão, comunicação e apreciação para uma plateia.

Apesar de ter se revelado uma atividade profícua através dos tempos, a díade arte e desenvolvimento começou a se efetivar somente na contemporaneidade. Segundo Delors (2000, apud SCARPATO, 2001), a Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI recomenda que a arte deve ter um espaço maior do que lhe é dado na escola.

No Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB_ Lei 9.394/1996) tornou o ensino de arte um componente curricular obrigatório na educação básica. No ano de 2016, com a Lei 13.278/2016, a dança foi incluída como mais uma linguagem artística que deve estar presente nas escolas. Assim, vemos a arte, e especificamente a dança, adentrando um espaço de desenvolvimento, construção de conhecimento e agregação de valores humanos: a escola, evidenciando sua relevância para o desenvolvimento humano. Para Read (2013), a arte deve ser a base da educação.

Conforme apresentado até aqui, pode-se dizer que a arte está no homem integral, como um impulso natural ao seu crescimento e palco para transformações sociais. Assim, em toda criança há um potencial artístico e arte não é mero ornamento. Há portanto, de se fomentá-la em vez de incuti-la, valorizá-la, em lugar de ser deixada em segundo plano, o que pode surgir como um desafio empregado pelos métodos de ensino que, ditando um modus operandi, priorizando o conhecimento técnico e prescindindo da criança naturalmente artista e em crescimento, termina por prescindir igualmente da arte e do seu papel. É a partir desta análise que o estudo se orientará agora para o seu objeto: o ballet clássico.

2.1 AMARRANDO COM LAÇO DE FITA

Para um ensino significativo da arte do ballet clássico na infância é fundamental (re)conhecer tanto as suas peculiaridades, como as peculiaridades da criança em processo de desenvolvimento. Assim, aquele que orienta o aprendizado ganha um papel de destaque, principalmente porque em relação ao ballet, as críticas observadas na literatura, podem ser resumidas à um método desconectado do tempo infantil, o que pode ocasionar prejuízos tanto para a criança como para a imagem desta arte.

Ossona (1988, p.18), destaca uma contínua tensão e total desvinculação do cotidiano e passional ao se referir à técnica clássica. E completa dizendo que esta é um castigo corporal e uma disciplina do espírito que pode ser demasiado dura para uma criança muito pequena.

Em Scarpato (2001) verificam-se apontamentos contundentes sobre o ensino do ballet nas escolas. A autora questiona se esta seria a técnica mais apropriada para o contexto escolar destacando a competição acirrada e desumana, a presença de um padrão técnico imposto pelo professor, a exclusão (divisão entre talentosos e não talentosos, e uma preferência pelos primeiros para papéis de destaque), a repetição, a mecanização, desvinculando a emoção da ação.

Taiacol (2016), lembra que o ballet carrega os princípios da Europa renascentista. Em suas aulas, os professores mostram as sequências de movimentos com poses e gestos pré-estabelecidos e de porte elegante, em seguida os alunos as reproduzem, repetindo-as até alcançar a excelência.

De modo geral, observa-se no ensino do ballet clássico o predomínio de uma linguagem rígida e mecanicista, notadamente apartada de seu componente dramático e indiferente à psique da criança que aprende, culminando em questionamentos e críticas.

Entretanto, de acordo com Malanga (1985, apud TAIACOL, 2016) a técnica clássica norteou-se pela busca de leveza, da agilidade, da postura ereta, alongamentos e o amplo equilíbrio, na qual o bailarino treina para conquistar o domínio do corpo, de modo a poder utilizá-lo de forma consciente nos passos dessa dança (grifo meu).

Infere-se assim, que a linguagem rígida não é uma premissa do ensino do ballet clássico, e uma possibilidade para a conquista das habilidades para a dança clássica seria a proposição de um professor orientador, e não reprodutor de um método. Assim, conhecer a técnica clássica passa a ser elementar, pois há a compreensão de que ensinar arte ao ser criança é trabalho para um artista. Nesse caso, alguém que em sua experiência como bailarino, não teve suas qualidades inatas subtraídas, ou, alguém que pôde atualizar sua experiência inicial podendo, assim, extrair o ballet da criança que aprende, expandindo suas capacidades, oferecendo-lhe sentido, em vez de simplesmente aplicar ou impor a técnica por ele conhecida.

Desta forma, mecanização e rigidez, separação mente-corpo, e um ambiente competitivo e excludente deixam de ser um pressuposto básico do ensino da dança clássica desde a infância, pois para um aprendizado consciente subentende-se a necessidade de considerar as demandas da criança em processo de desenvolvimento, considerando a linguagem lúdica como base do processo de aprendizagem; compreende-se a criança em sua totalidade, incorporando ao conteúdo do processo ensino-aprendizagem a relevância para o desenvolvimento concomitante do cognitivo, do afetivo e do motor (MAHONEY, 2012); integra-se técnica e arte, aplicando ao desenvolvimento integral da criança de forma lúdica.

Com relação à repetição, tem-se nos estudos de psicomotricidade (TARRAU, 2007), que uma ação motriz se dá em três níveis inter-relacionados, fundamentados em aspectos psicológicos como a motivação, concentração, percepção, memória, imaginação, pensamento e linguagem. Para uma ação motriz, o aluno deve adquirir primeiramente a habilidade (fase em que se familiariza com aquela prática), após, adquire o hábito (fase em que o exercício sistemático leva o aluno ao aperfeiçoamento e à estabilização), para então alcançar a destreza (o que envolve a criatividade do aluno para resolver as problemáticas que surgem dentro da atividade com mais qualidade, eficiência e eficácia).

Assim, a repetição é inerente à ação e é através dela que alcança-se a destreza do movimento, sempre com fatores psicológicos implicados e o fator criatividade se reafirmando com o alcance desse domínio corporal. No caso do ballet clássico, censurá-la ou utilizá-la de modo massivo e sem sentido, desconectado do ser inteiro, pode ser um empecilho para o aprendizado e o desenvolvimento da criança, seja por estar aquém ou além do que ela pode realizar.

Refletindo sobre os movimentos pré-estabelecidos do ballet clássico, esta é uma arte tradicional que possui uma nomenclatura universal. Assim como o músico deve conhecer as notas musicais para realizar um concerto, o bailarino clássico deve conhecer os passos do ballet para dançar uma coreografia do seu repertório. Entretanto, esses passos são conectados sempre de modo diferente, e com uma emoção diferente. Da mesma forma, a pessoa que dança não é imutável, a própria experiência a modifica, modificando a forma como coloca esses movimentos. Nas palavras de Marcia Hayddée[2], bailarina renomada e diretora, “a coreografia será sempre a mesma mas o ballet não deve ser uma cópia, precisa ser autêntico”. Portanto, na prática do ballet clássico, o mesmo, é sempre novo.

Ainda, em uma análise do ponto de vista psicológico, executar os passos de uma arte tão tradicional pode ser também motivo de prazer, de ser alguém que contribui com a sua continuidade e com o progresso, afinal, é do velho que se orienta o novo. Trevisan e Schwartz (2012) ressaltam que as buscas pelo aprimoramento das habilidades técnicas e pela superação dos limites frente às dificuldades percebidas ao longo da prática desta atividade desencadeiam sensações de prazer, satisfação e bem-estar, vislumbrando a possibilidade de aprimoramento do equilíbrio nos níveis psíquico, emocional e socioafetivo.

Assim, há um sentido na dança clássica, sendo necessário retomar o seu norte a partir de um olhar desde a criança e que incorpore a arte, oferecendo-lhe uma experiência prazerosa e singular, agregadora ao seu desenvolvimento e/ou a uma futura carreira artística, contribuindo para uma imagem da dança clássica e contato positivos, como um desafio no qual a criança sente que cresce. É o que espera-se ser possível com a discussão a seguir.

2.2 UM APRENDIZADO COERENTE

Tendo em vista todo o exposto, a contribuição deste estudo passa a ser uma reflexão teórica para o ensino-aprendizado do ballet na infância, considerando conhecimentos da psicologia do desenvolvimento e da psicomotricidade, e contemplando o aspecto expressivo e comunicativo do ballet clássico. Assim, sem pretender esgotar o tema, os apontamentos que se seguem visam elucidar o professor de ballet em sua prática com crianças, bem como acentuar o valor desta arte para a primeira infância.

Entender o processo de desenvolvimento do aluno é indispensável para a construção do conhecimento do professor (MAHONEY, 2012), e no ensino do ballet clássico para crianças isto se torna ainda mais premente, por ser uma atividade que engloba o corpo, o movimento humano, em uma fase que, conforme comenta Almeida (2012), a maior parte dos processos psíquicos tem origem.

Nesse sentido, o psicólogo e educador Henri Wallon surge como um teórico importante para reflexões mais profundas acerca do ballet clássico na infância. Segundo Galvão (1995, apud ALMEIDA, 2016), os estudos de Wallon revelam a importância do componente motor no desenvolvimento da criança, compreendendo que o movimento não é um simples deslocamento no espaço ou uma sequência de contrações musculares. Ao contrário, o corpo legitima suas expressões, comunicações, interações, aprendizados, conhecimentos e o lúdico. Para Wallon, o movimento intervém no desenvolvimento psíquico e nas relações com o outro, e influencia o comportamento habitual. É um fator importante do temperamento da pessoa humana (WALLON, 1950, apud FONSECA, 2008).

Enfoca-se assim o cuidado que envolve o ensino do ballet clássico na infância, para que em sua prática a criança não perca esse corpo expressivo tendo seus movimentos moldados, com implicações importantes para sua psique, suas relações e constituição de sua pessoa, além de não ser este o papel da arte.

Outro aspecto de sua teoria que merece destaque quando se trabalha com o corpo infantil, é que, conforme Mahoney (2012), embora o aspecto motor, o afetivo, o cognitivo, a pessoa, tenha identidade estrutural e funcional diferenciada, estão tão integrados que cada um é parte constitutiva do outro (grifo da autora). Ainda segundo a autora, uma das consequências dessa interpretação é de que qualquer atividade humana sempre interfere em todos eles.

“Qualquer atividade motora tem ressonâncias afetivas e cognitivas; toda disposição afetiva tem ressonâncias motoras e cognitivas; toda operação mental tem ressonâncias afetivas e motoras. E todas ela têm um impacto no quarto conjunto: a pessoa, que, ao mesmo tempo em que garante essa integração, é resultado dela” (MAHONEY, 2012, p.15, grifo da autora).

Esta ideia é corroborada por Laban (1990) ao dizer que o professor de dança tem que se dar conta de que há um esforço mental implícito em toda atividade.

Ainda no pensamento walloniano, Mahoney (2012) destaca que a rede de relações entre os conjuntos motor, afetivo e cognitivo é desencadeada e mantida pela interação entre fatores orgânicos e sociais. Conforme a cultura em que o organismo se desenvolve, esses conjuntos serão mais ou menos canalizados e cultivados pelas oportunidades oferecidas (MAHONEY, 2012).

Wallon propôs ainda uma sequência de estágios para explicar as mudanças cognitivas, afetivas e motoras ocorridas durante o desenvolvimento da pessoa, nos quais organismo e meio confluem. O estágio do personalismo abrange a criança dos três aos seis anos, faixa etária em que geralmente se dá os primeiros contatos com o ballet, portanto de interesse para esse estudo.

De acordo com Bastos e Dér (2012), este estágio está voltado para o enriquecimento do eu e a construção da personalidade. É o início da consciência de si, e a criança busca afirmação e diferenciação em um processo marcado por três fases distintas: oposição, sedução e imitação.

A oposição precisa ser compreendida como busca de afirmação de si, de uma pessoa se constituindo, de um eu iniciando sua diferenciação em relação ao outro. É uma fase denominada por Wallon de fase de recusa e reivindicação (BASTOS E DÉR, 2012). Em relação à prática do ballet, é preciso oferecer um espaço para a diferenciação acontecer. A improvisação, o movimento partindo da criança, o estímulo à exploração de variados movimentos oferecem a percepção de quem ela é, criam uma consciência de sua capacidade potencial e uma auto-imagem vai surgindo em um ambiente em que ela constrói, experimentando sua independência sem precisar impor-se, opor-se, ou confrontar o outro. A criança afirma-se pelo seu protagonismo. Em outra linguagem, um ambiente em que ela pode ser artista; é naturalmente espontânea, criativa e autêntica.

A sedução seria a idade da graça, em que a criança tem necessidade de ser admirada, de sentir que agrada aos outros, pois é assim que poderá se admirar também. É uma fase de exuberância motora, podendo executar movimentos com perfeição. A criança quer exclusividade de atenção, e então ela se mostra no que acredita poder agradar aos outros. É uma fase decisiva no desenvolvimento da criança, pois exibindo-se, reconhece que pode ter sucesso ou fracasso, levando a criança a viver inquietações, conflitos e decepções, tornando-se competitiva e ciumenta. Além disso, frustrações ou arrogâncias infantis, se não são bem orientadas pelo adulto, podem marcar de forma duradoura o comportamento da criança nas relações que estabelece com seu ambiente (BASTOS E DÉR, 2012).

Na terceira fase do personalismo a criança busca ampliar e enriquecer as possibilidades de sua pessoa pelo movimento de incorporação do outro, utilizando-se da imitação para isso (BASTOS E DÉR, 2012). Wallon (1975, apud BASTOS E DÉR, 2012) afirma que trata-se de um esforço de substituição pessoal por imitação que não é de simples gestos, mas de um papel, de uma personagem, de um ser preferido e muitas vezes desejado.

Há, portanto, um predomínio do afeto neste momento do desenvolvimento infantil para o qual o professor de ballet pode colocar-se sensível, respeitando as necessidades da criança, compreendendo a responsabilidade de suas ações e aproveitando os elementos e características desta fase como um recurso à sua prática. Para tanto, adaptações podem ser necessárias, e o resgate do componente dramático do ballet clássico mostra-se essencial.

O ballet clássico ainda tem uma força artística e estética muito presente na sociedade pós-moderna (AQUINO E SCHWARTZ, 2011). A estrutura que se tem do ballet clássico hoje não difere muito daquela do ballet do período romântico, os chamados ballets de repertório.

Os ballets de repertório são espetáculos que contam histórias por meio da dança, mímica e música. As narrativas contam histórias de caráter universal, muitas vezes contos de fadas e lendas populares (BOURCIER, 2001 apud AQUINO E SCHWARTZ, 2011). Para dar força e suporte ao enredo, os repertórios ainda contam com cenários e figurinos elaborados (BOGÉA, 2007). Assim, há uma confluência de interesses em que a criança encontra no ballet um meio de enriquecer-se em seus aspectos motor, cognitivo, afetivo, relacional, cultural e existencial e o ballet encontra na criança este ser articulado, potente, expressivo, lúdico e artista que esta arte precisa.

Incorporar este aspecto ao ensino-aprendizado é ressaltar o potencial do ballet clássico de conversar com o mundo interno de cada um, dada a sua riqueza dramática, em uma época da vida em que esse mundo interno vai sendo constituído. A possibilidade de experimentar-se em tais narrativas e diferentes personagens, através de uma movimentação que lhe faça sentido e aos poucos vai sendo expandida, de diferentes gestos e emoções, do ritmo, é o verdadeiro desenvolvimento humano, que não deixa de ser artístico. Conforme Dewey (1916 apud BARBOSA, 2015) “atividade” não é apenas o movimento muscular, mas também o exercício da imaginação (grifo da autora). Importante ressaltar que em seu repertório há também personagens reais, e não apenas de contos de fadas com os quais pode-se jogar, trabalhando o ser inteiro, o pequeno artista e futuro adulto.

Dentro desta perspectiva artístico-desenvolvimentista, em que o movimento da criança não é apenas corporal e a arte do ballet não se refere apenas à técnica, as habilidades motoras para o ballet só podem ser conquistadas através da psicomotricidade. Com isto, relacionam-se os aspectos tônico-afetivos, emotivo-sociais e motor (WALLON, 1956 apud FONSECA, 2008), e enfatiza-se a importância do brincar, que é a expressão natural da criança (BATISTA, 2008, apud BATISTA E VIEIRA, 2013), aos movimentos e aprendizado significativo do ballet. “É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação” (WINNICOTT, 1975, p.79 apud BATISTA E VIEIRA, 2013).

Assim, em uma época propícia de seu desenvolvimento, a criança tem uma atividade em que pode desenvolver os elementos básicos da psicomotricidade tais como a tonicidade e postura, o equilíbrio, a lateralidade, o esquema corporal, a estruturação e orientação espacial e temporal, coordenação motora ampla e fina de forma artística e lúdica. Conforme Damásio (2000, p.243 apud MILLER, 2012, p.105), “[…]a técnica de dança começa muito antes daquilo que usualmente reconhecemos como técnica. Seu caminho foi sedimentado com base na evolução psicomotora da criança”. Os saltos, giros, equilíbrios, elevações, sustentações, flexões, extensões, rotações, agilidade, exercícios característicos desta modalidade de dança (TREVISAN E SCHWARTZ, 2012), encontram na infância e na psicomotricidade uma via coerente de acesso às habilidades técnicas a serem desenvolvidas no ballet, sem desconsiderar sua psique, dando vida à (ao) bailarina (o).

Estas reflexões encontram ressonância nos estudos de Perrelet sobre o desenho, que valoriza a expressividade à perfeição de uma linha, que é algo que a criança ainda não é capaz de atingir. Assim, um simples traço pode tornar-se um grande evocador, e a criança pode compreender nos elementos do desenho a base para sua utilização futura. A autora compreende ainda como necessária a movimentação de todos os meios, corporais e intelectuais, da atitude, do gesto, do sentimento e da reflexão para se conseguir uma posse sólida das coisas (PERRELET, 1930 apud BARBOSA, 2015). É necessário, portanto, uma complementaridade entre conhecimento, envolvimento e sensibilidade no processo ensino-aprendizado.

Pablo Picasso, um dos artistas mais importantes do século XX, dizia: “Toda criança nasce artista. O problema é como permanecer um artista depois que cresce”. A perspectiva artístico-desenvolvimentista para o ensino do ballet na infância pode suscitar saídas para esta nobre questão humana.

3. CONCLUSÃO

O potencial humano para a arte é uma realidade que pode contribuir para uma existência mais plena, sem os conformismos que a neutralizam; uma habilidade necessária em tempos pós-modernos. Na infância, este potencial é latente, necessitando de atitudes e espaços para sua manifestação, o que começa a ser gradativamente esboçado na educação formal ressaltando o papel que a arte pode ocupar no desenvolvimento da criança.

O ballet clássico parece ser uma arte polêmica, entretanto, é necessário reforçar seu valor para a infância, pois naquilo em que é criticado e questionado, subjaz a estagnação de seu método de ensino, algo que, dentro de uma multidisciplinaridade e reorientação do foco do professor pode ser desenvolvido por outras linguagens, coerente com o tempo infantil e coerente com a arte e a técnica do ballet e com isto ampliar a fonte de recursos saudáveis, terapêuticos, inclusivos, de desenvolvimento, e artísticos para a infância, e não subtraí-la.

Neste contexto, falta-lhe psicologia. Não em si, mas em sua prática. Há uma aproximação entre ballet e infância de tal forma que deve existir uma percepção e postura do professor orientador para que, muito mais que uma técnica, exigências e julgamentos “certo-errado”/”bonito-feio”, possibilite a criança uma base para ser aquilo que precisa ser, como bailarina (o) e como pessoa. Esta atitude respeita e potencializa a criança em uma relação de artista para artista, garantindo um aprendizado significativo, integrador e duradouro.

Ballet é arte; e mediante as considerações aqui presentes, relembrando o papel da arte, pode-se dizer que o ballet na infância é uma ferramenta possível de potencialização do desenvolvimento humano.

REFERÊNCIAS

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TREVISAN, Priscila R. T. da C.; SCHWARTZ, Gisele Maria. “Análise da produção científica sobre capacidades físicas e habilidades motoras na dança. Revista brasileira de Ciência e Movimento, Brasilia, v.20, n.1. p.97-110, mar., 2012.

2. Coletado de uma entrevista ao site movimento.com sobre a remontagem do ballet “Romeu e Julieta” para o corpo de baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em outubro de 2011.

[1] Pós-graduada em Psicomotricidade Clínica e Relacional pela Universidade Candido Mendes. Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário IBMR/Laureate. Instrutora de Yoga infantil. Bailarina profissional, primeira solista, do corpo de baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro (1999 até o presente momento).

Enviado: Fevereiro, 2018.

Aprovado: Junho, 2019.

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Renata Tubarão dos Santos

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