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Inovações da Lei 13.491/2017 na competência da Justiça Militar

RC: 46761
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ARTIGO ORIGINAL

BARBOSA, Barbara Dias [1]

BARBOSA, Barbara Dias. Inovações da Lei 13.491/2017 na competência da Justiça Militar. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 03, Vol. 05, pp. 12-24. Março de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/justica-militar

RESUMO

Em razão da frequente atuação das Forças Armadas para garantia da lei e da ordem a fim de preservar a ordem pública, devido ao aumento da violência e do esgotamento dos meios previstos para combater a criminalidade, foi apresentado, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 5.768/2016 (que, posteriormente, no Senado, recebeu a numeração PLC nº 44/2016), objetivando alterar a competência da Justiça Militar da União no processamento e julgamento de militares que, no âmbito de atuação em garantia da lei e da ordem, viessem a praticar crimes dolosos contra a vida de civil. O art. 2º do referido projeto de lei previa que caso fosse aprovada, a lei teria vigência temporária, porém o referido artigo foi vetado pelo Presidente da República e a lei passou a ter caráter permanente. O veto presidencial suscitou várias divergências entre os doutrinadores e operadores do Direito, sobretudo acerca de sua constitucionalidade bem como sobre o alongamento da competência da Justiça Militar. Dessa forma, o presente trabalho tem por escopo analisar as inovações, consequências e desafios advindos da promulgação da lei n.º 13.491/2017 que ampliou a competência da Justiça Militar.

Palavras-chave: Lei 13.491/2017, competência, Justiça Militar.

1. INTRODUÇÃO

Em razão da frequente atuação das Forças Armadas para garantia da lei e da ordem, a fim de preservar a ordem pública, devido ao aumento da violência e do esgotamento dos meios previstos para combater a criminalidade  foi apresentado, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 5.768/2016 (que, posteriormente, no Senado,  recebeu a numeração PLC nº 44/2016), objetivando alterar a competência da Justiça Militar da União no processamento e julgamento de militares que, no âmbito de atuação em garantia da lei e da ordem, viessem a praticar crimes dolosos contra a vida de civil. O art. 2º do referido projeto de lei previa que caso fosse aprovada, a lei teria vigência temporária, porém o referido artigo foi vetado pelo Presidente da República e a lei passou a ter caráter permanente. O veto presidencial suscitou várias divergências entre os doutrinadores e operadores do Direito, pois, uma parte deles, considera que o Presidente agiu bem ao vetar o art. 2º, já que a temporalidade da lei feriria o princípio do juiz natural e daria azo à criação de tribunais de exceção.

Em sentido contrário, vários doutrinadores entendem que o veto é inconstitucional porque, ao vetar o art. 2º, o presidente desnaturou o caráter temporário da lei, a tornando permanente. O projeto de lei foi aprovado tendo a lei ganhado o número de 13.491/2017. Diante desse cenário, foram ajuizadas duas ações de inconstitucionalidade que ainda carecem de julgamento perante o STF. A primeira ADI, n.º 5804, foi ajuizada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) questionando a norma que determina, à Justiça Militar, o encaminhamento à Justiça Comum de inquérito policial militar em relação aos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil. A segunda, n.º 5.901, por sua vez, foi proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), questionando dispositivos do Código Penal Militar (CPM) inseridos pela Lei nº 13.491/2017 que preveem hipóteses de competência da Justiça Militar para julgar crimes dolosos contra a vida cometidos por militares das Forças Armadas contra civis.

Nesse contexto, é válido reiterar que a  Lei 13.491/2017 promoveu profundas mudanças no conceito de crime militar, e, assim, deve ser mencionada, uma vez que ampliou o rol de condutas criminosas a serem julgadas pela Justiça castrense para aquelas previstas na legislação penal comum e na legislação extravagante, desde que praticadas no contexto previsto no inciso II do art. 9º do CPM, criando-se, então, os crimes militares por extensão e, consequentemente, na competência da Justiça Militar. Em que pesem as divergências doutrinárias acerca da constitucionalidade da referida lei bem como as duas ações diretas de inconstitucionalidade sobre o tema, o diploma legal está em vigor, razão pela qual o presente trabalho tem por escopo analisar as inovações trazidas pela Lei 13.491/2017 e seus impactos nas regras de competência da Justiça Militar.

2. DESENVOLVIMENTO TEÓRICO

2.1 INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI 13.491/2017

2.1.1 ANÁLISE DO CONCEITO DA EXPRESSÃO LEGISLAÇÃO PENAL

À primeira vista, a expressão legislação penal contida na Lei 13.491/2017 pode dar a impressão de que todos os crimes contidos em nossa legislação penal poderiam ser julgados pela justiça militar. No entanto, algumas observações devem ser feitas quanto ao tema (BRASIL, 2017). A competência da justiça militar restringia-se a processar e julgar os crimes previstos no Código Penal Militar, com a nova redação conferida ao art. 9º, II, do Código Penal Militar, pela lei 13.491/2017. Assim, a justiça militar passou a ter competência para julgar, também, os crimes previstos na legislação penal, desde que praticados nas condições do art. 9º, II, do CPM (BRASIL, 2017).

Até a publicação do referido diploma legal, crimes militares eram apenas os que estavam previstos no Código Penal Militar, conforme Lima: “[…] ainda que o crime fosse cometido por um militar em serviço e em lugar sujeito à administração militar, tal crime não seria considerado militar se acaso não constasse do Código Penal Militar” (LIMA, 2018, p. 363). A súmula 172 do STJ aduz que: “[…] compete à Justiça Comum processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço”. O crime de abuso de autoridade não estava previsto no Código Penal Militar e, por isso, não poderia ser tipificado como crime militar, ainda que praticado por militar em serviço.

No entanto, após a publicação da Lei 13.491/2017, se o crime de abuso de autoridade for praticado por militar da ativa em uma das hipóteses do art. 9º, II, do CPM, por exemplo, em lugar sujeito à administração militar, por militar em serviço, será processado e julgado pela justiça militar (BRASIL, 2017). Nos ensinamentos de Lima:

[…] encontra-se superado, portanto, o referido verbete sumular, já que o abuso de autoridade é crime previsto na legislação penal. Logo, se praticado por militar em serviço, por exemplo, abuso de autoridade consubstanciado em atentado à liberdade de locomoção, o agente deverá ser denunciado pela prática do agora crime militar do art. 3º, “a”, da lei 4.898/65, c/c o art. 9º, II, “c”, do CPM, perante à Justiça Militar da União – se militar das forças armadas -, ou perante à Justiça Militar dos Estados – se militar estadual (LIMA, 2018, p. 363).

No mesmo sentido, Wondracek e Wiggers afirmam:

Ao dar nova redação ao inciso II para, agora, preconizar “os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal”, a Lei nº 13.491/2017 arrastou o Código Penal Comum e a legislação penal extravagante para dentro da definição de crime militar em tempo de paz, se presentes as já mencionadas circunstâncias. Neste norte, dada a expressão “legislação penal”, corolário que se englobe na esfera dos crimes militares todo e qualquer delito previsto na legislação penal extravagante, v.g., lei dos crimes de tortura (Lei nº 9.455/97); lei dos crimes de drogas (Lei nº 11.343/2006); lei dos crimes de abuso de autoridade (Lei nº 4.898/65); e Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003) (WONDRACEK; WIGGERS, 2018, p. 1).

O novo diploma legal, ao alterar o art. 9º, II, do CPM, menciona que a Justiça Militar também terá competência para processar e julgar os crimes previstos na legislação penal. A expressão legislação penal abrange não só os crimes previstos no Código Penal Comum, mas também os previstos na legislação especial. Lima exemplifica:

[…] destarte, com a vigência da lei 13.491/2017 crimes praticados por militares em serviço que até então não eram considerados crimes militares pelo simples fato de não estarem previstos no código penal militar passaram a adquirir esse status. Vejamos alguns exemplos: aborto (CP, arts. 124, 125 e 126); omissão de socorro (CP art. 135); invasão de dispositivo informático (CP, art. 154-A); ocultação de cadáver (CP, art. 211); assédio sexual (CP, art. 216-A); abuso de autoridade (Lei 4.898/65); crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, tais como o armazenamento de imagens pedófilo-pornográficas (Lei 8.069/90, art. 241-B); crimes previstos na Lei de Licitações (Lei 8.666/93); Crimes previstos na lei de Tortura (Lei n. 9.455/97); crimes previsto no Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97); crimes ambientais (Lei n. 9.605/98), etc (LIMA, 2018, p. 363).

Nesse sentido, também está superado o entendimento da Súmula 6, do STJ, que dispõe que fica à cargo da Justiça Comum Estadual o processamento e julgamento do delito advindo de acidente de trânsito, envolvendo viatura de polícia militar, a não ser que autor e vítima sejam policiais militares em atividade. Considerando que a competência da justiça militar foi ampliada para processar e julgar os crimes tanto da legislação penal comum quanto da legislação penal especial, se o militar estiver em serviço e praticar e homicídio culposo na direção de veículo automotor, a competência não será mais da justiça comum e sim da justiça militar, sendo desnecessária a análise se a vítima é civil ou militar.

2.1.2 LEI 13.491/2017 E AS CONTRAVENÇÕES

Questionamento importante que surge é se as contravenções penais poderiam passar a ser processadas e julgadas na Justiça Militar em virtude das alterações promovidas pela Lei 13.491/2017, ao que Lima responde negativamente:

[…] Interessante notar que a lei n. 13491/2017 não reproduziu a expressão crimes previstos na legislação penal. Porém, como a palavra crimes já consta no inciso II quando o dispositivo faz menção àqueles previstos no Código Penal Militar, é de se concluir que foi acrescida à Justiça Militar exclusivamente a competência para julgar os crimes previstos na legislação penal. E nem poderia ser diferente. Afinal, é a própria Constituição Federal que delimita a competência da Justiça Militar (da União e dos Estados) ao julgamento dos crimes militares (LIMA, 2018, p. 364).

No mesmo sentido, Wondracek e Wiggers afirmam:

Lado outro, não se pode perder de vista que a Lei nº 13.491/2017, ao dar nova redação ao artigo 9º do Código Penal, não incluiu no rol de possíveis infrações penais militares as contravenções penais previstas Decreto-Lei nº 3.688/1941. Veja-se que o referido dispositivo continua a referir-se tão somente a crimes, de modo que as contravenções penais, espécies de infração penal, continuam excluídas da esfera das infrações penais militares (WONDRACEK; WIGGERS, 2018, p. 1).

Sendo assim, caso um militar pratique, em serviço, uma contravenção penal, a competência será sempre da Justiça Comum, afastando-se a hipótese de ocorrência de contravenção militar.

2.1.3 ANÁLISE DA SÚMULA 75, DO STJ

A súmula 75, do STJ, aduz que: “compete à justiça comum estadual processar e julgar o policial militar por crime de promover ou facilitar a fuga de preso de estabelecimento penal” (BRASIL, 2017). O critério para definir a justiça competente a partir da interpretação do enunciado citado passava pela análise do estabelecimento prisional – se fosse um estabelecimento militar e se a competência fosse da justiça militar (art. 178, do CPM), se o estabelecimento não fosse militar, a competência era da justiça comum (art. 351, do CP). Devido às inovações trazidas pela lei 13.491/2017, não importa o estabelecimento prisional em que o crime de promover ou facilitar a fuga de preso de estabelecimento penal é praticado, se estiverem presentes as condições previstas no art. 9, II, do CPM, o crime será processado e julgado perante à Justiça Militar. A súmula 75 do STJ deve ser lida nos seguintes termos, segundo Lima:

Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar o policial militar pelo crime de promover ou facilitar a fuga de preso de estabelecimento penal (CP, art. 351), mas desde que o agente não se encontre em uma das hipóteses do inciso II, do art. 9º do Código Penal Militar (LIMA, 2018, p. 364).

Dessa forma, a definição da justiça competente carece da análise da presença dos requisitos do art. 9º, II, do Código Penal Militar.

2.1.4 EXCEÇÕES À COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR APÓS A LEI 13.491/2017

A Lei 13.491/2017 foi concebida como lei ordinária e, por isso, não pode se sobrepor a Constituição quando esta prevê regras de competência, conforme leciona Lima:

[…] como espécie de lei ordinária, a Lei 13.491/2017 não pode se sobrepor à Constituição Federal no tocante à fixação de competência. A título de exemplo, se a Constituição Federal dispõe que à Justiça Eleitoral compete o processo e julgamento dos crimes eleitorais (CF, art. 121), é de todo evidente que o fato de um crime eleitoral ser praticado por militar em serviço jamais terá o condão de atrair tal competência para a Justiça Militar (LIMA, 2018, p. 365).

O novel diploma legal e o Código Penal Militar ainda são normas gerais em relação à competência, e, portanto, não pode se sobrepor à lei especial, conforme assevera Lima:

[…] eventual norma especial sobre competência prevista na própria legislação penal deve prevalecer sobre a norma geral, leia-se Código Penal Militar. É o que ocorre, por exemplo, com os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Se a própria Lei n. 7.492/86 (art. 26) dispõe que recai sobre a Justiça Federal a competência para o processo e julgamento de tais delitos, o que faz com base no permissivo do art. 109, VI, da Constituição Federal, é de se concluir que tal dispositivo funciona como norma especial sobre o art. 9º, inciso II, do CPM (LIMA, 2018, p. 365).

A Lei 13.491/2017 possibilitou o alargamento da competência da Justiça Militar. No entanto, o operador do direito deve permanecer atento caso haja previsão constitucional e/ou legal conferindo competência à outra justiça.

2.1.5 ANÁLISE DA SÚMULA 90, DO STJ

A súmula 90 do STJ comporta o seguinte enunciado: “compete à justiça Estadual Militar processar e julgar o policial militar pela prática do crime militar e a comum, pela prática de crime comum simultâneo àquele”. O referido preceito continua em vigor, mas deve ser lido com cautela, conforme explica Lima:

[…] Antes da lei 13.491/2017, justificava-se a separação dos processos porque nem sempre esse crime simultâneo ao delito militar estava previsto no Código Penal Militar. Logo, se o militar praticasse em serviço, por exemplo, um crime de lesão corporal e outro de abuso de autoridade, dar-se-ia a separação dos processos. Por se tratar de crime previsto no CPM (art. 209), a lesão corporal era julgada pela Justiça Militar. Por se tratar de crime que não estava previsto no CPM, mas sim na legislação especial (Lei 4.898/65), o abuso de autoridade era crime comum, logo, da competência da Justiça Comum. Com as mudanças produzidas pela Lei 13.491/2017, essa conduta delituosa – no nosso exemplo, abuso de autoridade – simultânea ao crime militar (v.g., lesão corporal) também passa a funcionar como crime militar. […] Destarte, se esse crime simultâneo ao crime militar for praticado numa das condições do inciso II, do art. 9º, é de se concluir que a Lei 13.491/17 passou a lhe conferir natureza de crime militar. Por conseguinte, não haverá mais a necessidade de desmembramento dos feitos, porque ambas as condutas delituosas passaram a ser crimes militares (LIMA, 2018, p. 365).

No entanto, como explanado no tópico anterior, nem todos os crimes passaram a ter natureza de crime militar após as modificações introduzidas pela Lei 13.491/17 ao art. 9º, II, do CPM, uma vez que as normas previstas no CPM e na referida lei são normas gerais em matéria de competência, sendo assim, se houver competência previamente fixada na constituição ou em norma especial, estas devem prevalecer – como é o caso da competência da justiça eleitoral e da Lei 9.613/98 (lavagem de capitais). Ademais, caso o militar pratique um crime militar e uma contravenção, os feitos deverão ser julgados separadamente, uma vez que a Lei 13.491/17, ao ampliar a competência da justiça militar, não fez menção à lei de contravenções.

2.2 QUESTÕES DE DIREITO INTERTEMPORAL

A Constituição Federal, ao tratar da competência da Justiça Militar, menciona que os crimes militares serão definidos em lei, sendo assim, a definição de tais crimes deveria estar prevista no Código de Processo Penal Militar, pois a própria Constituição aduz que o conceito de crime militar seria decisivo na identificação da justiça competente. Assim, sobre a a regra de direito processual penal e não de direito material penal Lima destaca que:

[…] Como se trata de matéria relativa à competência, tema relativo ao direito processual, e não ao direito material, era de se esperar que referido conceito constasse no Código de Processo Penal Militar. Por opção legislativa, todavia, o legislador houve por bem definir o conceito de crime militar, definindo, assim, a própria competência da Justiça Militar, no âmbito do Código Penal Militar. Isso, todavia, não autoriza a conclusão no sentido de que se trata de norma de direito material, à qual seria aplicável, portanto, o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa, jamais o princípio da aplicação imediata (LIMA, 2018, p. 367).

O conceito de crime militar trazido pela Lei 13.491/2017 é uma norma heterotópica, ou seja, um fenômeno em que embora o conteúdo de uma norma confira-lhe certa natureza, ela encontra-se prevista em diploma legal de natureza diversa. No mesmo sentido, leciona Assis: “[…] por ocasião da lei 13.491/2017, nos manifestamos que ela teria, ao mesmo tempo, caráter penal e processual penal” (ASSIS, 2019, p. 48). Em sentido contrário, Rocha afirma que: “[…] a norma alterada pela Lei 13.491 que nos ocupa a atenção (inciso II do art. 9º do CPM) é de natureza material, que sequencialmente produz efeitos secundários de natureza processual” (ROCHA, 2017, p. 56). Por se tratar de uma norma processual que altera regras de competência a Lei 13.491/2017, deve ser aplicada imediatamente, com fundamento do princípio do tempus regit actum, salvo se já houver sentença de mérito, ao que o processo deverá seguir tramitando na justiça em que a decisão foi prolatada, ressalvada a hipótese de supressão do Tribunal que deveria julgar o recurso. Conforme os ensinamentos de Lima:

[…] se o crime praticado por militar em serviço previsto na legislação penal, outrora considerado crime comum, estava em tramitação perante a Justiça Comum (Estadual ou Federal), a entrada em vigor da Lei 13.491/2017 deverá provocar a remessa imediata do feito à Justiça Militar da União (ou dos Estados) (LIMA, 2018, p. 367).

No entanto, essa remessa à Justiça Militar deve observar o princípio da irretroatividade da lex gravior pelo Juiz de Direito do Juízo Militar Estadual ou pelos Conselhos de Justiça. Explica-se, antes do advento da Lei 13.491/2017, que o crime de abuso de autoridade era de competência da justiça comum, ou seja, não era considerado crime militar e como a pena privativa de liberdade era de até 6 meses, era possível a aplicação das regras da lei 9.099/95 e a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, porém, não é possível aplicar os institutos da Lei 9.099/95 à justiça castrense bem como esta não admite a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Lima apresenta como solução nestes casos que:

[…] Revela-se mais adequada, portanto, a aplicação imediata do novo regramento acerca da competência, com o consequente deslocamento dos feitos para a Justiça Militar, sem prejuízo da aplicação da lex mitior pelo Juiz de Direito do Juízo Militar (ou pelos Conselhos de Justiça) (LIMA, 2018, p. 367).

Sendo assim, o acusado deve ser processado e julgado pelo Justiça Militar, mas se deve assegurar todos os benefícios de direito material incidentes anteriormente à vigência da lei, em observância ao princípio da irretroatividade da lei mais gravosa.

2.3 PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL

O princípio do juiz natural tem por escopo assegurar que as partes sejam julgadas por um juiz imparcial e independente, constituído antes do fato delituoso, a ser julgado mediante regras taxativas de competência previstas em lei. O advento da Lei 13.491/2017 não fere o princípio do juiz natural, visto que as modificações nas regras de competência criminal, em razão da matéria, introduzidas pelo referido diploma legal uma vez que o art. 5º, inciso LIII, da Constituição, somente asseguraram o processo e julgamento frente à autoridade competente, sem asseverar que o juízo deva ser pré-constituído ao crime a ser posteriormente julgado.

2.4 CONTROVÉRSIA DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI 13.491/2019

A Lei 13.491/2017 originou-se do Projeto de Lei 5.768/16, no qual foi acrescentado o art. 2º ao referido projeto com o objetivo de que a mudança nas regras de competência perdurassem, exclusivamente, até o dia 31 de dezembro de 2016, em razão da excepcionalidade dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos ocorridos no Rio de Janeiro. Quando aprovada no Congresso, a Lei 13.491/2017 continha o art. 2º com a seguinte redação: “Art. 2º. Esta lei terá vigência até o dia 31 de dezembro de 2016 e, ao final da vigência desta Lei, retornará a ter eficácia a legislação anterior por ela modificada” (BRASIL, 2017). O art. 2º foi vetado pelo então presidente Michel Temer, com base nas seguintes razões:

As hipóteses que justificam a competência da Justiça Militar da União, incluídas as estabelecidas pelo projeto sob sanção, não devem ser de caráter transitório, sob pena de comprometer a segurança jurídica. Ademais, o emprego recorrente das Forças Armadas como último recurso estatal em ações de segurança pública justifica a existência de uma norma permanente a regular a questão. Por fim, não se configura adequado estabelecer-se competência de tribunal com limitação temporal, sob pena de se poder interpretar a medida como o estabelecimento de um tribunal de exceção, vedado pelo artigo 5º, inciso XXXVII da Constituição (BRASIL, 2017).

Trata-se de um questionamento recorrente na doutrina referente à constitucionalidade do veto proferido por Michel Temer, uma vez que este transformou uma lei temporária em permanente, no que tange à constitucionalidade formal, e, dessa forma, o veto preenche os requisitos, uma vez que o art. 66, §2º, da Constituição Federal proíbe o veto parcial de artigo, parágrafo, inciso ou alínea. O art. 2º foi vetado em sua integralidade, portanto, em consonância com as normas formais previstas na Constituição. Ainda, segundo Lima:

De mais a mais, o veto presidencial ao art. 2º do Projeto de Lei estaria plenamente justificado diante de sua manifesta inconstitucionalidade, porquanto não se pode admitir uma mudança temporária de competência, sob pena de criação de um verdadeiro Tribunal de exceção (LIMA, 2018, p. 370).

No aspecto material, ao vetar integralmente o referido artigo, o Presidente estaria contrariando o que foi aprovado pelo Congresso Nacional, tendo, neste caso, atuado como verdadeiro legislador. Nesse sentido:

Com a devida vênia, por mais que tenha havido o veto integral de um artigo, não nos parece possível concluir pela constitucionalidade da Lei n. 13.491/2017, sob pena de se admitir que o Presidente da República modifique, por completo, aquilo que fora aprovado pelo Poder Legislativo (BRASIL, 2017).

Segundo os ensinamentos de Lima:

[…] O projeto de lei aprovado pelo Congresso previa uma mudança temporária de competência. Ao vetar o art. 2º, o Presidente da República conferiu a essa mudança uma natureza definitiva, permanente, desnaturando integralmente aquilo que fora aprovado pelo Poder Legislativo (LIMA, 2018, p. 363).

No mesmo sentido, tem-se a seguinte premissa:

Assim, em uma interpretação teleológica, aquela que visa a finalidade da norma, tem-se que o veto do Presidente da República alterou o principal objetivo da norma, pois tornou permanente o que era para ser temporário (BRASIL, 2017).

Em sentido contrário, para Roth: “[…] a Lei é constitucional, pois a sua edição obedeceu ao devido processo legal” (ROTH, 2017, p. 125).  Assis, considera a lei constitucional e leciona que:

Pensamos, respeitadas as opiniões em contrário, que a mudança operada no inc. II, do art. 9º, do Código Penal Militar (CPM), não pode ser acoimada de inconstitucional, ela decorreu do devido processo legislativo (ainda que com uma ou outra bizarrice tupiniquim), seguindo o rito estabelecido a partir do art. 59 e seguintes da Constituição Federal (ASSIS, 2019, p. 30).

Em que pese as divergências doutrinárias, a Lei 13.441/2017 está em vigor e as regras para se estabelecer a competência da Justiça Militar devem levar em consideração e vigência do referido diploma legal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei 13.491/2017 ampliou, de forma significativa, a competência da Justiça Militar para processar e julgar crimes dolosos praticados por militar contra a vida de civil nas hipóteses previstas nos incisos I, II e III do § 2º do art. 9º do Código Penal Militar bem como alargou o rol de condutas criminosas a serem julgadas pela Justiça castrense para aquelas previstas na legislação penal comum e na legislação extravagante, desde que praticadas no contexto previsto no inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, criando, assim, os crimes militares por extensão, possuindo, portanto, natureza híbrida (material e processual). Nesse contexto, constatou-se que o referido diploma, ao dar nova redação ao art. 9º do Código Penal Militar, não incluiu no possível rol de infrações militares as contravenções penais, e, por isso, não há que se falar em contravenções militares.

Importante mencionar que a Lei 13.491/2017 possibilitou o alargamento da competência da Justiça Militar. No entanto, o operador do direito deve permanecer atento caso haja previsão constitucional e/ou legal conferindo competência à outra justiça, por exemplo, nos casos da competência da justiça eleitoral e aos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei 7.492/86). Com relação às regras de direito intertemporal, como já afirmado, a Lei 13.491/2017 tem natureza híbrida, e, por isso, no que tange às regras processuais, ela deve ser aplicada imediatamente, em razão do princípio do tempus regit actum. Ainda que a questão da (in)constitucionalidade da norma esteja sob análise no Supremo Tribunal Federal, o referido diploma legal está em vigor e as regras para se estabelecer a competência da Justiça Militar devem observar os seus preceitos.

REFERÊNCIAS

ASSIS, J. C. de. Crime Militar e Processo – Comentários à Lei 13.491/2017. 2ª. ed. Curitiba: Juruá, 2019.

BRASIL. Lei n. 13.491, de 16 de outubro de 2017. Altera a legislação tributária federal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 out. 2017. Disponível em: https://s3.meusitejuridico.com.br/2017/10/7029a770-ampliacao-de-competencia-da-justica-militar.pdf. Acesso em: 11 set. 2019.

LIMA, R. B. de. Manual de Processo Penal. 6ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.

ROCHA, F. A. N. Galvão da. Natureza material do dispositivo que amplia o conceito de crime militar e o deslocamento dos inquéritos e processos em curso na Justiça Comum para a Justiça Militar. Revista do Observatório da Justiça Militar Estadual, v. 1, n. 2, p. 56-62, 2017.

ROTH, R. J. Lei 13.491/17 – Os crimes militares por extensão e o princípio da especialidade. Revista de Doutrina e Jurisprudência. v. 27, n. 1, jul./dez. 2017.

WONDRACEK, J; WIGGERS, A. P. Lei nº 13.491/2017: nova definição de crime militar e seus reflexos. Revista Jus Navigandi, Ano 23, n. 5402, 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64237. Acesso em: 14 set. 2018.

[1] Pós-graduada em Direito Militar e em Direito Processual Civil, graduada em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público.

Enviado: Janeiro, 2020.

Aprovado: Março, 2020.

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Barbara Dias Barbosa

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