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Algumas consequências da reprodução assistida para o direito de família

RC: 149310
305
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/consequencias-da-reproducao

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SILVEIRA, Marcela Vergna Barcellos [1]

SILVEIRA, Marcela Vergna Barcellos. Algumas consequências da reprodução assistida para o direito de família. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 10, Vol. 02, pp. 85-99. Outubro de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/consequencias-da-reproducao, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/consequencias-da-reproducao

RESUMO

O surgimento e a popularização das técnicas de reprodução assistida trouxeram muitas questões para o Direito de Família que, por sua vez, também passa por transformações decorrentes da existência de um novo paradigma constitucional: a “família socioafetiva”, em que o afeto substitui a consanguinidade. O entrelaçamento entre os dois temas – a reprodução assistida e a família socioafetiva -, assim como suas consequências jurídicas, são o objeto desse trabalho.

Palavras-chave: Reprodução assistida, Direito de família, Família socioafetiva.

1. INTRODUÇÃO

A complexidade e as dificuldades relacionadas à reprodução humana nos trazem questões existenciais, sanitárias, éticas e jurídicas.

Não há dúvida, por um lado, de que reproduzir-se é um desejo muitas vezes, até mais do que isso, um verdadeiro imperativo existencial, reconhecido pela sociedade e pelo Direito, integrando-se ao conjunto de aspirações que nos identificam como seres humanos.

Apesar disso, o que em geral se observa é que dificuldades relacionadas à fecundação e a à fertilidade constituem um tema pouco comentado socialmente, despertando alguma reflexão e questionamentos apenas quando as pessoas se encontram diretamente envolvidas numa situação concreta de infertilidade e/ou de incapacidade reprodutiva. Como regra, as discussões sobre reprodução assistida são muito mais raras e menos acaloradas do que aquelas que percebemos quando se fala de aborto, tema que não só desperta um debate apaixonado, mas em relação ao qual praticamente todas as pessoas têm uma opinião …

E, isso, mesmo atualmente, quando a Organização Mundial da Saúde – OMS, estima que cerca de 1/6 – um sexto!!! da população mundial sofre com alguma questão relacionada à fertilidade.

Neste contexto, e como tentaremos demonstrar ao longo desse trabalho, além dos aspectos sociais e jurídicos que lhe dizem respeito intrinsecamente, a busca e a realização de procedimentos clínicos de reprodução assistida trazem muitas e variadas consequências para as famílias, com efeitos jurídicos também múltiplos e diversos.

O reconhecimento e o exame de ao menos parte dos efeitos jurídicos resultantes do advento dos procedimentos de reprodução assistida no Direito das Famílias é o objetivo deste trabalho, notadamente no que diz respeito a sua repercussão junto ao Poder Judiciário. Evidentemente, não se tem aqui qualquer pretensão de esgotar tema tão complexo:  a miríade de situações e consequências resultantes da mera possibilidade de a fertilidade sofrer algum abalo, mas, ao mesmo tempo, estar ao alcance de todos, é infinita, cabendo-nos, neste momento, apenas apontar alguns aspectos que nos pareceram mais relevantes.

Do ponto de vista metodológico, o assunto foi examinado de forma dedutiva, eis que, a partir da premissa adotada – contexto atual das famílias e da reprodução – chegamos a conclusões específicas acerca de suas consequências para o direito de família. Dito isso, o tema foi examinado mediante a revisão bibliográfica de artigos, livres e teses acadêmicas sobre o assunto, bem como da análise da jurisprudência dos Tribunais brasileiros, notadamente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça. Também foram considerados os apontamentos das aulas de Bioética e Biodireito, inseridos no Curso de Filosofia Do Direito.

2. UMA NOVA REALIDADE: A REPRODUÇÃO ASSISTIDA E A FAMÍLIA SOCIOAFETIVA

2.1 O QUE É “REPRODUÇÃO ASSISTIDA”?

Costuma-se conceituar a ‘reprodução assistida’ como todo e qualquer método, tratamento ou procedimento de natureza médica, que venha facilitar ou mesmo viabilizar a reprodução humana, na imensa confluência de situações em que esta não ocorre ou dificilmente ocorreria de forma espontânea. O objetivo das técnicas de “reprodução assistida” é, sempre, iniciar uma gravidez[2].

O advento e o aprimoramento dos métodos de reprodução assistida buscam mitigar esse sofrimento, ampliando significativamente as possibilidades da realização de ter filhos. Se, até o final dos anos 70, a única alternativa àqueles que não podiam conceber espontaneamente era a adoção, a partir de 1978, quando nasceu Louise Brown, o primeiro bebê de proveta, as opções médicas para a “reprodução assistida” passaram a se popularizar, até o estágio em que nos encontramos hoje, quando praticamente todas as pessoas já podem, ao menos em teoria e mediante a ajuda que se fizer necessária, gerar, gestar e parir seus filhos.

Na ausência de legislação federal sobre o assunto – lacuna grave, mas que será apenas apontada neste momento, já que não constitui o objeto deste trabalho – o Conselho Federal de Medicina – CFM, tenta, por sua vez, disciplinar a matéria por intermédio de suas Resoluções, dentre as quais destaca-se, por sua atualidade, O Preâmbulo da Resolução CFM de n. 2.320/2022[3]

De acordo, ainda, com os itens 1 e 2 do Anexo da Resolução CFM 2.320/2022, as técnicas de reprodução assistida – RA – têm o papel de auxiliar no processo de procriação[4], podendo revestir-se de menor ou maior complexidade, do ponto de vista clínico.

O surgimento e a popularização das técnicas de reprodução assistida têm muitas repercussões no Direito das Famílias. O objetivo deste trabalho é tratar de ao menos uma parte delas que nos pareceu relevante, como se observa a seguir.

2.2 A ALTERAÇÃO DO PARADIGMA DE FAMÍLIA NO BRASIL: A FAMÍLIA SOCIOAFETIVA

A família é a base da sociedade no Brasil e, exatamente por isso, deve ser especialmente protegida pelo Estado.

Se, inclusive nas famílias que podemos chamar de “tradicionais”, o advento das técnicas de reprodução assistida provocou e provoca muitas consequências, nas inúmeras novas formações familiares, reconhecidas como tal a partir da Constituição de 1988, tais desdobramentos e consequências são ainda mais evidentes.

A afirmação acima não se reveste do caráter de opinião e, muito menos, de qualquer constatação: a centralidade da família na sociedade brasileira e, em consequência, nosso ordenamento jurídico, foi fixada pelo artigo 226 da Constituição Federal de 1988, que assim afirmou expressamente em seu caput (Brasil 1988).

Ao mesmo tempo, e considerando inclusive a proteção jurídica que a ela deve ser destinada, os parágrafos do art. 226 da CF construíram novo paradigma acerca da do que é uma família para o ordenamento jurídico brasileiro, substituindo o vínculo da consanguinidade – já de fato um tanto ultrapassado – pelo do afeto  (Ferraz, 2008, pg. 30).

A família, no país da Constituição Federal de 1988, é a família afetiva.

Note-se que a afirmação anterior nãos significa que o imperativo biológico, com todas as suas consequências no âmbito das responsabilidades e deveres familiares, deixou de ser importante, mas que o traço distintivo da família atual pode ter outras origens, como também reconhecido pelo Código Civil[5], além das já referidas disposições da Constituição Federal.

Estas afirmações, mais uma vez nos termos do artigo 226, parágrafo 7, da Constituição Federal de 1988 derivam: i) do princípio da dignidade humana, pedra angular de todo o ordenamento jurídico, e também previsto no artigo 1. da Constituição Federal e ii) em um de seus corolários, o princípio da autonomia da vontade privada, com todas as consequências e responsabilidades a ele inerente[6].

Neste sentido, o princípio da dignidade da pessoa humana pode ser entendido como um direito da personalidade nas, ao mesmo tempo, como um princípio da individualidade de cada ser, o que nos obriga ao compromisso de respeitá-lo em toda sua inteireza (Santos, 1993, pg. 25).

Afirmou-se acima a mudança de paradigma em relação à família, de forma até mesmo radical, porque, ao contrário do que se poderia entender anteriormente, a família até então considerada ‘tradicional”, formada por um casal, homem e mulher, heteroafetivos., e dois ou mais filhos, como regra unida por laços de sangue, ampliou-se e diversificou-se significativamente, passando a abarcar as famílias monoparentais, as homoafetivas[7] e, sobretudo, aquelas entrelaçadas pela afetividade.

Entre as famílias monoparentais, é verdade, incluem-se não apenas aquelas assim constituídas por livre e consciente decisão individual, mas também as que assim se formaram por força do abandono, da morte, do divórcio, enfim, de alguma situação de ruptura de laços. Ao contrário do que sustentam alguns doutrinadores, porém, entendemos que, ao tratar especificamente das famílias monoparentais, o constituinte originário não restringiu esta possibilidade àqueles que se tornaram viúvos, divorciados ou, mesmo, que foram abandonados, como “filhos para criar”. Justamente em razão da substituição do paradigma do sangue pelo do afeto, já comentado, não seriam apenas as famílias criadas pelo infortúnio as que contariam com a proteção constitucional. No nosso entendimento, todas as pessoas que conscientemente decidem criar uma família, da forma que melhor lhes aprouver, terão essa família protegida do ponto de vista jurídico e constitucional.

No sentido até agora exposto, destacamos o voto do Ministro Celso Mello, no julgamento da ADin de n. 3.510, ao decidir pela constitucionalidade da chamada “Lei de Biossegurança”, em matéria que será melhor examinada mais adiante, mas que trata da prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana, da paternidade responsável e da autonomia da vontade, em se tratando do planejamento familiar – leia-se, “famílias” – no Brasil[8].

Isso posto, as considerações até aqui apresentadas acerca do paradigma distintivo daquilo que se pode considerar uma família no Brasil foram aqui trazidas porque, em alguma medida, relacionam-se com o surgimento e a popularização das técnicas de reprodução assistida.

Com efeito, como já mencionado, se mesmo em famílias que podem ser consideradas “tradicionais”, o advento das técnicas de ‘reprodução assistida” traz muitas consequências do ponto de vista jurídico, a possibilidade, constitucionalmente autorizada, de que famílias se constituam por laços diferentes dos de sangue, viabiliza-se na prática quando casais inférteis, pessoas solteiras, casais homoafetivos e outros, passam se valer de tais técnicas para constituir famílias que, anteriormente ao advento de tais práticas, não seriam possíveis.

Esta nova configuração, porém, não é livre de consequências a serem disciplinadas pelo Direito, o que passamos a examinar.

3. ALGUMAS REPERCUSSÕES DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA PARA O DIREITO DE FAMÍLIA

3.1 INCERTEZAS SOBRE PARENTALIDADE E ORIGEM GENÉTICA

Tratando de tema complexo de forma bastante simplificada, as técnicas de reprodução assistida são consideradas “homólogas”, quando usam o material genético do casal heterossexual que são os genitores da criança e “heterólogas”, quando usam material genético doado de terceiros.

Assim, para casais homoafetivos e gestações monoparentais, a reprodução assistida será sempre do tipo “heterólogo”.

Já em se tratado de casais heterossexuais, poderão ocorrer as duas situações: a reprodução será homóloga se o casal puder usar o seu próprio material genético no procedimento de inseminação artificial e/ou de fertilização in vitro e, heteróloga, se não dispuser do próprio material em quantidade ou qualidades suficientes e, justamente por essa razão, precisar se valer da doação de gametas de terceiros.

O artigo 1.597, inc.  V, do Código Civil, dispõe que os filhos havidos por inseminação artificial heteróloga presumem-se concebidos na constância do casamento, desde que tenha havido a devida autorização do marido.

O mesmo deve valer para uniões estáveis hetero ou homoafetivas.

Em se tratando da reprodução assistida “heteróloga”, uma das questões que se coloca diz respeito às incertezas sobre a parentalidade e, mais do que isso, se existem situações em que a criança gerada dessa forma poderia ter informações sobre a identidade do doador dos gametas masculinos.

Isso porque se, por um lado, é direito da pessoa assim concebida conhecer sua origem[9], o doador em questão também possui o direito ao anonimato[10], que deve ser igualmente protegido.

Norberto Bobbio inclui o direito à origem genética entre os direitos de quarta geração (Bobbio, 2004, pg. 32).

Isto não significa, porém, que o anonimato do doador deve ser desrespeitado, sobretudo quando se considera que tal desrespeito provavelmente acarretaria o.

3.2 DESTINO DOS EMBRIÕES EXCEDENTÁRIOS

Outro aspecto digno de nota é o tratamento a ser dispensado aos chamados embriões excedentários, assim considerados aqueles que não puderam ser aproveitados no processo de fertilização in vitro.

O subitem 7, do item I, do Anexo à Resolução CFM 2.320/2022, fixa o limite máximo de embriões passíveis de transferência para o útero da mulher em cada ciclo de fertilização in vitro, de acordo com a idade da mulher receptora que pretende engravidar: caso esta tenha até 37 – trinta e sete anos, serão transferidos dois embriões a cada tentativa de fertilização in vitro; caso a idade ela seja superior a 37 anos, poderão ser transferidos até três embriões. No caso de embriões resultantes de óvulos doados, a idade considerada é a da doadora.

Além da questão etária, o limite de dois também se aplica aos embriões “euplóides”, assim definidos como aqueles que, por possuírem todos os 46 cromossomos, possuem maior probabilidade de gerarem uma gestação quando transferidos para o corpo da mulher.

Dados tais limites para a transferência de embriões a cada ciclo de fertilização in vitro, é possível que haja embriões, que terão que aguardar a eventual necessidade de outro ciclo – caso o anterior não tenha tido sucesso – para serem transferidos para o útero da mulher.

Em um primeiro momento, tais embriões poderão ser congelados, a fim de se manterem viáveis para utilização em um ciclo futuro.

Pode ocorrer, também, de os embriões congelados não virem a ser utilizados, seja porque o primeiro procedimento foi exitoso, seja porque o casal desistiu das tentativas, ou seja, simplesmente, porque excederam o prazo de congelamento, que é no máximo de três anos.

Neste cenário, de múltiplas implicações, podem surgir questões éticas, filosóficas, espirituais e, até mesmo, existenciais, para as famílias a que pertencem tais embriões. É possível, também, que surjam questionamentos e potenciais conflitos até mesmo no âmbito de cada família, dado que podem inclusive surgir divergências entre os membros de uma família ou casal envolvidos no processo.

O destino dos embriões excedentários já foi inclusive debatido pelos Tribunais brasileiros, tendo chegado inclusive ao Supremo Tribunal Federal, uma vez que a Lei de n. 11.105, de 24 de março de 2005, a denominada “Lei da Biossegurança” autoriza, entre outros aspectos controversos, a utilização de células-tronco embrionárias, obtidas a partir dos embriões excedentários dos procedimentos de fertilização in vitro, para a pesquisa e terapia genética.

Para se ter uma ideia do que isso significa em números, o 13. Relatório do Sistema Nacional de Produção de Embriões – SisEmbrio, aponta que foram congelados 100.380 – cem mil e trezentos e oitenta – embriões, apenas no de 2.019 no Brasil. Considerando-se que boa parte deles não veio a ser utilizada, seja porque o prazo de três nãos venceu, seja pelo desinteresse dos genitores em seguir com os tratamentos, um número significativo deles poderia então ser utilizado nas pesquisas referidas.

Note-se que as condições para utilização dos embriões excedentários residem em dois pontos principais: i. a inviabilidade para utilização nos procedimentos de fertilização in vitro; e ii. a autorização expressa dos genitores.

A necessidade de autorização inequívoca por parte dos genitores é evidentemente um aspecto passível de controvérsia, podendo gerar, como já mencionado, conflitos significativos, principalmente se os genitores não compartilharem os mesmo valores e desejos acerca desse assunto.

A Ministra Ellen Gracie, integrante do Supremo Tribunal Federal à época do julgamento acerca da constitucionalidade da Lei de Biossegurança, realizada no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade de n. 3.510-DF, relatada pelo Ministro Ayres Brito, afirmou, ainda em caráter preliminar ao seu voto propriamente dito, a necessidade de amplo debate acerca do tema[11].

A afirmação da Ministra Ellen nos oferece a real dimensão do problema: a existência de embriões excedentário é, de uma certa forma, efeito colateral e, por que não dizer, consequência insuperável, do problema real a ser enfrentado: a infertilidade.

Em outras palavras, no estágio atual da medicina sobre o assunto, não há como realizar procedimentos de reprodução assistida sem que, eventualmente, as famílias acabem se deparando com o questionamento acerca da destinação dos embriões excedentários.

Ainda para a Ministra Ellen, seguindo o raciocínio acima exposto, é necessário aplicar-se o princípio utilitarista acerca desse tema, ou seja, buscar-se o melhor resultado, com menor dano. Assim, se, por um lado, a existência de embriões excedentários é evento indesejado, porém inevitável e, de outro, há a possibilidade de enviá-los às pesquisas médicas na esfera genética, a possibilidade de que tais pesquisas resultem em avanços da medicina justifica a utilização dos embriões. Seria, essa, a “função nobre” de tal utilização.

Note-se que o art. 5 da Lei de Biossegurança foi julgado constitucional, pelos fundamentos acima e outros a eles conexos[12], parecendo-nos razoável e juridicamente válido que a destinação dos embriões excedentários à pesquisa seja considerada constitucional.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se viu, o tema é bastante complexo e demanda vários questionamentos.

Na medida em que a sociedade e a medicina avançam, em tema tão sensível como o da reprodução humana, surgem inúmeras questões no âmbito do direito, muitas vezes não resolvidas de forma satisfatória, justamente porque nem sempre o Direito parece dar conta de tais demandas, ao valer-se de conceitos e disposições muitas vezes ultrapassados e emitidos em contextos diversos daqueles em que a ciência e a tecnologia na área de saúde se encontram hoje.

Assim, além dos aspectos acima relacionados, escolhidos porque já foram alvo de amplo debate, certamente nos depararemos mais e mais vezes com questões relacionadas à Bioética e ao Biodireito, como, por exemplo, no que diz respeito à seleção de embriões, por aspectos de saúde e, até mesmo, pelo sexo da criança, o que até hoje foi proibido pelo Conselho Federal de Medicina em todas as suas Resoluções.

Outras questões relevantes dizem respeito ao aumento do número de famílias formadas por filhos gêmeos – por dados de 2.017, 32.3% desses partos são de gêmeos, o que sobrecarrega a mulher, do ponto de vista de saúde e, em consequência do trabalho, e a mulher, e ao de pais idosos, já que a capacidade reprodutiva costuma-se estender por mais anos graças aos adventos de técnicas como essas.

Cabe, assim, aos doutrinadores e aos operadores do Direito dedicados a essa matéria, manterem-se atentos às transformações sociais, tecnológicas e clínicas, a fim de que os ramos da Ética e do Direito também voltados a essas práticas possam acompanhá-las.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 out. 2023.

BRASIL. Lei n. 8.603, de 11 de maio de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente, Brasília, DF, Presidência da República, 1990. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8036consol.htm. Acesso em 23.10.2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 930.460, Brasília, DF, 2013. Disponível em https://scon.stj.jus.br/SCON

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510-DF, Brasília, DF, 2008. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=611723. Acesso em 23.10.2023.

CFM – Conselho Federal de Medicina. Resolução n. 2320, de 20 de setembro de 2022. Brasília, DF, 2022. Disponível em https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2022/2320.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

FERRAZ Ana Cláudia Brandão de Barros Correia. A reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família: a filiação e a origem genética sob a perspectiva da repersonalização, Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Fedderal de Pernambuco, 2007.

SANTOS, Cordeiro Leite dos. Imaculada concepção – Nascendo “in vitro” e morrendo “machina São Paulo: Acadêmica, 1993.

APÊNDICE – NOTA DE RODAPÉ

2. Note-se, ainda, que há procedimentos médicos de estabelecimento ou recuperação da fertilidade humana, que visam tornar a pessoa capaz de reproduzir-se sem qualquer tipo de interferência externa. Neste trabalho, no entanto, estamos tratando dos procedimentos que buscam que a fecundação que não ocorreria espontaneamente possa ocorrer com a ajuda do tratamento ou procedimento médico mais adequado para cada caso concreto.

3. Preâmbulo da Resolução CFM 2.320/2022: “…Adota normas éticas para a utilização de técnicas de reprodução assistida, sempre em defesa do aperfeiçoamento das práticas e da observância aos princípios éticos e bioéticos que ajudam a trazer maior segurança e eficácia a tratamentos e procedimentos médicos, tornando-se o dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos brasileiros…” (CFM, 2022).

4. Para nós, o melhor termo a ser empregado é mesmo ‘reprodução’, mas seguimos aqui a terminologia empregada pelo CFM (2022).

5. Código Civil, Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.

6. Constituição Federal de 1988, art. 226, parágrafo 7: “Parágrafo 7. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.”.

7. Cite-se, nesse sentido, a r. decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça nos autos do Recurso Especial de n. 930.460/PR, publicada no Diário da Justiça de 3.10.2011, e relatada pela Min. Nancy Andrighi: “2. Os princípios da igualdade e da dignidade humana, que têm como função principal a promoção da autodeterminação e impõem tratamento igualitário entre as diferentes estruturas de convívio sob o âmbito do direito de família, justificam o reconhecimento das parcerias afetivas entre homossexuais como mais uma das várias modalidades de entidade familiar.” (Brasil 2013).

8. Colhe-se da ementa do voto do Relator: “V – OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AUTONOMIA DA VONTADE, AO PLANEJAMENTO FAMILIAR E À MATERNIDADE. A decisão por uma descendência ou filiação exprime um tipo de autonomia de vontade individual que a própria Constituição rotula como “direito ao planejamento familiar”, fundamentado este nos princípios igualmente constitucionais da “dignidade da pessoa humana” e da “paternidade responsável”. A conjugação constitucional da laicidade do Estado e do primado da autonomia da vontade privada, nas palavras do Ministro Joaquim Barbosa. A opção do casal por um processo “in vitro” de fecundação artificial de óvulos é implícito direito de idêntica matriz constitucional, sem acarretar para esse casal o dever jurídico do aproveitamento reprodutivo de todos os embriões eventualmente formados e que se revelem geneticamente viáveis. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana opera por modo binário, o que propicia a base constitucional para um casal de adultos recorrer a técnicas de reprodução assistida que incluam a fertilização artificial ou “in vitro”. De uma parte, para aquinhoar o casal com o direito público subjetivo à “liberdade” (preâmbulo da Constituição e seu art. 5º), aqui entendida como autonomia de vontade. De outra banda, para contemplar os porvindouros componentes da unidade familiar, se por eles optar o casal, com planejadas condições de bem-estar e assistência físico-afetiva (art. 226 da CF). Mais exatamente, planejamento familiar que, “fruto da livre decisão do casal”, é “fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável” (§ 7º desse emblemático artigo constitucional de nº 226)” (CFM, 2022).

9. Nesse sentido, cite-se inclusive o art. 48 da Lei 8.063, de 13.7.1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que embora se refira em princípio à adoção, também pode ser considerado em situações de reprodução assistida do tipo heterólogo: “Art. 48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 – dezoito – anos.  Parágrafo único. O aceso ao processo de adoção poderá ser também deferido ao adotado menor de 18 – dezoito anos, a seu pedido, assegurada orientação e assistência jurídica e psicológica.” (Brasil, 1990).

10. Cite-se aqui o subitem 2, do item IV, da Resolução CFM 2.320/2022, segundo o qual “Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa, exceto na doação de gametas ou embriões para parentesco de até quarto grau de um dos receptores, primeiro grau: pais e filhos, segundo grau: avós e irmãos; terceiro grau: tios e sobrinhos; quarto grau: primos, desde que não ocorra em consanguinidade (CFM, 2022).

11. Afirmou a Min. Ellen, em fala bastante emblemática: “Penso que o debate sobre a utilização dos embriões humanos nas pesquisas de células-tronco deveria necessariamente estar precedido de questionamento sobre a aceitação desse excedente de óvulos fertilizados como um custo necessário à superação da infertilidade”,

12. A decisão proferida na ADiun 3.510 foi assim ementada: “Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei de Biossegurança. Impugnação em bloco do art. 5 da Lei n. 11.105, de 24 de março de 2.005 – Lei de Biossegurança. Pesquisa com células-tronco embrionárias. Inexistência de violação do direito à vida. Constitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias. Inexistência de violação do direito a vida. Constitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos. Descaracterização do aborto. Normas constitucionais conformadoras do direito fundamental a uma vida digna, que passa pelo direito à saúde e ao planejamento familiar. Descabimento de utilização da técnica de interpretação conforme para aditar a Lei de Biossegurança. Controles desnecessários que implicam restrições às pesquisas e terapias por ela visadas. Improcedência total da ação” (Brasil, 2008).

[1] Mestranda em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC SP. Especialista em Direito de Família pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC SP. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Paris II – Panthéon – Assas. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo – USP. ORCID: 0009-0002-8839-2477. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3729810243444504.

Enviado: 5 de setembro, 2023.

Aprovado: 03 de outubro, 2023.

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Marcela Vergna Barcellos Silveira

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