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O problema deontológico do direito

RC: 144254
625
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/problema-deontologico

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

BLATT, Daniel Soriano [1]

BLATT, Daniel Soriano.  O problema deontológico do direito. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 05, Vol. 01, pp. 05-16. Maio de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/problema-deontologico, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/problema-deontologico

RESUMO 

Este artigo tem como objetivo analisar os conceitos de Direito, Justiça e Norma Jurídica, e refletir sobre sua relevância nos dias atuais. Questiona-se se seria possível a existência de um Direito injusto, se a Norma Jurídica e o Direito podem servir como instrumentos de violação de direitos fundamentais, e o que seria necessário para que o Direito exerça o seu verdadeiro papel, o da manutenção da paz e da ordem social. Analisa-se alguns exemplos de sociedades em que o Direito serviu e serve como ferramenta de repressão, como na Alemanha Nazista. Como metodologia, esta pesquisa qualitativa, de cunho descritivo, envolve, como modalidade, a pesquisa bibliográfica, com a utilização de obras e artigos científicos, a fim de fundamentar e aprofundar o conhecimento. Por fim, conclui-se que para que o Direito esteja corretamente alinhado com a sua finalidade, e não seja deturpado, utilizado de maneira incorreta, é necessário que haja uma convergência entre o quanto tutelado pelo Direito e os valores inerentes ao ser humano, conhecido, também, como Direito Natural. Somente um constante exercício de reflexão sobre os rumos do Direito permitirá que o Direito continue pelo caminho adequado.

Palavras-chave: Direito, Norma Jurídica, Justiça, Ordenamento Jurídico, Valores.

1. INTRODUÇÃO

Direito, Justiça e Norma Jurídica: três conceitos de extrema relevância nos dias atuais. Quais os seus significados? Acaso seriam estes conceitos convergentes, sempre caminhando de forma uníssona, na mesma direção, de maneira harmônica? Seria possível existir alguma divergência, alguma espécie de conflito entre o conceito de Direito e o conceito de Justiça, ou entre o Direito e os valores tidos como justos? Como solucionar eventual conflito?

O Direito poderia, de alguma forma ser injusto, e confrontar a Justiça, contrapondo valores consagrados? A Justiça e os valores prestigiados pela sociedade poderiam existir sem o Direito? O Direito poderia existir sem a Justiça e valores? Quais seriam as condições necessárias para que o Direito esteja alinhado com a Justiça com os valores tidos como basilares? Qual seria o papel da Norma Jurídica no delineamento dos conceitos de Direito da Justiça, na defesa de valores inerentes ao ser humano e na manutenção de uma harmonia entre estes conceitos? Poderia a Norma Jurídica funcionar como instrumento de repressão e violador de valores fundamentais consagrados? E como isso tudo tem ocorrido na prática?

As questões propostas são de extrema complexidade e, ao mesmo tempo, de excessiva relevância nos dias de hoje. Em diversos momentos da História, observou-se o estabelecimento e a consagração de teóricos Estados de Direito, como durante a Alemanha Nazista, mas que eram, ao mesmo tempo, violadores de direitos fundamentais, direitos inerentes à condição humana, perpetuando desrespeitos que não coadunam com o conceito primordial de Direito e com a ideia de Justiça. A Norma Jurídica, que deveria ser uma garantidora e protetora de direitos fundamentais, protetora do conceito de Justiça, foi, por diversas vezes, utilizada como ferramenta, instrumento de repressão e de perseguição, em nome da defesa de valores deturpados de ideias discriminatórias e de interesses próprios.

A Alemanha Nazista, como exemplo clássico, tinha como duas de suas principais leis a Lei da Cidadania do Reich e a Lei de Proteção do Sangue da Honra Alemã que, dentre outras interdições, proibiam casamento entre alemães e judeus, relações sexuais com judeus e utilizavam-se de critérios racistas para definir quem poderia ser considerado cidadão alemão. Ou seja, todas as violações ali perpetuadas eram fundamentadas e justificadas com base em um ordenamento jurídico estruturado e normas jurídicas positivadas, por meio de lei, ainda que o alicerce de tais leis colidisse integralmente com a preservação de direitos fundamentais inerentes à condição humana.

A Alemanha Nazista é apenas um exemplo, dentre incontáveis outros, nos quais são observadas cristalinas violações a direitos básicos e inerentes à condição humana, violações estas respaldadas e fundamentadas em ordenamentos jurídicos, em normas jurídicas positivadas. A norma jurídica, que deveria atuar como garantidora de direitos, passa a ser um mecanismo lícito de perseguição em várias sociedades.

Não há, aqui, a audaciosa pretensão de serem solucionadas tais problemáticas, uma vez que, se fossem de simples respostas, já teriam sido resolvidas anteriormente. O objetivo deste artigo científico é o de estimular a reflexão sobre tais conceitos e questões, a fim de que se tenha em mente a que ponto o Direito, se utilizado com más intenções, se mal aplicado, pode chegar desviando-se por completo de sua real finalidade. A constante vigilância do Direito passa a ser primordial.

2. RACISMO ESTRUTURADO NO ORDENAMENTO JURÍDICO DA ALEMANHA NAZISTA

A Alemanha Nazista, de uma forma muito peculiar, conseguiu inserir em seu ordenamento jurídico a perseguição a diversos grupos, como ciganos, homossexuais, mas, principalmente, a perseguição aos judeus. Assim, em uma verdadeira inversão de valores, a discriminação dos judeus, que logicamente não deveria ser tolerada por nenhum ordenamento jurídico, passou a fazer parte do ordenamento jurídico alemão. A intolerância aos judeus, com isso, passou a ser considerada lícita, sendo ilegal justamente o contrário: assegurar aos judeus os mesmos direitos garantidos aos alemães da suposta “raça ariana”.

Neste sentido, a Lei de Proteção do Sangue da Honra Alemã servia como verdadeira ferramenta de discriminação inserida dentro do ordenamento jurídico nazista:

[…] atuava consideravelmente no âmbito privado da sociedade alemã, pois proibia o casamento entre alemães e judeus. As relações sexuais entre alemães e judeus também foram proibidas pela lei, e os judeus ficavam proibidos de contratar empregadas alemãs com idade inferior a 45 anos. Todas as pessoas que não respeitavam essa lei eram acusadas de “corrupção sexual” (SILVA, s.d., n.p.).

Isto é, referida lei não só regulamentava relações civis de forma discriminatória e racista, mas adentrava até mesmo à intimidade dos judeus e dos alemães que não fossem judeus, proibindo relações sexuais entre judeus alemães e os alemães da suposta “raça pura”. Desrespeitar tal absurda lei chegou ao ponto de ser considerado “corrupção sexual”.

O tamanho da segregação era tão grande, que esta lei, tida como a segunda Lei de Nuremberg, considerava que as relações sexuais com judeus eram “poluidoras da raça”. Isto mesmo: relações sexuais entre judeus e alemães que não fossem judeus supostamente poluiriam a raça ariana, sendo algo intolerável pelas normas jurídicas nazistas:

A segunda Lei de Nuremberg, a Lei de Proteção do Sangue Alemão e da Honra Alemã, proibia o matrimônio entre judeus e não-judeus, e também criminalizava as relações sexuais entre aquelas pessoas. Tais relações eram rotuladas como “poluidoras da raça” (Rassenschande). A lei também proibia judeus de contratarem empregadas alemãs com idade abaixo de 45 anos, presumindo que os homens judeus forçariam as mesmas a cometerem “poluição racial”. Milhares de pessoas acusadas como “poluidoras raciais” foram condenadas ou simplesmente desapareceram nos campos de concentração (ENCICLOPÉDIA DO HOLOCAUSTO, s.d., n.p.).

Por sua vez, uma outra Lei de Nuremberg, a Lei de Cidadania do Reich, estabelecia conceitos basilares sobre quem deveria ser discriminado e quem poderia exercer normalmente os seus direitos. Afinal, conforme observou-se anteriormente, a Lei de Proteção do Sangue Alemão e da Honra Alemã marginalizava os judeus. Mas, quem seriam os judeus?

Para isto, foi necessário, de forma inteligível, estruturada e integrada ao ordenamento jurídico da Alemanha Nazista, estabelecer critérios e conceitos de quem seriam os judeus e quem não seria considerado judeu, sempre com o intuito de se criar um respaldo e uma possibilidade de distinção dentro do ordenamento jurídico alemão que justificasse o cometimento de tamanhas atrocidades e perseguições, criando um verdadeiro lastro de legalidade e legitimidade para a concretização de ideias racistas.

Assim, coube à Lei de Cidadania do Reich estabelecer quem seria considerado cidadão alemão e quem não seria, precisando critérios específicos com base na genealogia e origem dos que ali viviam:

[…] definia quem seria considerado cidadão alemão e quem não seria. De acordo com a lei, somente pessoas com sangue alemão e com vínculo comprovado genealogicamente é que seriam considerados alemães. Os que não recebessem a cidadania eram considerados apenas “sujeitos de Estado”, pessoas que tinham obrigações com o Estado, mas que não possuíam nenhum direito.

Segundo a Lei de Cidadania do Reich, todas as pessoas que tivessem ¾ de sangue judeu ou que praticassem a religião judaica seriam consideradas judias. O ¾ faz menção aos avós paternos e maternos, portanto, se três dos quatro avós de uma pessoa fossem judeus ela seria considerada judia pela lei alemã.

As pessoas que tivessem ¼ ou ½ de sangue judeu eram consideradas pertencentes a uma raça mestiça de segundo e de primeiro grau, respectivamente. As pessoas dessas duas “raças mistas” tinham direito à cidadania alemã. No caso desses, vinculados à “raça mista”, eles seriam considerados judeus caso praticassem o judaísmo, caso fossem casados com judeus ou caso fossem filhos de um pai judeu ou mãe judia […] (SILVA, s.d., n.p.).

Dessarte, como se percebe, a obsessão pela perseguição aos judeus era tamanha que foram estabelecidas até mesmo “porcentagens de sangue judeu” para justificar servir como pretexto para a tirania e para o ódio injustificado. Todavia, referida discriminação jamais poderia ocorrer sem respaldo, sem uma sustentação jurídica, sem um lastro legal. Deste modo, criaram-se absurdas justificativas jurídicas inseridas de forma positiva com conjunto de normas jurídicas alemãs, a fim de validarem os absurdos perpetuados na Alemanha Nazista.

Logo, os judeus não seriam membros de uma comunidade, uma coletividade, praticantes de uma religião, ou de uma cultura determinada, mas, sim, integrantes de uma raça inferior, raça esta que jamais poderia se misturar com a “raça pura”. Mesclar os judeus com os alemães seria uma verdadeira “poluição racial”. Os judeus seriam a raiz de todos os problemas existentes na Europa, dos mais variados que fossem, motivo pelo qual deveriam ser segregados para não contaminar o restante da sociedade:

Os nazistas rejeitavam a visão tradicional dos judeus como sendo membros de uma comunidade religiosa ou cultural. Ao vez disso, eles afirmavam que os judeus eram uma raça definida pelo nascimento e pelo sangue (ENCICLOPÉDIA DO HOLOCAUSTO, s.d., n.p.).

3. DEFINIÇÕES DO CONCEITO DE DIREITO 

Prima facie, antes de serem tecidas reflexões sobre as perguntas propostas anteriormente, é imperioso compreender e delimitar com clareza os conceitos de Direito, Justiça e Norma Jurídica, conceitos-chave para a construção de um raciocínio lógico e fundamentado para responder tais perguntas.

Norberto Bobbio, um dos grandes alicerces do Direito, em sua famosa obra “Teoria do Ordenamento Jurídico”, ab initio, já se defrontou com uma grande problemática na definição do conceito de Direito vez que, a depender do enfoque e do critério utilizado, pode ser analisado sob uma ótica completamente distinta da outra.

Neste toar, o jurista inicia a sua obra:

No conjunto das tentativas realizadas para caracterizar o Direito através de algum elemento da norma jurídica, consideraríamos sobretudo quatro critérios: “1. critério formal; 2. critério material; 3. critério do sujeito que põe a norma; 4. critério do sujeito ao qual a norma se destina” (BOBBIO, 1995, p. 23).

Já de início constata-se a dificuldade de se delimitar referido conceito, sendo necessário o estabelecimento de critérios a partir dos quais será possível focar a atenção dos estudos.

Resumindo o critério formal, Bobbio (1995, p. 23) assevera: 

  1. Por critério formal entendemos aquele pelo qual se acredita poder ser definido o que é o Direito através de qualquer elemento estrutural das normas que se costuma chamar de jurídicas. Vimos que, com respeito à estrutura, as normas podem distinguir-se em:

a) positivas ou negativas;

b) categorias ou hipotéticas;

c) gerais (abstratas) ou individuais (concretas).

Posto isto, o que definiria Direito sob o ponto de vista formal seria o elemento estrutural das normas jurídicas. Se as normas estiverem em conformidade estrutural são consideradas Direito. Do contrário, sob uma visão meramente formal, não são consideradas Direito.

Prosseguindo, ao abordar o critério material, Bobbio (1995, p. 24) destaca:

2. Por critério material entendemos aquele critério que se poderia extrair do conteúdo das normas jurídicas, isto é, das ações reguladas. Esse critério é manifestamente inconcludente. Objeto de regulamentação por parte das normas jurídicas são todas as ações possíveis do homem, e entendemos por “ações possíveis” aquelas que não são nem necessárias nem impossíveis.

O critério material, diferentemente do critério formal, dá ênfase às ações regulamentadas pelo Direito, e não à forma em si. Este regulamento, por sua vez, precisaria ter um alicerce, uma base justificada. Uma vez bem fundamentado, tomaria forma por meio do critério formal.

Aduz, então, Bobbio (2010, p. 36), em seu livro Teoria Geral do Direito, que as regras de conduta transformadas em regras jurídicas devem passar por três valorações distintas:

O primeiro ponto que, na minha opinião, é preciso ter bem claro na mente se quer dotar uma teoria da norma jurídica de fundamentos sólidos é que toda norma jurídica pode ser submetida a três valorações distintas, e que essas valorações são independentes umas das outras. Diante de uma norma jurídica qualquer, podemos efetivamente nos colocar uma tríplice ordem de problemas: 1) se ela é justa ou injusta; 2) se ela é válida ou inválida; 3) se ela é eficaz ou ineficaz. Trata-se dos três problemas distintos da justiça, da validade e da eficácia de uma norma jurídica.

Portanto, segundo o entendimento do doutrinador, se determinada norma jurídica não passa pela valoração de justiça, há aqui um sério problema. “É necessário que haja uma consonância entre o valor da justiça e a norma jurídica em questão. Prosseguindo sobre o que seria o justo na norma jurídica, reflete:

O problema da justiça é o problema da correspondência ou não da norma aos valores últimos ou finais que inspiram determinado ordenamento jurídico. Não vamos tocar, por ora, no problema da existência de um ideal de bem comum idêntico para todas as épocas e para todos os lugares. Basta-nos constatar aqui que todo ordenamento jurídico persegue determinados fins, e concordar com o fato de que esses fins representam os valores para cuja realização o legislador, mais ou menos conscientemente, mais ou menos adequadamente, dirige a própria obra. Caso se considere que existem valores supremos, objetivamente evidentes, questionar se uma norma é justa ou injusta significa perguntar se ela está apta ou não para realizar esses valores. Mas também no caso de quem não crê em valores absolutos, o problema da justiça ou não de uma norma tem sentido; equivale a se perguntar se aquela norma está apta ou não a realizar os valores históricos que inspiram aquele ordenamento jurídico concreto e historicamente determinado. O problema de saber se uma norma é ou não justa é um aspecto do contraste entre mundo ideal e mundo real, entre o que deve ser e o que é: norma justa é aquilo que deve ser; norma injusta é aquilo que não deveria ser. Colocar-se o problema da justiça ou não de uma norma equivale a se colocar o problema da correspondência entre o que é real e o que é ideal. Por isso, costuma-se chamar o problema da justiça de problema deontológico do direito (BOBBIO, 2010, p. 37-38).

Conseguinte, se o raciocínio for construído do pressuposto de um ideal comum, de valores comuns, para que se tenha uma determinada norma jurídica como justa basta que ela esteja alinhada com este ideal, com estes valores. O grande problema reside justamente quando não há um denominador valorativo comum. Nos exemplos citados anteriormente, perseguir judeus, matar mulheres que não se vestem adequadamente e executar homossexuais realizavam os valores dos ordenamentos jurídicos em questão. Como garantir, então, que os valores por detrás dos ordenamentos jurídicos sejam adequados, básicos, e que respeitem os direitos fundamentais inerentes à condição humana?

4. JUSTIÇA E NORMA JURÍDICA 

Há de se compreender, também, que Direito e Norma Jurídica não exprimem, necessariamente, a mesma ideia, sendo o Direito mais amplo do que a Norma Jurídica propriamente dita.

Uma norma, segundo o Dicionário Oxford Languages, é “aquilo que regula procedimentos ou atos; regra, princípio, padrão, lei; padrão estabelecido, costume”. Ou seja, a norma, em seu sentido amplo, tem como objetivo regular, regrar, atos, omissões, estabelecer um padrão de conduta. Aquele que age em conformidade com o padrão estabelecido estaria agindo de acordo com a norma, enquanto aquele que viola a regra, o padrão estabelecido, estaria violando a norma.

Partindo para uma análise mais específica, tem-se que uma norma jurídica é, então, uma norma inserida no ordenamento jurídico, aquilo que pauta o ordenamento jurídico, e determina o que está em conformidade com ele e o que não está. Vive-se em uma sociedade pautada por normas, regras, que coagem, de certa forma, os indivíduos a elas submetidos a agirem em conformidade com aquilo que nela se encontra preceituado:

Bobbio (2003, p. 09), em sua obra Teoria da Norma Jurídica, assevera sobre a vida submetida a normas:

[…] A nossa vida se desenvolve em um mundo de normas. Acreditamos ser livres, mas na realidade, estamos envoltos em uma rede muito espessa de regras de conduta que, desde o nascimento até a morte, dirigem nesta ou naquela direção as nossas ações. A maior parte destas regras já se tornou tão habituais que não nos apercebemos mais da sua presença. Porém, se observarmos um pouco, de fora, o desenvolvimento da vida de um homem através da atividade educadora exercida pelos seus pais, pelos seus professores e assim por diante, nos daremos conta que ele se desenvolve guiado por regras de conduta. Com respeito à permanente sujeição a novas regras, já foi justamente dito que a vida inteira, e não só a adolescência, é um contínuo processo educativo. Podemos comparar o nosso proceder na vida com o caminho de um pedestre em uma grande cidade: aqui a direção é proibida, lá a direção é obrigatória; e mesmo ali onde é livre, o lado da rua sobre o qual ele deve manter-se é em geral rigorosamente sinalizado. Toda a nossa vida é repleta de placas indicativas, sendo que umas mandam e outras proíbem ter certo comportamento. Muitas destas placas indicativas são constituídas por regras de direito. Podemos dizer desde já, mesmo em termos ainda genéricos, que o direito constitui uma parte notável, e talvez também a mais visível, da nossa experiência normativa. E por isso, um dos primeiros resultados do estudo do direito é o de nos tornar conscientes da importância do “normativo” na nossa existência individual e social […] (grifos nossos).

Ou seja, vive-se em uma sociedade guiada por regras de conduta, indicando por qual caminho deve-se seguir, como se deve agir ou deixar de agir. O ser humano aprende a se sujeitar a estas regras desde a infância, até o final de suas vidas, se condicionando a aceitar e a se sujeitar a novas normas jurídicas que surgem com o decorrer do tempo.

Obviamente, não se sujeita apenas a normas jurídicas, mas também a diversas outras imposições, seja por meio de coação ou não, que regem a sua vida, e de maneiras diferentes para cada um: normas sociais, preceitos religiosos, dogmas, crenças, regras morais, sociais, costumeiras, regras de etiqueta, regras da boa educação, boas maneiras e bons modos etc. Não existe vida em sociedade de forma harmoniosa sem a submissão comum de seus indivíduos às normas jurídicas que a regem.

Igualmente, assevera Gonçalves (2023, p. 15):

Não há um consenso sobre o conceito do direito. Pode ser mencionado, dentre vários, o de Radbruch: “o conjunto das normas gerais e positivas, que regulam a vida social” (introducción a la filosofia del derecho, p. 47). Origina-se a palavra “direito” do latim directum, significando aquilo que é reto, que está de acordo com a lei. Nasceu junto com o homem, que é um ser eminentemente social. Destina-se a regular as relações humanas. As normas de direito asseguram as condições de equilíbrio da coexistência dos seres humanos, da vida em sociedade. (…) A vida em sociedade exige a observância de outras normas, além das jurídicas, como as religiosas, morais, de urbanidade, etc. As jurídicas e as morais têm em comum o fato de constituírem normas de comportamento.

A norma jurídica, assim, tem como grande objetivo transformar em algo possível a convivência harmônica e pacífica da sociedade, possibilitando que exista um denominador comum seguido por todos, sendo este um verdadeiro garantidor da ordem e da paz social. Em que pesem seus defeitos, suas lacunas e as necessidades de adaptação com o decorrer do tempo, a norma jurídica, em seu sentido mais abstrato, é o verdadeiro alicerce da sociedade.

Posto isto, cabe analisar, então, o como o Direito se relaciona com a norma jurídica. A este respeito, Bobbio (2003, p. 11), sobre o conceito de Direito e a forma como ele se relaciona com a norma, assevera:

[…] O conceito de direito deve conter os seguintes elementos essenciais:

a) Antes de tudo, deve-se retornar ao conceito de sociedade, isto em dois sentidos recíprocos que se completam: o que não sai da esfera puramente individual, que não supera a vida de cada um enquanto tal, não é direito (ubi ius ibi societas) e, além disso, não há sociedade, no sentido correto da palavra, sem que nela se manifeste o fenômeno jurídico (ubi societas ibi ius)…

b) O conceito de direito deve, em segundo lugar, conter a ideia de ordem social: o que serve para excluir cada elemento que conduza ao arbítrio puro ou à força material, isto é, não ordenada… Cada manifestação social, somente pelo fato de ser social, é ordenada pelo menos em relação aos cidadãos…

c) A ordem social posta pelo direito não é aquela que é dada pela existência, originada de qualquer maneira, de normas que disciplinam as relações sociais: ela não exclui tais normas, ao contrário, serve-se delas e as compreende em sua órbita; contudo, ao mesmo tempo, as ultrapassa e supera. Isto quer dizer que, antes de ser norma, antes de concernir a uma simples relação ou a uma série de relações sociais, é organização, estrutura, situação da mesma sociedade em que se desenvolve, e a qual constitui como unidade, como ente por si só […] (grifos nossos)

Tem-se que o Direito depende da sociedade e a sociedade depende do Direito, existindo, aqui, uma espécie de simbiose entre ambos. Para existir a sociedade, é necessário do Direito, expresso pelo ordenamento jurídico, regendo e estabelecendo a sua estrutura e a forma como será regida. Ao mesmo tempo, para que haja o Direito, é preciso que exista uma sociedade, vez que aquilo que pertence ao âmbito particular, e que não atinge a convivência coletiva, permanecendo como particular, não pode, na visão de Bobbio (2003), ser considerado como integrante do Direito.

Outro ponto-chave referente ao conceito de Direito, é o conceito de ordem social. Como dito anteriormente, o estabelecimento e a manutenção da ordem social são os grandes norteadores do Direito. A ordem social irá definir aquilo que está ou não de acordo com o Direito, evitando meros arbítrios que fujam da ideia de ordem social e que possam deturpar o verdadeiro objetivo do Direito.

Há, aqui, uma verdadeira correlação direta entre Direito e a norma jurídica. Vez que norma jurídica seria o instrumento do Direito, aquilo por meio do qual o Direito se exprime, a regra que dirige a sociedade, percebe-se que a norma jurídica tem como objetivo garantir um dos três conceitos-chave da ideia de Direito, que seria a ordem social. A norma jurídica é o que possibilita que o Direito concretize o seu dever de estabelecer e manter a ordem social. Aquilo que servirá como instrumento desta ordenação será, assim, a norma jurídica.

Por fim, Bobbio (2003) conclui sobre o conceito de Direito que a ordem social não é dada pela existência, mas é oriunda das normas que regem as relações sociais, até mesmo as ultrapassando e as superando, vez que há, no Direito, uma efetiva organização, uma estrutura em torno da qual a sociedade orbita e que possibilita a existência da sociedade e das relações sociais, interpessoais, familiares, entre outras, como um todo maior. O Direito seria uma etapa anterior à norma, que organizaria e estruturaria a sociedade e, posteriormente, por meio da norma jurídica, seria reforçado ao almejar os verdadeiros objetivos do Direito, que seria tudo o quanto exposto anteriormente e, sem eles, não haveria sociedade organizada.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como explicitado anteriormente, são deveres do Direito à manutenção da ordem e da paz social, possibilitando o desenvolvimento de uma sociedade democrática e saudável. Todavia, como observado no exemplo abordado no início deste estudo, a sociedade nazista no século passado utilizou-se de normas jurídicas violadoras de Direitos fundamentais em nome da manutenção de uma suposta paz e ordem social.

Na Alemanha Nazista, a ordem social passava por retirar os judeus por completo da sociedade, vez que estes supostamente seriam os verdadeiros culpados por todas as desgraças sociais ali ocorridas. Assim, o extermínio dos judeus era justificado, era em nome de um bem maior, de valores deturpados inseridos naquela sociedade.

Ante todo o exposto, como seria possível, então, discernir, diferenciar, entre as ordens sociais? Que ordem social seria legítima e que ordem social não seria legítima? Qual paz social é tolerável e deve ser aceita, e qual paz social deve ser rechaçada? Quais comportamentos devem ser tidos como adequados, e quais comportamentos devem ser rejeitados?

Obviamente, não há uma resposta certa e assertiva para estas questões, mas refletir sobre estes assuntos necessariamente passa por compreender que o Direito e a norma jurídica devem estar alinhados a valores básicos, inerentes à condição humana, como a vida, a dignidade da pessoa humana, direito à saúde, liberdade, entre outros.

Como explicitado anteriormente, se o pressuposto for o da existência de valores comuns consagrados, é suficiente que exista um alinhamento do Direito e da Norma Jurídica com estes valores. A grande dificuldade existe quando não há um denominador valorativo comum, ou quando os valores de determinada sociedade violam direitos fundamentais. Como garantir, então, que os valores por detrás dos ordenamentos jurídicos sejam adequados, básicos e respeitem os direitos fundamentais inerentes à condição humana?

A partir do momento em que ocorre uma completa ruptura entre o direito positivo, presente no meio do ordenamento jurídico por meio de normas, e o direito natural, que independe de leis e regras jurídicas, que é inerente a todo ser humano, sendo universal, isto é, para todos, imutável, atemporal e independentemente da sociedade em questão, cria-se uma lacuna, um espaço para a tirania e arbitrariedades.

O desalinhamento do Direito e da Norma Jurídica com os direitos fundamentais é o que dá origem ao direito injusto, ao Direito que foge de sua finalidade inicial, e cria margem para a perpetuação de atrocidades como as aqui relatadas. Somente uma constante vigilância do Direito, um contínuo processo de reflexão acerca dos caminhos para os quais o Direito ruma, de verificação se está alinhado com a Justiça, é o que possibilitará que o Direito e Norma Jurídica atuem como verdadeiros defensores de direitos e liberdades, e não sejam instrumentos de tirania. Em outras palavras, é o problema deontológico do Direito.

REFERÊNCIAS 

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.

______. Teoria da Norma Jurídica. Tradução de Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. 2. ed. rev. Bauru, SP: Edipro, 2003.

______. Teoria Geral do Direito. Tradução de Denise Agostinetti. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

ENCICLOPÉDIA DO HOLOCAUSTO. As Leis de Nuremberg, s.d. Disponível em: <https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/nuremberg-laws#:~:text=LEI%20DE%20PROTE%C3%87%C3%83O%20DO%20SANGUE,da%20ra%C3%A7a%E2%80%9D%20>. Acesso em: 15 nov. 2022.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil: parte geral. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.

SILVA, Daniel Neves. Leis de Nuremberg. História do Mundo, s.d. Disponível em: <https://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/leis-nuremberg.htm>. Acesso em: 15 nov. 2022.

[1] Master of Laws em Direito pela University of Southern California (USC Gould School of Law, Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC-SP, Pós-Graduado em Financial Compliance pela University of Southern California (Estados Unidos), Pós-Graduado em Business Law pela University of Southern California (Estados Unidos), Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), foi contemplado com o Prêmio “Menção Honrosa” da PUC-SP, possui cursos de extensão pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) – Estados Unidos e pela University of Glasgow (Escócia). ORCID: 0000-0003-4563-0797. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/8955225876191097.

Enviado: 12 de janeiro, 2023.

Aprovado: 08 de maio, 2023.

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Daniel Soriano Blatt

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