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Análise crítica da eficácia das normas “jus cogens” em conflito com a legislação interna

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

CALAND, Lucas Alves Silva [1]

CALAND, Lucas Alves Silva. Análise crítica da eficácia das normas “jus cogens” em conflito com a legislação interna. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 03, Vol. 01, pp. 05-17. Março de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/normas-jus-cogens

RESUMO

O presente artigo trata sobre o “jus cogens”, normas cogentes internacionais que se encontram em patamar superior de importância frente às normas internas dos Estados. Estuda-se a relevância dessas normas em âmbito internacional, para então analisar sua eficácia frente a soberania nacional brasileira. Inicialmente, fazem-se considerações sobre o Direito Internacional Público e como as normas “jus cogens” localizam-se dentre dele. Após, analisa-se como as normas internacionais integram o regime jurídico interno, diante da autodeterminação e do voluntarismo dos Estados, para então tratar sobre como o “jus cogens” interage com o Estado brasileiro. Serão considerados os instrumentos da ordem interna que visam a dar eficácia e efetividade para normas internacionais, a exemplo do procedimento de constitucionalização de tratados internacionais constante da Carta Magna de 1988. Ademais, incidentalmente, analisar-se-á o instrumento do controle de convencionalidade, que vem ganhando adeptos na doutrina internacional, situando-o como importante ferramenta de eficácia das normas “jus cogens’’.

Palavras-chaves: Direito Internacional, jus cogens, controle de convencionalidade.

1. INTRODUÇÃO

No âmbito do Direito Internacional Público, o “Jus Cogens”, sendo um conjunto de preceitos normativos imperativos e juridicamente superiores a todos os ordenamentos jurídicos internos dos Estados, oportuniza reflexões sobre sua natureza jurídica, sua incorporação ao direito interno do Brasil e os mecanismos utilizados para dar a elas a efetividade que devem receber.

Sua importância e projeção internacional se baseiam na proteção dos pilares da ordem pública internacional, incorporando “direitos supremos de ordem pública”, vinculados, na maioria das vezes, à boa convivência internacional, à paz mundial, à integridade dos Estados e, especialmente, aos preceitos máximos de proteção da vida e dos direitos humanos.

Para tanto, esse artigo apresenta como esforço principal o de analisar como essas normas interferem na ordem jurídica interna estatal e, oportunamente, se sobrepõem a ela. Após demonstrar qual a relevância do “jus cogens” em âmbito internacional, será analisado como os tratados, de uma forma geral, ingressam no direito brasileiro. Visto isso, parte-se para uma análise mais peculiar sobre a incidência e a obrigatoriedade dessas normas, frente às normais locais, e quais seriam os mecanismos que dariam efetividade a esses preceitos normativos, em especial, o controle de Convencionalidade.

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO E AS NORMAS “JUS COGENS”

2.1 PONTO DE PARTIDA: NOÇÕES DE DIREITO INTERNACIONAL

Inicialmente, antes de incidir no âmago da discussão, cumpre explicitar a diferença entre o Direito Internacional Público e o Direito interno dos Estados. O primeiro caracteriza-se pelo Direito construído por um Estado no âmbito da convivência internacional por meio de negociações, enquanto que, no segundo, o ordenamento jurídico é elaborado pelo poder central do Estado, por meio de um legislador, um parlamento ou um congresso nacional

Para tanto, o Direito Internacional comporta um conjunto de normas vinculantes de conduta cuja violação abre a possibilidade de consequências reais em âmbito global. Elas indicam como devem agir pessoas naturais e jurídicas, de modo a permitir o bom desenvolvimento da sociedade internacional dentro do marco de certos valores.

Caracteriza-se ele como um Direito de Coordenação, pois não há um “Estado Mundial”, então, a supremacia é uma exceção no âmbito das relações internacionais. Por isso, é necessária uma coordenação entre os Estados para reduzir a anarquia inerente às relações internacionais, o que se dá por meio de negociações (VARELLA, 2019). As normas internacionais têm formação predominantemente negociada, o que não afasta, entretanto, a frequência crescente com que certas regras de Direito Internacional Público começam a se impor aos Estados independentemente das respectivas vontades. Surgem, então, as normas superiores e imperativas para todos os Estados, os “jus cogens”.

2.2 AS NORMAS “JUS COGENS”

“Jus cogens” são um conjunto de normas de Direito Internacional Público de hierarquia superior que se sobrepõem à autonomia dos Estados e que não podem ser derrogadas. Também conhecidas como “normas imperativas de Direito Internacional” ou “normas peremptórias de Direito Internacional”, incorporam os valores mais importantes da ordem internacional (MAZZUOLI, 2019). Isso se dá em virtude de sua prevalência hierárquica sobre todas as outras fontes do Direito Internacional Público, por serem absolutamente imperativas e inderrogáveis, opondo-se ao conjunto de regras emanadas da livre manifestação de vontade das partes – ideia que norteou a estrutura do Direito Internacional durante muitos anos. “Jus cogens” seria, portanto, como um grupo de nulidades previsto pela Convenção de Viena de 1969, que regula o assunto em dois pontos distintos, nos artigos 53 e 64.

Entretanto, não se trata necessariamente de um conjunto de normas obrigatórias, mas sim insuscetíveis de derrogação pela vontade dos Estados. Logo, a imperatividade dessas normas encontra fundamento de validade na sua inderrogabilidade. Isso significa que na conclusão de um acordo não é admitido “acordo em contrário” em relação às normas de “jus cogens”, o que é corolário lógico de sua imperatividade.

Ressalta-se ainda que, embora elas possuam grande importância, não configuram uma ordem constitucional internacional, visto que não há uma compilação das normas de “jus cogens” em um tratado. Podem, assim, estar em tratados, no costume ou nos princípios gerais do Direito ou podem ser qualificadas como “jus cogens” pelos tribunais internacionais. Segundo Paulo Henrique Gonçalves Portela (PORTELA, 2019), alguns exemplos são: os princípios da Carta das Nações Unidas, a proibição do uso da força nas relações internacionais (não agressão), a liberdade dos mares, o Direito Humanitário, a proibição da tortura, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a proibição da prática de crimes internacionais.

3. SOBRE A INTERNALIZAÇÃO DE NORMAS INTERNACIONAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Dentre os princípios que regem o direito internacional público, cumpre destacar o da Soberania Nacional. Com base nos ensinamentos de Celso Ribeiro Bastos (BASTOS, 1994), é possível concluir que a Soberania Nacional, no âmbito internacional, é a manifestação de poder de um Estado, na qual dentro do território do país não se admitirá força outra que não a dos poderes juridicamente constituídos, não podendo qualquer agente estranho à Nação intervir no seu gerenciamento e na sua autodeterminação. E nesse sentido se alinha o Estado brasileiro diante das disposições e determinações de âmbito extraterritorial.

Por outro lado, no âmbito do Direito Internacional, as regras são estabelecidas, predominantemente, por meio de Tratados, com o intuito de respeitar a autodeterminação e soberania de cada ente internacional, e em virtude disso, são considerados a principal fonte desse ramo do direito. Conforme doutrina majoritária (PORTELA, 2019), os tratados são acordos escritos, firmados por determinados sujeitos de Direito Internacional Público.

Como se nota, via de regra, tendo em vista que o Direito Internacional é predominantemente voluntarista, os efeitos dos tratados se limitam às partes que o firmaram, entretanto, há exceções, como os tratados que possuem conteúdo de “jus cogens” (a exemplo da Carta da ONU).

No que diz respeito ao modelo de incorporação das normas internacionais adotado pelo Brasil, surge uma polêmica doutrinária sugerindo uma aplicação que varia do dualismo moderado ao monismo nacionalista (no qual o Estado só se vincula às normas internacionais conforme está estabelecido pela respectiva ordem jurídica nacional). Na prática, entretanto, o Brasil adota elementos de várias teorias.

Seguindo entendimento de Portela (2019), o Brasil, na incorporação de tratados, adota dualismo moderado; na prevalência da Constituição, aplica o monismo nacionalista; enquanto que, na equivalência à emenda constitucional dos tratados de direitos humanos aprovados nos termos da norma da CF, artigo 5º, §3º, utiliza o monismo internacionalista (Primado do Direito Internacional Público, porém com dialogismo na aplicação da norma mais favorável ao ser humano – princípio “pro homine/pro personae”).

Cabe ainda ressaltar o debate sobre a doutrina humanista, na qual houve a superação da polêmica entre dualismo e monismo. Observe-se a palavra do Supremo Tribunal Federal, 1.480 MC/DF:

[…] O exame da vigente Constituição Federal permite constatar que a execução dos tratados internacionais e a sua incorporação à ordem jurídica interna decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve, definitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos internacionais (CF, art. 49, I) e a do Presidente da República, que, além de poder celebrar esses atos de direito internacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe – enquanto Chefe de Estado que é – da competência para promulgá-los mediante decreto. O iter procedimental de incorporação dos tratados internacionais – superadas as fases prévias da celebração da convenção internacional, de sua aprovação congressional e da ratificação pelo Chefe de Estado – conclui-se com a expedição, pelo Presidente da República, de decreto, de cuja edição derivam três efeitos básicos que lhe são inerentes: (a) a promulgação do tratado internacional; (b) a publicação oficial de seu texto; e (c) a executoriedade do ato internacional, que passa, então, e somente então, a vincular e a obrigar no plano do direito positivo interno. Precedentes.

A Constituição Federal de 1988 estabelece sobre a natureza jurídica dos Tratados internacionais de acordo com a forma de incorporação no ordenamento jurídico brasileiro. Em linhas gerais, os tratados internacionais de assuntos gerais ingressam na ordem jurídica brasileira como lei ordinária. Por outro lado, tratados internacionais sobre Direitos Humanos entram, via de regra, com status supralegal, acima da lei e abaixo da Constituição. Entretanto, com a Emenda Constitucional 45/2004, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados pelo quórum de três quintos dos membros de cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos de votação, ingressarão na ordem jurídica brasileira na mesma posição que emendas à Constituição Federal, conforme art. 5º, § 3º, CF/88.

4. INSTRUMENTOS QUE DÃO EFETIVIDADE ÀS NORMAS “JUS COGENS” – CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE

O ordenamento jurídico pátrio, inaugurado a partir do advento da Carta Política de Ulysses Guimarães, consolidou um modelo misto de controle de constitucionalidade, no qual se conjugam o tradicional modelo difuso de constitucionalidade, adotado desde a República, com as ações diretas de inconstitucionalidade, possuidoras de caráter concentrado. Da mesma forma, tem sido usada a tese do bloco de constitucionalidade – de forma restrita, sendo essencial a hierarquia normativa para servir de parâmetro para controle de constitucionalidade, diferentemente, por exemplo, do ordenamento jurídico francês – para expandir o elenco de normas que servem de parâmetros para a realização dessa conjugação entre normas constitucionais e produção legislativa. Entende-se como bloco de constitucionalidade o coletivo de regras, princípios e valores constitucionais, as normas que integram os ADCT, as Emendas Constitucionais e, até mesmo, os tratados internacionais com hierarquia constitucional – aqueles aprovados mediante o quórum qualificado das emendas constitucionais e que versem sobre matéria pertinente aos direitos humanos -, que servem como parâmetro para controle de constitucionalidade (PADILHA, 2018). Não obstante, diferentemente do que se poderia inicialmente inferir, a produção normativa e os atos normativos de terras brasis ainda possuem mais paradigmas a se adequar além das disposições constitucionais: os tratados e as convenções supralegais, e isso por vias do chamado “Controle de Convencionalidade”. Definido por Husek (2017, p. 114) como “um mecanismo de tutela da força normativa dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, quando devidamente incorporados ao Direito Positivo Brasileiro”, é, para a doutrina majoritária, a análise da compatibilidade das leis e dos atos normativos com os tratados e com as convenções supralegais (MARTINS, 2017).

No Habeas Corpus nº 141949-DF, em que se discutia a constitucionalidade e a convencionalidade da tipificação da conduta de desacato a militar enquanto crime, um dos Ministros da Corte de Cúpula pátria, Gilmar Mendes (2018, p. 8), trouxe à discussão a visão que prevalece contemporaneamente:

[…] Assim, se os tratados de direitos humanos podem ser (i) equivalentes às emendas constitucionais (nos termos do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal), se aprovados pelo Legislativo após a EC 45/2004, ou ainda (ii) supralegais (segundo o entendimento atual do STF RE 349.703/RS), se aprovados antes da referida Emenda, o certo é que, estando acima das normas infraconstitucionais, hão de ser também paradigma de controle da produção normativa doméstica. Destarte, para além do controle de constitucionalidade, o modelo brasileiro atual comporta, também, um controle de convencionalidade das normas domésticas.

Fica claro que a jurisprudência abraçou o controle de convencionalidade como instrumento necessário à adequação material de dispositivos legislativos nacionais em face de regras de direito internacional, colaborando para a criação de um filtro ainda maior da qualidade da produção normativa das terras tupiniquins.

Explicitado este conceito introdutório, resta a sua adequação em face do “jus cogens”. Estas são determinações inafastáveis, que não podem ser suspensas em momento algum, mesmo em situações extremas, por serem entendidas como advindas do próprio Direito Natural e que formam o pilar principal do sistema normativo do plano internacional (SQUEFF, 2016). Tratando-se as de normas internacionais que estão em um patamar acima até do Direito Internacional Público e condicionadoras do poder legislativo dos Estados soberanos, sendo verdadeiros limites materiais à criação de normas, evidente é que elas devam servir de parâmetro para o controle de convencionalidade. Nasser (2005, p. 162), estabelece justamente essa função de barreira que as referidas disposições possuem, ao atestar que na doutrina contemporânea parece ter subsistido o pensamento de que os Estados “[…] não têm a liberdade de legislarem contrariamente a normas superiores ou a uma noção mais ou menos precisa de ordem jurídica internacional”.

A reforçar a possibilidade do exercício do controle de convencionalidade a favor das normas oriundas do “jus cogens”, há julgado no qual ressaltou-se o dever de efetividade dos tratados e das convenções internacionais, imposto a toda a ordem jurídica que a eles aderir, inclusive abarcando a atuação de órgãos jurisdicionais de ofício. Trata-se de decisão proferida pela Corte Interamericana no caso Trabajadores Cesados del Congreso (Aguado Alfaro y otros) v. Peru, conforme citada por Sarlet (2017, p. 1417), em trecho abaixo transcrito:

Quando um estado ratificar um tratado internacional, como a Convenção Americana, seus juízes também estarão submetidos a ela, o que os obriga a velar para que seu efeito útil não se veja reduzido ou anulado pela aplicação de leis contrárias a suas disposições, objeto e fins. Em outras palavras, os órgãos do poder judiciário devem exercer não somente um controle de constitucionalidade, mas também um controle de convencionalidade, de ofício, entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no limite de suas respectivas competências e das normas processuais correspondentes. […]

A questão, no Brasil, todavia, é mais complexa. Isso porque, em face das idiossincrasias do ordenamento nascido com a Lei Maior brasileira vigente, há uma peculiar partição de posições hierárquicas quanto às regras internacionais. Explica-se: quando são colocadas em perspectiva as diferentes naturezas jurídicas dos tratados e das convenções internacionais, conforme a matéria sobre a qual versem e conforme sua introdução no ordenamento pátrio, vê-se claramente que existem diferenciações. Os tratados de direitos humanos que adentrem no ordenamento pelo processo mais custoso delineado pela Carta Política – idêntico para as Emendas Constitucionais – terão status constitucional, conforme o art. 5º, § 3º, da Lex máxima. Em não sendo integrados ao ordenamento pátrio por este caminho, possuirão força supralegal, conforme já pacificado no STF. Por fim, os tratados que não disserem respeito a direitos humanos possuirão equivalência às leis ordinárias.

É aqui que o real debate surge, uma vez que se passa a questionar se o “jus cogens”, no ordenamento brasileiro, só seria tutelável pelo controle de convencionalidade em caso de tratados que versassem sobre matéria de direitos humanos (ou de direito tributário, se admitida a tese do Ministro Gilmar Mendes). Isso porque, embora não seja unânime o conceito ou a exemplificação de hipóteses nas quais contemplável o “jus cogens”, uma coisa é certa, ele não versa apenas sobre matérias relativas a Direitos Humanos. Síntese muito bem-vinda, aliás, é oferecida por MARQUES (2018, p. 66-67), que traz a perspectiva de diversos autores acerca do que se considerariam normas inafastáveis:

Para alguns (CAICEDO, ROBLEDO E BRITO), as normas imperativas de direito internacional, insertas em cinco grandes grupos, estariam relacionadas: a) Aos direitos soberanos dos Estados e dos povos, perspectiva dentro da qual se incluiria, a título de exemplo, os preceitos de igualdade, integridade territorial, livre determinação dos povos; b) À manutenção da paz e da segurança internacionais, o que abrangeria, exemplificativamente, a proibição da ameaça ou do uso da força, a resolução pacífica dos conflitos e os princípios relativos ao direito diplomático e consular; c) À liberdade da vontade contratual e à inviolabilidade dos tratados, ponto dentro do qual estão inseridos o pacta sunt servanda, o princípio da boa-fé e, segundo Brito, o pacta tertiis nec nocent nec prosunt; d) Ao uso do espaço terrestre e ultraterrestre pertencente à comunidade internacional, o que envolveria, as liberdades fundamentais do alto mar (patrimônio comum da humanidade), espaço extra-atmosférico, etc. e e) Aos direitos dos homens, tais como a vedação ao tráfico de escravos e de mulheres, ao genocídio e a tortura; o respeito ao direito de asilo, a liberdade de reunião e de religião; a igualdade de direitos; a vedação a discriminação racial (apartheid), etc.

Para outros (NAHLIK e RIPOLL), no entanto, as normas iuris cogentes envolveriam uma tríade composta pelos: a) Interesses e valores da comunidade internacional, como a proibição do uso e da ameaça da força, a manutenção da paz, a repressão à pirataria e às liberdades fundamentais do alto mar, etc; b) Interesses e direitos fundamentais de cada

Estado (considerado individualmente e nas suas relações recíprocas), enquanto membros da comunidade internacional, como, v. g., o princípio da igualdade soberana dos Estados, a autodeterminação dos povos, e o princípio da não intervenção; e c) Direitos fundamentais da pessoa humana tais como as normas proibitivas da escravidão e do tráfico de escravos, do genocídio etc.

Há, ainda, quem resuma as normas imperativas de direito internacional Geral a dois grandes grupos: um voltado diretamente aos Estados, como àquelas contidas em determinadas provisões da Carta da ONU, tais como paz e segurança mundiais, interesses essenciais da comunidade internacional, prescrição do uso ou ameaça da força, direitos espaciais (terrestre, aéreo, do mar, soberania sobre recursos naturais), direitos vitais dos

Estados (direito diplomático, liberdade contratual, inviolabilidade dos tratados); e outro contendo regras relacionadas à dignidade dos indivíduos, como os direitos inerentes à pessoa humana, individualmente, e aos povos, coletivamente.

Entendemos que o jus cogens envolve um conjunto de normas situadas no topo da hierarquia das fontes do direito internacional contemporâneo (ideia dentro da qual Dominique Carreau cunhou a expressão supralegalidade internacional) e que abrange: a Comunidade Internacional, os Estados e, fundamentalmente, à proteção da pessoa humana.

Um exemplo claro de “jus cogens” que não se enquadra nesta definição é, justamente, a convenção de Montego Bay de 1982, internalizada, inclusive, no ordenamento pátrio, por meio do Decreto nº 99.165, de 12 de março de 1990 (VARELLA, 2015). Isso poderia levar a uma falsa conclusão de que nesta hipótese, por exemplo, o “jus cogens” poderia ser afastado, em cada ordenamento, pela legislação ordinária, em verdadeiro desapego à real significação do instituto.

Nunca é demais ressaltar, aliás, que, conforme o mesmo artigo 53, “é nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral” e, ademais, de acordo com o art. 64, “se sobrevier uma nova norma imperativa de Direito Internacional geral, qualquer tratado existente que estiver em conflito com essa norma torna-se nulo e extingue-se”.

A partir de tais premissas, é impensável imaginar que se pudesse afastar a legítima tutela desses dispositivos, no ordenamento pátrio, ao se usar de uma interpretação restritiva do Controle de Convencionalidade. Mesmo que eventual norma “jus cogens” não verse sobre direitos humanos, ou seja, não detenha, formalmente, status supralegal expresso, uma interpretação integrativa e sistemática do ordenamento jurídico – nacional e internacional – exigirá que seja ela obedecida e que, em face dela, qualquer norma violadora seja filtrada, ocorrendo essa retificação justamente por meio do Controle de Convencionalidade. A favor dessa compreensão, voto do Ministro Edson Fachin, veiculado nos autos da Ação de Extradição 1.362 (2016, p. 32-33):

[…] A própria Corte Internacional de Justiça (Imunidades Jurisdicionais do Estado, Alemanha v. Itália, Julgamento, C.I.J, Report 2012, p. 99) afirmou que os crimes contra a humanidades “possuem, sem dúvidas, caráter de jus cogens”. No sistema interamericano de direitos humanos, a atribuição do caráter de jus cogens para os crimes contra a humanidade também é pacífica (Caso Goiburú e outros, par. 84; Caso Chitay Nech e outros, par. 193; e Caso Ibsen Cárdenas e Ibsen Peña, par. 197). Como consequência dessa identificação, as graves violações de direitos humanos, resultante da prática dos crimes contra a humanidade, devem ser investigadas, processadas e punidas (Caso Velásquez Rodríguez, Mérito, pars. 166 e 176). É do caráter cogente dessa norma que exsurge a afastabilidade das justificativas usualmente apresentadas pelos Estados para deixar de investigar os crimes contra a humanidade. A Corte Interamericana e diversos órgãos da Nações Unidas pronunciaram-se acerca da incompatibilidade das leis que buscavam afastar a punibilidade de graves violações de direitos humanos (Caso Barrios Altos versus Peru. Mérito. Sentença de 14 de março de 2001. Série C Nº 75, par. 41).

A visão que na Corte Máxima prevaleceu (ao menos em matéria concernente ao direito penal), entretanto, foi a de que, mesmo que uma convenção ou um tratado contenha norma “jus cogens”, esta só poderá ser aplicada no ordenamento pátrio se devidamente integrada e, ainda assim, quando não conflitante com a Carta Política.  Optou-se por afastar, assim, o caráter de imprescritibilidade atribuído a determinado crime por convenção não subscrita pelo Brasil (Convenção sobre a Imprescritibilidade de Crimes de Guerra e de Crimes contra a Humanidade). De autoria do Ministro Teori Zavascki (2016, p. 7), consolidou-se:

[…] somente lei interna (e não convenção internacional, muito menos aquela sequer subscrita pelo Brasil) pode qualificar-se, constitucionalmente, como a única fonte formal direta, legitimadora da regulação normativa concernente à prescritibilidade ou à imprescritibilidade da pretensão estatal de punir, ressalvadas, por óbvio, cláusulas constitucionais em sentido diverso, como aquelas inscritas nos incisos XLII e XLIV do art. 5º de nossa Lei Fundamental.

Nessa senda, embora verificado o status “jus cogens” da Convenção sobre a Imprescritibilidade de Crimes de Guerra e de Crimes contra a Humanidade, por não integrar o ordenamento pátrio, afastou-se seu alcance, a se esclarecer, ademais, que somente a lei interna pode dispor sobre prescritibilidade ou imprescritibilidade da pretensão estatal de punir, preferindo-se as disposições constitucionais pátrias em detrimento aos costumes internacionais.

5. CONCLUSÃO

Percebe-se, de fato, a posição privilegiada que as normas “jus cogens” ocupam no macro cosmos jurídico que é o direito internacional. Verdadeiros comandos impositivos, estas normas inafastáveis são conteúdos que não podem deixar de ser obedecidos nos demais tratados e apresentam verdadeira eficácia nulificante. A doutrina, aliás, não é unânime em decotar o que é ou não “jus cogens”, havendo posições diversas, recaindo, pois, o ônus de identificá-las à jurisprudência.

Nessa toada, fica evidente o desafio mostrado à ciência jurídica e à jurisprudência pátrias, no tocante à possibilidade ou não do uso do controle de convencionalidade como instrumento efetivador da proteção de tais normas. Isso porque apenas as normas concernentes a direitos humanos ingressam no ordenamento brasileiro com hierarquia diferenciada – status constitucional ou supralegal – ou seja, se as demais normas adentram o universo de normas do Brasil com status de lei ordinária, não poderiam ser utilizadas, em tese e levando em conta uma perspectiva formalista da hierarquia das normas, como parâmetro apto a confrontar legislação superveniente que delas destoa.

O STF, aliás, parece seguir a posição que privilegia o ordenamento interno, ao menos em direito penal, rechaçando a aplicação de norma internacional considerada “jus cogens” por ser mais gravosa ao réu, em apreço ao princípio da legalidade estrita.

Por todo o delineado, é possível identificar que este tema tortuoso está longe de ser pacificado. Seja no tocante à identificação das matérias que configuram “jus cogens”, seja sua aplicação e tutela no ordenamento pátrio, ainda há muitas lacunas a serem preenchidas a fim de dar eficácia máxima ao instituto. Todavia, fica evidente a bons olhos que, em adequação à natureza dessas regras especiais, dever-se-ia despir a análise quanto à possibilidade de seu uso como parâmetro de controle de convencionalidade da mera visão formalista da hierarquia das normas, a se prezar pelo caráter inafastável de referidas regras, concluindo-se, portanto, pela possibilidade de seu uso em tal capacidade, privilegiando a natureza material e não meramente a forma.

REFERÊNCIAS

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[1] Mestrando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Portucalense, Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade Faveni e em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Estácio de Sá. Graduado em Direito pela Universidade Estadual do Piauí.

Enviado: Janeiro, 2021.

Aprovado: Março, 2021.

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Lucas Alves Silva Caland

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