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Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática 

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CONTEÚDO

SILVA, Thiago Dias [1]

SILVA, Thiago Dias. Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Edição 9. Ano 02, Vol. 06. pp 124-134, Dezembro de 2017. ISSN:2448-0959

RESUMO

As mais diversas democracias do mundo têm vivido um intenso aumento nas demandas apresentadas aos seus Poderes Judiciários, em especial o Brasil, o que gera importantes consequências jurídicas. No âmbito da própria discricionariedade e da impossibilidade do Judiciário brasileiro se esquivar de dar uma solução prática aos casos que lhe são apresentados, abriu-se uma lacuna para que magistrados, mais do que apenas digam o Direito no caso concreto, mas que verdadeiramente exerçam as funções de legislador. A postura ativista do Poder Judiciário avança cada vez mais, caminha ao lado do aumento da judicialização e da discricionariedade judicial,  ocasionando uma verdadeira crise de legitimidade no Poder Judiciário. O presente artigo pretende analisar os fenômenos da judicialização, do ativismo judicial e a crise de legitimidade diante da análise das teorias propostas por Hart e Dworkin.

Palavras-chave: Ativismo Judicial, Legitimidade Democrática, Judicialização, Lei, Poder Judiciário.

1. INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, democracias do mundo inteiro têm-se deparado com o aumento progressivo de problemas naturais na esfera legislativa. As normas jurídicas, ora muito abertas, exigem um maior esforço interpretativo, ora muito rígidas, dependem de uma certa flexibilidade. Resultado imediato disso é a enxurrada de processos que os Poderes Judiciários ao redor do globo têm recebido nos últimos tempos, ocasionando em um curioso fenômeno: o da judicialização.

Tal cenário abriu uma lacuna para que o Poder Judiciário — mais do que apenas diga o Direito no caso concreto — exerça a função de legislador. Ocorre que esta discricionariedade judicial emana da própria impossibilidade do Judiciário se esquivar de dar uma real solução prática aos casos que lhes são apresentados.

Há, na própria doutrina jurídica, discussão quanto à existência ou não da discricionariedade judicial. Hart defende a existência de certa margem de discricionariedade ao julgador. Afirma que o direito positivado deve ser capaz de dar uma solução a todas as questões suscitadas, mas se o direito positivo abstrato não puder resolver as questões práticas demandadas, cabe ao julgador utilizar o seu poder discricionário, inovando e criando o Direito no caso em concreto[2]. (HART, 1994)

Na verdade, é a própria função criadora do Direito que as críticas à discricionariedade judicial defendida por Hart se fundam. Dworkin resgata o Direito, retomando a ideia de alcance das normas jurídicas positivas, com base na compreensão de princípios. Defende que é na análise dos princípios que deve se chegar ao Direito que deve ser aplicado ao caso concreto, de modo que a solução para uma controvérsia se encontra no próprio direito, sem que haja a necessidade de que o julgador crie o Direito[3]. (DWORKIN, 1995)

Sucede que é na própria busca pela resolução de um caso no qual se demanda a intervenção judicial é que se acha a discricionariedade, caracterizada pela faculdade do julgador em decidir e dizer qual o Direito aplicado ao caso concreto. Em escolher, dentre uma infinidade de meios e possibilidades dado pela lei (ou não) o alcance de uma determinada norma jurídica.

Diante disso, verifica-se que, com o aumento de demandas judiciais e lacunas normativas, é inevitável que não nos deparemos com um amplo exercício de poder discricionário. É a forma que os julgadores, enquanto aplicadores do Direito, têm para suprir as lacunas da lei nas situações específicas – o que embora pareça um mecanismo adequado e justo, traz também a face de uma postura legislativa, adentrando noutras esferas do Poder estatal, que não de sua competência.

Juntamente ao exercício de uma função – mais do que julgadora – legislativa, diante do avanço da judicialização e da discricionariedade judicial, surge também um novo fenômeno, caracterizado por uma postura proativa do Poder Judiciário, conhecido como ativismo judicial.

O ativismo é o outro lado desta moeda. O conjunto de tudo isto tem representado um risco aparente para as atuais democracias, ocasionando uma verdadeira crise de legitimidade no Poder Judiciário.

2. JUDICIALIZAÇÃO

A partir do século XX, pôde se perceber, no contexto global, um grande avanço da justiça constitucional, em detrimento da política majoritária – criada no âmbito do Legislativo e do Executivo. Diversos exemplos podem ser citados, como quando a Suprema Corte do Canadá teve que se manifestar sobre a constitucionalidade dos testes americanos com mísseis em terras canadenses ou, ainda, quando a Suprema Corte de Israel decidiu pela constitucionalidade da construção de um muro em suas fronteiras com a Palestina[4]. Este avanço se mostra ainda maior com o final da Segunda Guerra Mundial, quando algumas nações perceberam que um Poder Judiciário forte e independente é extremamente favorável à democracia. E isso nos conduz ao entendimento do fenômeno da judicialização.

Todo este avanço é somado ao fato de que o cidadão já não está mais satisfeito com a política conduzida por seus representantes políticos – que, em numerosos casos, perdem credibilidade em face de seus envolvimentos com grandes escândalos de corrupção. O que acaba exigindo um maior controle e fiscalização da política. Todavia, o fenômeno da judicialização possui um espectro ainda maior, pois não é visto apenas numa vertente política, mas atinge também a vida privada da sociedade — como meio ambiente, saúde, trabalho etc. —, de modo que o Judiciário passa a interferir nessas questões todas sociais e políticas, tidas como relevantes pela sociedade em geral.

Segundo Luís Roberto Barroso, Judicialização significa que “algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais”. A judicialização refere-se a uma “transferência de poder para juízes e tribunais” e tem diversas causas de origem, algumas refletindo meramente uma tendência global, mundial, já outras intimamente relacionadas com o modelo institucional adotado por um país. [5] (apud BARROSO, 2009)

O fenômeno da judicialização é visto em todo o mundo, Barroso traz uma série de exemplos capazes de ilustrá-lo. Dois recentes casos, observados no direito brasileiro, servem de grande exemplo para o fenômeno da judicialização política: a análise do rito de processamento do procedimento de impedimento – impeachment – da ex-presidente Dilma Rousseff e a definição do afastamento do presidente da Câmara dos Deputados, o deputado federal
Cunha, ambos realizados pelo Superior Tribunal Federal.

Luís Roberto também teceu grandes exemplos acerca do fenômeno da judicialização da vida, como o reconhecimento da possibilidade da união estável homoafetiva, pela suprema corte brasileira (Supremo Tribunal Federal), que posteriormente ainda entendeu pela possibilidade de conversão da união estável entre pessoas do mesmo sexo em casamento. O direito estadunidense também se viu diante de dois grandes causos: no ano de 2000 a Suprema Corte do país procedeu à definição das eleições presidências – marca de uma judicialização da política. Já no ano de 2015, a retro corte assegurou o casamento entre pessoas do mesmo sexo em todo os Estados Unidos – um evidente caso da judicialização da vida.

É inconcusso que o fenômeno da judicialização faz parte da rotina do Judiciário em quase todos – senão todos – os sistemas jurídico-políticos do mundo. Para além da sua mera presença notória, tal fenômeno também possui importância e relevância, máxime trazendo balanceamento ao sistema de Checks and Balances entre os Poderes estatais.

Contudo, também carrega consigo problemas e o principal deles é a intensa sobrecarga do Poder Judiciário, que muitas vezes se encontra abarrotado de causas que, em tese, não exigiriam sua intervenção. Ademais, este fenômeno também pode nos conduzir à violação da separação dos poderes. Como muito poder é concedido ao Judiciário, este passa a atuar em conflitos que poderiam e/ou deveriam ser resolvidos pelas outras esferas do poder. Deste modo, é necessário encontrar o ponto de equilíbrio para que haja moderação, evitando, assim, eventuais violações ao princípio da separação dos poderes.

Embora seja decorrente da própria judicialização uma maior e incisiva atuação do Judiciário nas questões políticas e da vida privada, ela não se dá por mera opção das cortes, mas se restringe a cumprir estritamente o seu papel. Em todas as decisões que aqui foram mencionadas, houve provocação das cortes que apenas as decidiu em cumprimento ao seu próprio papel, determinado por um respectivo modelo institucional.

3. ATIVISMO JUDICIAL

Não há como se falar da judicialização sem que se mencione também o ativismo judicial, pois embora tenham origens distintas, estão intimamente ligadas. Enquanto a judicialização se dá dentro de um desenho institucional próprio de um país, é dependente de provocação e se restringe ao Judiciário fazer o que lhe cabia fazer, o ativismo judicial é proativo, referindo-se a, verdadeiramente, uma atitude, uma escolha da melhor interpretação que se cabe das leis.

O julgador atua de forma proativa, optando por realizar uma interpretação ativista da lei, priorizando em sua interpretação princípios constitucionais, do que a própria letra da lei. É verdadeiramente uma postura proativa do Poder Judiciário. Segundo Barroso, “a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes (Legislativo e Executivo) ”.

O dicionário de língua portuguesa, Aurélio Buarque, afirma que “ativismo” possui mais de uma acepção[6]. Partindo de uma concepção jurídica define que o termo é empregado como designação de uma atuação excessiva do Poder Judiciário, isto é, uma atuação além dos poderes que lhe foram concedidos. Barroso associa a ideia de ativismo a uma “participação mais ampla e intensa do Poder Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois poderes”[7].

Autocontenção judicial é a expressão utilizada como antônimo de ativismo, referindo-se à conduta em que o Judiciário busca minimizar a sua interferência nas ações dos outros Poderes Estatais. Isto é, os julgadores: preferem aguardar o legislador ordinário ao invés de aplicar a Constituição nos casos não previstos expressamente; buscam adotar critérios rígidos e conservadores para a declaração de inconstitucionalidade de leis e; não interferem na definição das políticas públicas, deixando-as a cargo do Poder Executivo. A autocontenção judicial reduz a incidência da Constituição, enquanto o ativismo busca extrair ao máximo as potencialidades das normas e do texto constitucional, mas preservando a livre criação do Direito.

Entretanto, é evidente que a nota mais marcante do ativismo é a invasão desmotivada e injustificada do Poder Judiciário nas demais esferas de Poderes do Estado, o que de certo modo vai contra a teoria clássica da separação dos poderes estatais, concebida por Montesquieu, caracterizando uma verdadeira conduta antirrepublicana. A própria concepção da separação dos poderes se funda na ideia de que o governo deve ser feito com base em leis e não na vontade arbitrária dos homens. Nesse contexto, a função do Poder Judiciário seria basicamente a da subsunção normativa, isto é, meramente a adequação do fato à norma, a adequação de um fato, de uma conduta, em concreto, a uma norma jurídica. Ou seja, é expressão da noção de que o juiz é apenas bouche de la loi (juiz é meramente boca da lei), devendo, portanto, se restringir à seguir a lei, procedendo somente à verificação de qual lei aquele determinado caso concreto se adequa. O ativismo anda na contramão de toda essa concepção.

(…) tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.[8] (MONTESQUIEU, 1993)

O procedimento de subsunção pode ser analisado sob duas óticas, uma interna e outra externa ao Direito. Por uma perspectiva interna, a subsunção caracteriza-se como um método de aplicação de regras jurídicas e relaciona-se com uma forma de pensamento em relação à organicidade do Direito. Já sob a ótica externa, a subsunção carrega uma significação política, expressão da visão clássica da separação dos poderes.

De forma que o prestígio à subsunção e por via oblíqua, o afastamento mediante críticas do ativismo jurídico é apenas expressão de uma defesa da clássica teoria da separação dos poderes, enquanto o ativismo e a judicialização refletem uma reação ao formalismo.

Ocorre que a subsunção já não tem mais o mesmo prestígio de antes, tendo sofrido críticas por diversos autores juristas ao longo dos anos. Robert Alexy defende a incapacidade de a subsunção explicar por completo a racionalidade jurídica[9], Carl Schmitt ainda denomina a subsunção de uma “reles ficção infantil”[10]. Defendem que a aplicação da norma é um processo que faz parte do próprio conteúdo da norma, de forma a integrar o ordenamento jurídico. Isto é, os julgadores, atuando como intérpretes da lei, desempenham um papel “vivificador”, adequando a norma ao caso concreto e ao tempo vigente, pois do contrário as normas seriam meros “textos frios e inacabados”[11].

Foi com o decorrer do século XX, em face das complexas relações sociais vivenciadas naquele momento (foi marca do século uma infinidade de movimentos das massas, partidos políticos, organizações e grupos em defesa de interesses sociais, econômicos e políticos diversos)[12], que as estruturas institucionais e dogmáticas construídas durante o século XIX foram mitigadas, inclusive a ideia clássica da separação de poderes[13].

Luís Roberto Barroso traz, em seu artigo intitulado “Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática”, uma série de exemplos acerca do ativismo judicial e demonstra que possui origens na jurisprudência estadunidense, primeiramente com uma feição mais conservadora. A sociedade buscou na atuação proativa da Suprema Corte amparo para as questões mais sensíveis e reacionárias, tais como: segregação racial (Dred Scott v. Sanford, 1857), invalidação das leis sociais em geral (Era Lochner, 1905-1937) – o que levou ao confronto entre Roosevelt e a Corte, diante da alteração na orientação jurisprudencial contrária ao intervencionismo estatal (West Coast v. Parrish, 1937).

Mas, posteriormente, na década de 50, a atuação ativista da Corte mudou completamente sua feição, quando passou a produzir uma jurisprudência progressista em relação aos direitos fundamentais, principalmente no que envolvia negros (Brown v. Board of Education, 1954), réus (Miranda v. Arizona, 1966) e mulheres (Richardson v. Frontiero, 1973); ao direito de privacidade (Griswold v. Connecticut, 1965) e; também quanto ao aborto (Roe v. Wade, 1973). [14] (apud BARROSO, 2009)

A postura ativista do Judiciário tem sido observada não apenas nos Estados Unidos, mas em diversos outros Estados soberanos, como é o caso do Brasil. O Poder Judiciário brasileiro tem adotado posturas extremamente ativistas em determinados assuntos, tanto na aplicação da Constituição em casos não previstos expressamente em seu texto ou em legislação infraconstitucional, mesmo sem a manifestação Poder Legislativo, quanto na declaração de inconstitucionalidade de leis formais sem rígido fundamento de patente violação constitucional.

Há alguns anos a Suprema Corte brasileira (STF) decidiu, quanto à fidelidade partidária, que a vaga de um congressista não lhe pertencia, mas sim ao seu partido político – o que criou uma nova hipótese de perda do mandato parlamentar, sem que houvesse previsão expressa no texto constitucional. Foi esta mesma corte que, adotando uma postura claramente ativista, declarou a inconstitucionalidade da aplicação das leis que estabeleciam novas regras sobre coligações eleitorais às próximas eleições que seriam realizadas, concedendo à regra da anterioridade da lei eleitoral o status constitucional de cláusula pétrea – posição bastante incomum (declaração de inconstitucionalidade de emenda constitucional) em outros Estados democráticos.

Outro exemplo rotineiro, que ainda não foi objeto de apreciação do Supremo Tribunal Federal, contudo amplamente corriqueiro, trazido pelo Ministro Barroso, é a frequente condenação da União, dos Estados membros ou dos Municípios ao custeio de medicamentos e tratamentos que não constam do rol do próprio Ministério da Saúde ou das Secretarias estaduais e municipais, pelas Justiças Estadual e Federal de primeiras ou segundas instâncias.

Não é possível negar que o ativismo judicial seja, de algum modo positivo, pois diante de uma possível inércia do Poder Legislativo, o Judiciário atua suprindo algumas demandas da sociedade em temas de grande relevância, como serviços públicos, greves, nepotismo, regras eleitorais, aborto, relações privadas, dentre outros. Por outro lado, o ativismo escancara a inércia do Poder Legislativo em suprir tais demandas, o que seria, pelo menos em princípio, de sua competência. O que deve se ter em mente é que a postura ativista é bem-vinda em determinadas situações. Todavia, é necessária certa cautela, pois seu uso só deve ser dar em momentos e situações específicos. Caso contrário o que entra em jogo é a própria Democracia e a legitimidade democrática.

4. LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA

Diferentemente do que acontece no Common Law estadunidense, no Brasil, e em muitos outros Estados democráticos de Direito, os julgadores e a maioria dos membros do Poder Judiciário não são eleitos. No entanto, embora falte o elemento da vontade popular, tais juristas exercem um poder político – poder este que os permite, inclusive, invalidar atos praticados pelas outras esferas do Poder.

Alexander Bickel define como “dificuldade contramajoritária” esta possibilidade de que a decisão de um órgão não eleito venha se sobrepor à decisão de um Parlamento, de chefe do Poder Executivo – Presidente da República, no caso republicano –, eleitos, escolhidos pela vontade popular[15]. (apud BICKEL, 1986)

Diante disso, o sistema democrático de uma sociedade pode se ver em crise, já que surge a dúvida de onde se encontraria a legitimidade para que estes (exercentes de mandato popular) também invalidem as decisões daqueles (membros do Poder Judiciário). No entanto, é patente que a maioria das legislações dos Estados democráticos pelo mundo determina que parte do poder político seja exercido por agentes que não sejam eleitos, pois a natureza de suas atuações deve ser técnica e essencialmente imparcial, de modo que os julgadores não possuem vontade política própria, cabendo-lhes apenas aplicar a Constituição e as leis a fim de concretizar a vontade do legislador.

Outrossim, como bem explica Barroso, todo Estado constitucional democrático se funda em duas ideias, que embora centrais, são distintas: constitucionalismo e democracia. O primeiro refere-se ao poder limitado e ao respeito aos direitos fundamentais, de modo que o Estado de Direito nada mais é do que “expressão da razão”. Já democracia está associado à soberania popular, governo do povo, assim o poder reside na vontade da maioria. (apud BARROSO, 2009)

Vontade e governo da maioria está para a democracia, assim como razão e direitos fundamentais para o constitucionalismo — e é natural que tensões e conflitos surjam entre eles. Assim, é necessário que todo ordenamento constitucional sirva para definir as “regras do jogo democrático”, a fim de que seja garantida a ampla participação política, a alternância no poder e o governo da maioria. No entanto, a democracia não deve (e nem pode) se limitar ao princípio majoritário.

Luís Roberto Barroso dá o exemplo de que se em uma sala encontram-se oito indivíduos católicos e dois muçulmanos, o grupo dos católicos não pode simplesmente deliberar e decidir jogar a dupla de muçulmanos pela janela só porque são maioria. Por isso é que todo ordenamento constitucional também deve se destinar à proteção de valores e direitos fundamentais, ainda que contrarie a vontade da maioria. Deste modo, cabe ao Poder Judiciário, por meio de sua Suprema Corte (ou outra com a atribuição de guardiã da Constituição), “velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais, funcionando como um ‘fórum de princípios’[16] – não de política – e de ‘razão pública’[17] – não de doutrinas abrangentes, sejam ideologias políticas ou concepções religiosas[18]”. (BARROSO, 2009)

E é por esta razão que a discricionariedade judicial é importante e que o bom exercício de uma jurisdição constitucional legitima a democracia, traz mais garantias à ela do que propriamente riscos. No entanto, conforme afirma Daniel Sarmento, se referindo a ubiquidade constitucional: “embora ela irradie por todo o sistema, e deva sempre estar presente em alguma medida, ela não deve ser invocada para asfixiar a atuação do legislador”[19]. (SARMENTO, 2006)

Esta lógica nada mais é do que a própria preservação da separação dos poderes, mas deve ser acatada com certo cuidado, já que a atividade julgadora não é mecânica. Cabe também ao julgador a integração do próprio direito e, em muitas vezes, também a co-função de criar e inovar o Direito, já que o processo legislativo, na maioria das vezes, é moroso (a edição de uma nova lei pode levar muito tempo), o que torna impossível que se espere uma atitude imediata do Poder Legislativo a cada mudança social, a cada nova exigência social.

CONCLUSÃO

O crescimento inegável do Poder Judiciário tem origem na própria crise de legitimidade e representatividade que vive a sociedade atual. O Poder Judiciário encontra respaldo e justificativa constitucional para sua atuação inovativa, de caráter normativo, e funda-se na própria necessidade de que se supram as omissões e que sejam prolatadas decisões justas solucionando as demandas judiciais. Contudo, o ativismo deve ter como marca a eventualidade, deve ser de caráter residual, a postura ativista deve ser tomada somente em situações e momentos específicos, já que não há nenhuma democracia sem atividade política, sem um Poder Legislativo legitimo e dotado de credibilidade.

Nenhuma democracia vive apenas do princípio majoritário, é preciso que haja sempre, além de um governo exercido pela maioria, a garantia de uma eficaz alternância no poder e de uma ampla participação política da sociedade. Além disso, é fundamental que cada Constituição seja capaz de assegurar a proteção dos valores e direitos fundamentais dos indivíduos.

Na necessidade de se preservar os direitos é que a discricionariedade judicial se faz importante, de modo que o bom e regular exercício da jurisdição, com respaldo constitucional, além de legitimar a democracia, proporciona mais garantias do que riscos, é mais benéfica do que maléfica. A própria lógica da separação dos poderes exige que haja certa discricionariedade judicial na integração do Direito —  com seus devidos cuidados aqui mencionados a fim de se garantir a independência dos demais poderes, sem que o Judiciário afaste a função do Poder Legislativo.

E é justamente por meio da moral, da ética, dos costumes e do conceito de justiça repensado e atualizado ao longo dos tempos que os legisladores e julgadores acompanham as mudanças sociais – se formos esperar pela intervenção do Estado na adequação das leis às exigências da sociedade, vamos assistir a enormes injustiças sendo cometidas em nossos tribunais pelo simples fato de que o Direito é algo vivo, dinâmico, que é aplicado de acordo com cada situação ou lugar. São as mudanças e necessidades sociais que movimentam o ordenamento jurídico e o fazem caminhar lado a lado com o progresso.

REFERÊNCIAS

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SARMENTO, Daniel. Ubiquidade constitucional: os dois lados da moeda, Revista de Direito do Estado 2:83, 2006

[1] Graduando em Direito na Faculdade de Direito Milton Campos

[2] HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Trad. de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

[3] DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Trad. Marta Guastavino. Barcelona, Ariel, 1995.

[4] HIRSCHL, Ran. The judicialization of politics. In: Whittington, Kelemen e Caldeira (eds.), The Oxford Handbook of Law and Politics, 2008, p. 124-125.

[5] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, 2009.

[6] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

[7] BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro. (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: ______ BARROSO, Luís Roberto (Org.). A Nova interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

[8] MONTESQUIEU, Charles de Secondat Baron de. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 181.

[9] ALEXY, Robert. Teoría de La Argumentación Jurídica. Tradução de Manuel Atienza e Izabel Espejo. Madrid. Editora: Centro de Estudios Constitucionales, 1989.

[10] SCHMITT, Carl. Teoría de La Constitución. México. Editora: Nacional, 1996.

[11] BITTENCOURT, C. A. Lúcio. A interpretação como parte integrante do processo legislativo. Revista de Serviço Público, ano 5, v. 4, n. 3, dezembro de 1942.

[12] WENECK, Luiz; CARVALHO, Maria Resende de; MELO, Manuel Palacios Cunha de; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil. Rio de Janeiro. Editora: Revan. 1999.

[13] VILE, M. J. C. Constitutionalism and the Separation of Powers. Liberty Fund, 1998, p. 401-404.

[14] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, 2009.

[15] BICKEL, Alexander. The least dangerous branch, 1986, p. 16-s.

[16] DWORKIN, Ronald. The forum of principle. In: A matter of principle, 1985.

[17] RAWLS, John. O liberalismo político. 2000, p. 261.

[18] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, 2009.

[19] SARMENTO, Daniel. Ubiquidade constitucional: os dois lados da moeda, Revista de Direito do Estado 2:83, 2006.

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Thiago Dias Silva

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