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Repercussões da Lei das Estatais em aspectos do regime societário dessas empresas

RC: 81105
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/regime-societario

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SILVEIRA JÚNIOR, Dirceu Cândido [1], SILVA, Guido Vaz [2]

SILVEIRA JÚNIOR, Dirceu Cândido. SILVA, Guido Vaz. Repercussões da Lei das Estatais em aspectos do regime societário dessas empresas. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 03, Vol. 15, pp. 142-164. Março de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/regime-societario, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/regime-societario

RESUMO

Este trabalho analisa modificações introduzidas pela Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais) no regime societário das empresas estatais, especialmente no que se refere à obrigatoriedade de boa governança corporativa. A partir de revisão bibliográfica, examina o objeto da referida lei, o âmbito de aplicação do regime societário das empresas estatais nela previsto, traços da governança corporativa que prescreve, seus reflexos para a função social das empresas estatais e implicações para o exercício do poder de controle e para a responsabilidade do controlador e do administrador. À guisa de conclusão, sugere que, dadas as repercussões da Lei das Estatais no regime societário das empresas estatais, deverá haver conciliação do interesse público e do imperativo de interesse nacional, que justificaram sua criação, com o interesse empresarial, cuja conjugação comporá o interesse da Cia., o qual deverá pautar tanto o controlador como o administrador no cumprimento de seus deveres fiduciários e no exercício do poder de controle. A integração da governança corporativa à Lei das Estatais implica a obrigatoriedade de observância da governança corporativa, tal como entendida e praticada corretamente na atualidade, tarefa que não é trivial, dado o cenário de evolução por que a governança corporativa está passando.

Palavras-chave: Empresa estatal, Empresas estatais, Lei das Estatais, Lei 13.303/2016, Governança corporativa.

1. INTRODUÇÃO

A Lei 13.303/2016 (daqui em diante denominada Lei das Estatais) surgiu em um contexto de reação a abusos, notadamente corrupção, constatados em algumas empresas estatais brasileiras e destina-se a dar cumprimento à previsão do §1º do artigo 173 da Constituição, com a redação que recebeu conforme a Emenda Constitucional 19/1998 e que determina que a lei estabeleça o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços.

Trata-se de lei que traz inovação à governança corporativa no Brasil, à medida que torna obrigatório o cumprimento de deveres a ela relativos, quanto a aspectos tais como transparência, estruturas, gestão de risco, controle interno, composição da administração e proteção aos acionistas, bem como traz regras sobre licitações e contratos, tudo no que se refere especificamente às empresas estatais.

Em síntese, a Lei das Estatais introduz no regime jurídico dessas empresas requisitos de governança corporativa e prevê medidas que visam ampliar a autonomia das empresas estatais, profissionalizar sua administração e tornar mais explícitos os compromissos que assuma com o propósito de atingir objetivos traçados em políticas públicas, impondo a obrigatoriedade de adoção de medidas que visam assegurar que haja uma base mínima razoável de instrumentos reconhecidos como boas práticas de governança que propiciem mais responsabilidade quanto ao planejamento, controle e monitoramento das estatais (FONTES-FILHO, 2018).

Levantamentos realizados pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC em 2017 e em 2018 apontam que:

“A lei” [das estatais] “entrou plenamente em vigor em junho de 2018.” […] “as práticas de governança corporativa de tais companhias estão, de certa forma, defasadas em relação aos avanços de autorregulação tanto brasileira quanto internacional.” (IBGC, 2017 e 2018).

Internacionalmente e inclusive no Brasil, a academia aponta que a governança corporativa tem caminhado nas últimas décadas no sentido de produzir muitos códigos e afins[3], frequentemente inspirados na teoria de agência, mas, considerando a importância da governança corporativa e a gravidade dos impactos que falhas de governança têm o potencial de causar, bem como os limites da teoria de agência, vem sendo detectada necessidade de reforma da governança corporativa (SIMON, 1959 e 1991; ACKOFF, 1999; BLAIR e STOUT, 1999 e 2011; AGLIETTA e REBÉRIOUX, 2005; BERARDI, 2008; LAN e HERACLEOUS, 2010; PORTER e KRAMER, 2011; BLAIR, 2012; HANSMANN e KRAAKMAN, 2012; MAYER, 2013; BIONDI, 2013; CLARKE, 2014; MONKS, 2015; COMPARATO, 2014; SILVEIRA, 2015; ERHARD e JENSEN, 2017; GILSON, 2017; BARBOZA e SIMÃO FILHO, 2018; JOHNSTON et al., 2019; FENWICK e VERMEULEN, 2019; SALOMÃO FILHO, 2019; FRAZÃO, 2019; STRINE, 2019; EDMANS, 2020; TRICKER, 2020)[4].

2. MÉTODO DA PESQUISA

O estudo desenvolve-se sob as perspectivas epistemológica e ontológica, adotando a epistemologia relacionada ao subjetivismo e, por conseguinte, a aquilatação do contexto histórico e da consciência coletiva e institucional são relevantes para conduzir à compreensão da realidade, sob a ótica hermenêutica. A partir da revisão bibliográfica, utiliza-se a técnica das triangulação e das explicações rivais.

Conforme Gray (2012), tal epistemologia implica a sobreposição do sentido da realidade, construído pelo sujeito sobre o objeto. A perspectiva da ontologia teórica hermenêutica, consoante o mesmo autor, permite que a compreensão da realidade social, não obstante complexa, passe por processo construtivo vinculado à sociedade local, pois não é captada pela simples observação, nem exsurge de forma objetiva dos fatos.

De acordo com Yin (2016), mediante a triangulação o pesquisador procede à coleta de evidências provindas de, pelo menos, três fontes diversas, na medida do possível. E, segundo o mesmo autor, a aplicação do método de explicações rivais conduz o pesquisador a buscar interpretações alternativas rivais, o que lhe permite constatar ora convergências, ora divergências, o que contribui para a validade e confiabilidade dos resultados do estudo.

3. O OBJETO DA LEI DAS ESTATAIS

A Lei das Estatais destina-se a dar cumprimento à previsão do §1º do artigo 173 da Constituição Federal e surgiu em um contexto de reação a abusos, notadamente corrupção, constatados em algumas empresas estatais brasileiras.

Trata-se de lei que positiva normas sobre governança corporativa, quanto a aspectos tais como estruturação societária, composição da administração, mecanismos internos de controle bem como de proteção a acionistas, gestão de riscos e licitações e contratos, tudo no que se refere especificamente às empresas estatais.

A mencionada lei busca fomentar a inovação da governança das empresas estatais, mediante a imposição da obrigatoriedade de adoção de numerosas medidas que visam assegurar que haja uma base mínima razoável de instrumentos reconhecidos como catalisadores para a adoção de boas práticas de governança que propiciem mais responsabilidade quanto ao planejamento, gestão, controle e monitoramento.

4. O ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO REGIME SOCIETÁRIO ESTABELECIDO NA LEI DAS ESTATAIS

Apesar de a Lei das Estatais intitular seu capítulo II de “Regime societário da empresa pública e da sociedade de economia mista”, abrange ainda suas subsidiárias, inclusive sociedades de propósito específico – SPEs[5], bem como – quanto às medidas de fiscalização e governança, proporcionais à relevância, à materialidade e aos riscos do negócio do qual são partícipes – também suas participações minoritárias e mesmo sem poder de controle, diretamente ou por suas subsidiárias, em sociedades empresárias privadas.

O conceito de subsidiária, para os fins da Lei das Estatais, encontra-se explicitado no Decreto 8.945/2016 (art. 2°, IV), que a define como a “empresa estatal cuja maioria das ações com direito de voto pertença direta ou indiretamente a empresa pública ou a sociedade de economia mista”.

A Lei das Estatais também inclui em sua esfera de aplicabilidade os consórcios nos quais a estatal seja operadora[6].

Importante salientar que a mencionada Lei não faz distinção entre as estatais exercentes de atividade econômica e as prestadoras de serviço público. A esse respeito, Borba (2018, p. 503) comenta:

A fim de afastar a grave distorção que medrou na doutrina e na jurisprudência, no sentido de promover uma artificial distinção entre sociedades de economia mista que explorem atividade eco­nômica e as que prestem serviços públicos, cuidou o legislador de enunciar, com todas as letras, que o Estatuto se aplica ‘a toda e qualquer empresa pública e sociedade de economia mista’, além de acrescentar, de modo a espancar todas as dúvidas, que estão sujeitas ao Estatuto até mesmo as atividades em ‘regime de monopólio’ e as que envolvam a ‘prestação de serviços públicos’.

Espera-se que, com tão manifesta explicitação, dê-se por encerrada a equivocada distinção, sustentada por alguns administrativistas, entre sociedade com atividade econômica e sociedade prestadora de serviço público. Na verdade, não existe sociedade que não exerça atividade econômica. A prestação de serviços públicos por uma so­ciedade, seja ela uma economia mista ou uma concessionária, ou até mesmo uma empresa pública, tem por objeto uma atividade econô­mica, pois, se não tivesse, não seria uma sociedade, mas, sim, uma associação, uma autarquia ou uma fundação.

Entretanto, não se trata de entendimento unânime, como se pode verificar, por exemplo, pela leitura do comentário de Maffini (2017), que entende, em suma, haver dispositivos da Lei das Estatais que constituem normas federais, e não nacionais, por não tratarem, segundo seu ponto de vista, de direito empresarial, bem como outros, ainda conforme sua opinião, que não se contêm dentro dos limites da previsão do artigo 173, §1º, da Constituição.

Não obstante, nota-se que, na ação direta de inconstitucionalidade nº 238, foi considerada matéria societária e, portanto, de competência da União, a participação obrigatória de empregado em conselho de administração.

A opinião de Justen Filho (2018, p. 20) é no sentido de que o modelo guarda compatibilidade com a Constituição. Veja-se:

O modelo consagrado na Lei 13.303 não é incompatível com a Constituição, ainda que possa ser heterodoxo em face da doutrina clássica do Direito Administrativo. A Constituição não consagrou distinção específica, rígida e insuperável entre as estatais exploradoras de atividade econômica e as prestadoras de serviço público. Essa diferenciação foi delineada na prática e pelo trabalho da doutrina. A Lei 13.303 contemplou solução adequada à evolução das circunstâncias  econômicas. Ela deixou de lado a distinção fundada na natureza da atividade e reconheceu  que a diferenciação entre exploração de atividade econômica e prestação de serviço público tornou-se insuficiente para determinar o regime jurídico aplicável as entidades estatais dotadas de personalidade de direito privado. O reconhecimento da submissão das sociedades estatais, quando organizadas sob forma empresarial, às normas de Direito Comercial representa uma evolução não apenas compatível com a Constituição, mas indispensável à sua atuação eficiente como sujeitos privados.

Quanto às normas que considera serem pertencentes ao Direito Societário, Maffini (2017, p. 61) também entende que elas devem aplicar-se a todas as estatais, sendo irrelevante a natureza da atividade exercida:

[No que se refere às] “normas de Direito Comercial ou de um de seus compartimentos teóricos, qual seja, o Direito Societário” […] “Como já referido” […]”, trata-se de compartimento da Lei nº 13.303/2016 cuja competência legislativa da União decorre do disposto no art. 22, I, da Constituição Federal. Quanto ao ponto, mostra-se irrelevante qual a natureza da atividade (se prestadora de serviço público ou exploradora da atividade econômica em sentido estrito) ou o ente federal ao qual a empresa estatal está ligada. Ou seja, tais normas da Lei nº 13.303/2016 correspondem ao legítimo exercício legislativo da União, impondo-se sua aplicação, porquanto consentâneas com a Constituição Federal.

Mendes (2018, p. 40-41) assinala que:

[…] a aplicação sumária do tradicional critério de dualidade entre empresas estatais prestadoras de serviços públicos e prestadoras de atividades econômicas em sentido estrito tem se revelado cada vez mais insuficiente.

Com efeito, a subsistência dessas e de outras controvérsias relativas ao tema está a indicar que a definição do regime jurídico aplicável às empresas estatais deve ser buscada por meio de uma interpretação dos preceitos constitucionais que se revele, cada vez mais, cognitivamente aberta à compreensão da complexidade econômica e social que permeia a atuação dessas empresas no cenário nacional.

Sem prejuízo do até aqui exposto, cabe registrar o alerta de Aranha (2018, p. 63) acerca da pulverização das normas aplicáveis às empresas estatais, o que, sob a perspectiva da Lei Complementar 95/98, mereceria ser alvo de consolidação:

O real efeito da Lei n. 13.303/2016 sobre a complexidade de regimes aplicáveis às empresas estatais, paradoxalmente, foi o de ampliá-la. Enquanto não se der a devida atenção à consolidação das leis e demais atos normativos, conforme determinação da Lei Com­plementar n. 95/98, novos diplomas normativos poderão preencher lacunas, como foi o caso do Estatuto ora analisado, mas produzirão invariavelmente um sistema jurídico cada vez mais pulverizado, mesmo quando o título da lei pretende transparecer uma unidade de regime jurídico das estatais frente à sua real diversidade.

Diante disso, percebe-se que, a despeito das controvérsias presentes na doutrina, a respeito do âmbito de aplicação das regras sobre o regime societário das empresas estatais, é possível identificar argumentos contundentes em prol da sua aplicabilidade ampla, tal como prevista na letra da Lei das Estatais, ressalvados os argumentos que se encontram sob o crivo do Judiciário na ADI 5.624 e que não foram aqui analisados, e reconhecido que uma iniciativa no sentido de promover consolidação normativa seria bem-vinda.

5. A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA ESTATAL

Embora a Lei 6.404/1976, em seu artigo 116, parágrafo único, e em seu artigo 154, estabeleça a necessidade de as companhias observarem sua função social, não especifica seu conteúdo, apesar de ser certo que ela deve ser estabelecida considerando o objeto social de cada empresa.

A Constituição de 1988, em seu artigo 170, elenca os princípios da ordem econômica, o que, embora não sirva de definição da função social da empresa, ajuda a que um conceito seja formulado. Por seu turno, o Código Civil vigente, ao definir a atividade empresarial, em seu artigo 966, tampouco refere a sua função social.

No caso das empresas estatais, as balizas de sua função social são estabelecidas tomando em conta o interesse ou o imperativo de segurança que justificou sua criação, conforme disposto no art. 27 da Lei das Estatais.

A referida lei estatui também, nos parágrafos de seu artigo 27[7], com relação à função social da estatal, independentemente da diretriz básica constante da lei que autorizou sua criação, alguns parâmetros que deverão ser perse­guidos pelos controladores e administradores, quais sejam, em suma: I – alcançar o bem estar econômico, mediante: a) ampliação economicamente sustentada do acesso dos consu­midores aos produtos ou serviços desenvolvidos pela empresa; b) desenvolvimento ou emprego de tecnologia brasileira, desde que economicamente justificável; II – adoção de práticas de sustentabi­lidade ambiental e responsabilidade social corporativa compatíveis com o mercado em que atuam; III – celebração de contratos de pa­trocínio para promoção de atividades culturais, sociais, esportivas, educacionais e de inovação tecnológica, desde que vinculadas ao fortalecimento de sua marca.

O equilíbrio entre os diversos interesses a serem perseguidos pela empresa estatal – em especial o interesse de obtenção de lucro, ínsito às empresas, e o interesse público que justificou sua criação – não deve resultar na supressão de algum deles em favor da proteção radical ao outro, mas deve ser buscado mediante conciliação dos interesses. Como destaca Borba (2018, p. 535):

Convém acentuar que a função social, que nas empresas estatais apresenta uma intensidade maior do que nas demais empresas, deve ser desenvolvida e praticada nos limites das possibilidades econômicas e financeiras da entidade. Nenhuma sociedade pode prescindir da estabi­lidade financeira, que é a condição de sua subsistência como empresa.

Toda e qualquer sociedade tem na busca do lucro a sua condi­ção existencial. É com base no lucro que a sociedade cresce, ganha longevidade e alcança o objetivo de atender aos interesses represen­tados pelo objeto social a ser atingido, pela sua função social e pelo interesse dos seus acionistas.

Quando a empresa estatal não persegue o lucro, passando a de­pender do orçamento público, nada a justifica. A sua criação não te­ria passado de um mero equívoco, posto que, em seu lugar, deveria ter sido criada uma autarquia ou uma fundação pública.

As empresas estatais somente exercem efetivamente o seu papel quando são capazes de produzir lucro para, através dele, exercer a sua função social, remunerar os seus acionistas, inclusive o poder público, manter e desenvolver os seus empregados, além de atender eficientemente os consumidores de seus produtos ou serviços.

Impõe-se, todavia, lembrar que o lucro a ser perseguido pela sociedade de economia mista, como também por qualquer empresa privada, é aquele que se situa nos limites da normalidade, e não o que extrapola os padrões da razoabilidade, caminhando para a deformação que conduz ao lucro abusivo.

Seguindo a mesma linha de pensamento, mas referindo-se também a outros interesses que gravitam em torno das empresas, Sampaio Campos (2009, p. 1109) explica que:

Esses fatos, naturalmente, não significam que os administradores não possam adotar medidas que atinjam os empregados, a comunidade ou a coletividade, tais como a alteração da localização da planta da companhia, a redução do quadro funcional, o aumento de preço e outras medidas que sejam convenientes para a realização do objeto e do interesse social. O que se exige é que esses efeitos sejam considerados e avaliados, e que se busque adotar posição que, se não concilie estes interesses, ao menos cause o menor impacto.

A ideia central que conduz à compreensão da função social da estatal, como desdobramento da função social da propriedade (neste caso, tanto pública, como privada), é a de que deve ocorrer aproveitamento econômico eficiente, de modo a maximizar sua utilidade para a sociedade em geral, segundo a lição de Marques Neto (apud SCHWIND, 2017, p. 209, onde emprega a expressão “desmaterialização e funcionalização da propriedade”).

Por conseguinte, o controlador da estatal deverá cuidar para que a utilização do patrimônio seja eficiente, o que implica necessariamente equilíbrio entre receita e consecução do interesse público.

A análise do tema enriquece-se com a consideração concomitante dos demais ditames constitucionais aplicáveis, imbricados com a função social presente no artigo 170 da Constituição, como a livre iniciativa (artigo 1o, IV), fundamento da República e do Estado Democrático de Direito, bem como a livre concorrência (artigo 170, IV, c.c. 173, § 4°), princípio informador da ordem econômica, que se inter-relacionam com a propriedade (artigo 5o, XXII), garantia fundamental que deverá atender à sua função social (artigo 5o, XXIII).

Igualmente, cumpre lembrar o disposto no artigo 187 do Código Civil, que conceitua o abuso de direito como exercício deste, que exceda manifestadamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes e, ainda, o estatuído no artigo 5o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[8], no sentido de que o juiz, ao aplicar a lei, atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

A análise econômica do direito[9], por seu turno, também deverá fomentar o desenvolvimento do direito, acompanhando o desenvolvimento das teorias econômicas, que vêm relativizando a ideia do crescimento ilimitado, ao passo que ganham relevo outros fatores, como a sustentabilidade, enxergada hoje não mais apenas sob o viés ecológico, mas também de governança e social[10].

6. O PODER E A RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES E DO ACIONISTA CONTROLADOR

A Lei das Estatais estabelece, em seu artigo 4º, §1º, que o acionista controlador “deverá exercer o poder de controle no interesse da companhia, respeitado o interesse público que justificou sua criação”.

A interpretação de tal dispositivo deverá ocorrer em consonância com a abrangência da Lei das Estatais, com os contornos da governança corporativa e da função social da empresa estatal, já delineados linhas atrás.

Assim, o interesse da companhia conjuga, notadamente, os interesses dos acionistas que, no caso das estatais, congregam tanto o interesse de lucro como também o interesse público que justificou a criação da estatal, além de considerar os interesses dos públicos de interesse.

A Lei das Estatais tornou mais claro que o exercício do poder de controle nas estatais deverá levar em consideração não apenas os elementos que o norteiam de acordo com a Lei 6.404/1976[11] e a legislação correlata destinada às sociedades anônimas em geral, mas também os parâmetros que refletem que a função social da empresa estatal é orientada não apenas pelo interesse empresarial, mas também pelo interesse público, ou o imperativo de segurança nacional, que justificou sua criação.

Segundo Frazão (2017, p. 135), a sistematização das regras sobre responsabilização de controladores das empresas estatais, previstas na Lei das Estatais e na Lei 6.404/1976 permite que se distinga três conjuntos básicos de normas:

(i) as cláusulas gerais que condicionam o poder de gestão – seja o controle, seja a administração – à função social da empresa (art. 116, parágrafo único da Lei das S.A. e art. 27 da Lei 13.303/2016) e ao princípio geral de vedação ao abuso (art. 117, caput, da Lei das S.A.), que encontra correspondência no art. 15 da Lei nº 13.303/2016;

(ii) os deveres gerais de diligência, lealdade e informação, que são expressos em relação aos administradores (arts. 153 a 157 da Lei das S.A.) e se aplicam igualmente aos controladores, guardadas as suas peculiaridades; e

(iii) um rol de condutas vedadas ou obrigatórias, tais como as verificadas no art. 117, da Lei das S.A., e no art. 14, da Lei nº 13.303/2016

Cabe salientar também que o controlador da empresa estatal, à luz do disposto no art. 4º, §1º, da Lei das Estatais, bem como no artigo 116, parágrafo único, e no artigo 154, da Lei 6.404/1976, deverá zelar pelo atendimento do interesse público que justificou a criação da estatal, bem como pelos demais interesses que nela se aglutinam, notadamente o interesse no lucro e na sustentabilidade empresarial, sem perder de vista a proteção aos acionistas minoritários e a consideração dos direitos e anseios dos demais públicos de interesse.

Pinto Jr. (2011) ensina, a esse propósito:

O referencial ético e jurídico da atuação dos administradores é o interesse da companhia, que, no caso da empresa estatal, deve ser entendido com a devida amplitude, pois não se resume à geração e partilha de lucros entre os acionistas. O administrador da empresa estatal também está sujeito à fiel observância do objeto social.

O artigo 14 da Lei das Estatais trata de deveres do acionista controlador, adicionais aos previstos na Lei 6.404/1976[12].

Nota-se que se cuida de deveres intimamente relacionados à transparência e à confiabilidade, o que inspira mencionar o ensinamento de Pinto Jr. (2011), onde explica que o controle estatal se informa em desdobramentos do conceito de boa-fé objetiva, quais sejam, os princípios da confiança legítima em que se fundam os vínculos societários, e da transparência de conduta.

O controlador da estatal deverá respeitar os deveres, precipuamente de diligência e de lealdade, prescritos em especial nos artigos 153 e 155 da Lei 6.404/1976, tendo em vista o interesse da companhia e a função social da empresa, o que mostra que os deveres do controlador da estatal se tornam mais sofisticados que os dos controladores de empresas não estatais.

Por sua vez, o artigo 158 trata da responsabilidade do controlador nas hipóteses em que incorra em abuso do poder de controle.

Consoante explica Comparato (2005, pp. 528-529):

Tradicionalmente, a responsabilidade serve de contrapeso à atribuição de poderes ao sócio. A uma maior concentração de poderes corresponde uma maior responsabilidade, o que permite, via de regra, equilibrar o preço da concentração. Essa correspondência entre poder e responsabilidade, tão propalada pela doutrina, tem razões históricas. Com efeito, admitindo-se o raciocínio novecentesco, que permitiu estabelecer o princípio da responsabilidade limitada para as grandes sociedades anônimas, segundo o qual a responsabilidade limitada dos acionistas justifica-se pela sua não participação na administração e a irresponsabilidade dos administradores justifica-se pelo fato de não agirem em interesse próprio, mas no interesse dos acionistas, o acionista controlador no direito brasileiro deveria ser duplamente responsável, como acionista e administrador. O controlador pode participar na administração e o administrador, por poder ser o próprio controlador, está em potencial posição de conflito de interesses.

Importante sublinhar, também conforme a lição de Comparato (2011, p. 264), que o exercício do poder jurídico deve ocorrer no benefício alheio. Vejamos:

O poder jurídico implica, necessariamente, a contraparte do dever de obediência pelo sujeito passivo. Não assim, o poder de fato. E isso se explica, logicamente, porque o titular de um poder jurídico deve sempre exercê-lo, não no seu próprio interesse e benefício, mas em prol de outrem. O poder jurídico tem uma finalidade ou função altruísta que lhe é intrínseca; não assim o poder de fato.

Quanto à proximidade do regime jurídico da responsabilidade do controlador e do administrador, em se tratando de empresas estatais, Frazão (2017, pp. 119-120), baseando-se em ensinamentos de Carlos Ari Sundfeld, José Alexandre Tavares Guerreiro, Marçal Justen Filho e Maria Sylvia Zanella di Pietro, expõe:

[…] nas sociedades privadas, há diferença fundamental entre a posição de controlador e a posição de administrador. De fato, o acionista controlador tem interesse particular direto na gestão, na medida em que a participação societária lhe garante direitos subjetivos que podem ser exercidos em proveito próprio.

De outro lado, os administradores são órgãos da companhia e, por isso, não podem agir em proveito próprio, na medida em que não exercem direito subjetivo, mas competências funcionais decorrentes dos poderes a si atribuídos para o atendimento de interesses de outrem. Ao contrário do acionista, o administrador não busca o lucro por meio da comunhão societária, sendo impedido de buscar benefícios pessoais no exercício de sua função.

Com isso, ao menos no que diz respeito às sociedades privadas tradicionais, espera-se maior rigor no regime de responsabilidade dos administradores do que no regime dos acionistas controladores, tendo em vista a necessidade de compatibilização entre a dimensão individual do exercício de seus direitos subjetivos e a dimensão concernente à comunhão social.

No entanto, tendo em vista que o acionista controlador das empresas estatais é, como regra, ente público, não há que se falar em exercício de direito subjetivo, mas de necessário exercício de função em todas as suas atribuições, inclusive no que se refere ao direito de voto. Dessa maneira, o regime jurídico dos controladores de estatais, em termos de deveres e responsabilidades, será praticamente idêntico ao regime jurídico dos administradores.

Embora a responsabilidade do controlador já conte com previsão na Lei 6.404/1976, como já dito, ela se sofistica para as estatais, dada sua específica função social e os encargos atribuídos pela Lei das Estatais ao controlador.

Não se olvide que, em relação às sociedades de economia mista, a regra já se encontra no art. 238 da Lei 6.404/1976, que estatui que “a pessoa jurídica que controla a companhia de economia mista tem os deveres e responsabilidades do acionista controlador (artigos 116 e 117), mas poderá orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou a sua criação”.

As modalidades de exercício abusivo de poder são enumeradas de modo exemplificativo no §1º do artigo 117 da Lei 6.404/1976 e a elas agregam-se os abusos decorrentes de eventual inobservância de deveres acometidos aos controladores nas normas da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, com o propósito de proteger investidores.

Frazão (2017, p. 115) leciona que, dada a próxima relação entre abuso de poder e abuso de direito, a interpretação sobre qual é o interesse público que justificou a criação da estatal importa para aferir as finalidades e a intensidade com que o controlador exerce seu poder, densificação que facilita a apuração de abuso de poder. Para a citada autora:

[…] os parâmetros objetivos para a compreensão da função social das estatais fizeram com que o regime destas passasse a ser inclusive mais rígido do que o das companhias privadas, especialmente no que diz respeito à possibilidade da prática de liberalidades e de outras atividades não atreladas diretamente ao objeto social.

A possibilidade de atendimento a outros interesses está condi­cionada à observância de exigências rigorosas impostas pela Lei nº 13.303/2016, como se verifica do §1º do art. 27, segundo o qual inves­timentos em prol da inovação e de benefícios ao consumidor deverão estar atrelados ao objeto da companhia; e do §2º do mesmo artigo, que franqueia a celebração de convênio ou contrato de patrocínio entre estatal e pessoa física ou jurídica para a promoção de atividades culturais, sociais, esportivas, educacionais e de inovação tecnológica, ‘desde que comprovadamente vinculadas ao fortalecimento da sua marca, observando-se, no que couber, as normas de licitação e contratos desta lei’.

A Lei nº 13.303/2016 vem reforçar exigências já existentes no direito anterior no que diz respeito à obrigação fundamental dos controladores e administradores de agir no interesse da companhia, não havendo que se falar na consideração de aspectos individuais nem de critérios de interesse público que exorbitem os que motivaram a criação da estatal.

Interessante mencionar também a doutrina de Adamek (2009, p. 132), a respeito da natureza, de obrigação de meio, do dever de diligência dos administradores:

Indo além da análise do dever de diligência, é possível extrair outra inferência de grande relevância. Ao pautar a conduta do administrador pelo dever de diligência, a lei torna evidente que a obrigação do administrador na condução geral do negócio da companhia, é obrigação de meio e não de resultado.” […] “De regra, portanto, o administrador obriga-se apenas a adotar comportamento apropriado, com a diligência requerida, para a consecução de determinado fim, mas não se obriga pela efetiva obtenção do resultado.

Como os encargos atribuídos pelo artigo 27 da Lei das Estatais repercutem tanto sobre os administradores como sobre os controladores, é natural que haja iniciativas, tais como a ora em curso, por parte da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico ou Económico – OCDE e repercutida pela Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais – SEST no Brasil, de instar o controlador de estatais a elaborar documento (ownership policy) que melhor delineie os respectivos papeis, mas enquanto não houver tal delineamento mais claro, persistirá o risco de não se distinguir a natureza do dever de um e do outro, no que tange ao desempenho dos aludidos encargos.

A ação judicial que vise a responsabilização do controlador, de acordo com a previsão do §1º do artigo 15 da Lei das Estatais, poderá ser promovida a requerimento da estatal (tal como prevê o artigo 246 da Lei 6.404/1976), ou então por acionistas, sem a necessidade de autorização pela assembleia-geral, ou, ainda, por qualquer terceiro prejudicado, ou seja, por exemplo, entes públicos, credores, empregados etc.

Embora pareça haver consenso em relação à aplicabilidade da condição, prevista no artigo 246, §1º, da Lei 6.404/1976, de os acionistas que não tenham sido autorizados pela assembleia-geral, para poderem propor a ação, devam ser titulares de percentual de no mínimo 5% das ações, ou prestarem caução, o artigo 15 da Lei das Estatais é polêmico. Ao analisá-lo, Frazão (2018, p. 127) manifesta que:

No que toca à ação de responsabilidade, pode ser ela proposta pela sociedade, pelo terceiro prejudicado ou pelos demais sócios, independentemente de autorização da assembleia geral. Ao contrário da Lei das S/A, a Lei das Estatais não faz distinção entre quando o acionista age em nome próprio, quando sempre terá legitimidade ativa, e quando age como substituto processual da companhia, quando a sua legitimidade está condicionada aos requisitos descritos na lei.” […] “Além disso, importa acrescentar que o §2° do art. 15 criou prazo prescricional mais longo para o ajuizamento de ação de responsabilidade, que para as estatais será de seis anos.

Borba (2018, p. 521-522), por seu turno, entende que:

[…] a ação do terceiro não é a ação do art. 246 da lei das sociedades anônimas, cuja titula­ridade material compete à própria sociedade controlada, que a exer­cerá diretamente ou através de seu substituto processual expresso, que é o acionista (art. 246, § 1º).

O Estatuto das Empresas Estatais (art. 15, § 2º) estabelece para essa ação um prazo de prescrição de seis anos contados da data em que foi praticado o ato abusivo. Trata-se de norma inconstitucional, pois os prazos de prescrição não se incluem no âmbito das maté­rias que poderiam ser objeto de disciplinamento especial. O pra­zo de prescrição a ser aplicado será, evidentemente, o previsto na legislação privada (Lei n° 6.404/1976) para as sociedades por ações em geral, e que, para as ações de reparação civil contra a sociedade de comando (art. 287, lI, b), adota um prazo de três anos contados da data da publicação da ata que aprovar o balanço respectivo.

O terceiro prejudicado poderá agir contra o controlador apenas e tão somente quando vier a sofrer um dano pessoal e direto que seja imputável ao controlador da empre­sa de que participa. No caso, não estará acionando no interesse da companhia de que participa, mas, sim, no seu próprio interesse, que deverá ser direto e pessoal.

O prazo de prescrição, nesse caso, não se encontra regulado pela legislação societária, até porque a matéria estaria compreendida no âmbito da responsabilidade civil em geral, tal como regulada no Código Civil.

Incorreu, portanto, o Estatuto em manifesta impropriedade ao misturar a ação social (ut universi ou ut singuli) com a ação individual do terceiro prejudicado.

Quanto ao ponto, Maffini (2018, p. 82) comenta:

[…] o art. 15, §1º, da Lei nº 13.303/2016 estabelece que a ação de repa­ração contra o acionista controlador, bem como contra o administrador ou fiscal que praticarem ato ilegal, poderá ser proposta: a) pela própria sociedade, nos termos do art. 246 da Lei nº 6.404/76/8 b) por terceiro prejudicado; c) pelos demais sócios, sem que seja para tanto necessária a autorização da assembleia geral de acionistas.

O prazo prescricional para a propositura de tal demanda é de seis anos (art. 15, §2º, da Lei nº 13.303/2016). Tal prazo evita que o lapso temporal da prescrição venha a coincidir com o prazo do mandato dos administradores ou mesmo o mandato eletivo dos gestores que exercem suas funções junto ao acionista controlador.

É oportuno referir, também, o disposto na Lei das Estatais quanto ao dever do controlador de definir em lei ou regulamento, e de prever em contrato, convênio ou ajuste, as obrigações e responsabilidades que a estatal assuma na busca da consecução do interesse público que destoarem das condições de mercado. Isto permite inferir que o controlador deverá indenizar a estatal se as condições em que venha a desenvolver suas atividades para atender a políticas públicas destoarem das condições de mercado.

Borba (2018, p. 512-513) anota, a esse propósito, que:

Em situ­ações especiais, em que o governo, como controlador, se veja for­çado a, de forma significativa, sacrificar a lucratividade em função do interesse público, a companhia deverá ser indenizada pelo poder público, de modo a que se promova uma justa compensação.

Trata-se do mesmo entendimento adotado nas Diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico ou Económico – OCDE de 2015 para a governança de empresas estatais, com fundamento na ideia segundo a qual deverão ser asseguradas condições o mais semelhantes possível (level playing field) de atuação tanto a empresas não estatais, como às estatais.

7. CONCLUSÃO

A Lei das Estatais insere no ordenamento jurídico brasileiro uma série de atribuições e de responsabilidades que até então não constituíam deveres legais dos controladores e dos administradores de empresas estatais, ou que, no mínimo, não lhes eram claramente imputados. Isso, por si só, é suficiente para render à Lei das Estatais o status de norma modificadora do regime de governança aplicável às empresas nela indicadas e, portanto, também fazê-la merecedora de estudos focalizados sobre os aspectos de governança que ela contempla.

O âmbito de aplicação da Lei das Estatais é nela claramente especificado e, a despeito da perplexidade causada inicialmente em parcela dos doutrinadores, já tem merecido manifestações fundadas em prol da sua aplicabilidade ampla, tal como prevista em seu texto.  Fica registrada a ressalva quanto aos argumentos que se encontram sob o crivo do Judiciário na ADI 5.624 e que não foram aqui analisados, bem como o reconhecimento de que uma iniciativa no sentido de promover consolidação normativa em matéria empresarial seria bem-vinda.

A governança corporativa é real, e tornou-se obrigatória para as empresas estatais brasileiras. O direito nacional, ao incorporá-la ao regime societário aplicável às empresas estatais, denota que foi dado um passo adiante no caminho evolutivo em busca da integridade, eficiência e eficácia das estatais, e cujas repercussões irão além das estatais, dada a tendência ao isomorfismo e a influência exercida pelas estatais no mercado em geral.

A função social da empresa estatal ganha delineamento mais claro e preciso após a Lei das Estatais, o que deverá contribuir para que a condução das estatais, tanto pelo desempenho dos respectivos papeis pelo controlador e pelos administradores, como mediante a atuação de operadores do direito, ocorra de maneira mais bem orientada ao cumprimento, por tais empresas, dessa sua função, desde que, além de serem observados estritamente os ditames da Lei das Estatais, haja observância da governança corporativa tal como entendida e praticada corretamente na atualidade, tarefa que não é trivial, dado o cenário de evolução por que a governança corporativa está passando.

A racionalidade econômica das companhias e a realização de interesses públicos ou imperativos de segurança nacional que justificam a criação de empresas estatais, observadas em conjunto e sob a perspectiva proporcionada pelos instrumentos e mecanismos dispostos na Lei das Estatais, parecem não poder ter outra sorte, senão apenas a de conciliação, superando dicotomias e posicionamentos polarizados.

A responsabilidade de empresas estatais terem boa governança corporativa é marcadamente incrementada pela Lei das Estatais, e tanto administradores como controladores deverão empenhar-se em buscar definir de forma cada vez mais bem delineada o propósito de cada estatal, pois, segundo o estado da arte atual do direito societário brasileiro, o interesse da empresa é o fio condutor em que ambos devem se apoiar para orientar suas condutas.

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APÊNDICE – REFERÊNCIAS DE NOTA DE RODAPÉ

3. Existem mais de 500 códigos ou afins sobre governança corporativa hoje no mundo, como se pode constatar em: https://ecgi.global/content/codes.

4. A listagem é meramente exemplificativa. Para ilustrar, mencione-se que apenas a publicação Corporate Governance for Sustainability Statement (JOHNSTON et al., 2019) conta com assinatura de mais de 70 acadêmicos.

5. A respeito da constitucionalidade, dentre outros aspectos, da aplicabilidade da Lei das Estatais a consórcios e em Sociedades de Propósito Específico em que haja participação de estatais, pende de julgamento no Supremo Tribunal Federal a ADI 5.624, cujo estágio de andamento é acessível em: http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=5624&processo=5624.

6. Vide nota imediatamente anterior a esta.

7. Também referidos no art. 2º, §1º e refletidos na previsão de seu artigo 8º, I, V e §1º.

8. Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, modificada pela Lei 13.655/2018.

9. Disciplina comumente denominada nos Estados Unidos da América Law & Economics.

10. GRI – Global Reporting InitiativeSASB – Sustainability Accounting Standards Board e IIRC -International Integrated Reporting Council são exemplos de instituições que vêm desenvolvendo padrões para o relato integrado, que objetiva, em síntese, fomentar que os tomadores de decisão passem a realizar, em todas as decisões, análise integrada, ou seja, considerando, inclusive, os aspectos de meio-ambiente, social e de governança (na sigla em inglês, ESG). COSO publicou, em 2018, em conjunto com o WBCSD, um rascunho preliminar de aplicação de gestão de riscos empresarias sob os aspectos de governança, social e meio ambiente.

11. Bem como o cumprimento, no que lhes compete, dos regramentos da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, inclusive no caso de companhias estatais fechadas, como dispõe o artigo 7º da Lei das Estatais. Apesar de as companhias fechadas não se sujeitarem à fiscalização e processos sancionadores da CVM, não é difícil imaginar que os administradores de companhias fechadas possam vir a ser responsabilizados.

12. O artigo 14 da Lei das Estatais estabelece que o acionista controlador da estatal deverá: fazer constar do Código de Conduta e Integridade, aplicável à alta administração, a vedação à divulgação, sem autorização do órgão competente da empresa pública ou da sociedade de economia mista, de informação que possa causar impacto na cotação dos títulos da empresa […] e em suas relações com o mercado ou com consumidores e fornecedores” (inciso I); preservar a independência do Conselho de Administração no exercício de suas funções (inciso II); e, “observar a política de indicação na escolha dos administradores e dos membros do conselho fiscal” (inciso III).

[1] Mestrando em Sistemas de Gestão na Universidade Federal Fluminense – UFF (além de graduado em Direito pela USP e especialista em Direito Societário e Mercado de Capitais pela FGV-Rio).

[2] Professor, Doutor em Engenharia de Produção.

Enviado: Fevereiro, 2021.

Aprovado: Março, 2021.

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Dirceu Cândido Silveira Júnior

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