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A Ausência de Democracia Participativa no Brasil e o Direito Indígena à Saúde Previsto na CF/88

RC: 14685
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CONTEÚDO

COUTINHO, Luís Felipe de Azeredo [1]

COUTINHO, Luís Felipe de Azeredo. A Ausência de Democracia Participativa no Brasil e o Direito Indígena à Saúde Previsto na CF/88. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 03, Ed. 04, Vol. 02, pp. 131-147, Abril de 2018. ISSN:2448-0959

Resumo

Diversos são os dispositivos constitucionais que dispõem sobre o Estado Democrático de Direito no Brasil. A democracia que se instituiu através da Assembleia Constituinte em 1998, foi um avanço histórico para o país, principalmente pelo rompimento com o regime totalitário que vigorava até então. Porém, essa democracia brasileira mostra-se incipiente e ineficaz em muitos aspectos, e principalmente quando comparada com outros países da América Latina, nos quais já existe algo mais perto de ser considerado como uma democracia livre, participativa e dialógica. A Bolívia e o Equador promulgaram, recentemente, Constituições inovadoras no sentido de participar aos seus diversos povos e segmentos da população, sem qualquer distinção, a própria confecção do Diploma Maior. Neste contexto, é preciso analisar qual sistema o povo brasileiro realmente almeja, através de seus governantes de representatividade duvidosa, bem como os reflexos dessa ausência de democracia no cotidiano da população. A ausência de efetividade no exercício do direito universal à saúde é um exemplo disso, no que concerne ao difícil acesso desse direito aos indígenas, o que vem a ser objeto de análise no presente trabalho.

Procurou-se, neste artigo, trazer um escorço histórico do surgimento do Estado nacional na Europa e na América Latina; explicar a origem do Estado plurinacional; fazer um breve levantamento das crises atuais que deram causa ao Estado plurinacional; explicar a evolução mundial para a construção deste novo paradigma; explicar as principais características e propostas do Estado plurinacional; trazer um pouco da realidade do Estado Democrático existente na Bolívia, comparando-o com o Estado Democrático brasileiro; abordar um pouco do direito universal à saúde, previsto na Constituição brasileira de 1988, principalmente no tocante à saúde indígena.

Palavras-Chave: Estado democrático, Democracias da América Latina, Ausência de Democracia Participativa no Brasil, Direito Universal à Saúde, Saúde Indígena.

1.Introdução

As manifestações de democracia no cotidiano do povo brasileiro são significativamente distantes da democracia livre, participativa e dialógica que vem sendo exercida em outros países da América Latina. A Bolívia e o Equador, por exemplo, através da promulgação de recentes Constituições, conseguiram demonstrar a todo o mundo o real significado de uma democracia capaz de traduzir a participação plural de todas as diversas identidades de seus povos na vontade nacional. Levando em conta esta discrepância entre a teoria e a prática do Estado Democrático brasileiro, torna-se necessária uma reflexão acerca da democracia brasileira, assim como da força e amplitude do Poder Constituinte, e da relevância da participação plural na criação da vontade nacional frente à crise da democracia representativa.

Tratando sobre o tema, a democracia exercida no Brasil foi confrontada com os bem-sucedidos modelos latino-americanos que vêm criando um novo paradigma mundial. Buscou-se, ainda, realizar uma análise crítica sobre a democracia representativa como instrumento de expressão da vontade popular, e abordar os caminhos e possibilidades da consagração do Estado plurinacional no Brasil.

Neste contexto, inevitável se torna uma comparação do intitulado Estado Democrático brasileiro com essas democracias latino-americanas mencionadas, e é um pouco deste confronto analítico que se almejou realizar com este artigo. Iniciou-se uma necessária reflexão sobre a força e amplitude do Poder Constituinte originário; sobre a importância de se repensar a democracia no Brasil; sobre a ausência de acesso ao direito à saúde por povos marginalizados, como os povos indígenas; sobre a fragilidade da democracia representativa como sistema de expressão da vontade do povo; sobre a importância da participação plural na vontade nacional; e ainda sobre a possibilidade de construção do novo paradigma do Estado plurinacional no Brasil.

2. A democracia brasileira comparada com a de outros países da América Latina

Não há dúvidas de que uma das grandes preocupações do Poder Constituinte originário de 1988 foi a de estabelecer o Estado Democrático de Direito no Brasil. O país vinha passando por um regime totalitário e necessitava, urgentemente, de transformações sociais. Grandes avanços foram obtidos com a promulgação da Constituição de 1988, mas o fato de a Assembleia Nacional Constituinte ter se espelhado nos modelos constitucionais europeu continental e norte-americano traduz a vulnerabilidade de nosso sistema atual. As recentes crises mundiais demonstraram que as ideologias praticadas por essas civilizações ditas como mais avançadas do mundo possuem suas fragilidades. É tempo agora de se repensar o ordenamento. Urge a necessidade de se construir uma nova ordem mundial. E neste sentido, alguns países da América Latina vêm saindo na vanguarda. Bolívia e Equador consagram, hoje, uma verdadeira democracia livre, participativa e dialógica para o bem de seus povos, que são compostos por diferentes grupos e por inúmeras identidades. Novas Constituições foram promulgadas nestes países, e o Estado Democrático, enfim, parece ser praticado de forma mais efetiva.

2.1 O Poder Constituinte originário e o Poder Constituído

De acordo com o Professor José Luiz Quadros de Magalhães[2], é importante estabelecer a diferenciação entre o Poder Constituinte originário (ou simplesmente Poder Constituinte), e o Poder Constituinte derivado (reformador, revisor ou decorrente), sendo este último denominado por alguns autores apenas como Poder Constituído. Esta distinção ganhou ênfase na Revolução Francesa, quando os Estados-Gerais, por solicitação do Terceiro Estado, se proclamaram como Assembleia Nacional Constituinte sem nenhuma convocação formal. A partir de então foram superadas as antigas teorias que pregavam a origem divina do poder, e passou-se a afirmar que o povo era o titular da soberania e, por isso, o titular do Poder Constituinte. Neste sentido, entendia-se que a Constituição deveria ser a expressão da vontade do povo nacional, a expressão da soberania popular.

Nesta esteira, o Professor José Luiz Quadros de Magalhães demonstra em seu artigo “O Estado plurinacional na América Latina”[3] que, ainda que se mostre impossível a absoluta isenção de interferência de mecanismos de controle no Poder Constituinte originário, é esta a forma mais autêntica de expressão da vontade do povo nacional. O Poder Constituinte originário é um poder de fato, nascido da revolução, e tão forte que se mostra capaz de romper com o ordenamento vigente. Por mais que exista um complexo jogo de poder por trás da Assembleia Constituinte, através do qual alguns têm a capacidade de impor seus interesses com mais força do que outros, o Poder Constituinte originário é a melhor expressão da soberania popular e da vontade do povo nacional de forma livre e dialógica. Ora, o poder deve emanar do povo, e é a Assembleia Constituinte que melhor representa a vontade deste povo. É também um poder de direito, se entendermos o Direito como algo maior do que a ultrapassada perspectiva legalista. Por outro lado, o Poder Constituído se manifesta através de uma aparente democracia, meramente representativa, e amplamente sujeita a jogos de poder econômico, poder intelectual, financeiro e, grosso modo, poder político. O Poder Constituído é um poder unicamente de direito, em sua abordagem mais restritiva, concentrado nas mãos de minorias elitistas que impõem seus interesses individuais e excludentes sobre a grande maioria da população, por meio de uma democracia “de fachada”, manipulada por financiamentos de campanha e controle midiático.

2.2 A ausência de democracia efetiva no Brasil

Em que pese o instrumento instituidor do Estado Democrático no Brasil tenha se mostrado correto, e não poderia ter ocorrido de outra forma senão com a promulgação de uma nova Carta Constitucional, a maneira utilizada pela Assembleia Constituinte para alcançar a efetiva democracia em nosso país é, nos dias de hoje, passível de questionamentos.

Vê-se comumente os governantes brasileiros, em todas as esferas de poder, bradando repetidas vezes, com um imenso orgulho, que vivemos em um Estado Democrático de Direito. Mas, em que momentos do cotidiano do povo brasileiro se exterioriza a democracia participativa e dialógica elementar de um Estado Democrático? Não se pode negar que existem algumas pequenas demonstrações de democracia. Mas estes incipientes avanços talvez sejam ainda insuficientes para a real consecução do que se busca em um regime democrático. Estes pequenos sinais de democracia que podemos perceber existentes no Brasil são ainda incapazes de satisfazer aos anseios das mais diferentes identidades que compõem o povo brasileiro, povo este que possui suas especificidades que devem ser respeitadas e, mais do que isso, necessitam ser consagradas em nossa Constituição.

No entanto, mostra-se natural que haja grande dificuldade de se colocar em prática, no Brasil, esta nova visão de democracia. Natural também que haja uma resistência na aceitação e percepção do real sentido deste paradigma. Até porque esta noção de democracia como uma forma efetiva, livre, participativa e dialógica de se ofertar o acesso de todos à construção da vontade nacional, é ainda uma novidade no cenário mundial contemporâneo. Neste sentido também é digno de destaque o fato de que, no afã de se instituir um regime considerado ideal, um regime adotado pelas civilizações ditas como mais adiantadas do mundo, o Brasil atropelou o caminho natural pelo qual deve percorrer um país em desenvolvimento. Nosso país ainda se mostrava carente de políticas de cunho socialista quando se implantou o regime democrático através de nossa Constituição, esperando-se que a prática se ajustasse à teoria de uma maneira quase metafísica.  O resultado não poderia ser outro senão o insucesso na consecução do regime democrático, tendo em vista que o próprio significado deste regime ainda é obscuro para a maioria da população, e para os governantes brasileiros.

Neste ponto é preciso ressaltar que, mesmo nos países europeus e norte-americanos considerados como os mais adiantados do mundo, onde o Direito sempre foi referencial de desenvolvimento, ainda não é efetiva esta democracia participativa e dialógica que mais se aproxima da realidade plurinacional de seus povos. Mesmo que em suas Constituições esteja consagrado o Estado Democrático já há bastante tempo, nestes países não são respeitadas as diversidades étnicas, culturais, religiosas, raciais, sexuais e políticas, entre outras, imiscuídas na natureza de seus povos. E é justamente neste aspecto que alguns países da América Latina vêem se mostrando pioneiros no sentido de caminhar, cada vez com mais força, para a formação de Estados plurinacionais. E para uma melhor compreensão deste movimento, necessária se faz uma breve análise da origem deste novo paradigma.

3. A origem do Estado nacional na Europa e na América Latina

Explica o Professor José Luiz Quadros de Magalhães[4] em seu artigo “Violência e modernidade: o dispositivo de Narciso” que as lutas internas ocorridas na Europa do século XV, nas quais o poder dos senhores feudais sucumbiu ao poder do Rei, acabaram por resultar em uma grande massificação do Estado e de seu povo, em todos os níveis, unificando o poder interno, e iniciando o processo de formação do Estado nacional. Houve uma intensa uniformização de valores de identidade que, naquele momento, se mostrava necessária para o reconhecimento do poder do Estado pelos cidadãos. Neste norte, o objetivo principal deste novo Estado que se formava era impor uma única identidade sobre seu povo, marginalizando e excluindo as demais identidades pré-existentes. Este processo de nacionalização atingiu aspectos sociais, intelectuais, culturais, filosóficos e, principalmente, religiosos, gerando uma crescente intolerância àqueles que estavam “fora dos padrões”. Criou-se até mesmo uma polícia da nacionalidade, originando a Santa Inquisição. A afirmação daquele novo Estado nacional dependia desse processo excludente e marginalizador, e dependia da aceitação pela população de valores comuns.

Continua o Professor Magalhães ensinando que, diferentemente do processo europeu, na América Latina a formação do Estado nacional se deu com as lutas pela independência ao longo do século XIX. Ocorre que os processos de independência dos países latino-americanos foram organizados e comandados por minorias, ou seja, pelas elites econômicas e militares, que excluíram e alienaram daqueles movimentos a grande maioria da população local, sejam povos indígenas originários, sejam imigrantes forçados africanos. Neste sentido, o Estado nacional na América Latina não se formou a partir de um processo de unificação das identidades, mas sim de uma verdadeira exclusão das diferenças, até mesmo com a dizimação de índios e negros.

No entanto, o resultado deste processo de nacionalização, seja na Europa, seja na América Latina, resultou em um mesmo cenário, qual seja, uma única identidade religiosa, cultural, intelectual e social estabelecida sobre a população.

Com o advento da constitucionalização, no século XVIII, e com a aproximação dos valores de constituição e democracia, ainda que de bases liberais, na segunda metade do século XIX, tornaram-se incompatíveis algumas ideias originárias do Estado nacional, como, por exemplo, a que pregava a construção da identidade nacional com base em uma única religião, regulando a economia e, agora, o Direito. Fazia-se necessário substituir aqueles ultrapassados elementos agregadores de identidade, para que os diversos grupos sociais continuassem reconhecendo o poder do Estado como legítimo. A Constituição assumiu este papel. Todavia, ainda que constitucionalizado, o Estado permanecia nacional, intolerante, uniformizador e massificador, marginalizando radicalmente diversos grupos, e criando nestas parcelas da população uma alienação cultural, social, intelectual e econômica. Uma falsa ideia de “pacto social” foi plantada na população, como se aquele Direito de intolerância e uniformização imposto pelo Estado pela Constituição fosse aprovado e desejado inclusive pelos povos originários, em detrimento de suas próprias regras e tradições.

Porém, as recentes crises econômicas mundiais do século XXI começaram a dar sinais de esgotamento do sistema capitalista moderno e global. Crises ambientais e a necessidade urgente de mudanças no padrão internacional de crescimento e geração de energia refletiram a crise do Estado nacional, tornando-se imperioso o pensamento de uma nova ordem mundial. Isso tudo, aliado à crescente valorização do conceito de democracia, começa a romper com o paradigma moderno, de Estado nacional. É necessário, nestes tempos, efetivar a democracia, pois não há mais espaço para hegemonias características de um modelo ultrapassado e irracional. Trata-se, agora, de uma verdadeira democracia, participativa e dialógica, que rompe com as bases teóricas e sociais do Estado nacional, ainda que este Estado se autodenominasse constitucional e democrático já há algum tempo.

4. O surgimento de um novo paradigma: o Estado plurinacional

É da citada democracia participativa e dialógica que nasce o conceito de Estado plurinacional, que supera o Estado nacional, derrubando a ideologia de intolerância da diversidade, e suprimindo a noção de sistema capitalista como única forma aceitável de sociedade moderna.

Ainda que em toda a América Latina este Estado plurinacional venha se mostrando cada vez mais presente, estão na Bolívia e no Equador os sinais mais claros de superação da brutalidade do Estado nacional. Isto porque a formação do Estado plurinacional nestes dois países decorre de recentes revoluções, que surtiram em novas Constituições e, como visto acima, o Poder Constituinte originário, ao envolver ampla mobilização popular, é a mais autêntica expressão de vontade do povo, de soberania popular, e de legitimação de poder.

Diante disto, a nova Constituição da Bolívia, por exemplo, consagra o Estado plurinacional de forma inequívoca, concedendo amplos, legítimos e inovadores direitos e garantias aos seus povos originários, inclusive com a plena participação destes povos no governo do Estado, tanto na função legislativa, quanto nas funções judiciária e executiva. E, avançando na ótica do Estado plurinacional, a nova Constituição boliviana estabelece o laicismo do Estado, dentre outras propostas socializadoras que agregam os povos, respeitando e valorizando suas diferenças. É essa a principal característica do Estado plurinacional.

4.1 O Estado plurinacional e democrático boliviano

O novo Estado boliviano mostra-se como um verdadeiro exemplo de nova ordem política, econômica e social internacional. É um modelo de real democracia, participativa e dialógica popular. É, de fato, um Estado igualitário, tolerante com as diversidades e pluralidades, anunciando uma revolução na América tendente a abolir com a brutalidade e intolerância do Estado nacional, ao contrário de muitos países que exercem uma democracia meramente representativa.

Considerando este novo direito constitucional boliviano, e sua tendência a sobrepor-se ao sistema nacionalista, surge uma nova questão, de cunho inédito na ordem mundial: o direito europeu, assim como o estadunidense, não será mais visto como universal e como o modelo de civilização mais evoluído do mundo.

Assim, no lugar de um sistema que prega a hegemonia, surge um sistema não hegemônico, democrático, dialógico, plural e complementar. E, neste novo modelo, ao contrário do que poderia se pensar, os conjuntos de identidades, por mais variados que sejam, ao se complementarem, e não mais se excluírem, fortalecem ainda mais a unidade das forças democráticas contra o imperialismo, como sustenta Ileana Almeida em sua obra “El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos[5].

4.2 A democracia boliviana comparada à democracia brasileira

Diante do exposto, e comparando a democracia boliviana com o modelo brasileiro, ainda podemos dizer que a República Federativa do Brasil constitui-se em um verdadeiro Estado Democrático?

Ora, a Constituição da Bolívia reserva cerca de 80 artigos para a questão indígena, dispensando especial atenção às diversidades de seus trinta e seis povos originários. Estes povos possuem ampla participação no poder estatal e na economia. Existe uma cota para parlamentares oriundos dos povos indígenas. Pela nova Constituição, estes povos também possuem exclusividade nos recursos florestais, recursos hídricos, e nos direitos sobre as terras de suas comunidades. A Constituição boliviana estabeleceu ainda uma equivalência entre a justiça tradicional indígena e a justiça ordinária do país, estabelecendo tribunais próprios de cada comunidade indígena, cujas decisões não são passíveis de revisão pela Justiça comum. As normas eleitorais foram descentralizadas. O Direito de Família também foi alterado pela Constituição da Bolívia, sendo reconhecidas, agora, várias formas de constituição de família. Outro aspecto relevante nesta nova Constituição boliviana é a criação de um Tribunal Constitucional plurinacional, com membros eleitos pelo sistema ordinário e pelo sistema indígena. De fato, a Constituição da Bolívia é um modelo a ser seguido pelos países que buscam de fato a democracia efetiva, igualitária, livre, participativa e dialógica.

Já na Constituição brasileira não se encontra a mesma dedicação e preocupação com seus povos originários. Agrupados todos sob o mesmo rótulo de “índios”, os povos originários brasileiros possuem pouquíssima ou quase nenhuma participação no Poder Legislativo, Executivo e Judiciário. Aliás, no Brasil não existe sistema judiciário próprio dos indígenas, e seus direitos, ainda que possam ser intitulados de garantidores de suas tradições e costumes, foram construídos sem a participação de seus maiores interessados e beneficiários. O artigo 231 da Constituição brasileira reconhece a organização social dos índios, assim como os seus costumes, línguas, tradições, crenças, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Entretanto, não houve nenhuma participação indígena na formulação deste artigo. A Assembleia Nacional Constituinte não foi composta por parcela indígena. Diante disto, pode-se concluir que, no caso brasileiro, não houve a democracia participativa e dialógica que hoje constata-se presente na Bolívia e no Equador. O Poder Constituinte brasileiro inovou no ordenamento até então vigente, sem, contudo, haver nenhuma espécie de participação plural na construção da nova ordem. Não houve ampla discussão dialógica e participativa popular. O Poder Constituinte brasileiro criou normas, estabeleceu princípios e valores, sem a participação de todos os interessados. E fica evidente que não se pode atingir uma democracia efetiva sem oportunizar a expressão da vontade a todos os grupos que compõem o povo nacional. A democracia verdadeira tem que ofertar às mais diferentes classes, grupos e etnias, o acesso à criação originária de regras, normas, princípios e valores.

Saindo da questão dos povos originários, podemos ainda refletir sobre o respeito às diversidades sexuais, religiosas e culturais existentes em um país de dimensões continentais como o Brasil. Esta imensa pluralidade é respeitada e consagrada em nosso Diploma Maior? Certamente que não.

No âmbito do Direito de Família, por exemplo, isto fica bem claro. Certo é que a nossa Constituição contém princípios específicos sobre a família. E neste ponto merece destaque a importância contemporânea da principiologia, importância esta que decorre de sua força normativa. E como explica Canotilho[6], a ideia de Constituição em sentido normativo se apoia em dois alicerces: o primeiro é a noção de que a Constituição é um conjunto de regras jurídicas (normas e princípios) codificadas num texto (documento) ou cristalizadas em costumes e que são consideradas proeminentes relativamente às outras regras jurídicas; e o segundo é a visão de Constituição como um conjunto de regras jurídicas de valor proeminente porque são portadoras de determinados conteúdos aos quais é atribuído um valor específico maior, dentro de uma determinada comunidade. Continua Canotilho esclarecendo que o conceito de “norma jurídica” é formado pela soma de “norma regra” com “norma princípio”. E dentre esses princípios constitucionais relativos ao Direito de Família, podemos encontrar o princípio da pluralidade das entidades familiares. Hoje são reconhecidas diferentes formas de família em nosso país, havendo inclusive famílias monoparentais, famílias homoparentais, famílias biológicas, famílias socioafetivas, etc. Pela Constituição brasileira a família deixou de possuir uma concepção institucional, passando a ter um caráter instrumental. A jurisprudência pátria também é uníssona neste sentido, inclusive com a edição de súmulas que corroboram a pluralidade das entidades familiares. Também podemos destacar as recentes facilitações na dissolução das entidades familiares, incluídas em nossa Constituição. No entanto, em que pesem todos estes argumentos, deve-se frisar que tais avanços não decorreram do Poder Constituinte originário. Vários destes princípios garantidores da pluralidade familiar são oriundos do Poder Constituído e, ademais, também são insuficientes para caracterizar uma democracia que de fato represente a todos.

Lado outro, a legislação infraconstitucional, a doutrina e a jurisprudência vêm avançando na consagração de uma democracia pluralista. Mas, da mesma forma como ocorre com o Poder Constituído, essas fontes de direito infraconstitucionais não possuem a força e a amplitude do Poder Constituinte originário. E é deste Poder Constituinte originário, capaz de melhor expressar a vontade popular eivada de diversidades, que deve surgir a evolução do plurinacionalismo, para que de fato se consagre o Estado Democrático em nosso país.

5. A possibilidade da implantação de uma democracia participativa e dialógica no Brasil

Segundo as explanações já aduzidas, percebe-se que, apesar da existência de claras manifestações democráticas no Brasil, o nosso país ainda está muito aquém daquilo que se busca em um regime verdadeiramente democrático. Os pequenos sinais de avanço no sentido do plurinacionalismo, sejam legislativos ou jurisprudenciais, ou ainda derivados de reformas constitucionais, não decorrem da forma mais autêntica de representação da vontade do povo, possuidora uma força única, que é a força do Poder Constituinte originário.

Somente com a convocação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte, composta da forma mais plural possível, que proporcione um amplo debate dialógico, reflexivo, participativo, e que oferte o acesso de todas as parcelas da população, será possível aproximar o conceito de democracia à Constituição.

O Professor José Luiz Quadros de Magalhães[7] explica que o constitucionalismo não nasceu democrático. O constitucionalismo surgiu com bases claramente liberais, visando a construção de um espaço de segurança jurídica e de proteção da esfera individual. Os direitos fundamentais eram para poucos.

A fusão entre democracia e Constituição começou a ocorrer somente na segunda metade do século XIX, por força dos movimentos operários e dos partidos de esquerda, trazendo a ideia de que a vontade da maioria tem limites de decisão. Entretanto, a tensão entre Constituição e democracia não acabou e nem deve acabar, pois Constituição ainda transmite a ideia de segurança, continuidade, pretensão de permanência, enquanto democracia contém a noção de mudança, pois é a expressão de vontade das pessoas em sociedade, que estão em constante transformação.

Desta forma, a despeito da impossibilidade de total integração entre estes dois conceitos, quanto mais eles puderem se aproximar e caminhar juntos, mais Democrático de Direito será o Estado.

Todavia, a questão prática no Brasil envolve dificuldades operacionais na consecução desta aproximação de democracia e Constituição. Sabe-se que a população brasileira é bastante numerosa, e o próprio território físico nacional possui dimensões diferenciadas. Levando em consideração as condições social-financeiras da grande maioria da população, somadas com o baixíssimo nível de escolaridade, e com a alienação cultural, intelectual e política de nosso povo, certamente estará obstaculizada a democracia participativa. Seria possível convocar o povo, ou simplesmente ofertar-lhe o direito de participação em uma discussão profunda sobre valores e princípios, quando este mesmo povo está mais preocupado sobre a possibilidade de dar comida para sua família? Esse povo brasileiro recebe um salário mínimo por mês, e trabalha em período integral para simplesmente “sobreviver”. Seria o modelo boliviano uma utopia em um país como o Brasil, ou devemos nos espelhar em nossos vizinhos que obtiveram êxito em tal tarefa?

A resposta para essas perguntas ainda está em aberto, e deve ser construída a cada dia. Na medida em que o nosso país avança economicamente e consegue proporcionar ao seu povo condições básicas para uma vida mais digna e civilizada, torna-se mais viável a democracia participativa que hoje já é praticada na Bolívia e no Equador. O Brasil talvez seja um dos países que mais possuem diversidades culturais, religiosas, raciais e étnicas no mundo, e nada seria mais legítimo e gratificante do que a consagração do Estado plurinacional em nosso país. Os povos originários brasileiros devem ser respeitados em suas diferenças, culturas e tradições, não só porque assim permitiu o Poder Constituinte originário, mas principalmente pela participação destes próprios povos na construção da vontade nacional. Nada seria mais humano, agregador e fortalecedor das diversas identidades do Brasil do que a consagração do Estado plurinacional, suprimindo um regime de intolerância, exclusão e brutalidade disfarçado sob o rótulo de Estado Democrático. E a valorização do conceito de democracia, e sua aproximação à Constituição, oportunizando o acesso de todos na construção do ordenamento, deve ser perseguida, para que em um futuro próximo o nosso país possa consagrar, através de uma nova Carta Constitucional, o novo paradigma do Estado plurinacional.

6. O direito indígena à saúde, previsto na CR/88

A Constituição da República Federativa do Brasil preconiza em seu artigo 196 o seguinte:

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Nesta esteira, além de atribuir ao Estado o dever de proporcionar saúde à população como um todo, a CR/88 estabeleceu o direito universal à saúde, sem distinção de nenhuma natureza.

Desta forma, o Estado deve garantir o acesso à saúde a todas as parcelas da população, de forma universal, incluindo este acesso às pessoas que não possuem empregos formais, que não possuem renda, populações que se encontram em situação de pobreza, de miséria, ou que vivem em regiões de difícil acesso.

No caso da saúde indígena, especificamente, o Estado brasileiro somente começou a dedicar uma atenção especial a partir da Lei Arouca (Lei 9.836/99) que criou o subsistema de saúde indígena.

De lá para cá, até os dias de hoje, diversas alterações administrativas foram feitas acerca dos órgãos responsáveis pela gestão e execução da saúde indígena, sendo que estas se encontram atualmente como atribuições da Secretaria Especial de Saúde Indígena – SESAI, e também da Secretaria de Assistência a Saúde – SAS, esta última com especial função de interlocução com os sistemas municipais de saúde.

Porém, em que pese todas essas evoluções governamentais no sentido de conferir tratamento especial e diferenciado à saúde indígena, é cediço que o resultado final ainda não é satisfatório. Os números da saúde indígena ainda demonstram alto índice de suicídio, alto índice de alcoolismo, entres outros.

O governo federal vem adotando medidas claramente positivas à saúde indígena, como por exemplo a terceirização dessa gestão através de entidades filantrópicas do terceiro setor, o que confere maior agilidade e eficiência na consecução da garantia aos indígenas do direito à saúde.

Certo é que a atenção estatal à saúde indígena ainda se mostra em segundo plano, padecendo de escassez de recursos financeiros e material humano capacitado. Talvez seja necessário um maior engajamento político da própria sociedade a fim de reparar um pouco as históricas injustiças que os povos originários brasileiros sofrem a tanto tempo, incluindo o direito fundamental à saúde, garantido de forma universal em nossa Carta Maior de 1988.

Conclusão

Pelo presente trabalho, conclui-se que o Brasil, a exemplo de outros países que se autodenominam democráticos, ainda não consegue exteriorizar, praticar, aplicar ao seu povo uma democracia participativa e dialógica inerente ao verdadeiro Estado Democrático de Direito. Ainda não existe, em nosso país, uma participação plural nas esferas de poder Estatal. As diferenças culturais, étnicas, religiosas, sexuais e raciais não são respeitadas, e nem mesmo abordadas de forma ampla, de maneira que atinja a todas as identidades do povo brasileiro. Não existe uma discussão dialética com os diferentes grupos presentes em nossa população, até mesmo pelo entrave prático em que isso implicaria. Os povos indígenas, originários do Brasil, assim como os imigrantes forçados, são obrigados a se submeter a um Direito a eles imposto.

No entanto, é inegável a crescente valorização do conceito de democracia em nosso país, assim como a evolução no respeito das diversidades de identidade, ainda que esta evolução seja oriunda apenas de nosso Poder Constituído. O que se espera, agora, é que essa tendência, somada aos avanços dos países latino-americanos na formação de Estados plurinacionais, resulte em um futuro de consagração deste novo paradigma de agregação, integração, tolerância, inclusão e respeito no Brasil.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Editora Abya Yala, Quito, Ecuador, 2008, pág. 21.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 168p.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Editora Almedina. 5ª edição. Coimbra, 2002. Págs. 1114 e 1115.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional Tomo III: teoria da Constituição. Belo Horizonte: Editora Mandamentos, 2006.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. O Estado plurinacional na América Latina. Disponível em: < http://jusvi.com/artigos/38959/2> Acesso em: 15 de abril de 2011.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Violência e Modernidade: o dispositivo de Narciso. Disponível em: < http://jusvi.com/artigos/38959/2> Acesso em: 15 de abril de 2011.

[1] Especialista em Direito Público pelo Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogado. Trabalho realizado pelo autor a pedido e em favor da Santa Casa de Misericórdia de Sabará/MG, para constar no acervo desta instituição.

[2] MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional Tomo III: teoria da Constituição. Belo Horizonte: Editora Mandamentos, 2006.

[3] MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. O Estado plurinacional na América Latina. Disponível em: < http://jusvi.com/artigos/38959/2> Acesso em: 15 de abril de 2011.

[4] MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Violência e Modernidade: o dispositivo de Narciso. Disponível em: < http://jusvi.com/artigos/38959/2> Acesso em: 15 de abril de 2011.

[5] ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Editora Abya Yala, Quito, Ecuador, 2008, pág. 21.

[6] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Editora Almedina. 5ª edição. Coimbra, 2002. Págs. 1114 e 1115.

[7] MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. O Estado plurinacional na América Latina. Disponível em: < http://jusvi.com/artigos/38959/2> Acesso em: 15 de abril de 2011.

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Luís Felipe de Azeredo Coutinho

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