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Postivismo e hermenêutica: Da crise do formalismo à crise da interpretação

RC: 77609
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/postivismo-e-hermeneutica

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

YANO, Ricardo Almeida dos Santos Catelan [1], YANO, Leonardo Almeida dos Santos Catelan [2]

YANO, Ricardo Almeida dos Santos Catelan. YANO, Leonardo Almeida dos Santos Catelan. Postivismo e hermenêutica: Da crise do formalismo à crise da interpretação. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 03, Vol. 02, pp. 23-44. Março de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/postivismo-e-hermeneutica, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/postivismo-e-hermeneutica

RESUMO

O positivismo jurídico passou por transformações no século XX, precisando se reinventar para reduzir seu formalismo. A aplicação de princípios nas decisões judiciais contribuiu para superar a crise, mas aumentou a subjetividade dos julgamentos. O ativismo judicial provocou, por sua vez, um problema hermenêutico: a crise na interpretação. Assim, o presente artigo objetiva analisar tais crises a partir da evolução do positivismo e do aprimoramento da nova hermenêutica filosófica, através da ponderação entre os princípios decisórios e os reflexos sociais da decisão no direito brasileiro. A tendência de recuperar a objetividade e a segurança jurídica das decisões, sem desconsiderar a importância dos princípios, é tratada à luz da recente mudança na Lei de Introdução ao Direito brasileiro. A análise de teorias individuais e de alteração legislativa concreta para evidenciar as crises e a tentativa de superação demonstram aplicação do método indutivo.

Palavras-chave: Positivismo, ativismo, princípios, reação legislativa.

1. INTRODUÇÃO

Apesar de contestadas em vários aspectos, as correntes do positivismo jurídico ainda têm bastante influência na doutrina e jurisprudência atuais, mas o excessivo formalismo positivista tem sido revisto por teorias mais modernas. O formalismo exagerado na defesa de direitos fundamentais, por exemplo, permite violá-los. A discussão tem reflexos importantes para a ciência do direito, inclusive no Brasil.

O presente artigo objetiva destacar, a partir das ideias de diversos autores, a evolução do positivismo jurídico e a crescente aceitação de novos padrões decisórios fora da lei posta, culminando na crise do formalismo positivista que levou ao fortalecimento dos princípios como padrões decisórios.

A seguir, pretende-se demonstrar como o excessivo uso de princípios aumentou a subjetividade dos julgamentos no direito brasileiro, evidenciando a chamada crise da interpretação.

Por fim, a exemplo do que ocorreu na Lei de Introdução ao Direito Brasileiro – LINDB, com a mudança efetuada pela Lei nº 13.655/18, verifica-se um movimento de retorno à objetividade do direito e à segurança jurídica, sem desconsiderar os princípios como normas do ordenamento jurídico.

2. EVOLUÇÃO DO POSITIVISMO

Para tanto, colaciona-se a seguir breves notas a respeito do pensamento de alguns dos mais importantes autores positivistas do último século, em ordem cronológica e evolutiva da teoria. Cada um inovou o positivismo e acrescentou importantes contribuições à corrente, demonstrando a gradativa aceitação da incompletude do ordenamento, da presença de princípios no direito e da persecução do ideal de justiça.

2.1 O POSITIVISMO DE HANS KELSEN

Hans Kelsen (1881-1973) foi um importante jurista austro-americano do século XX, e um dos produtores literários mais ativos de seu tempo. Publicou cerca de quatrocentos livros e artigos, com destaque para a Teoria Pura do Direito, sua obra mais difundida e influente. É, por causa dessa obra, considerado o principal representante da Escola Positivista do Direito.

Ainda que sejam muitas as contribuições do jurista para o direito, vale ressaltar aqui, a criação da Constituição da Áustria de 1920 (oktoberverfassung), elaborada segundo sua inspiração. Sob a influência do pensamento de Kelsen, a Carta Política austríaca inovou, introduzindo no direito positivo a concepção do “controle concentrado da constitucionalidade das leis e atos normativos como função jurisdicional a cargo de um Tribunal Constitucional, incumbido da função exclusiva de guarda da integridade da Constituição” (SAMPAIO, 2012, s.p.).

Judeu, o autor foi perseguido pelo nazismo e emigrou para os Estados Unidos da América, onde ministrou aulas na Universidade de Berkeley até o final de sua vida.

A perseguição intelectual sofrida por Kelsen não foi restrita aos adeptos do nazi-fascismo. Ele também sofreu diversas críticas ideológicas dos militantes da doutrina comunista. Apesar disso, os fundamentos de seu raciocínio jurídico-científico prevaleceram e até hoje são respeitados, de tal modo que se tem como base de muitas instituições jurídicas que sustentam o Estado Democrático de Direito

No campo teórico, o jurista buscou disseminar as bases de uma ciência do direito, eliminando do conceito de direito quaisquer referências estranhas, especialmente as de cunho sociológico e axiológico (valores), as quais considerou matéria de estudo de outros ramos científicos, tais como a sociologia e a filosofia. Âmbito

A teoria de Kelsen (2000, p. 62) preocupa-se somente com as normas jurídicas, ou seja, as regras de conduta (dever-ser), não com a incidência de valores na conduta humana (ser). A função da ciência jurídica, teoriza, “é descrever a ordem jurídica, não a legitimar”.

Em última instância, Direito é apenas o positivado. Desta forma, desenvolve uma metodologia direcionada exclusivamente à norma posta, cuja validade se funda na obediência a outra norma posta, de hierarquia superior. No topo da pirâmide hierárquica estaria a norma hipotética fundamental, única norma de todo o sistema jurídico que não seria posta, mas pressuposta.

Kelsen (2000, p. 63-64) enumera três requisitos para validar a norma: (i) competência da autoridade proponente da norma; (ii) mínimo de eficácia; e (iii) eficácia do ordenamento do qual a norma é componente.

Para Kelsen, a sanção legal é a consequência normativa conferida a alguém, devido a violação de um preceito primário. O direito atua como ordem social coativa, impositiva na aplicação da sanção. Nesse sentido, a sanção torna-se um elemento interno do direito, pois sem a sanção a norma jurídica poderia ser transformada em norma moral, sem coercitividade (KELSEN-1, 2000, p. 65).

Kelsen aponta a coerção como elemento essencial do direito, de forma que as normas do ordenamento jurídico estipulam um ato coercitivo, ou seja, uma sanção. A sanção é aplicada a um caso particular quando as normas gerais preenchem certas condições, dependentes do conceito de dever-ser. Violada uma regra de conduta, a sanção deve incidir (exemplo do roubo seguido da respectiva pena de prisão).

O papel da ciência do direito é descrever o material jurídico produzido no procedimento legislativo, na forma de enunciados que correlacionam certas condições a uma sanção. Esses enunciados, ou regras jurídicas, são aplicadas de forma descritiva. Nesse ponto divergem das normas legislativas, as quais são prescritivas.

A regra de direito, portanto, é o julgamento hipotético vinculando certas consequências a certas condições, em um sentido descritivo. Esse julgamento hipotético segue a própria lógica da natureza, o que aproxima a ciência do direito à ciência da natureza. No entanto, a ciência da natureza segue a lei da causalidade: se A é, B é ou será. Já a ciência do direito obedece à normatividade e diz que se A é, B deve ser (KELSEN-1, 2000, p. 67). Assim, a ciência da natureza preocupa-se com o ser (comportamento), enquanto a do direito cuida do dever-ser em sentido descritivo (regra de comportamento).

Tanto a ciência natural quanto a jurídica comportam exceções. Aliás, a ciência do direito surgiu em sociedades primitivas como decorrência da própria ciência natural, da interpretação normativo-jurídica dada pelo homem à natureza. A lei da causalidade surge do princípio da retribuição, que dominava a consciência primitiva. Inicialmente, a lei da causalidade expressava a vontade divina. Apenas quando perdeu o caráter de norma passou a admitir exceções.

Além de determinar certo modo de agir, a norma jurídica funciona também como padrão de avaliação. Nesse sentido, permite julgar o valor de uma conduta como lícita ou ilícita (valor de direito), o valor da lei em si como justa ou injusta e também o valor dos indivíduos que criam e aplicam a lei.

Kelsen (2000, p. 68) chama de valores de direito a avaliação da conduta em lícita e ilícita, e de valores de justiça a avaliação em justa e injusta. Os primeiros são julgamentos objetivos de valor, ao passo que os segundos são julgamentos subjetivos.

No tocante aos valores de direito, uma conduta é lícita quando corresponde a uma norma jurídica. A existência de uma norma jurídica válida representa a validade da conduta. Cuida-se, portanto, de julgamento objetivo, a conduta é lícita ou não. Mas isso não significa que a conduta lícita seja também justa. A história traz vários exemplos de institutos lícitos, porém injustos, como é o caso da escravidão.

A norma de justiça, subjetiva, é uma norma individual. O que é justo para um não é necessariamente justo para o outro. Varia conforme os interesses individuais.

As normas de justiça são variáveis e indeterminadas. O direito positivo, no entanto, é um só, uma vez que os valores de direito são objetivos. As normas de direito positivo correspondem a uma determinada realidade social definida, mas isso não ocorre com as normas de justiça. Por serem testáveis objetivamente, apenas os valores jurídicos compõem o conceito de ciência do direito para o autor. Os valores de justiça, apesar de se pretenderem universais (valores morais, políticos, etc.), não se relacionam a fatos concretos. Segundo Kelsen, o que não está positivado (valor de justiça) não faz parte da ciência do direito (KELSEN-1, 2000, p. 68-69).

Essa diferenciação permite entender por que, muitas vezes, um caso é decidido de uma certa forma, mesmo violando o senso de justiça de grande número de pessoas. Trazendo para a realidade brasileira, é possível usar como exemplo a decisão do STF sobre execução da pena após condenação em segunda instância, muito debatida atualmente. Os valores de direito falam em condenação transitada em julgado, mas os valores de justiça contestam a impunidade nos crimes contra a Administração Pública e a morosidade dos tribunais superiores.

Assim, por meio de uma linguagem precisa e lógica, Kelsen abstraiu do conceito do direito a noção de justiça, porque ela está sempre associada a valores (sempre variáveis) adotados por quem a invoca. A justiça não caberia, pela imprecisão e fluidez de significado, em um conceito de direito universalmente válido.

A ideia de ordenamento jurídico destaca-se entre as suas concepções teóricas aplicadas efetivamente. Trata-se de um conjunto de normas hierarquizadas e estruturadas na forma de uma pirâmide abstrata, tendo a norma hipotética fundamental como a norma mais importante, subordinada às demais normas jurídicas de hierarquia inferior, sobre a qual as demais retiram seu fundamento de validade (KELSEN-2, 1998, p. 114).

Com o tempo, Kelsen concretiza sua teoria afirmando que tal norma fundamental é a norma de direito internacional que disciplina o cumprimento dos pactos. No entanto, a teoria da pirâmide foi sendo apropriada por muitos constitucionalistas como base para a formulação de seus próprios modelos, sob os quais a Constituição surgiu como norma fundamental, sendo, posteriormente, extraídos destes o conceito de rigidez constitucional. Trata-se de uma apropriação modificada, uma vez que Kelsen possuía visão monista do direito, com primazia do direito internacional sobre o nacional. Por isso, sua doutrina não permite deduzir a Constituição de um Estado como norma fundamental, uma vez que na verdade a validade da Constituição estatal deriva do direito internacional.

Sua teoria foi muito importante para o desenvolvimento do direito como ciência, não obstante as críticas sofridas, segundo as quais suas ideias implicariam a pura e simples redução do direito a um mero sistema lógico, desprovido de conteúdo. Em uma visão extremada, poderia até mesmo fundamentar o nazismo como ordenamento jurídico.

O autor buscou em suas obras estabelecer um conceito universalmente válido de direito, que independesse da conjuntura em que fosse aplicado. Isso se deu focando o estudo da ciência jurídica nas normas jurídicas postas (regras de dever-ser), bem como desenvolvendo o conceito de sistema como objeto de estudo (ordenamento jurídico). E esse escopo foi, em grande parte, alcançado.

2.2 A TEORIA DE NORBERTO BOBBIO

Em suas obras, o italiano Norberto Bobbio desenvolve melhor o conceito de ordenamento jurídico, partindo da noção de norma jurídica. Segundo afirma, a norma jurídica, em si, não é suficiente para definir o conceito de direito, sendo necessária a perspectiva do ordenamento jurídico.

Nesse contexto, a definição de direito passa por compreender a norma jurídica, cuja execução é garantida por uma sanção externa e institucionalizada, dentro de um ordenamento (BOBBIO, 1989, p. 31-32).

O termo direito, na acepção do direito objetivo, compreende um tipo de sistema normativo. Diz respeito, pois, a um tipo de ordenamento, cujo significado seria um “conjunto de normas”. Estas, por sua vez, podem ser divididas em três classificações: 1) as permissivas; 2) as proibitivas; e 3) as imperativas. Assim, conclui-se pela impossibilidade fática de existência de um ordenamento jurídico composto somente por uma norma (BOBBIO, 1989, p. 50).

Bobbio (1989, p. 61) aponta que os ordenamentos jurídicos podem ser diferenciados conforme as normas que os compõem, assim, se derivam de uma só fonte considera-se simples e se derivam de mais de uma, considera-se complexa. A complexidade de um ordenamento jurídico deriva da necessidade de regras de conduta na sociedade ser tão grande que não existiria nenhum poder (ou órgão) em condições de satisfazê-la sozinho. Por isso, há verdadeira multiplicidade das fontes das quais afluem regras de conduta.

O autor destaca que a complexidade do ordenamento não exclui a sua unidade. Segundo a teoria escalonada do ordenamento jurídico, desenvolvida por Kelsen, a “norma fundamental” – norma suprema é a chave para o alcance da unidade, uma vez que ela não depende de nenhuma norma superior, sobre a qual repousa a unidade e a validade do ordenamento (KELSEN-1, 2000, 64).

Para Bobbio (1989, p. 71-74), a validade das normas jurídicas se baseia no seu pertencimento a algum ordenamento, sendo, em suma, validada quando possível a sua reinserção, independente se esta for feita através de um ou mais graus, na norma fundamental.

Referindo-se à relação entre direito e força, o autor informa que a definição do direito não coincide com a de justiça. “A norma fundamental está na base do direito como ele é (direito positivo), não do direito como deveria ser (direito justo). O direito seria, então, a expressão dos mais fortes, não dos mais justos. A força, nesse sentido, é instrumento para realização do direito” (BOBBIO, 1995).

Além da unidade, o ordenamento deve ser coerente. O ordenamento jurídico deve também representar um sistema, ou melhor, uma totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem (BOBBIO, 1989, p. 80).

Há três significados para sistema. O primeiro considera certo ordenamento jurídico sistema quando todas as suas normas jurídicas derivam de alguns princípios gerais, considerados da mesma forma que os princípios de um sistema científico.

O segundo significado indica um ordenamento da matéria por meio de um processo indutivo, ou seja, através do conteúdo das simples normas objetivando a construção de conceitos mais gerais e, ainda, de classificações ou divisões da matéria inteira.

Enquanto,  o terceiro significado é, na visão do autor, o mais interessante, em razão do mesmo estabelecer a necessidade da inexistência de normas incompatíveis no ordenamento jurídico. Fenômeno esse denominado antinomia. Sendo, portanto, válido destacar que o direito não tolera antinomias.

A antinomia jurídica (BOBBIO, 1989, p. 41) pode ser definida como o conflito que se percebe entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e ao mesmo âmbito de validade. Há vários tipos de antinomias. Genericamente, dividem-se basicamente em antinomias aparentes, passíveis de solução, e antinomias reais, nas quais o intérprete é abandonado, ou pela falta de um critério, ou pelo conflito entre os critérios dados.

A solução dos conflitos de antinomias inclui a aplicação de três regras, quais sejam: o critério cronológico, o hierárquico e o da especialidade.

O critério cronológico é verificado segundo o estabelecimento cronológico da norma, assim sendo, entre duas normas incompatíveis, tem-se a prevalência da norma posterior. O critério hierárquico se baseia na posição hierárquica que a norma apresenta, prevalecendo, assim, a norma considerada superior. E o critério da especialidade, por sua vez, baseia-se na sua abrangência, de tal modo que, se houver duas normas incompatíveis, uma geral e uma especial, tem-se a prevalência da segunda.

A antinomia é aparente se puder ser resolvida por apenas um desses critérios. É real, no entanto, se nenhum dos três critérios for capaz de resolver o problema do conflito entre duas normas que sejam, simultaneamente, contemporâneas, do mesmo nível e gerais. Para resolver o problema, o autor nega a existência de um quarto critério, estabelecendo uma graduação de prevalência entre as três formas da norma jurídica, representadas pelas imperativas, proibitivas e permissivas.

No tocante a eventual ocorrência de conflito por parte dos três critérios apresentados, situação está considerada como antinomia de segundo grau, é sugerido pelo autor a seguinte graduação de prevalência : (i) no conflito entre os critérios hierárquico e cronológico, o critério hierárquico prevalecerá; (ii) no conflito entre o critério de especialidade e o cronológico, o critério de especialidade prevalecerá; e (iii) no conflito entre o critério hierárquico e o da especialidade, não há resposta a priori, cabendo ao intérprete avaliar a situação conforme as circunstâncias. A rigor, prevaleceria a hierarquia na última situação, mas é importante ponderar a aplicabilidade da norma no caso concreto.

Vale destacar, por fim, que a coerência não é um problema de validade, mas sim de justiça. Um ordenamento jurídico pode conter normas incoerentes. A situação de incoerência, no entanto, promove injustiça e não é ideal (BOBBIO, 1989, p. 87).

O ordenamento jurídico comumente é estudado sob três aspectos ou características, quais sejam a unidade, a coerência e a completude (BOBBIO, 1989, p. 88). Bobbio preocupa-se, sobretudo com a completude. O ordenamento jurídico aceita certo grau de incoerência, como no caso de normas conflitantes. A completude, no entanto, representa verdadeiro dogma ou imperativo. Se todo ordenamento é, em tese, completo, o juiz não pode negar-se a julgar nenhum caso que lhe seja apresentado (vedação ao non liquet), e deve julgar conforme alguma norma do próprio sistema. A primeira regra é amplamente aceita – tem, inclusive, previsão expressa no Código de Processo Civil brasileiro. A segunda é relativizada: há ordenamentos consuetudinários que admitem o julgamento por equidade (até no Brasil, em caso de arbitragem).

O dogma da completude surgiu com o positivismo do direito e a estatização da produção jurídica. Se toda norma é criada pelo Estado, admitir a lacuna seria aceitar um ordenamento jurídico paralelo capaz de suprir a omissão. A noção de dogma atingiu seu ápice na escola exegética do direito, centrada na letra da lei e idealizadora das grandes codificações. O fetichismo legislativo centrou-se em três premissas: todo raciocínio jurídico deriva da norma jurídica, a norma deve ser uma lei de Estado e todas as normas em conjunto devem formar uma unidade.

Com a liberdade do direito, que ganhou força com o desenvolvimento da sociologia jurídica e de outras ciências sociais, no entanto, passou-se a admitir o direito legislado como lacunoso e incapaz de responder, sozinho, a todas as demandas sociais.

A crítica ao dogma da completude provocou reação da corrente positivista. O positivismo logo associou o direito livre ao direito natural. Ademais, precisou fazer uso de novos argumentos para defender a completude. O primeiro deles consistiu na noção de espaço jurídico vazio. Assim como não se admite que algo não jurídico seja regulado, não se admite que algo jurídico não seja regulado. Desse modo, tudo que é jurídico é regulado completamente. O que não estiver regulado faz parte do espaço jurídico vazio, ou juridicamente irrelevante. Ou seja, o que não estiver no direito é irrelevante jurídico.

Além do primeiro argumento, que só admite o espaço jurídico pleno, os positivistas ainda lançaram mão do conceito de norma geral exclusiva. O ordenamento jurídico seria composto por normas particulares inclusivas (específicas ao caso concreto), normas gerais inclusivas e normas gerais exclusivas. As espécies de normas gerais ficariam a critério do intérprete, no caso de faltar norma particular. Se o intérprete entendesse por bem aproximar o caso da norma geral, ela seria inclusiva. Se entendesse por afastar, a norma geral seria exclusiva. Essa zona cinzenta para o intérprete derruba o argumento e permite perceber a ocorrência de lacunas no ordenamento jurídico.

Bobbio aduz que o problema da lacuna não é aferir a existência ou não da norma, mas sim se há solução no ordenamento para a falta da norma. Nesse primeiro sentido, tem-se a lacuna real, referente ao direito estabelecido. E nesse sentido é possível defender-se a ausência de lacunas. O autor vai além, propondo que lacuna é a falta de uma solução satisfatória no ordenamento. Sob esse ponto de vista, a lacuna é totalmente possível e verificável. Trata-se da lacuna ideológica, ou daquilo que deveria ser estabelecido.

Essa diferença conceitual relaciona-se à classificação das lacunas próprias e impróprias. As lacunas próprias são as internas ao ordenamento, a cargo do intérprete. As impróprias, por sua vez, são as que relacionam o ordenamento com o que está fora, sob a responsabilidade do legislador de criar novas normas. Ela associa os planos do real e do ideal. A preocupação teórica com as lacunas restringe-se às lacunas próprias.

Outra classificação é a das lacunas subjetivas e objetivas. As primeiras correspondem à lacuna que parte do legislador. Já as segundas dizem respeito à incapacidade da norma de acompanhar a evolução da sociedade. As subjetivas podem ser voluntárias ou involuntárias.

As lacunas também podem ser praeter legem e intra legem – relativas à norma particular, no primeiro caso, e à omissão na norma geral, no segundo. A integração, no primeiro caso, consiste em formular novas regras ao lado das expressas. No segundo, em formular novas regras dentro das regras expressas.

Superado o dogma da completude, a não ser pela norma geral exclusiva, vale destacar que o ordenamento jurídico é completável, do ponto de vista dinâmico (BOBBIO, 1989, p. 91-92). Dois métodos permitem a integração, quais sejam a heterointegração e a auto-integração. A heterointegração recorre a ordenamentos diversos ou a fontes diversas da legal. A auto-integração, de seu turno, busca a integração dentro do mesmo ordenamento e com uso da mesma fonte dominante, evitando recorrer a qualquer fonte que não a legal.

A heterointegração, no tocante ao ordenamento diverso, normalmente se socorre do direito natural. Essa ordem infalível serviria para suprir todas as carências do direito positivo. Em relação à fonte, comumente faz uso dos costumes e da jurisprudência, ao lado da lei.

A autointegração tem como ferramentas a analogia e os princípios gerais do direito. A analogia apresenta estrutura silogística, na qual se aproximam situações semelhantes à prevista na norma (normas gerais inclusivas). Trata-se de método de integração, que abrange hipótese fora da lei. Diferencia-se, assim, da interpretação extensiva, que apenas alarga conceito legal.

Finalmente, os princípios gerais do direito são método de autointegração muito parecido com a analogia iuris. Bobbio deixa claro que princípios são normas com maior carga valorativa, pois generalizam regras positivadas. Por isso, transcendem o direito positivo. Os princípios que integram as lacunas seriam os não expressos. Isso porque, caso expressos, integram o ordenamento como norma positiva, não havendo que se falar em lacuna. Assim, Bobbio evoluiu em relação a Kelsen ao admitir lacunas e princípios no ordenamento jurídico.

2.3 O POSITIVISMO DE H. L. HART

Herbert Lionel Adolphus Hart (1907-1992) foi um importante filósofo inglês do direito, autor de O Conceito de Direito e precursor do estudo analítico do positivismo. Na obra, ele propõe uma teoria crítica do direito positivo, sobretudo do modelo proposto por John Austin, dispensando certas formalidades.

Em sua teoria, Hart define o direito a partir de três premissas: (i) como diferenciar o direito e as obrigações jurídicas de ordens baseadas em ameaças; (ii) como diferenciar obrigações jurídicas das demais obrigações; e (iii) como definir regras e o quanto elas importam para o direito (HART, 2001, p. 11-13).

No modelo de Hart, o direito se divide em normas primárias e secundárias. As primárias são as que impõem deveres e obrigações. As secundárias, por sua vez, criam poderes de criar, modificar ou extinguir as normas primárias (evolução do direito).

Nesse sentido, há regras que impõem obrigações e regras que não preveem nenhum tipo de obrigação. A regra não se confunde com sanção. Estabelece padrões de comportamento, que vão além da simples ameaça de punição.

Assim, a previsão de regras primárias e secundárias, que corrigem as primeiras, permite a formação de um sistema jurídico complexo, válido, dinâmico e eficaz (HART, 2001, p. 91-92). Como exemplos de regras secundárias, que permitem a correção do sistema, Hart menciona as regras de reconhecimento, aplicadas para unificar as demais, e as de alteração, as quais permitem a mudança das regras primárias. Para compatibilizar a necessidade de atender os anseios sociais de justiça, sem que a punição se limite à vingança, o autor trabalha com as regras de julgamento (conceitos de juiz, tribunal, jurisdição).

O autor inglês traz ainda outros conceitos que entende relevantes para um sistema. Primeiro, destaca a importância de um observador externo (afirmação externa) para enunciar a aceitação do sistema pelos observadores internos (aplicadores da regra). Distingue, assim, afirmação interna e externa. Segundo, separa os conceitos de validade e eficácia – a regra pode ser válida sem ser eficaz, e vice-versa, salvo se uma regra do sistema dispuser o contrário.

No tocante à regra secundária de reconhecimento, Hart a apresenta como fundamento de validade das demais. Corresponde à norma hipotética fundamental de Kelsen, hierarquicamente superior às demais. O único problema é que seu fundamento de validade não pode ser demonstrado, mas sim presumido ou postulado.

Por isso mesmo, Hart defende que a regra de reconhecimento não pode ser simplesmente pressuposta. Antes, precisa ser afirmada do ponto de vista externo. Uma regra só é válida quando o reconhecimento de sua validade se coloca dentro de um sistema de regras, e se satisfizer os critérios dados pela regra de reconhecimento.

A regra de conhecimento, por sua vez, não é válida nem inválida, mas simplesmente aceita como apropriada para servir como fundamento de validade das outras. Sua existência é uma questão de fato, que decorre da aceitação dos tribunais, dos funcionários e dos particulares, e só pode ser feita de um ponto de vista externo.

Para Hart (FONTES, 2014), o direito é instrumento de controle social, e deve se basear em regras gerais. O direito deve ser capaz de dar respostas a condutas imprevisíveis, especialmente em face de novas tecnologias. Por isso, o autor afirma que as normas jurídicas têm textura aberta, de modo que muitas condutas devem ser deixadas a cargo dos julgadores.

As principais formas de comunicação do direito são os precedentes e a legislação. Os primeiros consistem nos exemplos implementados pelo uso jurídico dos precedentes. Podem, no entanto, gerar incerteza. Já a legislação gera certeza sobre a subsunção do fato à regra, mas incerteza sobre o comportamento exigido pela regra.

Assim, Hart observa certo poder discricionário deixado ao intérprete pela linguagem. Nesse sentido, algumas regras só podem ser definidas no caso concreto, a exemplo da delegação do poder regulamentar aos órgãos executivos, ou a elaboração doutrinária de juízos comuns de razoabilidade.

No entanto, Hart critica a tese do ceticismo, segundo a qual não existem regras no sistema jurídico, mas apenas decisões judiciais. Apesar de contar com certos poderes discricionários, os juízes devem se pautar por alguns padrões estabelecidos de decisão judicial correta. Dessa forma, quanto mais clara for a exigência normativa, mais previsível será a decisão judicial.

2.4 A JURISPRUDÊNCIA DOS CONCEITOS DE CLAUS-WILHELM CANARIS

A proposta de Canaris passa pela criação do “sistema jurídico”. Essa construção foi desenvolvida com inspiração na jurisprudência dos valores, corrente de pensamento que cresceu na Alemanha depois da Segunda Guerra, como resposta ao positivismo exegético, sem pender para a discricionariedade judicial ilimitada (de certa forma, na mesma linha de Hart). O positivismo se mostrou, na época, incapaz de solucionar problemas com previsões normativas injustas.

No tocante às funções do sistema jurídico, a aplicação do pensamento sistemático à ciência do direito e o desenvolvimento de um conceito de sistema jurídico pressupõem uma função relevante do sistema na ciência jurídica.

As características do conceito geral de sistema são a ordem e a unidade (CANARIS, 1989, p. 149-150). No plano do direito, essas características se encontram nas ideias de adequação valorativa e unidade interior do direito, que são consequências do princípio da igualdade e da tendência generalizadora da justiça.

A função do sistema na ciência do direito consiste em promover a adequação valorativa e a unidade da ordem jurídica.

Os conceitos de sistema que não traduzam o pensamento sistemático – adequação valorativa e unidade interior – são limitados. É o caso do sistema externo, do sistema de conceitos puros fundamentais, ao sistema lógico da jurisprudência dos conceitos, ao sistema de decisões de conflitos e da jurisprudência dos interesses, etc.

Sistema pode ser definido como ordem teleológica de princípios jurídicos gerais, de valores ou de institutos jurídicos, voltada à promoção da adequação valorativa e da unidade interior (CANARIS, 1989, 157).

Tanto o sistema científico como o da ordem jurídica são abertos. No primeiro, isso significa a incompletude do conhecimento científico. No segundo, a mutabilidade dos valores jurídicos fundamentais. A abertura do sistema jurídico resulta do próprio objeto da ciência do direito, que é fenômeno histórico e mutável.

Abertura do sistema jurídico relaciona-se à sua mobilidade, ou seja, à possibilidade de substituir os critérios adequados de justiça, evitando-se previsões normativas fechadas. Um sistema móvel também realiza as características da ordem e da unidade. O direito positivo é dominado por um sistema imóvel, mas com partes móveis.

O sistema móvel permite flexibilizar o sistema jurídico. Coloca-se entre as normas rígidas e as cláusulas gerais, bem como entre as tendências de generalizar e de individualizar a justiça.

No tocante ao significado do sistema para a obtenção do direito, o argumento sistemático representa uma forma especial de fundamentação teleológica, o que permite justificar a interpretação criativa. O sistema cumpre dois papeis na obtenção do Direito: (i) composição do conteúdo teleológico de uma norma ou instituto jurídico, o que permite interpretá-los dentro da ordem jurídica (todo); e (ii) realização da adequação valorativa e unidade interior do direito, permitindo o aperfeiçoamento do direito, seja pela limitação das contradições de valores, seja pela determinação de lacunas. Assim, o significado do sistema pode ser obtido em todos os graus de obtenção do direito – complementação de lacunas e interpretações criativas sistemáticas.

O princípio da aptidão para a derivação teleológica do sistema vale para as construções do legislador. Essas não são construções sem valores. Para Canaris, trata-se de construção tão vinculativa como qualquer outra valoração legal (CANARIS, 1989, 172).

Verificam-se limites ao significado do sistema para a obtenção do direito. O sistema sujeita-se ao controle teleológico do argumento sistemático e à possibilidade de aperfeiçoamento do sistema, em conformidade com o princípio de sua abertura.

Deve-se ter cautela ao utilizar exigências da justiça material contra os argumentos sistemáticos. Estes representam apenas os valores legais, balizados pelo princípio da igualdade. Receberam seu poder convincente da autoridade do direito positivo e da dignidade da regra de justiça formal. Assim, a solução conforme o sistema vincula e se justifica sob certa ordem jurídica.

Finalmente, os limites da obtenção do direito a partir do sistema decorrem dos próprios limites à formação do sistema (CANARIS, 1989, 189).

2.5 A CRÍTICA DE RONALD DWORKIN

O positivismo do século XX ficou marcado ainda pelo famoso embate intelectual entre o jusfilósofo inglês Herbert L. Hart e o norte-americano Ronald Dworkin. Pós-positivista, Dworkin fez uma forte crítica ao positivismo de Hart, sobretudo à teoria apresentada pelo autor inglês em O Conceito de Direito, exposta acima.

Em sua obra “Levando os Direitos à Sério”, Ronald Dworkin propõe um modelo de regras crítico ao positivismo. Para tanto, usa a teoria positivista de Hart como referência teórica para embasar sua crítica (FONTES, 2014).

O autor sugere que nem todos os direitos e obrigações jurídicas podem ser orientados por regras. Em alguns casos, sobretudo nos hard cases, devem pautar-se por princípios, normas com estrutura aberta. Nesse ponto, critica a fixação dos positivistas em um sistema de regras, ignorando outros tipos de padrões normativos.

Ao lado das regras, outros tipos de padrões seriam as políticas e os princípios. As políticas objetivam finalidades econômicas, enquanto os princípios têm fins não econômicos, como a justiça e a equidade. De forma ampla, os dois podem ser resumidos em um conceito lato de princípio, que se distingue das regras. Os dois são espécies do gênero norma (DWORKIN, 2010, p. 32).

Regras e princípios guardam diferença lógica (DWORKIN, 2010, p. 33). Aplicam-se a casos particulares sobre a obrigação jurídica de formas distintas: a regra de maneira “tudo-ou-nada”, ou é válida ou inválida; o princípio em uma dimensão de peso. As regras conflitantes se excluem, de modo que uma elimina a outra do sistema. Já os princípios se mantêm, agindo com diferente grau de importância (peso) em determinado caso concreto.

Por isso, Dworkin destaca a importância de se determinar quais assertivas são regras e quais são princípios. Segundo o autor, há duas correntes que diferenciam o tratamento de regras e princípios (DWORKIN, 2010, p. 35). A primeira considera os dois como normas equivalentes, com força de lei. A segunda, corrente positivista, considera que os princípios não vinculam os juízes, pois estão fora do direito. O juiz deveria decidir apenas com base em regras e, se a regra não for clara, criar um novo item de legislação (poder discricionário).

Tal poder discricionário, segundo o positivismo de Hart, envolve um sentido forte e dois sentidos fracos (HART, 2001, p. 107). No sentido forte, o juiz pode decidir sem estar limitado a padrões em alguns assuntos. No primeiro sentido fraco, os padrões de uma autoridade pública exigem o uso da capacidade de julgar. No segundo sentido fraco, diz respeito ao poder de algum funcionário público decidir em última instância.

Para os positivistas, o juiz não tem poder discricionário se existir regra clara sobre o assunto. Se a regra não for clara, ou seja, de textura aberta, o juiz tem poder discricionário para julgar (sentido forte).

O único padrão aceito pelos positivistas são as regras. Como não aceitam princípios como padrões jurídicos, eles não são aceitos pela regra de reconhecimento. O modelo proposto por Dworkin aceita princípios como padrões decisórios.

A discussão a respeito da textura aberta das normas e do poder discricionário do juiz, levantada por Dworkin, leva à questão da colisão entre direitos fundamentais e princípios, até porque os primeiros normalmente se dão na forma de princípios.

O problema é tratado no texto à luz da doutrina de Robert Alexy, que considera normas gênero, do qual as regras e os princípios são espécies. Para o autor, regras são deveres definitivos aplicados por meio de subsunção. Princípios, por sua vez, são deveres prima facie, cujo conteúdo é fixado após sopesamento com outros princípios. São mandamentos de otimização, aplicados na maior medida do possível diante da realidade fática e jurídica (ALEXY, 2011, p. 136-137).

A ponderação de princípios, como descrita, depende da regra de proporcionalidade (SILVA, 2011, p. 101). Regra, não princípio, justamente para evitar a ponderação abstrata de princípios. Enquanto regra, a proporcionalidade não comporta sopesamento, e suas premissas (princípios parciais) – adequação (relação meio e fim), necessidade (exigibilidade) e proporcionalidade em sentido estrito (ponderação) – devem ser satisfeitas ou não satisfeitas no caso concreto, tal qual uma regra. Se não satisfeitas, ocorre uma ilegalidade.

As teorias positivistas baseiam-se na completude do ordenamento jurídico, de forma que toda regra e princípio seriam produzidos exclusivamente pelas regras que compõem o próprio ordenamento. Para isso, Hart alega a necessidade das regras secundárias – reconhecimento, alteração e julgamento. Já Dworkin considera que o direito é formado por regras e princípios, sendo estes responsáveis por promover determinada situação econômica, política ou social, para atingir a justiça social ou uma forma de moralidade política.

O dogma da completude esbarra no problema da lacuna jurídica e das antinomias impróprias, já apontadas por Bobbio. O primeiro é resolvido pelos critérios da hierarquia, especialidade e cronológico (BOBBIO, 1989, p. 41). As antinomias podem ser de princípio, de avaliação, teleológicas e ideológicas (de justiça). Elas dependem do sopesamento de princípios no caso concreto.

Dworkin defende a completude do ordenamento a partir dos princípios, levando-se em conta, na decisão concreta do juiz, aspectos econômicos, políticos ou sociais, para se alcançar critérios de justiça ou equidade.

A filosofia de Dworkin, portanto, defende que o direito deve ser visto como um sistema aberto de normas, interpretado à luz dos princípios gerais do direito e atendendo aos anseios da sociedade.

3. A REAÇÃO AO FORMALISMO POSITIVISTA

A hermenêutica jurídica com base no positivismo vem sendo objeto de profundas transformações desde a segunda metade do século XX. O positivismo jurídico transformou a interpretação das fontes do direito em uma simples exegese limitada de textos legais (MELLO, 2002).

A hermenêutica foi responsável, nesse período, por controlar a subjetividade do intérprete, a fim de proteger a segurança jurídica, valor importante para os positivistas. O positivismo reduziu a interpretação jurídica aos métodos hermenêuticos tradicionais.

A crise do formalismo positivista no pós-segunda guerra mundial, a constitucionalização dos direitos humanos como direitos fundamentais e a jurisdição constitucional revolucionaram a hermenêutica jurídica (MELLO, 2002).

Esse fenômeno, aliás, é sentido a partir da evolução das ideias dos autores positivistas supracitados. Do positivismo radical de Kelsen, a teoria evoluiu para aceitar lacunas (Bobbio), poder discricionário do juiz em caso de regras incompletas (Hart), normas de textura aberta e a busca da justiça (Canaris), e a aplicação de princípios ao lado das regras como padrões decisórios (Dworkin).

A concepção declaratória do direito foi cedendo lugar à construção jurídica pelo intérprete. A este não cabe apenas identificar um significado já contido na norma interpretada, mas sim alterar a norma a partir da atividade interpretativa.

Segundo a sociedade aberta de intérpretes de Peter Häberle (HÄBERLE, 2002), o intérprete é quem instaura o sentido da norma no momento de sua aplicação. A compreensão e a aplicação não são momentos distintos da interpretação, como proposto pela teoria hermenêutica que embasou o positivismo jurídico.

No esquema hermenêutico clássico, o intérprete analisava o texto, e depois, em momento posterior, aplicava a norma já interpretada ao caso. O avanço dos estudos hermenêuticos no século XX, liderado por Hans-Georg Gadamer, fundador da hermenêutica filosófica, junto à crise do positivismo como teoria, determinou uma nova concepção da hermenêutica jurídica. Demonstrou que compreensão e aplicação não são momentos distintos da interpretação e colocou em xeque a restrição da atividade de interpretação a uma mera exegese de textos, guiada pelos critérios clássicos de interpretação (MELLO, 2002).

No direito constitucional essa evolução foi muito importante, sobretudo com a ampla previsão de direitos fundamentais nos textos constitucionais, normas de textura mais aberta, e com o neoconstitucionalismo.

No Brasil, a evolução da hermenêutica filosófica com a crise do modelo positivista tradicional, lastreada no fortalecimento de valores e princípios, criou reações no Judiciário e no próprio Legislativo ao legalismo estrito.

No Judiciário, cresceu o ativismo nas decisões, em especial nas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. O ativismo judicial é um movimento dentro da magistratura, que exige uma postura mais ativa dos juízes, guardiões da Constituição, na defesa de direitos coletivos. Trata-se de medida que afasta as decisões judiciais do formalismo positivista, com base em valores constitucionais, e politiza a atividade judicial em certa medida. O juiz passa a considerar consequências sociais, históricas e políticas em suas decisões, não realizando a simples subsunção do fato à norma (FONTES, 2014).

A aplicação da norma admite várias interpretações, de acordo com sua adequação à Constituição e com a justiça da decisão no caso concreto. Ocorre uma mudança na perspectiva de completude do ordenamento jurídico. Essa noção de ativismo, portanto, vai ao encontro da teoria de Dworkin, sobretudo em relação à aplicação de princípios e à consideração de aspectos históricos, políticos e sociais nas decisões.

A mudança de perspectiva hermenêutica no país também criou um movimento no Legislativo. A dificuldade do legislador em definir questões técnicas e específicas, ou que precisam de resposta mais rápida e eficaz, trouxe à tona o conceito de Bloco de Legalidade (MARQUES NETO, 2018), ou seja, um conjunto de atos decisórios infralegais que, na prática, têm a mesma força de lei. Cuida-se do fenômeno conhecido em direito administrativo como “deslegalização”, em que a produção do direito parte de novas fontes não legislativas – CADE, CARF, CVM, autarquias de regime especial, etc.

4. A CRISE NA INTERPRETAÇÃO

Essas mudanças na hermenêutica clássica objetiva, contudo, provocaram aquilo que Lênio Streck (STRECK, 2016) chamou de “a crise na interpretação”, no sentido de que as decisões se tornam cada vez mais subjetivas e políticas. Levando em conta essa tensão epistêmica que vivemos – em que um certo padrão mínimo de racionalidade perde para os subjetivismos e visões de mundo -, Streck questiona o conceito atual de interpretação. O autor parte do básico, ou seja, palavras e coisas. Nesse sentido, questiona: “Como se dar nome às coisas? Quais as condições de possibilidade para que eu possa dizer que algo é?”.

Essa crise de interpretação pode ser observada na tentativa do Legislativo brasileiro de resgatar a segurança jurídica em oposição ao ativismo judicial livre, sobretudo em questões afetas a políticas públicas. Nesse sentido, a Lei nº 13.655/18 trouxe importantes novidades à Lei de Introdução ao Direito Brasileiro – LINDB, lei essa de conteúdo interpretativo, com conceitos jurídicos indeterminados.

A mudança buscou limitar a crescente subjetividade judicial, especialmente em matéria de políticas públicas e que afetem o orçamento. Observe-se os novos artigos da LINDB:

Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

(…)

Art. 23.  A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.

Assim, o aplicador do direito, seja o administrador ou o juiz, deve ter como padrão decisório as consequências de suas decisões, em respeito à segurança jurídica. A ideia, portanto, não é desconsiderar a importância de valores e princípios nas decisões, como queria Kelsen, mas sim considerar outros valores em sopesamento com os princípios levantados nas decisões.

O que se observa, portanto, é o aprimoramento da nova hermenêutica filosófica e da aplicação de princípios às decisões administrativas e judiciais, através da ponderação dos princípios decisórios com os reflexos sociais da decisão.

5. CONCLUSÃO

A evolução das correntes positivistas apresentadas destacou a crescente importância dos princípios como padrões decisórios no direito, culminando no pós-positivismo de Dworkin e na hermenêutica filosófica, mais subjetiva. A tendência atual, como se observa no presente artigo, é recuperar parte da objetividade e da segurança jurídica nas decisões, sem desconsiderar a importância dos princípios na aplicação do direito.

As concepções contrapostas de Hart e Dworkin permitiram um contraponto interessante, que reconhece a importância do positivismo, por sua simplicidade e coerência, mas reconhece suas falhas. Como exemplos, o excesso de formalismo é relativizado ao se reconhecer o direito como sistema aberto e dinâmico, dotado de lacunas e antinomias. Isso permite maior autonomia aos julgadores, desde que baseados em princípios de justiça e equidade, os quais podem ser sopesados, por meio da regra da proporcionalidade, no caso concreto.

A mudança de perspectiva hermenêutica é interessante porque apresenta uma alternativa ao formalismo positivista, corrente ainda muito importante, a partir da aplicação de princípios ao lado das regras. Isso tudo sem desconsiderar a necessidade de manter a segurança jurídica e a eficiência.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. 5. ed. alemã Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

BRASIL. Decreto-Lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm, último acesso em 24 abr. 2020.

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 7. ed. Brasília: Polis-UnB, 1989.

CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Trad. A. Menezes Cordeiro. 2. ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. A Ciência do Direito. 2 ed. São Paulo: Atlas, 1980.

FONTES, Gustavo Rosa. Crítica de Dworkin ao positivismo de Hart e sua influência no Brasil. Revista Jus Navigandi, Teresina, 8 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29740. Acesso em: 15 abr. 2020.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.

KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Art. 23 da LINDB – O equilíbrio entre mudança e previsibilidade na hermenêutica jurídica. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, p. 93-112, nov. 2018. ISSN 2238-5177. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/77651/74314. Acesso em: 24 abr. 2020.

MELLO, Cláudio Ari. Hermenêutica filosófica e interpretação constitucional. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 230, p. 21-44, out. 2002. ISSN 2238-5177. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45914. Acesso em: 20 abr. 2020.

SAMPAIO, M. de A. Economia verde. KBR Editora Digital Ltda, 2012.

SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

STRECK, Lenio Luiz. E Dworkin levou a culpa pela relativização da presunção da inocência. Conjur, São Paulo, 20 out. 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-out-20/senso-incomum-dworkin-levou-culpa-relativizacao-presuncao-inocencia. Acesso em: 18 abr. 2020.

[1] Mestrando em Direito pela Escola Paulista de Direito (EPD). Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).

[2] Mestrando em Direito pela Escola Paulista de Direito (EPD). Pós-graduado em Direito Constitucional pela Faculdade Damásio de Jesus. Pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Graduado em Direito pela Faculdade Damásio de Jesus.

Enviado: Fevereiro, 2021.

Aprovado: Março, 2021.

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Ricardo Almeida dos Santos Catelan Yano

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